Outro dia estava assistindo a uma apresentação de um ERP integrado a um sistema de contabilidade e o palestrante, que se definiu como “pós-graduado em auditoria digital e direito tributário com especialização em Sped”, fazendo uso de uma storytelling, se empolgou no final para enaltecer o triste fim de uma empresa que foi a falência devido a sucessivas penalizações e multas do fisco.
“A empresa fechou, mas o importante é que a lei foi cumprida!”, falou com um certo ar de satisfação.
Apesar de ser algo corriqueiro, não deixo de me impressionar com o nível de alienação sobre as agressões do estado entre formadores de opinião no mercado contábil. Chega a ser alarmante como parecem não se importar com empresas que vivem sob constante ameaça de serem destruídas por dificuldades criadas pelo fisco, através das obrigações acessórias, e pelo intervencionismo governamental. Então, nessas apresentações sobram clichês como “o leão (a Receita) está de olho”, “o fisco vai pegar”, e o famoso “é lei, tem que cumprir!”.
Em suma, tais “especialistas” agem como se os honorários que recebem não fossem pagos através das empresas, e sim pelo fisco; há uma explicação para esse comportamento, mas prefiro iniciar considerando uma publicação do professor Edgar Madruga, entusiasta do Sped bastante respeitado no meio contábil, que equiparou o “crime” de sonegação ao crime de corrupção. Afirma o nobre acadêmico que “se a corrupção representa usurpar do bem público em benefício de interesses particulares, o efeito prático do ato de sonegar é exatamente o mesmo, já que seus malefícios também privam a sociedade da justa contrapartida do Estado ao muito com que ela contribui.” [1]
Quem se arrisca a empreender no Brasil se vê diante de um cenário onde estar em “compliance” com o fisco é algo tão fácil quanto ver um “político honesto” e ainda tem que ler e ouvir tais coisas.
As aberrações do sistema tributário brasileiro, pensado para não ser cumprido pelos ditos “contribuintes”, assim como a base da legislação trabalhista (CLT), inspirada no fascismo italiano dos anos 1920, fonte inesgotável de litígios e custos que encarecem a manutenção do capital humano nas empresas, também são coisas inquestionáveis e todos os que buscam resisti-las são tão perigosos para a sociedade quanto os políticos que desviam recursos, por sinal expropriados, tomados à força (impostos!) de quem realmente gera riqueza, e tem a propriedade privada violada, e quando reage a tal agressão é acusado de “usurpar do bem público em benefício de interesses particulares”, enquanto assiste à corrupção sistêmica no estado.
Não vejo uma alma penada advogando em favor do atual sistema tributário brasileiro. Há um consenso de que precisa ser reformado, “é regressivo, injusto com os mais pobres”, dizem. Tal vontade de reformar me parece um tanto suspeita e desconfio que, em muitos casos, seja apenas mero discurso corporativo, sobretudo de fontes que vivem do negócio chamado “Custo Brasil,” explorando cursos, consultorias, treinamentos, palestras e sistemas. Na visão dessa gente, o futuro de prosperidade se resume a ser escravo do governo, onde a sociedade gira em torno, e resistir não cumprindo as normas do fisco, assim como não recolher os “devidos” impostos, são atos criminosos.
Seria a lei sinônimo de moralidade?
Olhando aqui para o meu quintal, o vendedor de cachorro-quente que tem sua carrocinha apreendida por fiscais da prefeitura seria tão nocivo à sociedade quanto os condenados na Lava Jato, pois não tem alvará, não recolhe impostos, e merece ser acusado de “usurpar do bem público em benefício de interesses particulares”, enquanto busca prover o próprio lar?
Lei é lei, e não se discute mais sobre isso! É vero?
Levando a fundo essa visão legalista (e infernal) da vida em sociedade, o que o nazismo fez com judeus, foram procedimentos “legais” que faziam parte do sistema jurídico do estado germânico e, portanto, toda resistência em favor das vítimas do holocausto e das ações tributárias sobre os judeus se configurou como ato criminoso?
As leis de expropriação de propriedades privadas do regime stalinista eram para ser respeitadas na mesma condição então, assim como os campos de concentração na Sibéria (Gulag), pois eram todos previstos em lei à época, ficando aqueles que resistiram com a chancela de criminosos perante o estado?
O que dizer de leis protecionistas no Brasil que só servem para proteger empresários articulados com governos municipais, estaduais e o federal, a base do capitalismo de laços, enquanto consumidores são penalizados com produtos mais caros, impossibilitados de terem acesso ao que é produzido por concorrentes com preços menores?
O que dizer das regalias de deputados, senadores e funcionários públicos?
Está tudo na “lei”.
Corram para as montanhas!
A escravidão foi legal até o século XIX em várias partes do mundo, e assim todo escravo que lutou pela liberdade também foi um “criminoso”, segundo os ditames nos estados e a ótica de quem vê no legalismo estatal, sinônimo de moralidade e decência. Não é por acaso que o melhor certificado de “trabalho escravo” hoje em dia pode ser conferido em qualquer cupom ou nota fiscal…
Por que experts do meio contábil pensam assim em relação ao aparato legalista do estado, mesmo quando reconhecem alguns abusos? Primeiro, foram educados para servirem na cultura de subserviência ao estado. Segundo, por essa formação, muitos confundem lei com legislação, legalidade com moralidade, enquanto outros são mais perversos; sabendo da diferença, caem na pura hipocrisia. Terceiro, sendo o humano um ser que age por estímulos, tais “formadores de opinião” ao se depararem com um sistema tributário tão agressivo com o meio produtivo, demandando inúmeros serviços complexos, estando do lado da oferta, tendem a conceber a exploração de todo o aparato estatal pelos próprios interesses de exploração (e não poderia ser diferente) em meio a dificuldades inventadas pelo lado da coerção (do estado) sobre quem empreende e gera riqueza. Por isso, enquanto se evidencia o lado legalista-burocrático-estatal, experts tributários se determinam a um corporativismo porque veem em tais coisas, a garantia da base de seus honorários.
A ação humana é o que se tem por pragmatismo sobre o ético; e nem sempre o que entendemos como “justo” ou “honesto”, tem alguma relevância quando coisas degeneradas se transformam em meios de vida.
Nessa mentalidade, não há qualquer apreço pelos tomadores de serviços que estão no lado produtivo. Comprometidos com o aparato opressor do estado, tenderão a ignorar os graves problemas gerados pelas linhas auxiliares do governo (fisco e entidades subservientes) e assim se sentirão bem acomodados para fazer coro com o lado que pratica a extorsão devidamente amparada pela legislação, contribuindo para a criminalização das vítimas (os próprios clientes), delatando-os legalmente pelo Sped, acusando-os de sonegação, quando resistem aos processos de “compliance”.
O grotesco mundo de tais articulistas do sinistro mundo das entidades contábeis, alinhadas com o poder coercitivo do fisco, é dividido em dois grandes blocos: o dos aliados do aparato estatal, onde militam os formadores de opinião de maior poder midiático, e o dos que se manifestam criticamente, onde residem os agentes do setor produtivo.
Fato é que a relação entre empresários e contadores não se baseia em livres trocas objetivando melhoria da eficiência econômica ou seja, pelo interesse de se ter contabilidade para fins prioritariamente administrativos. O serviço contábil se deteriorou de tal maneira que passou a ser visto (equivocadamente) como um “mal necessário” entre empreendedores; de fato, penso que, predominantemente, só é procurado (demandado) em face de imposição de normas (abusivas) do governo e dentro desse ambiente tóxico, o expert em tributação não poderia ser outra coisa senão um disseminador dos absurdos do fisco, sem necessariamente se importar com os aspectos econômicos que a atividade contábil objeta, ou será que estou enganado e contadores são procurados porque empresários estão interessados em apurar e avaliar os negócios que fazem e as coisas do governo são meros detalhes acessórios? O que sobra é uma cultura de fingimento entre o “oficial” e o “oficioso”. O meio contábil tão impregnado por essa visão doentia de estado exercendo controles sobre a sociedade, então se rende a seus principais formadores de opinião que se tornaram mestres do fingimento e do politicamente correto e assim a alienação a qual me refiro se prolifera com selo de intelectualidade, pós-graduação e todas as demais chancelas de “competência”, retratando um sinistro mundo de valores invertidos em que a vontade do cliente não importa, pois a demanda que mantêm o expert tributário está baseada em coerção.
Muitos poderão contra argumentar que os profissionais de “compliance” tributária atuam com proatividade, contudo, o cerne da atividade permanece em problemas impostos não por necessidades de mercado e da catalaxia, por demandas reais de agentes econômicos, e sim por dificuldades criadas por governos.
Por fim, nessas trevas travestidas de luz, prefiro terminar esse réquiem com um pouco de Lopes de Sá.
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