Quem já não ouviu expressões como briefing, CEO, gap, compliance, outsourcing, deadline e ficou perdido? O diretor executivo, “presidente” ou CEO, sigla para Chief Executive Officer. Para os “mais evoluídos”, treinamento é coisa do passado, e um novo conceito promete avanços: coaching. O resumo de uma proposta profissional fica melhor quando chamado de briefing. E se a empresa precisa importar capital humano, ou seja, contratar pessoas qualificadas em conhecimentos especializados, melhor chamar um headhunter; termo com glamour para o velho e bom “recrutador”.
Precisa treinar um colaborador usando ferramentas e-learning? Enquanto isso, uma equipe está em treinamento via hangout, e o gerente aproveita para acompanhar uma outra, ou melhor, fazer o follow-up, monitorando as atividades desenvolvidas.
A busca pela conformidade soa melhor sendo chamada de compliance, e se há pontos críticos a serem trabalhados entre o que está operacionalizado e o que precisa ser desenvolvido, é bem mais sofisticado chamar de gap e o prazo final para conclusão dos trabalhos, soa melhor como deadline.
E se estivermos no mercado financeiro então…
Tecnicismos, neologismos, estrangeirismos; não sou purista. Entendo que são necessários para sintetizar e acelerar a comunicação, no entanto, podem ser aplicados com outras finalidades, não virtuosas, diria, além de um certo espírito provinciano que alguns chamariam de “complexo de vira-lata”, terminologia podem ser usadas para marginalizar ou excluir indivíduos de um meio social.
A linguagem é um “organismo vivo”, ouvi certa vez de um professor linguista do seminário e o sentimento de exclusão pode ser também um fenômeno natural. Quando estudo para dominar uma língua estrangeira, trabalho para me inserir em uma comunicação que julgo ser importante participar. Se quero entende um dialeto local, estou diante de mais um esforço para me livrar de uma exclusão natural. Se estou estudando Blockchain é porque quero me incluir em um ambiente cujas terminologias se desenvolveram naturalmente. Não é porque sou ignorante no tema que devo ver a minha exclusão, no uso da linguagem, como uma coisa perversa. No meio corporativo, desde a “rádio peão” até às mesas de diretores, códigos são adotados frequentemente por inúmeras razões e quase sempre se dão pela necessidade prática de uma comunicação que precisa ser resumida, objetiva e célere sobre elementos abstratos e comuns na “economia das palavras”. Então, que fique claro que este texto não pretender ser “lacrador”.
Em um almoxarifado de uma grande indústria, observava operadores usando siglas e termos em inglês. Sem tal prática, os processos de comunicação seriam bem mais burocráticos no ambiente produtivo, inclusive nos aplicativos online. E eis que um advogado que me acompanhava, se sentindo excluído na comunicação, sorriu dizendo que “não estava entendendo nada do que os operários diziam” e eu comentei: “só assim você fica sabendo como as pessoas não versadas em direito se sentem quando os advogados usam o juridiquês” (risos).
De fato, há um poder na síntese, quando bem aplicada. Ora, se posso dizer algo com três ou quatro palavras, por que usaria um parágrafo com três linhas?
Quando se usam termos típicos em cloud computing [1], entre profissionais de TI, tudo flui rapidamente. Quando um analista de mercado financeiro fala em “gap” e aplica outras terminologias entre colegas, se segue o mesmo princípio da fluidez. Porém quando terminologias são usadas indiscriminadamente, especialmente direcionadas a leigos, sem discernimento dos significados, o uso perde o sentido e tende a se tornar um instrumento de exclusão não natural, quem sabe em favor de alguma egolatria, “marcação de território” ou para intimidação e assim, a parte que desconhece os significados não consegue acompanhar o desenrolar das ideias em curso e acaba marginalizada.
A aplicação de termos sintéticos na forma de “linguagem codificada”, as vezes pode ser necessário para se preservar até da opressão; parece ser o caso de cristãos no período da perseguição do Império Romano, antes de Constantino oficializar a crença; muitos fizeram uso de “linguagem codificada” para excluir os agentes do estado romano das conversas, dificultando o entendimento de textos e cartas entre os perseguidos por causa da fé e dessa estratégia de auto defesa, diante do estado, podem ser explicados códigos de obras como o livro do Apocalipse. Por isso esta obra parece ser tão difícil de ser interpretada; foi propositalmente elaborada assim, como mecanismo de defesa e privacidade.
Disse Confúcio: “quando as palavras perdem o significado, as pessoas perdem a liberdade”. Quem já não percebeu o uso mal intencionado de um termo no intento de manipular, confundir ou fraudar uma comunicação? O conceito de “duplipensamento” é uma das coisas mais provocantes na obra “1984” de Orwell. Conciliar, aceitar, duas ideias antagônicas, contrárias, conflitantes, ao mesmo tempo, aplicando contextualizações sociais distintas, conforme as conveniências políticas, está longe de ser um instrumental exclusivo daqueles que são taxados como sendo militantes de “esquerda”. Por sinal, em um tempo que muitos se acham donos de expressões, o título deste artigo pode ser uma tentação para quem acha que termos como “exclusão” são cativos a pensadores de esquerda.
Quando não na intenção de manipular, para fazer o que Saramago chama de “colonização do outro”, o uso de terminologias também pode denotar formas de intimidação: Quem já não se sentiu excluído por alguém que, para se passar por “superior”, mais qualificado, abusou de expressões técnicas, neologismos ou estrangeirismos, muitas vezes inseridos de maneira imprópria para deixar explícito um suposto desconhecimento alheio, muitas vezes até irrelevante no contexto do que se está em discussão, porém com a intenção maldosa de reduzir, hostilizar ou até humilhar um semelhante colega de trabalho? Ora, não conhecer um determinado termo é uma exclusão natural nas relações humanas, desconhecer os componentes teóricos que o forjaram, é outra coisa natural, mas usar a linguagem técnica para forçar situações de exclusão, quando há formas mais simples de se expressar em favor da inclusão, é outra coisa, sendo deplorável.
No mundo da vida, quando observo a linguagem sendo uma coisa forçosamente rebuscada, penso em Graciliano Ramos, quando em Linhas Tortas (1962) singelamente diz:
Se “compliance” diz muita coisa a um grupo de executivos, ótimo! Se vai ser usada, sem que haja correta explicação do significado, para pessoas não versadas na terminologia, não há sentido virtuoso em aplica-la. Aliás, poucas coisas são tão inúteis quanto o economês, em certas ocasiões. Considero ridículo ver economistas se esbaldando em expressões restritas à linguagem técnica para diminuir o público considerado leigo. Ora, se o economês mal serve a economistas, imaginem aos não iniciados… O economês deve servir a economistas tanto quanto serve o juridiquês a advogados, promotores e magistrados; fora disso, é pura idolatria do ego ou do abstrato.
A questão da exclusão pela linguagem também lembra a historia de um seminarista que foi dar um sermão em um culto e usou e abusou de termos em grego e hebraico para um plateia não familiarizada. No final, uma ouvinte que esperava ouvir “o recado de Deus ao seu coração”, como gostam de dizer os antigos pastores, quando indagada sobre o que escutou, disse que “foi lindo”, apesar de “não ter entendido nada do que foi dito”.
Briefing? CEO? Gap? Compliance? Outsourcing? Deadline? Coaching? E-learning? Cloud computing? São apenas expressões, úteis conforme a ocasião. O que importa é se serão bem compreendidas. Como todas as palavras, usá-las requer sabedoria e boa índole.
Grandiosa é a missão de quem faz uso da palavra, sendo dita ou escrita, não para enaltecer a si mesmo diante dos mais simples, criando um abismo na comunicação, pois, essencialmente, a palavra, como dissera o mestre Graciliano Ramos “foi feita para dizer”, e quando não “diz”, perde o teor de humanidade, exclui, afasta, ofusca, se esvazia, vira coisa morta.
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