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Por Pastor Abdoral
No alto da montanha abro o Le Monde [2] e vejo que cerca de 33 mil pessoas teriam ido às ruas, pelas contas do ministério do interior, para protestar contra o governo Macron por causa da lei “sécurité globale” (segurança global) precisamente sobre o artigo 24 que penaliza qualquer divulgação de conteúdo considerado “malveillante” (malicioso), com membros das “forces de l’ordre” (forças de segurança, de aplicação da lei). Para o governo, a medida visa proteger policiais “d’appels à la haine” (de discursos de ódio) e de assassinato por divulgações em redes sociais, no entanto, quem protesta alega que o dispositivo pode ser usado para cerceamento de liberdade de expressão ou censura.
Vive la France! Palco tradicional de grandes protestos, berço revolucionário do estado moderno, democraticamente banhado no sangue jorrado pelo culto da guilhotina! De um reino de revoltas tradicionais de agricultores na idade média ao terror legal da “civil law”, na França a tirania do absolutismo monárquico, que também infantilizava a massa, então na condição de súditos, extraindo “sangue e pus” [3] em impostos, teve o seu vazio preenchido pela mentalidade progressista que, desde então, promoveu uma nova dinâmica na formação de cidadãos adestrados no estado como tutor de todos, em “direitos fundamentais” sob o carimbo da democracia confundida com liberdade.
Essa fé inabalável no estado-moderno-progressista-democrático-tutor ou melhor, “babá”, aqui termo mais preciso, ganhou o mundo após um longo processo que se consolidou em 1789 e tem aqui, na terra brasilis, muitos devotos ambidestros, sacramentado na “Constituição Cidadã” que nada mais é que uma versão tupiniquim do progressismo socialista francês consolidado no fim da monarquia francesa. A “babá” não nasceu na Revolução de 1789; ela apenas mudou de aparência quando perdeu a coroa, parou de apelar ao direito divino, cuja soberania funcionava como ferramenta política para justificar vícios de coerção, manipulações e controle da Igreja [4], e passou a explorar a ideia de que o melhor caminho para camuflar a própria tirania é a democracia em um ambiente mais diversificado culturalmente.
Durante a pandemia, protestos na Holanda e na Dinamarca [5], na Áustria [6], no quintal de dona Betinha, também conhecido como “Inglaterra” [7], entre outras, em um contexto de indignação por causa de restrições de liberdade que os isolamentos, toques de recolher e fechamentos de “atividades não essenciais” provocam, medidas tomadas pela “babá” na tentativa de conter o avanço da covid-19, agora multifacetada em novas cepas que não cessam de surgir.
[3] Viena 17/01/2021
No Brasil, protestos contra medidas restritivas são realizados por pequenos movimentos e/ou algum relato comovente que de vez em quando viraliza em rede social, feito por algum microempresário falido automaticamente rotulado de “negacionista”, o que no glossário de silogismos da estupidez brasiliana tem o sinônimo de “bolsonarista”. Se ocorrer algum ato político com maior aglomeração contestando medidas restritivas, então entra na pauta da grande mídia com destaque negativo, evidentemente, porém o mesmo não ocorre se uma aglomeração ocorrer entre aqueles que estão no lado mais canhoto da política, onde a mídia convencional de grande alcance, à semelhança de um apadrinhado de mafioso, beija a mão e finge que não viu, como em casos de comemorações por vitórias nas eleições, ou no caso das celebrações pela liberação de assassinatos de infantes no ventre (aborto) lá na terra natal do papa Francesco, em casos onde a indignação seletiva não permite teor crítico. E assim a mídia de massa convencional, grande auxiliar da “babá”, atua para preservar todos os tutelados na infância, costuma dar maior destaque às aglomerações em praias, festas ou de movimentos políticos que não fazem parte de seus interesses, como se tivessem em uma função de espionagem com um sentido de atiçar, no meio político, aquele velho desejo imbecilizante que a “babá” faça alguma coisa; traduzindo, imite as “babás” europeias impondo mais “autoritarismo do bem”.
Diante de um cenário de pandemia que tende a ocupar todo o ano corrente e entrar pelo próximo, com tantos interesses em jogo, revoltas no jardim da infância contra a “babá” denotam um grave conflito interior dissonante cognitivo. Enquanto protestam contra as restrições, não questionam a própria crença que cultivam na “babá”, como provedora de determinados “benefícios” sociais; cegos guiando cegos, não percebem que quanto mais exigem cuidados da “babá”, mais controladora de suas vidas ela será [8], pois a “babá” não existe por caridade e sim porque é essencial a um jogo de poder onde quem recebe “benefícios” perde liberdades. Muitos querem hospitais “públicos”, “gratuitos” e de “qualidade”, sob o rótulo de “saúde”, mas não conseguem enxergar que a “babá”, para realizar boa parte dessa curiosa e inviável combinação, demandará uma série de coisas escassas, começando por uma carga crescente de impostos, passando por incontáveis controles sociais. E se uma pandemia sinalizar para a “babá” um mínimo risco de que seus hospitais “públicos”, “gratuitos” e de “qualidade” podem entrar em colapso então, considerando as atribuições que lhes foram dadas, não pensará duas vezes em tomar medidas para disciplinar seus tutelados no que entender ser pelo “combate” à pandemia ou melhor, como auto preservação. Em suma, muitos que protestam não querem abrir mão da “babá”, enquanto não aceitam as consequências de tê-la, principalmente no tocante aos inevitáveis controles sociais que geram progressivos danos a liberdade que dizem tanto desejar.
A “babá” é zelosa e não gosta de concorrentes no trato de suas crianças, sobretudo quando o assunto é vacinação; quer exclusividade para imunizar seus tutelados e mais uma vez, aqueles que se queixam de não poderem comprar diretamente as doses dos fabricantes, não percebem que estão em um jogo onde tudo ficou amarrado para que a “babá” sirva de central de monopólio para interesses políticos e econômicos dos mais perversos. Entre ingênuos que reclamam e espertalhões do capitalismo de laços que lamentam ficar de fora, prevalece o monopólio de vacinação da “babá”. Enquanto isso, tutelados desobedientes alheios aos preços que a pandemia provoca, não surpreendem ao exigirem mais benefícios da “babá”, visto que desde quando viram o sol nascer pela primeira vez foram condicionados à crença de que estão em mundo onde reina a fantasia de que o estado é o princípio de todas as coisas, o seguro do bem estar, a liga da ordem social, e sendo a “saúde”, a “renda”, tidos como “direitos”, se arrefece qualquer preocupação em ter que cuidarem melhor de si mesmos, assim como terem que arcar com as maiores consequências de suas aventuras no “jardim da infância”; a crença na “babá”, a fé no estado tutor, se desdobra em uma infantilização coletiva que desemboca em um sentimento de indiferença no se cuidar enquanto indivíduo responsável, assim como no desprezo do custo desse cuidar seguindo a grande ficção do estado, apontada por Frédéric Bastiat, através da qual todos tentam viver às custas de todos. Além do mais, não dá para ter uma conversa de adulto com “crianças”. São, por natureza, incapazes de uma compreensão, enquanto paradoxalmente elegem aqueles que ordenarão a “babá”. Não faz o menor sentido mesmo explicar para infantes que “saúde” é um serviço passivo de escassez de recursos (coisa econômica) com custos que alguém tem que cobrir e esse “alguém” não pode ser a “babá”. No reino encantado da “babá”, os próprios tutelados são tidos como “capazes” de pagarem a conta de quem vai providenciar seus “benefícios” (por meio de impostos) enquanto são “incapazes” de pagarem por si mesmos.
E assim o mesmo estado cuidador de “incapazes”, tutor de todos, “samaritano” de bestializados, talvez ainda surpreenda muitos desavisados no processo de, incessantemente, criar regras, normas, legislação em função de suas atribuições abstratas, complexas, na medida em que percebe que o cumprimento dessa missão tão “virtuosa” de proteger as crianças carece cada vez mais de elementos legais de poder político para disciplina social. No contexto da pandemia, temos a “babá” tentando colocar “crianças” rebeldes na linha, tentando evitar aglomerações no temor de mais ondas de infectados que possam expor a inoperância de uma das “garantias” mais importantes no escopo que a instituiu: a “saúde” dita “pública”. Na França, a “babá” não quer ser exposta em redes sociais enquanto entender que terá que dar algumas “palmadinhas” em quem não seguir a linha de sua cartilha de “boas maneiras”. Em todos os casos, a “babá” vive do medo super estimado como ferramenta de avanço de seus controles ao mesmo tempo em que infantiliza mais seus tutelados; neste caminho de servidão não pensará duas vezes se entender que precisa endurecer com os resistentes e ampliar seus controles como toda “zelosa” cuidadora incumbida por terceirização forçada que opera “educando” em graus de castigo e nessa “vocação” não se constrangerá até mesmo em protagonizar um “estado de guerra” para fazer valer seus propósitos em meio a um provável ciclo de lockdowns nas próximas semanas, quem sabe até impondo lei marcial, e mesmo que esteja na principal cadeira do Palácio quem resista a isso, como no caso brasileiro, a “babá” passará por cima com um batalhão imenso de agentes em simbiose dispostos ao “custe o que custar” para mantê-la com a batuta.
O mundo dos estados nacionais modernos republicanos pós 1789 vive um enésimo ciclo de revoltas no jardim da infância, protagonizadas por homens-massa de Ortega y Gasset,; indivíduos que preferem ser tratados como criança, gemendo contra o monstro que os educou para o caminho de servidão, em um vicioso dissonante hábito de protestar contra si mesmos.
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Notas:
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Obra “La Liberté guidant le peuple” (A Liberdade guiando o povo, 1830), de Eugène Delacroix (France/Ile-de-France, 1798-1863)
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Loi « sécurité globale » : près de 33 000 personnes mobilisées en France, selon le ministère de l’intérieur
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Ver “Mémoires de Louis de Rouvroy, Duc de Saint-Simon”
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Sobre isso, ver o tópico “Divine Sovereignty”, no capítulo II do obra ON POWER: The Natural History os Its Growth, de Bertrand de Jouvenel;
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Países Baixos com quarta noite de protestos contra o confinamento geral. Dinamarca também em onda de manifestações
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Mainstream media, what is happening in Vienna (Austria)?
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Sem máscaras, milhares de negacionistas protestam contra medidas anticoronavírus em Londres
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E entre os que aceitam passivamente as restrições, não parece ser um problema trocar benefícios por menos liberdade, sobretudo quando não há intenção de viver bancando a si mesmo, se contentando com uma vida não produtiva.
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