Por Pastor Abdoral Alighiero – Do alto da montanha em preces dominicais, apreciando obras do maestro Ludovico Einaudi, me veio à mente uma questão similar feita pelo sábio F. A. Hayek [1]: Por que não seria possível que os poderes “públicos” monopolizados pelo aparato estatal, se necessário à consecução de objetivos importantes, fossem dirigidos por indivíduos honestos para o bem da comunidade?
Uma pergunta que certamente me inspirou e inspira muitos a acreditarem na tal bandeira da “ética na política” em meio à (ingênua) esperança de que governos e demais entidades do estado corporativo possam vir a ter dias melhores de eficiência e bondade, em uma questão que seria mais de escolher as pessoas certas ou competentes, digo também, sérias, honestas, íntegras, compromissadas com a verdade e as boas práticas administrativas. É a tal história do sujeito que vota em um candidato cheio de supostas boas intenções e ideias inteligentes que, quando analisadas com mais profundidade, não passam de repetições de crenças progressistas, que acabam se tornando reforços para o próprio sistema de poder, compulsivas e coercitivas sobre os indivíduos, sempre tratados como incapazes de lidar com problemas complexos da sociedade enquanto “capazes” de escolher quem vai resolvê-los ou, pelo menos, abrandá-los. Nesta fé muitos se assumem como militantes, desenhando o sonho interior de uma sociedade melhor a partir da confiança que depositam em determinados políticos. Nesta mesma concepção de idealismos que precisam infantilizar eleitores sobre a perspectiva de uma política “melhor”, também me parece razoável que muitos se sintam estimulados a crer que pior é não fazer nada no receio de que os poderes ditos “públicos” venham a ser dirigidos por maus indivíduos, e assim passam a ser tentados a prevenir esse perigo se envolvendo de forma mais apaixonada em favor de alguma política partidária supostamente bem intencionada no desejo de que tais poderes sejam estabelecidos antes por “homens de bem”.
A política partidária pautada na corporação estatal opera no universo da ignorância disseminada entre eleitores e algo que parece não sair de moda é o tal medo do “fascismo” por quem partidariza pela dita “esquerda” e o medo do “comunismo” por quem manipula pela “direita”. Todavia, “fascismo” e “comunismo” são ideologias superadas enquanto caricaturadas por conveniências de quem precisa adotar espantalhos no processo de idiotização coletiva. Para um bolsonarista, mal maior então é a volta do “comunismo” associado ao PT, e para um esquerdista bem doutrinado, o “fascismo” ligado a Bolsonaro permanecer e nas dissonâncias cognitivas, os projetos de poder seguem manipulando os idiotas úteis. Fato é que entre a fantasia de militantes amadores e o oportunismo de militantes e políticos profissionais, todos operam alertando sobre algum modelo totalitarista o qual dizem combater, o que genuinamente impulsiona muitos a um envolvimento maior e bem intencionado com a política, tendo como premissa a resposta positiva à pergunta que abre esta reflexão orientados por clichês dada a pouca profundidade em que os problemas políticos e sociais costumam ser compreendidos e debatidos pelo homem comum que também é eleitor, via de regra por isso tratado assim por quem faz a política de fato acontecer. Neste aspecto, prefiro adotar o termo “homem-massa” de Ortega y Gasset. Assim como Hayek, o sábio espanhol foi um dos pensadores do século XX que testemunharam a ascensão de três produtos totalitários (comunismo soviético, fascismo italiano e nazismo alemão) e conseguiu ler, a meu ver, de forma mais reflexiva à presente geração, o que estava acontecendo em relação ao que a política, regida naqueles dias por ideais republicanos, estava fazendo após a derrocada de muitas monarquias na Europa, subvertendo os sinais que os mesmos sistemas políticos em crescimento davam sobre concepções rasas em meio a definições precárias e bastante usadas no mundo da política direcionado ao homem-massa: “direita” e “esquerda”:
“A obra intelectual visa, muitas vezes em vão, esclarecer um pouco as coisas, ao passo que a do político normalmente consiste, ao contrário, em confundi-las mais do que já estavam. Ser de esquerda, como ser de direita, é uma das infinitas maneiras que o homem pode eleger para ser um imbecil: ambas são, de fato, formas de hemiplegia moral.” [2]
Usarei um linguajar mais chegado, nordestino, que tenho mais apreço, para sintetizar em outras palavras: a política sempre terá dois lados, e não é a tal “direita” nem a “esquerda”, é o lado dos sabidos e o outro, dos abestados. Neste contexto onde se situavam Hayek e um mais veterano que ele, o ensaísta Ortega y Gasset, a política estava em ebulição de contradições e convicções que não eram bem novidades quanto aos fenômenos políticos que se tornaram molas propulsoras de diversas formas de totalitarismo e de toda neoplasia maligna social que os acompanham: populismo, messianismo, corrupção sistêmica e a degeneração de valores sobre o que se tinha como “ordem natural” das sociedades com certa dose de liberalismo pela livre cooperação. Paradoxalmente, o desprezo pela liberdade do indivíduo aumentou, o apreço por tiranos e a aceitação, quase sempre imperceptível pelos governados, por mais controles sociais no delírio do joio de militâncias e de estruturas partidárias cada vez mais organizadas para impor formais cada vez mais sofisticadas de aprisionamento ideológico (com todos os desdobramentos práticos na vida cotidiana) em favor de seus particularismos, sob a ideia de uma sociedade funcionando como um organismo a ser regido por ideais coletivistas onde quase nada sobra para o indivíduo, algo que ficou mais nítido desde o advento da Revolução Francesa (1789-1799) no banho de sangue que veio em seguida, “justificado” em nome do combate ao totalitarismo, sendo uma forma de tirania para tratar a tirania até então em evidência na figura da realeza absolutista. O coletivismo cresceu então glorificado por uma ideia de “bem comum” em meio a leituras sobre a filosofia de Hegel na tríade da dialética sobre a sociedade, o que também inspirou Karl Marx a desenvolver o que viria a ser chamado de “socialismo científico”, assim como por conta do “contrato social” de Rousseau e do positivismo de Comte, este último aproveitando para adaptar concepções econômicas de “divisão do trabalho” feitas por Adam Smith (Wealth of Nations, 1776), envolvendo também outras adaptações feitas pelo pensamento político tomando por empréstimo o evolucionismo natural de Darwin (Origin of Species, nov/1859), assim como os trabalhos de Herbert Spender (The Social Organism, jan/1860), tudo em um emaranhado de questões que denotam como a democracia e os estados republicanos, supostamente concebidos para superação de tiranias, se tornaram avassaladores instrumentos de controles sociais e de outras formas de tirania, muitas sutis demais, outras escancaradas, em reflexões de outro pensador importante deste período: Bertrand de Jouvenel [3], que desenvolve com mais detalhes o que Hayek evidencia:
“[…] há razões de sobra para se crer que os aspectos que consideramos mais detestáveis nos sistemas totalitários existentes não são subprodutos acidentais mas fenômenos que, cedo ou tarde, o totalitarismo produzirá inevitavelmente. Assim como o estadista democrata que se propõe a planejar a vida econômica não tardará a defrontar-se com o dilema de assumir poderes ditatoriais ou abandonar seu plano, também o ditador totalitário logo teria de escolher entre o fracasso e o desprezo à moral comum. É por essa razão que os homens inescrupulosos têm mais probabilidades de êxito numa sociedade que tende ao totalitarismo.” [4]
O tempo em que Hayek pensou é bem diferente para a presente geração que, não raramente, usa os termos “fascista”, “nazista” e “comunista” sem mínima ideia sobre o que está falando. Na essência, Hayek aponta à raiz que persiste no problema dos piores serem tão atraídos e chegarem ao topo. Todo democrata, liberal, crente na liberdade, na política com as boas intenções em torno de regulações (estatais) e tutelas, não importa o lado nem a base ideológica, considerando que ambos possuem um certo nível de tolerância à propriedade privada (sobretudo a deles), cedo ou tarde é confrontado com o dilema de insistir em seus planos de regular certos aspectos da sociedade e da economia, diante das naturais resistências dos indivíduos, terá que tomar a decisão de aceitar o fracasso que a resistência induz ou aprofundar uma caminhada rumo a um totalitarismo cada vez mais intenso. E eis que o que se tinha de totalitarismo naqueles tempos deu lugar a outros totalitarismos, bem mais sofisticados, disfarçados, como resultados de adaptações, desde os derrotados na Segunda Guerra, até os liberais e socialistas que lutaram juntos para vencerem o fascismo e o nazismo. Um outro pensador que não está na bolha em que os democratas e liberais, desenvolveu uma crítica até hoje não respondida à altura dos seus argumentos; Hans-Hermann Hoppe [5] expõe como o estado moderno, republicano, democrático, coletivista, planificador, intervencionista, não passa de um produto cada vez mais sofisticado de aumento do escopo do aparato coercitivo estatal, em favor de sujeitos da pior espécie moral, que se camuflam facilmente pelas ilusões de liberdade no que se entende por “democracia”. O filósofo e economista alemão analisa considerando mais o fim das muitas monarquias europeias no contexto que parte da Primeira Guerra, contudo, cabe lembrar o que se avolumou ainda na idade média, com o progressismo ganhando mais espaço nos movimentos de camponeses e entre nobres descontentes como o duque Sant-Simon [6], tendo um momento crucial, decisivo, quando a Assembleia Nacional se impôs à monarquia sinalizando parâmetros significativos que ditariam adiante determinadas regras coletivistas no jogo do poder onde o indivíduo foi sendo engolido pelo corporativismo político-estatal-partidário que não tinha como conservar a monarquia, salvo se monarquistas se submetessem ao modelo do parlamento. Na França, a monarquia não suportou a humilhação e terminou na guilhotina, enquanto o outro lado estava aperfeiçoando um modelo de poder para o estado que conseguiria ser tão ou mais violento, violador de liberdades, ao mesmo tempo em que se tornou mais capaz de se impor a uma sociedade cujo pluralismo e falta de articulação do indivíduos seria a peça-chave para entender como os estados modernos se tornaram monstros a serviços dos piores que continuam chegando ao poder.
No entanto, o poder de coerção que fascina humanos tem uma base moral apelativa, e não poderia ser diferente, visto que lida com problemas sociais de alta complexidade, pela questão de “dispersão do conhecimento”, e assim a política costuma ser vendida pelas intenções e não pelos resultados, via de regra subestimados. Então, Hayek afirma que “nos interessa em nosso estudo não é sua base moral (das intenções) e sim seus resultados morais” e que “ideias morais dominantes dependerão em parte das qualidades que conduzem os indivíduos ao sucesso num sistema coletivista ou totalitário e, em parte, das exigências do mecanismo totalitário” [7]. Nesse processo de moralidade idealizada, desenhada, planejada, as proposições fluem e, considerando uma sociedade com um estado democrático, é natural que dificuldades retardem a realização de tais empreendimentos visando o “progresso da sociedade” e eis que os animais políticos com impulsos de mais centralização de poder se tornam ainda mais sedutores. A morosidade das instituições democráticas e os resultados demorando a chegar são elementos que servem no próprio aparato político para justificar a necessidade de ações mediante o cultivo de um “homem forte”. Se observarmos a história política do Brasil, o século passado e o presente estão permeados de figuras políticas tratadas por uma expectativa de serem mais fortes (e foram muitas vezes) no centro do poder, acumulando recursos decisórios no aparato estatal, de Getulio Vargas, passando por Juscelino Kubischeck, assim como militares em especial os dos anos 1970, até chegarmos nos populistas mais recentes: Lula e Bolsonaro. Não me surpreende que seus seguidores, ambos, lulistas e bolsonaristas, celebrem, muitos sem perceber, outros descradamente, tais líderes os desejando com um poder prioritário acima do Congresso e do Judiciário.
Considera Hayek: “quanto mais elevada a educação e a inteligência dos indivíduos, tanto mais se diferenciam os seus gostos e opiniões e menor é a possibilidade de concordarem sobre determinada hierarquia de valores” [8], e então, haverá uma tendência do sistema político buscar base de apoio em padrões ou concordâncias que são menos complicadas de serem obtidas entre os que não possuem muito discernimento dos problemas em pauta, que formam a massa de eleitores. Os piores chegam ao poder explorando a potencialidade eleitoral que faz a maioria entre desavisados e carentes de conhecimentos, mais fáceis de serem manipulados. Indivíduos mais esclarecidos tendem a contestar, criticar, analisar, com mais qualidade, algo que compromete a solidez política. Nestes pontos, para quem deseja acelerar o processo de conquista de poder, será mais conveniente estimular a geração de mais indivíduos com ideias rasas, limitadas. Os piores refletem a predominância das piores ideias travestidas como “bem intencionadas” enquanto instrumentos de conquista e conservação de poder. A ignorância dos eleitores passa a ser uma peça importante no tabuleiro da guerra eleitoral, onde os piores se identificam com facilidade. Quanto mais idiota for o eleitor, quanto mais estúpido, melhor será para arregimentar e assim construir uma via para a vitória, sobretudo quando se está diante de um regime de democracia. Em outras palavras, diz Hayek:
“Serão, assim, aqueles cujas ideias vagas e imperfeitas se deixam influenciar com facilidade, cujas paixões e emoções não é difícil despertar, que engrossarão as fileiras do partido totalitário.” [9]
Combinado a isso está a capacidade do político demagogo de formar prosélitos dispostos ao “custe o que custar”, algo fácil de se ver na história do Brasil, desde os adeptos da ditadura de Vargas, passando pelos janistas, chegando aos defensores do regime militar (saudosistas perdurando em nossos dias), até chegarmos nos adeptos mais recentes do populismo: lulistas e bolsonaristas. Correndo por fora, há os adeptos do desenvolvimentismo de Ciro Gomes, todos dentro de uma intensa “catequese”, reforçada por formadores de opinião, a maioria com elevado prestígio universitário, para travar uma batalha onde defender ideias não tem a ver com consistência lógica, coerência de raciocínio e ações, tampouco em saber identificar políticas contraproducentes. Liberdade para questionar as próprias ideias não é uma opção. Neste aspecto entra o discurso do “nós” contra “eles”, prática presente em todos os lados explorando que o ódio a um inimigo é mais útil para inflamar a militância e fortalecer a lealdade dos seguidores do que uma pauta construtiva em busca de diálogo e conciliação, coisa típica de políticos da terceira via.
Os piores chegam ao poder porque no sistema democrático, indivíduos mais esclarecidos possuem mais dificuldades de encontrarem um consenso amplo que viabilize um projeto moderado e consistente de governo que de fato, conserve o indivíduo do coletivismo e todos os vícios do aparato de compulsão de coerção que permeia as instituições do estado. Indivíduos mais esclarecidos encontram dificuldades de formarem uma sólida base eleitoral justamente pela riqueza de análises e conclusões que conseguem produzir. Então, o padrão de concordância mais comum de ser obtido pode ser encontrado entre os que não possuem muito discernimento das coisas, sendo mais fáceis de serem manipulados, controlados, costumando pensar, agir e falar de formas semelhantes, repetindo jargões, acomodados em bolhas ideológicas reproduzindo conceitos acabados sem saberem exatamente sobre o que estão tratando, o que acaba gerando um estímulo para o que o sistema politico sempre procure promover cada vez mais a ignorância entre os eleitores, o que em parte ajuda a explicar o fenômeno da disseminação das fake news, não por acaso, comum entre bolsonaristas, lulistas e quaisquer outros grupos de seguidores alienados por projetos de poder.
Lula e Bolsonaro estão atualmente no topo da preferência do eleitor médio ou do homem-massa e qualquer um que pretenda engrossar essa disputa, qualquer político que queira incomodá-los em 2022, precisará encontrar um jeito de conquistar o coração do incauto que prefere a tranquilidade de um curral ideológico. Não há como superar os piores tentando ir pela virtude de arregimentar os mais capazes; a política quando em disputa é sempre um jogo de colonizar a mente dos bestializados, a maioria, a massa, sendo regra fundamental para a conquista e auto preservação no poder.
Seja por Lula, Bolsonaro ou a tal da velha “terceira via” sempre apresentada como “novidade”, a constatação do sábio austríaco seguirá evidente: os piores certamente estarão no poder, que corrompe, e o poder absoluto corrompe de maneira absoluta [10].
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Notas:
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Por que os Piores Chegam ao Poder. Capítulo X da obra “O Caminho da Servidão”;
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“A Rebelião das Massas”. 2016, CEDET, página 61;
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Ver ON POWER. The Natural History of Its Growth, em especial o capítulo III: The Organic Theories of Power;
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Capítulo X da obra “O Caminho da Servidão”, página 140;
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Democracia, o deus que falhou;
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Ver “Mémoires de Louis de Rouvroy, Duc de Saint-Simon”;
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Capítulo X da obra “O Caminho da Servidão”, página 140;
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Capítulo X da obra “O Caminho da Servidão”, página 141;
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Capítulo X da obra “O Caminho da Servidão”, página 142;
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Lord Acton, citado por Hayek na abertura do capítulo.
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