Por Pastor Abdoral Alighiero – Do alto da montanha enquanto Mozart soava ambientado em um concerto com a passarinhada, eis que estava a meditar na obra Historia de Roma [1] no tocante a Numa Pompilius, sujeito que sete séculos antes de Cristo assumiu o controle de Roma após a morte do primeiro rei, Rômulo, que segundo a famosa lenda fundou a cidade com seu irmão gêmeo Remo e cometeu um fratricidium depois de uma discussão típica de afazeres políticos da época [2].
Visando obter a consistência necessária para reinar, o sabino Numa Pompilius, visto comumente como um sujeito sábio e religioso, tratou de trabalhar a sua imagem como um governante escolhido com uma missão especial, iluminado espiritualmente perante uma sociedade de crentes em diversos deuses, não tão diferente do politeísmo de hoje, de maneira que mandou espalhar entre seus correligionários uma manjada fake news típica de político que se diz “guiado pelo divino” do tipo “Deus falou comigo” ou por alguma “inspiração celestial” via de regra atestada por fiéis seguidores: pela máquina de propaganda da época, Numa Pompilius fez disseminar que toda noite recebia a visita, em sonhos, da ninfa Egeria que transmitia para ele as instruções dos deuses para bem governar a cidade e eis que acabou no imaginário popular como um líder repleto de qualidades especiais em meio às muitas divergências entre os governados, de maneira que aqueles que discordavam de suas decisões não estavam comprando uma briga com o rei e sim com os próprios deuses. Diz o historiador que a estratagema de se passar por quem atua guiado por uma ordem superior ou sobrenatural pode parecer uma coisa infantil, contudo também seguiu sendo adotada em pleno século vinte por Hitler [3] que, para fazer ser obedecido pelos alemães, não soube escolher outra manobra melhor e de vez em quando descia da montanha Berchstegaden com alguma nova ordem do “bom Deus” no bolso, como por exemplo, exterminar os judeus e destruir a Polônia. E finaliza Montanelli percebendo que, nesses assuntos, a humanidade não tem avançado muito desde os tempos do rei Numa.
E “ai dos sabidos sem os bestas”, dito popular para a “coisa infantil” entre governados que Montanelli menciona acerca da arte comum no marketing de endeusamento de políticos após se venderem tão bem como sujeitos dotados de capacidades extraordinárias para alguma missão especial de salvação na terra, e assim ficam justificados e devotados como seres messiânicos aos olhos incautos de quem enxerga o mundo de uma forma simplista demais e acredita em soluções práticas e rápidas para questões naturalmente complexas da existência humana. Isto posto, o que teria sido da atividade política sem a infantilização dos súditos no passado desde o rei Numas tão distante, e o que seria dela hoje sem o imbecil coletivo traduzido na esperança de eleitores com os atuais políticos de estimação?
Na mesma Itália dos tempos em que Montanelli foi testemunha ocular como soldado e depois jornalista, um outro político populista de direita, diferentemente de Hitler que fingia apreço por coisas divinas, se revelou como ateu [4] e organizou um partido nacionalista que chegou a ter o apoio maciço de 2/3 dos eleitores italianos [5]: Benito Mussolini se portava como um comandante supremo intocável, munido de poderes para definir a verdade que, no universo da fé religiosa, se aplicam estritamente aos messias e deuses por uma máxima que sintetizou o sentimento da massa no auge fascista dos anos 1930 até 1944, quando sucumbiu na Itália:
Mussolini ha sempre ragione [6]
Naqueles anos onde o socialismo e o nacionalismo se fundiam em uma linha partidária que até hoje confunde experts que analisam ideologias, Getúlio Vargas, a versão mais próxima do fascismo no Brasil, também foi endeusado e é até hoje ironicamente por muitos que gostam de chamar os outros de “fascista”. O personalismo foi se moldando ao longo das civilizações, de reis que tinham contatos com deuses, quando não se declaravam divinos, até chegarmos nos populistas que se tornaram mitos. Hoje a direita brasileira tem seu maior representante (para muitos o único) em Bolsonaro, não raramente endeusado ou tratado como um messias por considerável parte de seguidores, quando é tratado como um detentor da verdade cuja obediência deve ser absoluta, e assim é concebido como um escolhido para salvar o país do comunismo, assim como no lado esquerdo do circo, o comunista, são cultivados ícones do calibre de Fidel Castro, Hugo Chávez e Lula. Não por acaso, políticos exploram as oportunidades que surgem com afinidades entre líderes de confissões para “legitimar” a condição de “ungidos”, se aproveitando de símbolos, cultos, missas, procissões e manifestações. O encontro da política com a religião não raramente promove associações como no caso de Lula a Jesus Cristo por seguidores cuja fé antropocêntrica parece ser tão intensa e poderosa quanto às observadas entre religiosos convencionais.
Nada me parece mais contundente sobre os incontáveis “Numas” do tempo presente que o ditador e assassino da Coreia do Norte Kim Jong-un, cultivado como um deus no implacável regime que mais se aproximou do romance orweliano (1984), cavalgando um cavalo branco no Monte Paektu, junto com alguns membros da família e oficiais. O monte é considerado um local sagrado na mitologia coreana que aponta ao nascimento de Dangun, que há 4.000 anos teria fundado o primeiro reino coreano, passando assim a imagem da atual dinastia Kim como pertencente a “linhagem do Monte Paektu” [7].
Por fim, para o bem das sociedades dos estados modernos, laicos, dizem que política e religião não se misturam. Tal afirmação não passa de uma bobagem entre os que acreditam na política como uma atividade regida pela ética. No mundo real essa mistura é percebida como fundamental na perversidade de todo político profissional que se depara com uma massa de crentes religiosos alienados, e os vê como potenciais eleitores bestializados, definindo as corridas eleitorais pela esperança em homens “públicos” que muitas vezes produz uma fé maior que as confessadas em nome de Deus.
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Notas:
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História de Roma, do saudoso historiador e jornalista italiano Indro Montanellim (Itália/Fucecchio (1909-2001) , edição em espanhol;
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Rômulo matou Remo após ficar irritado com o irmão demonstrando que o muro que construiu para defender a cidade não servia, o fazendo desmoronar;
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Montanelli viveu intensamente os dias de Hitler como jornalista;
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Na obra Dio non esiste, Benito Mussolini deixa claro sua condição de ateu;
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Ver a recente obra (2018) Mussolini Il Primo Fascista, do historiador alemão Hans Woller
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Mussolini tem sempre razão. Ver a obra Mussolini ha sempre ragione. I decaloghi del fascismo, de Carlo Galeotti
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BBC: O que revelam as fotos de Kim Jong-un cavalgando em monte sagrado na Coreia do Norte
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