É agosto e eis que Uma leitura ao dia segue com recomendações e notas acompanhadas com a Sinfonia No. 41 Jupiter, de Wolfgang Amadeus Mozart (Áustria/Salzburgo, 1756-1791).

31/08/2022 00h04

Imagem: MIT

Paul Samuelson

Imagem: Nobel Prize

William D. Nordhaus

“A vida está repleta de escolhas. Devido aos recursos serem escassos, temos constantemente de decidir o que fazer com o tempo e o rendimento que possuímos em quantidade limitada. […] tomar uma decisão num mundo de escassez, obriga-nos a prescindir de alguma coisa, custa-nos de facto a oportunidade de fazer outra coisa.”

Obra: Economia. Capítulo 2. Problemas básicos de organização económica. Editora McGraw-Hill, 1993, Lisboa, 14a. edição, formato físico. De Paul Samuelson (EUA/Massachusetts/Middlesex, 1915-2009) e William D. Nordhaus (EUA/Novo México/Albuquerque, 1941).

Edição em português europeu, Economia foi o meu primeiro manual na graduação, lido em 1994, obra de dois economistas americanos que foram premiados com o “Nobel”.

Sobre o elementar conceito econômico de custo de oportunidade, ilustram os autores: “Devemos ir ver um cinema ou ler um livro? Devemos ir viajar à Europa ou comprar um automóvel?” (p. 31). Mediante escassez de recursos é preciso tomar decisão por uma coisa em detrimento de outra. No que foi abdicado reside o custo de oportunidade.

No Capítulo 4 (pp 151-153), sobre análise de custos, os autores voltam a abordar o conceito mediante uma Demonstração de Resultado de Exercício (DRE) de uma empresa de cachorro quente que apresenta lucro líquido de $20k. Se um contador raciocina pautado no resultado final que apurou, e aponta ao empresário um ‘lucro”, um economista tende a ver a DRE sob outro prisma: mediante avaliação do resultado líquido obtido em comparação com oportunidades perdidas, ou seja, aplicando custo de oportunidade. O que o empresário deixou de realizar em favor do negócio de cachorro quente? O empresário que obteve lucro líquido contábil de $20k, ao encontrar outro negócio ou trabalho similar, e considerando que esse outro negócio resultaria em um lucro líquido contábil de $45k, no confronto da DRE que realizou em $20k com esta alternativa não adotada, nesta análise do economista, o empreendedor na verdade sofreu um prejuízo líquido de $25k.

Os autores seguem a afirmar que o conceito de custo de oportunidade se aplica “de uma forma muito mais ampla” (p. 152). Percebi a relevância desse conceito na consciência que comecei a ter sobre um mundo de escassez, onde a tomada de decisões gera consequências que demandam sempre análise comparativa na alocação de recursos gera consequências, desde o indivíduo que decide se vai investir tempo e recurso financeiro em uma determinada formação em detrimento de outros negócios. Ter consciência do peso da escassez é a base para se compreender o conceito de custo de oportunidade. No meu trabalho o tempo é um recurso que demanda contínua aplicação deste conceito. Em certa ocasião um cliente tinha duas tarefas complexas para fazer em duas horas de atendimento e após avaliar tecnicamente o que precisava ser feito, informei-lhe que teria que decidir qual das duas seria executada. O cliente ignorou meu parecer e insistiu na ideia de que “dava para resolver as duas coisas rapidinho” em duas horas. De nada adiantou o meu alerta do risco alto de terminar a reunião sem conseguir uma coisa nem outra.

A dificuldade para compreender ou, em alguns casos, aceitar o problema da escassez, que deriva o conceito de custo de oportunidade, pode resultar em algo desastroso na gestão de recursos e foi este o caso do cliente que insistiu nas duas tarefas quando se tinha tempo apenas para uma; então após duas horas, continuou com dois problemas pendentes, sendo que um tinha um nível de prioridade maior, pois tinha que ser resolvido até o final do dia, enquanto outro poderia ser resolvido na próxima reunião (agendada). Ao calcular mal o uso do tempo e os fatores técnicos que ocasionam a necessidade do foco, sem levar a sério o problema da escassez dos 120 minutos para duas tarefas que demandavam bem mais do que isso (demonstrou também carência de tecnicidade na compreensão dos problemas), e ao subestimar a definição de prioridade, não poderia ter obtido nada além de um resultado pífio. Tinha que ter decido abdicar de uma tarefa em favor de outra por causa da escassez do tempo e do peso de prioridade, duas variáveis importantíssimas na tomada do custo de oportunidade.

30/08/2022 21h06

Imagem: RAI Cultura

Indro Montanelli

“Quanto mais rico era o cidadão, mais impostos tinha que pagar e mais anos de serviço tinha que completar. Para quem queria entrar na carreira pública, o mínimo eram dez E, portanto, só os ricos podiam fazê-lo porque só eles podiam passar tanto tempo longe da propriedade ou dos negócios. Mas também aqueles que se contentavam em exercer seus próprios direitos políticos, isto é, votar, tinham que ter sido um soldado.”

Tradução livre.

Obra: Historia de Roma. VIII La Educación. Edição em espanhol. Peguin Rabdom House Grupo Editorial, 2014, Barcelona, eBook Kindle. De Indro Montanelli (Italia/Fuccechio, 1909-2001).

O “serviço” a que Montanelli se refere é o militar. A educação de um romano adolescente aos 16 anos (p. 80) se completava no alistamento militar (p.79).

Os pais educadores, quando senadores, eram comumente vistos levando os filhos de sete ou oito anos ao Senado para assistirem ao senatoconsulti (p. 79). Meninos que sequer tinham chegado à adolescência já discutiam entre si problemas militares, questões do estado quanto à administração, as alianças políticas e militares (p. 79) e, claro, as guerras; fico a imaginar meninos da Roma antiga a se ocuparem sobre quantas legiões seriam necessárias para tomar uma determinada cidade ou neutralizar linhas inimigas.

Se alguém quisesse entrar na carreira “pública” (política) tinha que, obrigatoriamente, passar pelo exército com experiência comprovada de, no mínimo, 10 anos (p. 79). Para votar também era necessário ter servido às forças armadas com a experiência mínima de soldado. Na estrutura de estado romano republicano, só os mais ricos podiam alcançar o topo nas altas patentes militares e, consequentemente, políticas, pois era obrigatório bancar a carreira, além de armamentos pessoais mais caros e se dedicar a estudos e treinamentos de combate que ocupavam muito tempo, enquanto os mais pobres exerciam outro tipo de combate: a luta para não passar fome.

A função do exército se baseava em rígida disciplina e implacável tratamento à falta de lealdade. Um subalterno que cometesse algum ato considerado covarde ou impróprio que desagradasse o comandante, poderia ser decapitado como forma de dar exemplo aos demais. Desertor e ladrão no exército romano tinha a mão direita decepada (p. 80) como punição. A disciplina no treinamento era tão rigorosa que “todos preferiam o combate” (p. 80).  A Roma antiga, republicana, aristocrata, de estado corporativo sob uma fortíssima mentalidade militar, foi uma construção política para o império e, diria, um fetiche para quem tem tesão hoje de ser governado por homens de farda. Não foi à toa que Mussolini tinha grande admiração por essa antiga estrutura de estado e combinou muitos elementos na criação do movimento fascista que, em um certo sentido, é um saudosismo ao antigo modelo da república militarista romana.

29/08/2022 00h12

Imagem: Terra Bellum

Aristóteles

“§ 9. Fica evidente, portanto, que a cidade participa das coisas da natureza, que o homem é um animal político, por natureza, que deve viver em sociedade, e que aquele que, por instinto ou não por inibição, de qualquer circunstância , deixa de participar de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem. Esse indivíduo é um merecedor, segundo Homero, da cruel censura de um sem família, sem leis, sem lar. Pois ele tem sede de combates e, como as aves rapinantes, não é capaz de se submeter a nenhuma obediência.”

Obra: Política. Livro Primeiro. Capítulo 1. Edição da Martin Claret, 2003, São Paulo. Aristóteles, filho de Nicômaco de Estagira (Grécia antiga/Estagira/Calcídica, 384 a. C. – 322 a. C).

A cidade (πόλις, pólis) é uma associação ou sociedade que visa um bem (p. 11), assim como a família é uma sociedade no mesmo intento, na menor unidade dentro do pequeno burgo, constituído por muitas famílias (I § 8, p. 13) que juntos formam uma pólis.

A pólis é uma consequência da busca humana pelo bem inerente à natureza; “o real fim de todas as coisas” (p. 13). No entanto, na lógica de que o todo deve ser posto antes da parte, Aristóteles vê o Estado se antepondo à família na ordem natural (I § 10, p. 14).

A cidade sendo consequência dos burgos que se unem visando a felicidade humana ou o “bem comum”, “participa das coisas da natureza” (I § 9, p. 14) e o homem, é o “animal político” como agente promotor nessa vida em sociedade cujo processo é formador da pólis. A ética está para o indivíduo, e a política, para o coletivo ou a vida em sociedade, onde o indivíduo só pode se realizar mediante essa associação para o bem comum (razão de ser da pólis).

O homem “animal político” se diferencia dos demais por saber distinguir o bem do mal, o justo do injusto (I § 10, p. 14); a justiça é a base da sociedade (I § 11, p. 15). Para Aristóteles, há categorias de seres humanos onde os inferiores são destinados à escravidão (II § 13, p. 18), cuja utilidade “é quase a mesma dos animais domésticos” (II § 14, p. 19). Na estrutura de uma família, o escravo está no nível mais inferior, “destituído da faculdade de querer”, a mulher possui tal faculdade, mas é “fraca”, e no filho “não é completa” (IV, § 11, p. 33).

Não penso ser coisa inteligente cobrar de pensadores da antiguidade valores estabilizados em nosso tempo. Da mesma forma que não considero inteligente usar o nome de Aristóteles como referência para ideias contextualmente distantes do seu pensamento, assim como o uso apelativo do termo “animal político” para justificar toda forma de intervenção do poder estatal sobre o indivíduo como se a política fosse, per si, um produto natural e assim aceitável pela ideia de legitimidade, quando “democrática”. O poder artificializado por arranjo governamental de mandar, intervir, restringir liberdade para satisfazer interesses de minorias (algo tão comum na atividade política moderna); tão somente é força coercitiva artificializada e não há retórica que a ajuste como “natural” levando em conta a ideia de “bem comum” como razão da pólis e de sua ética coletiva.

À mon avis, a grande contribuição de Aristóteles foi ter diferenciado a ética a partir do indivíduo, da “ética da polis” ou a “política”, que pode ser compreendida no sentido de ser uma ética para um meio coletivo, não necessariamente “público” no sentido de coisa do “Estado”, podendo ser de âmbito privado, o que ocorre em diversas formas de associação, tais como a empresarial ou seja, a política é inerente a vida do ser humano em interações sociais e quando um indivíduo se vê como “apolitico”, certamente não sabe o que está dizendo, pois a vida de relações com nossos semelhantes sempre demanda política, em níveis variados e estâncias diversas. Fazemos política no lar, na empresa em que trabalhamos, na igreja em que confessamos uma fé, em grupos de redes sociais e em qualquer lugar ou condição em que precisamos nos relacionar visando um bem comum.

28/08/2022 10h30

Imagem: Vatican News

São Paulo

“Todas as coisas examineis, retendes o que é bom.”

Tradução livre.

Obra: I Epístola aos Tessalonicenses. 5:21. Textus Receptus, publicação online. De São Paulo (Império Romano/Cilícia/Tarso, atual Turquia, 5-67).

A imagem de São Paulo é uma reprodução do resultado de um trabalho de pesquisa com base em Atos de Paulo e Tecla, assim como o ícone encontrado em junho de 2009 nas catacumbas de Santa Tecla em Roma. A tradução livre tem viés literal.

O contexto de primeira epístola de São Paulo à novíssima comunidade de cristãos em Tessalônica, capital da província da Macedônia, pertencente ao Império Romano, consiste em uma cidade de costumes típicos da mentalidade imperialista da elite política provinciana, em meio a uma sociedade onde a cultura religiosa estava sob a chancela do Estado que reconhecia e autorizava culto a deuses gregos (Artêmis, Dionísio, Sarápias), onde a fé cristã era algo ainda insignificante nos bastidores do poder. A Primeira Epístola aos Tessalonicenses foi o primeiro escrito do que viria ser o Novo Testamento, no contexto que se sucedeu após o verão de 50 d. C na abrupta partida de São Paulo e seus companheiros [112] após implantarem a igreja na cidade (Atos dos Apóstolos 17:1-10). A Carta foi produzida com o suporte missionário de Silvano (Silas) e Timóteo (1:1); este último tinha trazido notícias da comunidade (Atos dos Apóstolos 18:5) inserida em um caldeirão de crenças, questões éticas entre os recém convertidos, assim como o natural receio de perseguição a uma fé não reconhecida pelo aparato estatal romano.

O verso 5:21 consiste em um elemento importante na concepção moral de São Paulo mediante cristãos inseridos em uma sociedade regida por uma visão religiosa tão plural, pois é preciso sempre considerar a fé monoteísta em Cristo Jesus sendo uma radical ruptura. São Paulo então dá relevância para que os novos cristãos de Tessalônica examinem (δοκιμαζετε) todas as coisas (παντα) para reterem o que seja bom (το καλον κατεχετε). São Paulo não os orienta a se isolarem intelectualmente do mundo, a abdicarem do exame crítico do que pareça ser alheio ao Evangelho e sim a buscarem discernimento no contato com o outro. Nesse propósito, o cristão deve tomar cuidado para não extinguir (5: 19) ou “não apagar” (μη σβεννυτε) o Espírito (το πνευμα) em seus juízos, o que nos remete à comunhão com o Espírito para então, no exercício de examinar tudo, cumprir a recomendação que vem imediatamente no texto:

“Apartai-vos de toda forma de mal” (5:22, tradução livre do Textus Receptus).

A fé cristã nasceu e até nossos dias vive exposta naturalmente como parte de um mundo recheado de visões diversas sobre crenças e valores. Nos primórdios das comunidades apostólicas, enquanto a fé em Cristo se revelou como uma afirmação contundente diante do mundo, isso não significou que teria que viver isolada do diálogo com esse mesmo mundo, assim como da análise das coisas em que estava inevitavelmente exposta. Em nossos dias essa exposição da fé prossegue em uma forma muito mais intensa com a facilidade com que se acessa a informação. Contudo, a fé em Cristo não deve ser pretexto para celebrar a ignorância como estilo de vida, algo que pode ser observado quando crentes preferem buscar refúgio em alguma “torre de Rapunzel” em igrejas ou comunidades onde o fundamentalismo religioso se torna objeto de adoração, o exame intelectual vira sinônimo de “pecado” no auto desprezo pelo saber.

Pessoalmente, o verso 5:21 da Primeira Carta aos Tessalonicenses se tornou caríssimo quando passei pelo seminário e pude perceber a importância de se dar valor ao conhecimento. Leio a recomendação paulina como uma base preciosa que me orienta a tentar não cair em bolhas e por isso procuro ler tudo que posso para avaliar;; a dúvida se torna minha companheira de fé e essa prática vai além do seio religioso, onde costumo apreciar autores de diversas confissões.

Isso posto porque durante muito tempo percebi estar envolvido em ambientes, religiosos ou não, onde a abertura ao contraditório não passava de coisa fingida e servia mais como “espantalho”. Grupos ou associações disso ou daquilo que pensam do mesmo jeito e simulam “espírito crítico” quando na verdade semeiam entre seus pares o medo de se conhecer melhor o outro lado, onde se situa uma grande divergência. Este problema vai além de igrejas onde pastores e padres manipulam fiéis sobre o que deve ser lido ou não; pode ser encontrado em grupos de conservadores, socialistas e libertários que se fecham em suas próprias crenças e quando avaliam o outro lado, demonstram carência de conhecimento que só serve para incrementar distorções.

E assim leio católicos, protestantes, espíritas, budistas, liberais, comunistas, marxistas, libertários, progressistas, e tantos outros que o meu juízo estiver disposto a examinar. É nesse espírito que a recomendação de São Paulo encontrou eco em minha vida de leitor, assim como me ajuda a tentar evitar zona de conforto em bolha ideológica, a apreciar apenas aqueles que me agradam em termos de valores e visões de mundo.

112. O Novo Dicionário da Bíblia, J. D. Douglas, Vida Nova, 1995, São Paulo, p. 1586.

27/08/2022 13h10

Imagem: Lar Cristão

Jaime Kemp

“A sociedade contemporânea está impregnada pela febre do consumismo, pela paixão do possuir, atacada ferozmente pela máquina de propaganda que dia e noite nos bombardeia, vendendo a filosofia de que a vida depende da abundância das coisas materiais que o ser humano consegue acumular.”

Obra: A arte de permanecer casado. Guia seguro para quem deseja salvar um casamento. Capítulo 10 – Finanças até que as dívidas nos separem. Editora Sepal, 2000, São Paulo, formato físico. De Jaime Kemp (EUA/Michigan).

Leitura de 2001. Lembrança da passagem do pastor americano Jaime Kemp na Igreja da Capunga (2001), quando falou para casais no Ministério da Família. O livro é também uma recordação pessoal de meu tempo na Capunga, junto com a minha esposa; na época tínhamos um pouco mais de dois anos e meio de vida conjugal e tivemos a bênção de ouvir o experiente pastor, assim como sermos pastoreados pelo saudoso José Almeida Guimarães (presidente) e Risan-joper (família), em uma igreja que preza pela qualidade teológica por meio de ministros de ilibada conduta moral e envergadura intelectual.

O dr. Jaime Kemp é uma das maiores referências que tenho entre protestantes evangélicos quando o assunto é família. Publicou mais de 50 livros e desde 1967 atua no Brasil como missionário. Com enfoque bíblico, é conhecido por orientações preciosas sobre namoro e casamento.

Na capítulo, o dr. Kemp alerta sobre o perigo de ser enganado” pela mentira de que o dinheiro traz felicidade” (p. 90). “A correria, a luta, a competição desenfreada para obter ‘status’ e posses causa ‘stress’, conflitos e, não poucas vezes, sentimentos de culpa, pois no caminho para o topo do sucesso ficam para trás amigos, familiares, companheiros machucados”, afirma o pastor (p. 90). Filhos que crescem a observar os pais fazerem da riqueza material a principal referência de vida, talvez, terão a mesma postura quando adultos enquanto serão resultados de relacionamentos que foram negligenciados, cuja retomada se torna difícil (p. 91). Com passagens bíblicas, recomenda o pastor a não estabelecer o próprio padrão tomando como base o que a sociedade tenta impor (p. 91), e cita trechos do poema O Caçador de Esmeraldas, de Olavo Bilac:

E o delírio começa. A mão, que a febre agita,
Ergue-se, treme no ar, sobe, descamba aflita,
Crispa os dedos, e sonda a terra, e escarva o chio:
Sangra as unhas, revolve as raízes, acerta,
Agarra o saco, e apalpa-o, e contra o peito o aperta,
Como para o enterrar dentro do coração.

Ah! mísero demente! o teu tesouro é falso!
Tu caminhaste em vão, por sete anos, no encalço
De uma nuvem falaz, de um sonho malfazejo!
Enganou-te a ambição! mais pobre que um mendigo,
Agonizas, sem luz, sem amor, sem amigo,
Sem ter quem te conceda a extrema-unção de um beijo!
[111]

O consumismo é uma epidemia que afeta muitos relacionamentos. O livro que tenho é da 7a edição publicada no ano 2000, quando não havia o fenômeno das redes sociais e penso que hoje este problema se tornou muito mais complexo e grave com a ostentação cada vez mais potencializada. A necessidade de auto afirmação e o narcisismo são transtornos glamourizados em um mundo onde a visão materialista domina, inclusive muitos que se dizem cristãos com “testemunhos” que não passam de auto promoção e culto de si mesmo em nome de Deus.

Voltando à reflexão do pastor, vejo no texto uma aula de economia doméstica no alerta sobre os perigos do endividamento descontrolado (pp 94-96), sobretudo no cartão de crédito. Recomenda que seja feito um orçamento familiar, que o casal avalie as prioridades para evitar consumo de coisas desnecessárias. O marido e/ou da esposa na ânsia por consumir, sem controlar os impulsos, gera um problema que “acaba por influenciar os filhos , que se acostumam e querem tudo que vêm” (p. 97). Importante é planejar, saber esperar o momento certo para fazer aquisições, assim como experimentar “o alívio, a tranquilidade de não assumir dívidas”, o que ajudará no casamento (p 96).

111. O Caçador de Esmeraldas I. Episódio da Epopéia Sertanista do XVII Século.

26/08/2022 23h34

Imagem: Cia das Letras

Ovídio

“Tempo que consome tudo e tu ciumenta idade, com os dentes do tempo lentamente roendo tudo pouco a pouco, entrega todas as coisas à morte eterna!”

Tradução livre.

Obra: Metamorphoses. Book XV. 199-236 Pythagoras’s Teachings: The Four Ages of Man, A. S. Kline’s Version, Virginia Edu. De Publius Ovidius Naso (República Romana/Sulmona, 43 a.C.-17 ou 18 d.C.).

Tempus edax rerum, tuque inuidiosa uetustas omnia destruitis, uitiataque dentibus aeui paulatim lenta

Disponível online na íntegra no endereço Virginia Edu. Também pode ser lida com tradução também em inglês, em P. Ovidius Naso, Metamorphoses, Arthur Golding, Ed.

Tempus edax rerum, em cada ato, palavra, pensar….

Tempo… Nada o substitui. Na medida em que o utilizamos, não sabemos o saldo que nos resta. É como uma conta corrente que sacamos diariamente sem sabermos se estamos próximos do saldo zero e ao mesmo tempo que o saldo diminui.

Balanço de abertura: Registra-se débito no “ativo circulante” na conta Κρόνος (“Krónos”) e credito no patrimônio líquido. O valor apropriado é intangível, incerto e não sabido. Sabe-se apenas que a conta “Krónos” tem o saldo em constante redução e um dia será zerada. Quão espantosa é esta contabilidade!

No razão humano da conta “Krónos” se registra o tempo que medimos, ou seja, o passado. E o presente? Vira passado imediatamente. Sobre essa relação, Santo Agostinho de Hipona afirma que “o presente não tem duração alguma” [110]. Então, o que chamamos de “futuro” é a parte que estimamos; não temos como garantir que existirá, tampouco mensurar como fazemos com o passado. O futuro é o “saldo misterioso” que resta para zerar a nossa conta na medida que o “Krónos” vai passando.

As aplicações da conta “Krónos” seguem em uma relação de escassez e desigualdade onde cada vida que emerge na existência possui meios diferentes, recursos de Krónos insondáveis, intangíveis, desde o tempo que se terá (o futuro) até o sentido de como são distribuídos. Temos um tempo que passou, que podemos medir, e outro tempo, que chamamos de “futuro”, que está além de nossa capacidade de projeção e controle. O que nos importa? Como o “futuro” é uma grandeza inacessível, não gerenciável resta-nos o desafio de aproveitarmos bem cada momento ao longo do “Krónos”, para que os acontecimentos da vida posam refletir em boas oportunidades. Aproveitar bem o Krónos para que se tenha o Kαιρός (Kairós), um “tempo oportuno” que, para a fé cristã é o “tempo de Deus”, o tempo certo (maduro) para as coisas acontecerem.

Talvez, questionaremos com certa frequência, as razões de uns disporem de mais “Krónos” que outros, além de nos incomodarmos com outro mistério ainda mais perturbador: Por que uns têm mais oportunidades (Kairós) que outros? Destas indagações, outros ficarão presos a um outro mistério da vida que envolve o fato de sermos diferentes desde a nossa concepção, por inúmeros fatores, embora sejamos semelhantes como espécie.

Quem poderá explicar a natureza com a limitada visão que temos na condição humana, diante de uma contabilidade metafísica que lida com variáveis intangíveis sob perfeita precisão?

Longe de qualquer determinismo, o que será feito com os recursos aplicados na conta “Krónos” e os meios materiais e imateriais, os custos da “vita” os investimentos, implicarão em um conjunto de fatores determinantes para explicar o “tempo oportuno” que tivemos. Não importa: aproveitando bem ou mal o “Krónos” e os demais recursos que temos, fato é que as coisas se escoam no tempo e a existência segue produzindo resultados, independentemente de termos ou não interesse em conhece-los. Na medida em que o tempo passa e deixamos a primeira fase da existência, a qual chamamos de “infância”, podemos ter ou não as condições presentes para amadurecermos, para a autonomia de transformar a aplicação do “Krónos” em “mutações do nosso patrimônio”, em outros ativos e passivos físicos e imateriais. Herdamos recursos de nossos antepassados, outros oriundos de nossas atividades no processo de maturidade a qual chamamos de “educação” e, por fatores diversos, seguimos fazendo nossa própria história em meio a outros tantos fatores que muitas vezes atribuímos ao acaso. Alguns se tornam, de fato, mais capacitados para produzir melhores resultados, outros não.

De uma coisa tenho certeza: antes de me lamentar com a “falta de oportunidades” ou de ausência do “Kairós”, de tempos em tempos, sei que existe uma sabedoria que me ensina a perguntar a mim mesmo. Perguntas que cabem a todos os que tem auto estima e que agora determino a mim mesmo: O que fiz com o meu Krónos? Ora, queira ou não, o “Krónos” segue, o tempo consome tudo, o tempo devora reduzindo o saldo que nem sei como está, me cobrando na conta “vita”. Jamais devo negligenciar que a cada respiro, há um débito “vita” e um crédito “Krónos” na partida dobrada; e um dia, que não sei, que pode ser a qualquer instante, minha conta do tempo encerrará. O “Krónos” é implacável, inadiável; a natureza segue seu rumo e os resultados virão. Fiz a minha parte?

Como apliquei os recursos que me foram dispostos no escoamento do “Krónos”? O que recebi e julguei ser “pouco”, foi bem aplicado? Produzi bons resultados na proporção dos meios que possuí? Não é uma questão fundamental ter muito ou pouco. Será que estou me vitimizando, digo, lamentando demais por coisas que não fiz por falta de interesse na minha própria vida? O que poderia ter feito e não fiz por acomodação, falta de ousadia? O Krónos é irrecuperável. O que passou, passou, sendo bem aproveitado ou não.

Como me conduzo na abundância e na escassez de determinados recursos? O “Krónos” é o mais misterioso dos recursos escassos, pois quando penso o “futuro” e olho para o passado se digos “como passou rápido!”, então, foi tão bem aproveitado quanto a minha percepção de rapidez? Saber valorizar o tempo me fará pensar em tomar decisões mais inteligentes diante dos demais recursos econômicos (escassos) tangíveis, ao contrário do tempo, o Krónos, que é intangível e me mostra quão limitando sou quando tenho a imprecisão do futuro.

Fui capaz de multiplicar meios com o que tinha no capital inicial da existência? O que herdei, sendo muito ou pouco conforme minha interpretação dos fatos, foi bem aplicado? Se eu olhar para o passado, como era há 10, 20, anos, serei capaz de reconhecer progressos, evoluções, e terei a coragem de fazer uma autocrítica? Será que me sentirei “parado no tempo” em alguns aspectos? Certamente! Terei disposição para estudar minhas fraquezas sem apelar para desculpas e subterfúgios? Estarei disposto a pagar pelo preço para ser mais “antifrágil”?

No razão da conta do tempo estão os meus atos friamente registrados; se eu tiver um mínimo de diligência pessoal, o que pode ser entendido como “amor próprio”, farei periodicamente uma “demonstração de resultado do exercício” da minha vida ou seja, apurarei as consequências de meus atos ao longo da história que produzi. Analisarei como me conduzi, onde tive “lucro”, onde acumulei mais recursos para atender melhor minhas necessidades, onde tive “prejuízo”, ou seja, onde diminuí meus recursos diante de atitudes ou omissões que culminaram em situações de danos sob minha responsabilidade, ou não, mesmo que por efeitos provocados por terceiros. Cabe a mim avaliar com destemida vontade de conhecer a verdade que me libertará de fantasias que posso criar para justificar meus insucessos, minha falta de zelo com a vida que me foi agraciada, antes de amaldiçoar a terra e os céus, antes de “correr atrás do vento” e me perder nas vaidades, como diz o sábio Coélet.

Na parte mais sofisticada desta contabilidade, encontrarei uma conta por demais importante para explicar minha riqueza ou pobreza: chama-se “capital humano”. Nela se acumulam conhecimentos e capacidades técnicas que acumulei ao longo da existência. Acontece que alguns procuram acumular mais capital humano que outros, por diferentes maneiras e causas. Muitas explicáveis, outras nem tanto, e um tanto de coisas imponderáveis acontecem. Basicamente por isso, de acordo com uma complexa combinação de esforço pessoal, inteligência e aleatoriedades favoráveis e desfavoráveis, angariam-se recursos desta natureza. E como todo ativo, o capital humano é aplicado economicamente. Isso ocorre quando tenho um negócio próprio, quando empreendo, ou quando resolvo emprestá-los a quem empreende. Quem “empresta” seu capital humano comumente é chamado de “empregado”, não importa; neste ponto, os “juros” do “empréstimo” serão traduzidos na forma de “salários” e “honorários” no sistema de resultado. Também é possível doar a aplicação de capital humano; isso ocorre quando cedo minhas aptidões sem receber contrapartida econômica, quando sou voluntário.

A forma como acumulo e aplico capital humano será determinante para compreender o que fiz com o “Krónos” em minhas transações da existência. Jamais devo esquecer que tudo flui pelo tempo, tudo se escoa no “Krónos” rumo ao saldo zero, quando então este blockchain deixará de receber dados e não haverá mais tempo para nada: o balanço da minha existência terrena será definitivamente encerrado.

O que terei realizado ao saldo zero?

110. Confissões. Capítulo XXVII.

25/08/2022 23h38

Imagem: Alchetron

Hans-Hermann Hoppe

“[…] ‘conservador’ se refere a alguém que acredita na existência de uma ordem natural, de um estado de coisas natural, que corresponde à natureza das coisas; que se harmoniza com a natureza e o homem.”

Obra: Democracia, o Deus que Falhou. Capítulo X. Sobre o Conservadorismo e o Libertarianismo. Edição do Mises Brasil, 2014, São Paulo. Tradução de Marcelo Werlang de Assis. De Hans-Hermann Hoppe (Alemanha/Baixa Saxônia, 1949).

Leitura de 2015.

É neste sentido dado pelo filósofo e economista alemão que me considero conservador. O capítulo X de Democracia, o Deus que Falhou é um dos mais importantes textos libertários que já li.

Hoppe indica dois sentidos possíveis ao termo “conservador”: o primeiro na visão de alguém que apoia o status quo, “que deseja conservar as leis, as regras, as regulações e os códigos morais e comportamentais que existem em um determinado ponto no tempo” (p. 223). Contudo é no segundo sentido que o filósofo alemão austrolibertário mais importante na atualidade vai apresentar seus argumentos em favor da ideia de que “libertários devem ser conservadores” (p. 225). Diz Hoppe que conservadores (no que tange aos ocidentais) “caso eles apoiem alguma coisa, apoiam e desejam preservar a família, as hierarquias sociais e as camadas das autoridades material e espiritual/intelectual baseadas em – e decorrentes de – laços familiares e em relações de parentesco” (p. 224); o libertário se notabilizada por reconhecer as famílias, a propriedade privada que se deriva desse reconhecimento e a cooperação das famílias em livres relações econômicas sob uma ordem social, o definitivamente resume uma visão convergente com o conservadorismo no segundo sentido por ele apontado.

Porém, à mon avis, na confusão do uso do termo “conservador”, não apenas entre indivíduos com viés de esquerda, mas também entre partidários de direita, ambos atrelados a uma mentalidade estatista, não me surpreende que resida uma comum e equivocada rotulação de que libertários são indivíduos relativistas, “ultraliberais” e chegados a uma anomia, certamente por conta da incompreensão do uso de termos como “anarcocapitalismo”, “anarquia de mercado” e “anarquia de propriedade privada”, como se atestassem uma visão amoral da sociedade; neste aspecto, a libertários que se pautam em uma visão muito economicista, enquanto indiferente ou até mesmo crítica ao peso da moral na ordem social, vejo Hoppe sendo implacável, sobretudo com os que chama de “pervertidos” e “desequilibrados” (página 242): “vulgaridade”, “obscenidade”, “promiscuidade”, “pornografia”, “prostituição”, “poligamia”, “pedofilia”, são citações que denotam o entendimento avesso do filósofo alemão.

Um parêntese pessoal: Na incompreensão sobre o libertarianismo como uma visão onde não há harmonização com o Estado, há quem o associe também ao “comunismo” (pela ideia de que comunistas querem abolir o Estado para instituir outra ordem que seria a comuna), salvo por desconhecimento, aqui se trata de uma desonestidade intelectual, pois basta verificar o “detalhe” da defesa da propriedade privada, característica comum entre libertários ancorados na Escola Austríaca de economia. Ocorre que libertários defendem concepções de governo privado, em uma ordem normativa que nada tem a ver com a ideia de “anomia”, ou de “anarquia” e sim com a substituição do estatal governo “público”.

Voltando a Hoppe, é justamente no sentido estatista que o filósofo vê o “conservadorismo moderno, nos Estados Unidos e na Europa”, mostrando-se “confuso e distorcido” (p. 225). Considera que na medida em que a democracia se tornou um fenômeno relacionado à massa, o conservadorismo raiz , anti-igualitarista, aristocrático e antiestatista, se tornou um “movimento de estatistas culturalmente conservadores” (p. 225). Neste ponto não é de surpreender que “conservadores” estatistas acabem defendendo ideias comuns às de progressistas, em termos de corporativismo em torno do Estado e intervencionismo econômico, enquanto são inclinados ao populismo e assim usam o conceito de “conservador” restrito ao âmbito dos costumes para se capitalizarem politicamente.

Desta leitura de Hoppe, penso que libertarianismo sem conservadorismo não faz o menor sentido, da mesma forma que a liberdade perde o lastro sem a responsabilidade.

24/08/2022 00h02

Imagem: DW

Nietzsche

“Volto atrás, para relatar a verdadeira história do cristianismo. A própria palavra “cristianismo” é já um equívoco – no fundo só existiu um cristão e esse morreu na cruz.”

Obra: O Anticristo. XXXIX. Martin Claret, 2003, São Paulo. Tradução de Pietro Nassetti. De Friedrich Wilhelm Nietzsche (Reino da Prússia/Röcken, 1844-1900).

Mais uma leitura dos tempos de seminarista, junho de 2005.

E segue o mais destemido filósofo do século XIX a afirmar que “só a prática cristã, uma vida tal como a viveu aquele que morreu na cruz, é cristã”. (p. 74). Mais adiante, sintetiza no mesmo parágrafo que “reduzir o fato de se ser cristão, a vida cristã, a um fato de crença, a uma simples fenomenalidade de consciência, é o que se pode negar o cristianismo”.

A definição de “cristão” pela fé , na visão de Nietzsche, é uma “ilusão psicológica”. O único cristão que existiu, na visão do filósofo, assim o foi pela ação que evidenciou um instinto. A fé então seria uma apropriação indevida de uma condição ou qualidade que só pode ser atestada pela vida em ação conforme o único cristão que teria existido e morreu na cruz.

Profundamente ligado ao natural como celebração da existência, em XXXIV Nietzsche argumenta que o reino dos céus é um “estado da alma”, uma “experiência do coração” e não algo que suceda “além da Terra” ou “depois da morte” (p. 70). Sua crítica sobre a fé como definição pode ser refletida também acerca da origem a partir do que representou o “único cristão” que existiu e o distanciamento deste significado na medida em que o conceito de “cristianismo” foi se popularizando; a massificação da fé representa nessa crítica de Nietzsche, a vulgarização do cristianismo das condições de suas origens. Neste sentido, a propagação na massa teria desvirtuado ou corrompido o cristianismo; para o filósofo, tornava-se preciso “barbarizá-lo” mediante doutrinas e ritos “de todos os cultos subterrâneos do Imperium Romanum” (p. 71); o que se entende por “cristianismo” não passa de uma corruptela de suas verdadeiras raízes, sendo a igreja um instrumento de uma fraude que multiplica “cristãos” tipificados como uma espécie de impostor do único cristão que houve; é nesse sentido que entendo a afirmação de Nietzsche de que “o homem religioso, tal como o quer a Igreja, é um típico decadente” (p.89).

A partir desta visão crítica de Nietzsche, sobre a fé como afirmação de ser e o contraponto da ação, que nele está para o instinto, embora o filósofo tenha, à mon avis, sido radical nesse desprezo, sobretudo ao clericalismo e a toda forma de apropriação religiosa meramente ritualista em torno do que Cristo significa como movimento que define o verdadeiro ser, refleti à época sobre o que pessoalmente entendia por “vida cristã” e as formalidades em termos de ilusões de uma apropriação indevida do sentido verdadeiro diante do que fizera Cristo como exemplo de vida, algo que só pode ser experimentado por uma radical busca de relação com Ele mediante ação concreta no enfrentamento dos dilemas existenciais.

A crítica de Nietzsche me soou como avassaladora sobre a comum figura do sujeito religioso que acredita que professar ritualisticamente uma fé é a mesma coisa de seguir os passos de Jesus.

23/08/2022 00h04

Imagem: Oficial site

Irvin D. Yalom

“Sabe qual é a verdadeira questão para um pensador? – Não esperou por uma resposta – A verdadeira questão é: quanta verdade consigo suportar?”

Obra: Quando Nietzsche chorou. Capítulo 8. Ediouro, 2005, Rio de janeiro, formato físico. De Irvin D. Yalom (EUA/Washington, D.C., 1931).

Leitura de 2007. Primeira impressão quando cheguei neste trecho do romance do psiquiatra americano, filho de imigrantes russos: é preciso ter muita bagagem intelectual e ousadia para produzir um romance com pano de fundo em encontros fictícios entre os icônicos Josef Breuer, pioneiro da “terapia através da conversa”, o extraordinário Friedrich Nietzsche e o jovem médico Sigmund Freud.

Encontros fictícios sob um contexto de fatos entre intelectuais de enorme envergadura no final do século XIX: o desespero de Nietzsche com um amor não correspondido pela intelectual russa Lou Andreas Salomé, em meio a um possível triângulo de afetos intelectuais (ou seriam casos tórridos de amor?) com o filósofo Paul Reé, amigo de Nietzsche e que, provavelmente, quando a jovem bela e culta decidiu fugir com Reé, após ter conhecido o maior filósofo do século XIX em Roma, pode ter desencadeado o processo de um Nietzsche deprimido; há também a histórica parceria científica de Freud e Breuer, cujo relacionamento “foi o embrião da psicoterapia” e a angústia mental de Breuer (p. 403, Nota do Autor).

Então, este romance é carregado de elementos que convidam o leitor a um mergulho intelectual muito interessante. No trecho, Nietzsche em uma conversa com Breuer, perdido com a estratégia do amigo Freud em “aliviar o estresse”, justamente na primeira sessão com o pensador do além-do-homem. Fico a imaginar se tivesse mesmo ocorrido tal encontro no alvorecer da psicoterapia, não seu se esse ramo científico teria sobrevivido a um enfrentamento assim. Penso que alguns “convictos” das ideias também possam apelar a algo reconfortante, incluindo intelectuais de alto gabarito, no evitar determinadas questões e se apegar a uma boa mentira que sirva de alivio ao estresse do quanto de verdade é possível suportar, de maneira que se tenha uma noite de sono.

22/08/2022 00h12

Imagem: Perfil oficial no Twitter

Nassim Nicholas Taleb

“A partir da história do peru, também podemos identificar a fonte de todos os erros prejudiciais: confundir a ausência de evidência (de danos) com a evidência de ausência […]”

Obra: Antifrágil. Capítulo 5. O souk e o prédio de escritórios. O grande problema do peru. Edição best. business, 2017, Rio de Janeiro. Tradução de Eduardo Rieche. De Nassim Nicholas Taleb (Líbano/Greater Amyoun, 1960).

Vou fazer uma adaptação de O grande problema do peru (pp 127-128) para um contexto de véspera de Natal:

Por um certo tempo um criador alimenta e cuida muitíssimo bem de um peru. Uma equipe de analistas contratada para observação, sem saber as reais intenções envolvidas na criação, chega a conclusão de que o produtor rural “adora” tomar conta de peru; só lhe faz bem, é um amante dessa linda espécie, e em cada dia que passa, enquanto o animal vai crescendo e engordando, a tal “certeza” vai se reforçando sempre com base em observação compondo uma base de dados “com uma confiança estatística cada vez maior” (p. 127). E eis que chegará a véspera de Natal e então se descobrirá “que não é uma boa ideia ser um peru” (p.127).

Uma situação confortável artificializada; um “peru” pode ser visto em um grupo de fundos em criptoativos ou qualquer negócio facilmente encontrado na internet, promovido por gente não verificada no mercado de olho em desavisados, baseado em corrente, onde um empolgado investidor vai aumentando sua “segurança” na medida em que o “gestor” entrega alta rentabilidade e eis que em um belo dia desaparece e o investidor ingênuo se descobre como vítima de um estelionato de pirâmide financeira ou faz o papel de “peru”. Conheci um “peru” que se empolgou com uma imobiliária que lhe ofereceu um imóvel com um preço atraente, de maneira que fez a aquisição e aproveitou a folga financeira para realizar melhorias, mas quando o inverno chegou descobriu que a casa está situada em uma área de alagamentos. Outro “peru” investiu em caríssimos cursos e “capacitações” na internet para o eSocial entre 2015 e 2018 para descobrir logo em seguida que seu problema seria resolvido pelo suporte de TI; o pacote de curso teórico para nada lhe serviu e quem deu as aulas sumiu do mercado depois de ter vendido o caça-níquel para alguns milhares de deslumbrados, agora desiludidos. Contudo, entre tantos casos, desconheço um tipo de “peru” maior do que o eleitor que acredita em político.

Taleb argumenta que “nossa missão na vida torna-se, simplesmente, ‘não ser um peru'” (p. 128) ou, em outras palavras, não confundir a ausência de evidência com evidência de ausência de algo que pode estar por trás de uma aparente vantagem e na verdade existir uma intenção danosa, um risco indetectável ou uma armadilha com a evidência de ausência do risco ou perigo de danos. Para isso, sugere Taleb que é preciso descobrir “a diferença entre estabilidade verdadeira e fabricada” (p. 128).

Há uma tendência a se confundir estabilidade manipulada (o criador de “peru” a promove) com sinônimo de segurança ou ausência de evidência de riscos, como se não houvesse risco (o “peru” iludido, bem tratado até a “véspera de Natal”), a seguir em conclusões equivocadas devido ao conhecimento precário em observações pontuais que geram de dados insuficientes e/ou mal interpretados que comprometem seriamente o saber sobre o que realmente está acontecendo.

21/08/2022 00h02

Imagem: ALJAZEERA

Mikhail Gorbachev

Time – E a propriedade privada?

Gorbatchóv – Bem, a vida nos mostrará. Eu não a excluiria. Estamos desativando a propriedade estatal e estabelecendo companhias de capital aberto, propriedades arrendadas, cooperativas e o empregao individual. Falando francamente, os trabalhadores autônomos, incluindo aqueles que trabalham em suas próprias oficinas ou em seus próprios pedações de terra. Nos países ocidentais há várias concepções de economia de mercado. Por exemplo, há uma aproximação mais liberal nos Estados Unidos enquanto em alguns países europeus , como a França e a Escandinávia, há mais regulamentação governamental; uma significativa parcela da economia é estatal. Mas mesmo lá, tudo operado dentro de uma estrutura de mercado.”

Obra: Gorbatchóv por ele mesmo. Entrevista a Time em 04/06/1990. As ideias de um líder. Edição da Martin Claret, 1991, São Paulo, formato físico. De Mikhail Sergeevitch Gorbachev (URSS/Rússia/Privol’noe, 1931).

Palavras do que seria o último premier soviético. Findava-se a maior experiência socialista de todos os tempos.

Era início de dezembro de 1991 e um rapazinho velho amigo de infância, ainda fascinado pelo marxismo como um típico adolescente ufanista-abobado, doutrinado por professores de história nas escolas particulares reguladas pelo Estado, próximo de completar 17 anos, foi a (extinta) Livro 7 na Sete de Setembro, tradicional livraria no centro do Recife, depois de mais um expediente em seu primeiro emprego de TI com carteira assinada (com o devido visto dos pais, por ser menor de idade), na Av. Rio Branco, Bairro do Recife (não versados nas coisas recifenses às vezes o chamam de “Recife Antigo”).

Na Livro 7 aquele jovem procura por publicações sobre programação e, claro, passa na seção de política para verificar lançamentos de seu assunto favorito na ocasião: o triste fim do socialismo na falência da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). E eis que encontra Gorbatchóv por ele mesmo, coletânea de matérias que fora resultado de pesquisa assinada por Alexandre Pimentel Cintra (Brasil/São Paulo) e Piero Ancona Lopez Soligo (Brasil/São Paulo).

Deixou o livro de programação de lado e foi conferir logo a coletânea, em um tempo em que não existia internet popularizada e os livros físicos eram mais procurados, o que aparecia de novidade era logo consumido por aquele rapazinho estranho, chegado a livros…

Ficou perplexo.

– Propriedade privada?, então acabou mesmo a URSS (pelos jornais tinha acabado em agosto, mas ele relutava em aceitar), pensou.

Pegou o ônibus do Cajueiro, em frente à Faculdade de Direito, e foi para casa sem entender o fracasso das ideias planificadoras de seu herói de infância-adolescente Karl Marx.

A dissolução formal da URSS aconteceria ainda no final daquele mês. O rapazinho marxista não fazia a menor ideia (descobriria 16 anos depois) de que foi uma crônica de uma morte anunciada, pois a URSS agonizava, pelo menos desde meados da década de 1980. Como todo regime totalitário onde a imprensa é controlada pelo aparato estatal, informações detalhadas eram escassas e quando a crise política no leste europeu eclodiu e culminou na queda do Muro de Berlim em 09/11/1989, os sinais estavam mais claros de que o regime de Moscou estava implodindo. Em seguida, vieram informações de uma fortíssima crise de escassez e muita fome; filas imensas de soviéticos a procura de alimentos de primeira necessidade como resultado de décadas de uma economia socialista que tentava sobreviver, muitas vezes com base em dados obtidos dos mercados externos para direcionar custos, visto que o cálculo econômico estava prejudicado com a estatização em elevada escala e a planificação econômica que cegava o entendimento mínimo sobre os reais níveis de escassez de insumos nos processos produtivos.

Os primeiros sinais de que a Perestroika significava mesmo o fim do modelo planificador estatizante dos meios de produção se deram em 26/05/1988, com a a lei que formalizou uma série de atividades privadas (p. 87). Em 07/02/1990 foi revogado o art. 6o. da Constituição da URSS, que dava a hegemonia ao Partido Comunista, abrindo caminho para o pluripartidarismo (pp 88-90) que facilitaria inclusive os golpes que se sucederam contra o próprio Gorbachev. No mês seguinte, foi aprovada a restauração da propriedade privada (p. 90). Na comemoração do Dia do trabalhador (1 de maio) Gorbachev e outros membros do Politburo do Partido Comunista foram vaiados na Praça Vermelha (p. 90). Ainda naquele mês um pacote aprovava a entrada de capital estrangeiro. A humilhação do regime seguia se aprofundando com empréstimos da França e da Comunidade Econômica Europeia para socorrer um gigante socialista em reforma política e abertura econômica. Em 1991 a crise se aprofundou com manifestações pelo país; 100 mil pessoas em Moscou desafiaram o governo que tinha proibido manifestações (p. 92). Em 26/08/1991 jornais pelo mundo noticiaram: “A União Soviética acabou”.

Hoje dou um desconto àquele jovem que se entristeceu com a derrocada soviética, pois ainda tinha sonhos de menino e estava no fim de uma fase difícil da vida em que se deixa de acreditar em muitas coisas fantasiosas celebradas na infância, tais como os heróis dos desenhos animados, os contos de fadas, o saci-pererê, a mula sem cabeça, a Comadre Fulozinha, o Papai Noel e o socialismo…

20/08/2022 12h40

Imagem: The Moody Church

Erwin Lutzer

“Dentro do meio evangélico há um lamentável desvio para a aceitação de um cristianismo que não exige mudança de vida no caminhar com Deus.”

Obra: De pastor para pastor. Capítulo 11. A igreja e o mundo. Quem está influenciando quem? Editora Vida, 2000, São Paulo, formato físico. De Erwin W. Lutzer (Canadá/Regina, 1941).

Leitura de 2005, no tempo de seminarista. Hoje pastor emérito, Lutzer serviu por 36 anos em uma das mais importantes igrejas dos EUA, a Moody em Chicago. Na edição que disponho, o prefácio é do dr. Russell Shedd. A obra foi publicada pela primeira vez em 1998 sob o título Pastor to pastor.

Segue o pastor Lutzer a apontar que há “uma tendência crescente à adaptação – selecionar o que gostamos da Bíblia e deixar o resto de lado” (p. 87). Cita no parágrafo seguinte a tentativa de conciliação evangélica com o ativismo gay. No seguinte, faz o mesmo com o feminismo, e segue na mesma abordagem sobre cristãos que tentam harmonizar o marxismo com o Evangelho. Cita Francis Schaeffer [109] sobre o “grande desastre evangélico” (pp 86-87), sobre a igreja acomodada “ao espírito da era” (p. 88). Nitidamente em alusão à teologia da prosperidade, não poupa na crítica do que define como “nova filosofia” pelo afã de que o cristão seja “rico feliz e saudável” e que assim produziu frequentadores de igrejas em uma “religião à la carte” cuja geração muda de igreja conforme seus caprichos, “pronta a aceitar os benefícios do cristianismo sem a obediência que requer sacrifício”. (p. 88). Adverte que a vida cristã é feita de “privilégios e responsabilidades” (p. 89), que é preciso estar disposto para sofrer por Cristo (p. 89) e que “a obediência seletiva anula a autoridade de Deus” (p. 90).

Quando li esta obra era seminarista de confissão batista, na fase em que pregava, produzia textos para boletins, organizava sessões administrativas e dava aulas na Escola Bíblica Dominical (EBD). Também tratava de questões orçamentárias. Assim chegaram a articular o meu “concílio examinatório”; muitos pareciam crer que eu queria ser pastor, no entanto, no primeiro dia de aula no seminário (agosto/2003), uma das primeiras coisas que informei, na apresentação, que tinha ingressado para aprimorar conhecimentos e servir sem a intenção de ser pastor; também entendo que o pastor é formado na igreja (comunidade) e não no seminário. Então, ao saber do movimento, comuniquei que não estava interessado no exame e frustrei o pastor empolgado com a ideia.

Naquele tempo, notei um problema em meu senso crítico que poderia ser interpretado de forma inadequada no ambiente religioso, onde não raramente aparência vale muito e legitimidade é apenas detalhe, muitas vezes desprezado. A impressão que tinha é que parecia ser mais “adequado” dar “água com açúcar” às ovelhas do que arriscar um alimento mais rico em “vitaminas reflexivas”, sobretudo em uma sociedade infantilizada. Predominava a figura do pastor pragmático que tomava muito cuidado para não tocar em determinados pontos da fé, embora o sensacionalismo pudesse fazer parte da pregação. Isso me perturbou por um bom tempo pois poderia terminar em um falido profetismo dentro de minha convicção de fé de que o ministério pastoral não me dizia respeito. Notei o quanto é traiçoeira a linha que separa a crítica teológica, e todos os arranjos que pode alavancar, com o que deve ser fruto de reflexão no púlpito. Sentia-me um estranho em rodas de pastores e seminaristas que seguiam uma cartilha um tanto diversa do que produziam no seminário. Outro ponto delicado surgia quando o assunto de bastidores se pautava em discussões acerca da arrecadação de “dízimos e ofertas”, assim como em benefícios que uma determinada igreja concedia aos seus respectivos presidentes (pastores). Minha formação de economista só aumentou a lente crítica sobre esse vulgar materialismo de líderes que agiam como se o ministério pastoral fosse um negócio como outro qualquer para se “ganhar a vida”. Ao perceber que poderia ser frequente o dilema da pregação de púlpito ser uma coisa, e a vida nos bastidores, outra, compreendi que jamais conseguiria lidar com isso, não que me considere “santo” e sim porque aprendi que o pastor é um agente público submetido a uma enorme pressão e muitas vezes tem que ser político dentro da igreja. O termo “político” aqui não significa necessariamente uma pessoa avessa à sinceridade ou inescrupulosa, como os políticos de governos públicos normalmente são. E “igreja” aqui está no sentido de comunidade local organizada em uma instituição sob regras comuns de fé. Foi por não ter a competência para lidar com essa pressão, entendi melhor que não deveria forçar este caminho.

Acredito que a vida de um pastor, assim como de todo cristão, deve ser reflexo de uma correspondência moral condizente com determinados valores que só podem ser compreendidos em comunhão com Cristo. Junta-se a essa visão o fato de que durante o seminário, dois teólogos marcaram profundamente minha formação: o católico Santo Agostinho de Hipona e o protestante Søren Kierkegaard, duas grandes referências que desenvolveram um senso de auto crítica profunda em suas teologias e modos de pensar. E em minha visão, o púlpito é única e exclusivamente para pregar a Palavra de Deus e não um lugar para qualquer honraria humana. O culto é exclusivo para Deus e não um show para exibição de roupas caras e testemunhos de “conquistas pessoais”; nesse aspecto sou muito conservador. O púlpito também não é lugar para disseminar interesses políticos, nem uma central de proclamação da Mensagem de Cristo confundida com uma espécie de auto ajuda, adornada com versículos bíblicos para satisfazer a caprichos materiais de uma geração mergulhada e doente no consumismo. No entanto, o púlpito também é lugar de teologia que se recusa a ser rasa e a tratar os ouvintes como crianças. Bem, é o que penso e isso importa somente ao meu juízo.

Hoje, quando ainda sou convidado para “dar uma palavra” em público, seja em igreja ou evento, imediatamente recuso porque entendo que nada tenho a falar. Considero-me uma pessoa vazia em um silêncio abençoador.

109. Nota do autor: Westchester, Crossway. 1984, p. 37.

19/08/2022 23h30

Imagem: WSJ

Walter E. Williams

“A democracia e o governo da maioria dão uma aura de legitimidade e decência a atos que de outra forma seriam considerados tirania. A maioria das pessoas concordaria que é tirania definir por processo democrático quais programas de televisão teríamos que ver, que tipo de carro vamos comprar e o que vamos comer no jantar de Ação de Graças. Por que não é também tirania que o processo político determine as decisões sobre quanto deve ser separado do nosso salário para a aposentadoria; se pagamos ou não seguro de saúde; que tipo de lâmpadas usamos; ou se compramos refrigerante em garrafas grandes ou pequenas?”

Tradução livre.

Obra: American Contempt for Liberty. Democracy and Majority Rule. Edição do Hoover Institution Press Publication No. 661, Stanford, California, 2015, eBook Kindle. De Walter Edward Williams (EUA/Filadélfia/Pensilvânia, 1926-2020)

Walter E. Williams foi um professor e crítico social-econômico que destoou do politicamente correto na “terra da liberdade”, negro, filho de uma empregada doméstica (p. 39), avesso ao vitimismo das cotas raciais, pensador de economia que apontava o teor contraproducente do salário mínimo, além da elitização de acesso aos mercados por regulações e a questão suscitada nesta obra em torno de arranjos democráticos que disfarçam tiranias, a lembrar um problema na dialética de Sócrates em A República, de Platão. Sua forma de raciocinar se traduziu em uma ousada, provocante, polêmica, destemida voz americana pela liberdade. Críticas cirúrgicas no contexto americano a partir do que os pais fundadores pensavam e o que ocorre nos dias hodiernos. Penso que o legado dos livros e reflexões do professor podem servir de base para uma reflexão também quanto ao que ocorre no estado brasileiro, cujas raízes são bem diferentes do que ocorrera na fundação dos EUA, no entanto, a considerar o moderno estatismo que se caracteriza pelo crescente coletivismo inevitavelmente intervencionista que cai sobre o indivíduo simples que acaba feito refém do aparato, o senso de liberdade nunca deve ser subestimado na medida em que o escopo corporativista estatal vai se expandindo; eis a grande contribuição, à mon avis, do pensamento essencial deixado pelo professor.

Neste trecho (p. 31) de Desprezo americano pela liberdade (tradução livre), expõe uma questão para arranjos democráticos: em termos práticos, a democracia funciona como um dispositivo coletivista e legalista que dá aparência de legitimidade a uma “governo da maioria” que disfarça sua natureza de se impor a invadir o foro íntimo do indivíduo, o que seria uma subliminar tirania, enquanto é concebido como sinônimo de liberdade, o que sugere um paradoxo.

Embora seja no mínimo estranho, ao senso comum, que amigos reunidos para um jantar decidam por uma votação para definir uma determinada opção do cardápio aplicável a todos, chama-me a atenção a abordagem do professor Williams para a essência de um problema inerente ao processo político, a começar por regulações que atingem diversos setores da vida social e comprometem a liberdade de escolha do indivíduo, além de onerar severamente a vida econômica. E o fato de o arranjo político ocorrer em um ambiente democrático não anula a gravidade do problema. O professor vê a democracia como uma forma de disfarçar ou dar “aura de legitimidade e decência” a decisões normativas que, de outras formas (fora do âmbito do governo) seriam tratadas como tirânicas. Neste aspecto, menciona que os formuladores da Constituição dos EUA inseriram dispositivos “antimaioria” como alerta aos perigos da “tirania majoritária” (p. 32).

“Uma dessas regras é que a eleição do presidente não é decidida por maioria de votos, mas sim pelo Colégio Eleitoral. Nove estados têm mais de 50% da população dos EUA. Se uma maioria simples fosse a regra, concebivelmente esses nove
Estados poderiam determinar a presidência. Felizmente, eles não podem porque eles têm apenas 225 votos do Colégio Eleitoral quando 270 do total de 538 são precisos. Não fosse o Colégio Eleitoral, os candidatos presidenciais poderiam ignorar com segurança os estados menos populosos.”
(p. 32)

E segue o professor a indicar as duas instâncias no Congresso, onde 51 senadores podem bloquear projetos de 435 deputados e outros 49 senadores e com possibilidade de veto presidencial (p. 32.). Sobre o lobby pelo desarmamento, fortíssimo entre democratas, que pode ser entendido como bloqueado no contexto do arranjo antimaioria da Constituição, cita Thomas Jefferson

“Que país pode preservar suas liberdades se sua governantes não são avisados ​​de tempos em tempos que seu povo preserva a espírito de resistência? Deixe-os pegar em armas.” (p. 33)

Contudo o arranjo político-democrático exerce sobre os indivíduos, pela coerção, modelos de transferência de renda (p. 35) via código tributário, onde se tira de uns para dar a outros, em programas sociais que hoje são aceitos e reverenciados, mas na visão do professor:

“Se algum americano fizesse privadamente o que o Congresso faz publicamente, ele estaria condenado como um ladrão comum. Tomando o que pertence a um americano dar a outro é roubo, e o recebedor é um destinatário de propriedade roubada.” (p. 35)

Trazendo a polêmica do professor para um contexto bem brasileiro, além dos programas de transferência, penso também na agenda social que a “Constituição Cidadã” impõe que, na prática, dissemina como algo legítimo que se pague pelo que não se deseja consumir; refiro-me ao custeio via carga tributária para o que não se tem por interesse e em termos práticos, isso ocorre no orçamento de atividades ou “serviços” que não necessariamente apetecem ao “contribuinte”. Paga-se compulsoriamente por meio da carga tributária agregada, sem necessariamente consumir, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pela escola “pública”, pelo financiamento da cultura, pela estatal cabide de emprego, pelo financiamento partidário, que dissemina ideias que podem se chocar gravemente com os valores de quem paga os impostos, onde um conservador acaba financiando um partido de viés comunista por meio do fundo partidário. Democraticamente se paga por coerção aquele show contratado pela prefeitura, que pode ser de gosto duvidoso a muitos pagadores de impostos. O problema também pode ser verificado quando um grupo de empresários tem acesso a subsídios via impostos no capitalismo de compadres de cada dia. Nesses e em tantos outros casos, o dispositivo regulador democrático impõe o custeio socializado alheio a crenças, valores e desejos em torno da liberdade.

A obra de Williams é um alerta sobre o que predomina como tendência em arranjos políticos quanto à imposição de regulações cada vez mais minuciosas sobre a vida do cidadão comum a prejudicar a liberdade. Penso especificamente quando um típico arranjo político intervencionista opera em favor de privilégios e regalias, que são “legais” mas não necessariamente morais ao pagador de impostos que o sustenta financeiramente ou será que, considerando a proporção de cada situação a seguir mencionada, as regalias de deputados, senadores, governantes, magistrados e funcionários “públicos” são coisas justas, assim como favorecimentos a empresários financiados com juros artificializados por impostos, que encarecem a vida dos mais humildes “contribuintes” bestializados diante de tais privilégios?

18/08/2022 23h50

Imagem: Casa Fernando Pessoa

Alberto Caeiro

“Quando vier a Primavera
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.

A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.”

Obra: Poemas Inconjuntos (1913-1915). Trecho de [70] 7-11-1915. Obra poética de Fernando Pessoa. Volumes I e II. Edição da Nova Fronteira, 2016, Rio de Janeiro, eBook Kindle. De Alberto Caeiro (1889-1915) heterônimo por Fernando António Nogueira Pessoa (Portugal/Lisboa, 1888-1935).

Nesse vazio que há em mim…

Alegra-me…
Ser insignificante na imensidão
das coisas que me cercam
e me ensinam a viver.

Alegra-me…
Quando vislumbro um pouco
de um eu evitado em minhas profundezas,
sem maquiagens que me tornam mais “sociável”.

Alegra-me…
Na natureza ver minha débil condição
que sinto naquela ilusória segurança material
em tudo que no tempo é consumido.

Alegra-me…
Tornar ao pó e nada levar deste mundo
a não ser minh’alma peregrina
com uma esperança a ecoar na eternidade.

Pastor Abdoral, 18/08/2022 23h50

17/08/2022 00h30

Imagem: oficial site About Max Lucado

Max Lucado

“O medo vê uma ameaça. A ansiedade a imagina.”

Obra: O fim da ansiedade. O segredo bíblico para livrar-se das preocupações. A ansiedade é uma chuva de meteoros do tipo “e se?”. Edição da Thomas Nelson Brasil. Tradução Vida Melhor, 2017, eBook Kindle. De Max Lucado (EUA/Texas/San Angelo, 1955).

Esta obra do pastor Max Lucado é de utilidade pública. Uma reflexão pessoal:

Vejo o medo como um sensor. A ansiedade, o sentimento da especulação, e aqui me reporto a um termo comum no mercado acionário onde saber lidar com os sinais de ansiedade é o que pode fazer enorme diferença em tomadas de decisões. O ansioso age com precipitação diante do medo, que é um sensor da consciência do perigo. A ansiedade se desenvolve na criação de expectativas; é um produto da imaginação ou da conjectura que é feita diante de um problema. O ansioso antecipa possibilidades de algo ocorrer como se fora realidade e assim vive constantemente “pré” ocupado. O medo naturalmente gera ocupação, a ansiedade provoca “pré” ocupação. O ansioso olha para um problema e começa a inserir um “se” que vira uma série de problematizações que o afastam de uma melhor percepção do problema… Em vez de se ocupar com o que é possível de ser feito no momento, normalmente passo a passo, o ansioso queima etapas e se entrega para viver em um futuro hipotético onde seus maiores temores lhe consomem, e uma chuva de meteoros (tomando aqui um termo do autor) caem sobre seu juízo, o que o faz prisioneiro de uma percepção deturpada sobre o que lhe provocou o medo e o que pode fazer para lidar com as dificuldades.

O que posso conhecer e medir, será possível compreender, administrar, ordenar, planejar, ajustar, melhorar e adaptar. Essa é a parte dos problemas da vida que competem à minha parte como ocupação para ser proativo e lidar com serenidade diante do que me perturba. Minha responsabilidade está justamente nas coisas que posso controlar, conhecer, medir e tratar. Negligenciar o medo nos problemas controláveis da vida é negar o compromisso com a minha própria existência. E quando surge algo que não tenho como administrar ou controlar? Entre os dilemas existenciais estão as questões na categoria do que não posso conhecer, o que não tenho como tratar; problemas ou situações onde não tenho como medir causas e efeitos, não posso administrar, não há como ordenar. Posso ser surpreendido por alguém ou algo que me prejudica seriamente sem que eu tenha tempo mínimo de reação; o drama de quem vive sob ansiedade é tratar essa possibilidade como algo presente de maneira que não consegue mais viver cada momento, em meio às dificuldades da vida.

Não posso dirigir o mundo, mas posso ter fé de que Deus fará isso (capítulo 2). Então, se penso demais ou me “pré” ocupo com o que não posso controlar, tenho a receita perfeita para fazer do “e se?” um vetor de estresse desnecessário, transformando-me em uma máquina ambulante de ansiedade com potencial de contagiar quem estiver ao meu alcance. O ansioso quer resolver tudo “hoje”, “agora”, sem avaliar a possibilidade, tampouco considera as variáveis fora de seu alcance. Não consegue aceitar que há situações na vida onde é preciso se concentrar no que é possível de ser feito, deixando o que está além do alcance para um âmbito que requer o exercício da fé, o recurso a ser inserido quando o sentimento da ansiedade for identificado. Aprendi na minha profissão a identificar pontos de ansiedade para poder neutralizá-los. Quando um cliente quer tudo “para ontem”, procuro me concentrar no significado do problema e na solução como um processo. O que posso fazer então procuro realizar. Etapas da solução de um problema que dependem de terceiros não devem me consumir enquanto devo monitorar e reagir dentro de minhas possibilidades. O que não está ao meu alcance, entrego a Deus; assim entendo o papel da fé como força reguladora que deve prevalecer diante do sentimento de ansiedade.

Compreender as naturezas de cada problema que surge e assumir o que pode ser tratado é o caminho para não me deixar levar por uma inquietação sobre um amanhã que especulo com receio, de maneira que pensamentos nesse sentido podem persistir e consumir o meu juízo para neutralizar qualquer disposição que posso ter no presente. Em suma, razão, intuição, determinação e tudo o que for construtivo para enfrentar o que me dá medo, e fé para me fortalecer diante do que não posso controlar.

“Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.”

Mateus 6:34

16/08/2022 00h12

Imagem: PT

Paul Singer

“Como já foi visto no início desta série, a causa imediata da inflação é sempre um aumento do volume dos meios de pagamentos. É impossível que os preços de todas as mercadorias aumentem sem que os compradores disponham de dinheiro suficiente para pagar os preços mais elevados. Este fato é, em geral, mal compreendido porque se uma determinada mercadoria se torna escassa, seu preço sobe sem que os consumidores tenham mais dinheiro para gastar com ela.”

Obra: Guia da inflação para o povo. IX O combate monetário à inflação. Editora Vozes, 15a. edição, 1990, Petrópolis, p.61. De Paul Israel Singer (Áustria/Viena, 1932-2018).

Era um noviço em economia lá pelos idos de 1994 quando li isso pelo primeira vez e fiquei surpreso, pois tinha passado a adolescência nos anos 1980 interessado no tema da inflação e o que tinha aprendido até então, como fiscal-mirim do Sarney, é que a danada era causada por empresários malvados que não paravam de etiquetar diariamente as mercadorias.

Algumas ironias hoje vejo no reencontro com esta obra, sobretudo neste trecho, 28 anos anos depois:

O professor Singer foi um austríaco de nascença que não era da Escola Austríaca (EA), muito pelo contrário, de mentalidade intervencionista, socialista, naturalizado brasileiro que figura entre os fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Através de ilustrações em linguagem simples, diria pedagógica, aborda o problema da expansão dos meios de pagamentos para reconhecer que “é o governo responsável pela inflação e também pelo aumento do custo de vida” (p. 63), o que o faz entrar em denominador comum com o liberal mais odiado pela tradição esquerdista brasileira nos anos 1980: Bobby Fields.

Outro ponto curioso é que a exposição do professor Singer destoa completamente do pensamento predominante entre economistas do PT e linhas auxiliares nos anos 1980 (e até hoje) sobre o combate à “causa imediata da inflação”, se não por palavras, pelo menos por atos, visto que defenderam com uma paixão ardente o tabelamento de preços na ponta de consumo e nos dias hodiernos são chegados a um controle dos preços administrados por (semi)estatais em práticas que induzem a população ainda a acreditar na ilusória crença de que a inflação é um fenômeno causado por empresários ou agentes no lado da oferta, todos gananciosos pelo lucro na forma de remarcação de preços. O último caso mais notório desta mentalidade se deu na gestão Dilma Rousseff sobre os preços da energia aos consumidores, política econômica que alimentou um dragão inflacionário que estourou em dois dígitos no IPCA em 2015.

Por fim, o professor Singer chega a reconhecer na obra dirigida ao “povo” (bem que poderia ter sido também aos economistas da Unicamp, pelo menos na hora de passar o óleo de peroba) que a política de arrocho salarial, à época da publicação, “é perfeitamente congruente com as medidas de política econômica ‘gerais’ que constituem o resto do repertório do combate à inflação” (p. 70), no entanto, não contrariando suas raízes socialistas, propõe “medidas de mudança nas regras de jogo econômico, o que significa subordinar a liberdade de iniciativa do capital às necessidades da maioria” (p.71).

15/08/2022 00h01

Imagem: Recanto do Poeta

João Cabral de Melo Neto

“Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.

Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.

Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).”

Obra: Paisagem do Capibaribe. Trechos. O cão sem plumas. Poesia completa. Organização, estabelecimento de texto, prefácio e notas de Antonio Carlos Secchin, edição da Alfaguara, 2020, eBook Kindle. De João Cabral de Melo Neto (Brasil/Pernambuco/Recife, 1920-1999).

O Recife… (Pastor Abdoral)

É o homem-massa-brutta-figura
endinheirado da zona sul
programando férias da usura
articulado em seus lobbies
de uma vida vazia, pela metade,
que se incomoda com a felicidade dos pobres.

É o Capibaribe de João Cabral
como uma metáfora inversa e imoral
de viscoso rio de carros…
aos olhos de seus medonhos políticos
que contemplam de helicóptero e tiram sarros.

Do suor no rosto de ambulantes
na luta desse rio de carros com mineral e cerveja…
e tudo o que a necessidade enseja
a espera de um PIX cair
que o brucutu da cobertura,
por perversão, quer extinguir.

É o Arruda lotado…
para mais uma tragicomédia
do Mais Querido no canal “perfumado”
pelo saneamento sempre ignorado,
Recife pertence ao voto panis et circenses
porque obra que não se vê, não se sente.

É a Venezia brasiliana
Que maltrata turistas e a visitantes engana
Neste rio de carros estagnada e insana.
Bela e mal cuidada de cheia e alagamento
em delírios de imitação do mangue em tormento
que agoniza no cimento.

De vias lunares chamadas de “avenida”,
de obras inauguradas já vencidas
pelas espertezas cariadas e “inauditas”
de suas elites trogloditas.

O Recife…

11/08/2022, Abdoral, após chegar do Recife em uma viagem de três horas Recife-Vitória.

14/08/2022 17h05

Imagem: The Economist

John Maynard Keynes

“Atribui-se a Lênin a declaração de que a melhor maneira de destruir o sistema capitalista é a de corromper a moeda. Através de um processo contínuo de inflação, os governos podem confiscar, secreta e desapercebidamente, uma importante parcela da riqueza de seus cidadãos. Por este método, eles não apenas confiscam, mas confiscam arbitrariamente, e, embora o processo empobreça muitos, na verdade enriquece alguns.”

Obra: A Europa depois do Tratado (1919). Keynes. Coletânea. Tradução de Miriam Moreira Leite. Editora Ática, 1978, São Paulo, formato físico. De John Maynard Keynes (Reino Unido/Cambridge, 1883-1946).

Leitura de tempos de graduação em economia (1997).

No contexto do pós-Guerra (I), segue o mais importante economista do século XX (pelo mainstream) a encerrar o parágrafo; menciona os que se beneficiam mais, transformados em “especuladores”, ficando a burguesia em empobrecimento, “não menos que ao operariado” (p. 59). Reconhece o lorde, no parágrafo seguinte, que “Lenîn tinha razão” e segue a afirmar que “todos os governos beligerantes praticaram, por necessidade ou incompetência, o que um bolchevique faria de maneira planejada” (p. 60).

Keynes neste artigo, originalmente publicado em The Economic Consequences of the peace [108] até parece um liberal clássico ao tratar sobre a responsabilidade de governos como causadores da inflação, mas apenas parece. Abre o artigo a advertir o leitor sobre o enfoque “que precisa ser pessimista” de sua análise, pois “o Tratado (de Versalhes) não inclui cláusulas para a recuperação econômica da Europa”, o que sinaliza um ensaio para ideias heterodoxas que avançariam nos vértices políticos durante os anos 1920. Então, Keynes aponta que o Conselho dos Quatro (EUA, França, Itália e UK) estava preocupado em esmagar a vida econômica do inimigo, o lado perdedor, e de fato (o lorde não menciona, é uma análise pessoal), a profunda crise econômica, com inflação e recessão na Alemanha, foi um fator preponderante para que Hitler e seus camaradas nazistas se aproveitassem do desespero da população para disseminar ideias nacionalistas com apelos raciais, em um caldeirão onde o Tratado de Versalhes estava como um problema mal resolvido.

Três questões elementares, apontadas pelo lorde, na situação da Europa no pós-Guerra (I): Queda absoluta na produtividade, colapso do sistema de transportes e incapacidade de comprar suprimentos além-mar (p. 57). Indica a questão inflacionista que “atingiu graus extraordinários” (p. 61). Cita a circulação de papel-moeda sendo “cerca de dez vezes maior” (p. 62) na Alemanha, quando comparada com a que ocorria antes da Guerra. Na França informa que o aumento foi de “seis vezes” (p. 64); Na Itália, “cinco ou seis vezes superior” (p. 65). O cenário na França e na Itália se agravava com a “infeliz posição orçamentária” (p. 65) e que o restante da Europa envolvida na Guerra se encontra em uma situação “ainda mais desesperadora” (p. 66) em termos que hoje chamaria de “fiscal”.

Neste ponto, é curioso ver como o conceito de inflação, neste Keynes de 1919, é um tanto diferente do conceito que é disseminado hoje por desenvolvimentistas pelo mundo, assim como, por desdobramento da perversão do termo, costumam subestimar ou ignorar totalmente a expansão monetária como causa. O que muitos desenvolvimentistas fazem atualmente me parece mais um caso de problema do “ismo” ou seja, do que seguidores de Keynes entenderam e aplicaram não sendo necessariamente o que o mentor apresentou e, em alguns casos, a ocasionar em interpretações e aplicações que podem fazê-lo revirar no túmulo.

108. Nota do editor: Londes, Macmilan, 1971, v. II, cap VI p. 143-59.

13/08/2022 20h20

Imagem: Revista Bula

Cecília Meireles

“PASSAM ANJOS com espadas de silêncio
por entre nós,
devastando o jardim suspenso
que podia ter sido a minha voz.”

Obra: Passam anjos. Poema. Primeira estrofe. Cecília Meireles. Obra poética, Editora Nova Aguilar, 1983, Rio de Janeiro, p. 187. De Cecília Benevides de Carvalho Meireles (Brasil/Rio de Janeiro, 1901-1964).

O silêncio da cidade

Da varanda parei para ouvir a cidade
e o que encontrei? Apenas o silêncio
suavemente tocado por concertos
de bem-te-vis e sabiás.

Um silêncio da Presença,
cortante como espadas que cicatrizam,
e minha voz se lacrimejou em pensamentos
no luto pandêmico.

Um silêncio imponente
sobre um barulhinho aqui, acolá,
de um movimento enquanto mudo
e em contrição…

Caminhando pelas ruas vazias
em cada esquina senti o dom
e o quão necessário fora esse silêncio
para que a Presença abençoasse a cidade.

Pastor Abdoral, 17/02/2021.

12/08/2022 23h28

Imagem: CNN

Salman Rushdie

“Como a novidade penetra no mundo? Como é que nasce?

Obra: Os versos satânicos. I. O Anjo Gibreel. “Para nascer de novo”. Companhia das Letras, 1998, São Paulo. Tradução Misael H. Dursan. De Ahmed Salman Rushdie (Índia/Bombaim, 1947)

O autor sofreu um atentado hoje; foi esfaqueado no pescoço e no tronco em uma palestra em Nova York [104].

Meu interesse neste romance se deu, incialmente, nos tempos do seminário pelo estudo de religiões comparadas. Na obra se faz alusão, a começar pelo título, a histórias que remontam antigas fontes sobre o profeta Muhammad (Maomé, Abul Alcacim Maomé ibne Abedalá ibne Abedal Motalibe ibne Haxime, Arábia Saudita/Meca, ?-632) ter defendido uma conciliação da nova fé (islâmica) com um tradicional politeísmo em Meca, mediante adoração a três deusas (Allāt , Al-Uzza e Manāt), recebida como revelação divina [105], o que não teria passado de uma artimanha onde o profeta teria sido enganado por alguma entidade o que, posteriormente, William Muir (Reino Unido/Glasgow, 1819-1905) definiu como “versos satânicos” e não entrando no mérito da autenticidade, o suposto engano de Maomé indicaria um choque com o conceito de tawhid [106].

O surgimento de uma fé religiosa naturalmente desperta reações que tentam desqualificar o autor ou o profeta que a revela, por parte dos que detêm a predominância do controle religioso à época, e com Maomé não foi diferente. Autores bizantinos afirmaram que Maomé era epilético [107], como se essa suposta condição de saúde fosse suficiente para desqualificar o Corão. Os supostos “versos satânicos” foram definidos como uma “invenção” (Imam al-Razi) e o debate sobre a sua autenticidade atravessou os séculos.

No romance de Salman Rushdie, dois rapazes sobrevivem miraculosamente a um atentado terrorista que se dá em uma explosão de uma bomba em um avião em pleno voo a cerca de 30 mil pés; são inseridos elementos dualistas (bem e mal, divino e diabólico) para construir um sofisticado enredo nas duas personas ou personagens (Gibreel Fari shta e Saladin Chamcha) em meio a referências dos polêmicos “versos satânicos”. E eis que em 14/02/1989 o aiatolá Ruhollah Khomeini (Irã) anunciou a fatwa, que ordena a morte do autor indiano, por conta da obra classificada como “blasfêmia”.

A publicação de Os versos satânicos em 1988 traz à baila o tema da liberdade de expressão e o problema do fanatismo religioso. Quem faz arte ou qualquer forma de exposição de ideias, conceitos, crenças e valores, sob a base da liberdade de expressão, tem que estar disposto a enfrentar certos desdobramentos inerentes à liberdade que se dá em uma relação de via dupla pois, liberdade de expressão só tem sentido se estiver totalmente aberta ao juízo do público ou seja, o entendimento acerca da obra e, obviamente, “público” não se limita a um entendimento de representantes de um credo. O autor ao lidar com um tema tão delicado (o sagrado) deve estar ciente de que potencializou reações que podem se traduzir em ofensas, boicotes, banimentos em ambientes privados e diversas formas de contestação que podem até ser compreensíveis, desde que no plano do debate de ideias, mas que de forma alguma justificam a desproporção do aiatolá no radicalismo pela apologia à violação da integridade física e da própria vida do autor.

O atentado contra Salman Rushdie expõe uma questão gravíssima, à mon avis, sobre o que há de mais infame na espécie humana: a exploração do fanatismo seja político ou religioso, em nome de uma suposta defesa do que é tido como sagrado ou intocável, em um extremismo que não tolera a existência do que e/ou de quem se expressa de forma diversa, tida como desagradável, a apontar um problema bastante complexo em um mundo cada vez mais pluralizado onde toda forma de radicalismo coloca mais obscuridade em tentativas de reflexão.

104: CNN Brasil: Após cirurgia, Salman Rushdie pode perder um olho e respira por aparelhos, diz agente. 12/08/2022 às 21:48 | Atualizado 12/08/2022 às 22:12

105. Ver historiadores al-Waqidi e al-Tabari.

106. Base da fé islâmica sobre a crença no Deus único.

107. Ver Religiões da humanidade, do padre Waldomiro O. Piazza, Edições Loyola, 3a. edição, 1996, p. 386.

11/08/2022 23h24

Imagem: HEARTLAND

Murray Rothbard

“Fascismo e Nazismo foram a culminância lógica da tendência moderna para o coletivismo de direita nas questões nacionais. Tornou-se comum entre os libertários e, na verdade, também no establishment ocidental, considerar fascismo e comunismo como fundamentalmente idênticos. Mas ao mesmo tempo em que ambos os sistemas eram indubitavelmente coletivistas, eles divergiam muito no campo sócio-econômico. Pois o comunismo era um movimento revolucionário genuíno, que destituiu e destruiu implacavelmente as velhas elites dominantes; enquanto o fascismo, ao contrário, cristalizou as velhas classes dominantes no poder. Logo, o fascismo era um movimento contra-revolucionário, que firmou uma série de privilégios dos monopólios sobre a sociedade; em suma, ele foi a apoteose do capitalismo monopolista de Estado.[ 17 ] Foi por esta razão que o fascismo se mostrou tão atraente (o que obviamente nunca aconteceu com o comunismo) para os interesses de grandes empresas no ocidente – de maneira aberta e desavergonhada nos anos 20 e 30.[ 18 ]”

Notas da publicação.

17. Artigo de Groth, Alexander J., “The ‘Isms’ in Totalitarianism”, American Political Science Review (Dezembro, 1964).

18. Amerca’s Great Depression. Princeton: Van Nostrand, 1963. Ver também Salvemini, Gaetano e Lapiana, Geroge. What to do With Italy. Nova York: Duell, Sloan, and Pearce, 1943), p.65.

Obra: Esquerda e Direita: Perspectivas para a Liberdade. Vide Editorial, 2016, CEDET, eBook Kindle. De Murray Newton Rothbard (EUA/Nova Iorque/Nova Iorque, 1926-1995).

Economista e professor da ala libertária da Escola Austríaca (EA).

Publicado originalmente na revista Left and Right na primavera de 1965, p. 4-22.

Hoje compreendo melhor o significado do fascismo como uma versão de capitalismo de laços após a decadência do liberalismo. Foi um movimento de direita atrelado ao (neo) conservadorismo implementando um modelo de capitalismo estatizante e clientelista baseado no monopólio ancorado em regulações do Estado.

O fascismo ‘foi” porque entendo que a história do fascismo original é a história de Benito Mussolini, conforme explicou Indro Montanelli em La Storia d’Italia – 01 Piazzale Loreto e la fine del fascismo [102], e o que se tem hoje de “fascismo” consiste em modelos que remontam alguns conceitos recortados e contextualizados que até podem ser chamados sob o rótulo de “neofascismo”, mas não devem ser confundidos como se fossem a mesma coisa do movimento original. Olavo de Carvalho utiliza outro termo que considero interessante: economia fascista [103], que consiste em um sistema de poder onde empresários gozam de grandes privilégios que os protegem de efeitos da livre competição, sob a condição de ficarem de joelhos perante quem governa.

Foi lendo o professor Rothbard que pude entender melhor que a única relação de similaridade entre fascismo e comunismo reside no coletivismo; ambos utilizam formas de planejamento central em torno do aparato estatal, no entanto, o comunismo se distancia do fascismo em termos socioeconômicos na medida em que o primeiro promoveu uma ruptura com “velhas elites dominantes“, enquanto o segundo operou em favor delas. Esta análise Rothbard é um exemplo, à mon avis, de uma honestidade intelectual grandiosa. Outra questão interessante é a definição de Rothbard para o contexto do desenvolvimento do liberalismo genuíno que “havia praticamente nascido da luta conta o sistema feudal” (p. 14). o que ajuda a entender a visão do professor sobre o conservadorismo atrelado às elites feudais que reagiram para reprimir o liberalismo e sua liberdade econômica que naturalmente contraria interesses de dominação ancorados nos privilégios do sistema feudal. O livre mercado é um problema não apenas para socialistas de esquerda, mas também para os mais ricos que se atrelam ao poder político para preservarem seus negócios.

Esta obra exige do leitor certa prudência e um tanto de bagagem, pois deve ser lida com muito cuidado, sobretudo na análise, que pode ser surpreendente, mediante a crítica que o professor Rothbard faz a libertários que enxergam o socialismo no polo oposto da doutrina libertária, e neste ponto o contexto reside no sentido de que não se leva em conta que o conservadorismo, pelo entendimento do professor, está no polo oposto da liberdade (p. 16), o que dá o sentido para o entendimento sobre o socialismo como um “movimento confuso” (p. 16) por tentar “atingir objetivos liberais por meios conservadores” (p. 16), outra análise provocante do professor americano. Neste caso, como forma de aprofundamento da questão, considero importante a leitura do capítulo X da obra Democracia, o deus que falhou, Hans-Herman Hoppe (que foi aluno e muito próximo a Rothbard), quanto ao argumento em torno da importância de libertários entenderem que devem ser conservadores a partir da análise de dois sentidos para o termo “conservador”.

102. Ver em https://www.youtube.com/watch?v=5FWLvbKKjZQ

103. Ver O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. A vitória do fascismo. Editora Record, São Paulo, 2017, formato físico. De Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (Brasil/São Paulo, 1947-2022)

10/08/2022 00h42

Imagem: InfoMoney

Frédéric Bastiat

“O Estado é a grande ficção através da qual todos tentam viver à custa de todos.”

Tradução livre.

Obra: L’état maudit argent. Ed. Hennoyer Cl Ce. Giullaumin et Ce, 1849, Paris, edição online em Gallica, De Claude Frédéric Bastiat (France/Baiona, 1801-1850).

Em https://gallica.bnf.fr/ se pode acessar a publicação original desta obra que contém a famosa frase de Bastiat.

Eis o que foi dito em 1849 em pleno ambiente pós-Revolução Francesa por um pensador e político sobre uma ideia massificada sobre o Estado, visto como vetor com capacidade em si mesmo. Nessa crença está a armadilha de forçar a dependência cada vez mais dos vulneráveis ao assistencialismo via estatal e os consequentes controles sociais, fatores de onde se origina a burocracia excessiva do Estado, onde o serviço público se fortalece enquanto movimento de corporativismo “justificado” pela necessidade de fiscalização do que é alocado em termos de recursos.

Não conheço melhor caso desta ficção panem et circenses mais eficiente, para aprofundar a servidão de um povo, que a agenda da “Constituição Cidadã” e os consequentes “benefícios sociais” do “bolsa família” ao “Auxílio Brasil”. Os programas sociais transmitem uma mensagem de aceitação em massa de uma forma de deseducação sistemática de economia elementar, no sentido de passar a ideia de que o estado gera riqueza, enquanto dá um sentido moral ilusório sobre a distribuição de dinheiro. A estratégia de dominação da massa também ajuda a outra distração não menos nociva: a de que déficits orçamentários do estado são necessários e meramente “administráveis” sem causar sérios danos a quem sustenta o estado enquanto beneficia a quem o financia ou empresta recursos; investidores que se aproveitam rapidamente da expansão monetária (outra prática de panem et circenses) para  adquirir títulos do tesouro. É nesse sentido que se começa a entender o porquê de megainvestidores apoiarem tanto governos mais progressistas e/ou populistas mediante a tendência de expansão de gastos e aumento da dívida “pública” o que, nesta lógica, se junta ao recurso amplamente adotado por todo político raposeiro no distribuir dinheiro aos mais vulneráveis como arma mais poderosa para comprar votos e assim aliená-los cada vez na condição de eleitores que decidem os pleitos.

09/08/2022 23h42

Imagem: Faculty of History University of Oxford

Christopher Tyerman

“[…] observadores e veteranos do empreendimento entenderam que o papa havia pedido um sacrifício semelhante ao de Cristo em obediência ao mandamento do evangelho: se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me (Mateus 16:24)”

Tradução livre.

Obra: The Crusades: A Very Short Introduction (Very Short Introductions). Edição OUP Oxford, 2005, eBook Kindle. De Christopher J. Tyerman (UK)

Obra introdutória ao tema, do professor de história medieval em Hertford (1979), vencedor da Medalha do Prêmio Alexander da Royal Historical Society (1981).

Ir à guerra para retomar Jerusalém, no medioevo, em nome de Deus, era um chamado “cristão” sob os apelos do papa em um tempo em que se acreditava, em termos bem mais contundentes, na ideia do líder católico romano ser o pontífice ou, em uma visão ainda mais radical, o “Cristo em terra”. Ir ao combate para retomar os lugares sacros de Jerusalém era então um ato de entrega total a Cristo, um serviço inadiável, imprescindível a Deus em meio ao medo da danação como punição por não fazer nada, e assim se estabeleceram os fundos e os voluntários, muitos em contexto de exercício de penitência e peregrinação.

A tomada dos lugares santos no imaginário da fé cristã, sobretudo o da crucificação, pelos Muslims desde 638 com o fator do temor no ocidente com a expansão de fé muçulmana, deram os sentidos eclesiástico, teológico, social e político para canalizar a energia de uma mentalidade religiosa bem diferente da que se verifica predominantemente na cristandade atual.

Uma questão que me veio nesta leitura: Se o termo “guerra santa” atemoriza o mundo hoje no extremismo islâmico, seria um engodo ver como coisa superada entre ampla maioria de confissões cristãs? A concepção cristã medieval refletiu um tempo diverso, bem diferente da nossa mentalidade, e assim comparações ou cobranças podem gerar equívocos na intepretação dos fatos. Quem em uma mínima base de história medieval e em sã consciência diria que na cristandade predomina ainda a ideia de “guerra santa” embora o preconceito e o fundamentalismo estejam presentes?

08/08/2022 23h22

Imagem: ENGEPLUS

Eduardo Bueno

“O orçamento das empresas de Mauá era maior que o próprio orçamento do Império. Mauá criou a primeira multinacional brasileira; foi pioneiro na globalização da economia […]”

Obra: Brasil: uma história: cinco séculos de um país em construção. Capítulo 18. O Brasil Imperial. Visconde de Mauá: Vida e Obra. Leya, 2013, eBook Kindle. De Eduardo Bueno (Brasil/Rio Grande do Sul/Porto Alegre, 1958).

Apetece-me o estilo de Eduardo Bueno de contar histórias e o capítulo que trata sobre Irineu Evangelista de Souza me possibilitou duas reflexões:

A primeira sobre a crença ou ideia pretensiosa de que se a monarquia tivesse sido conservada, a Pindorama estaria em uma situação melhor, talvez em um estado político menos intervencionista, menos ofensivo à liberdade econômica, algo que me parece não passar do universo saudosista panfletário de um conservadorismo mequetrefe. Irineu Evangelista, como aponta Bueno, foi o debutante e até nossos dias, um dos pouquíssimos empreendedores brasileiros, com relevância no exterior, no entanto , foi perseguido por D. Pedro II como marca do espírito anticapitalista liberal na fundação colonial junto com o compadrio, que se adaptou às conveniências da monarquia, assim como ganhou uma nova dimensão na república. Hoje, o antiliberalismo está consagrado na “Constituição Cidadã” que parece ter selado o destino nacional. Atribuir as mazelas políticas avessas à liberdade de mercado e ao empreendedorismo como algo mais concentrado a partir da era Vargas, embora o ditador “pai” ou multiplicador dos pobres tenha sido o que mais se aproximou do fascismo em terra tupiniquim e que por isso deixou um legado de atraso econômico, é algo no mínimo ingênuo. O segundo imperador normalmente anunciado, por quem é chegado a uma coroa de estimação, como um homem “virtuoso”, “culto”, incentivador da cultura, “bem preparado” desde a infância para o poder moderador, diferentemente do pai mulherengo e um tanto frouxo, que o deixou menino em meio a uma crise política, entre outras atribuições. Pedro II foi um político que em nada deixou a desejar quanto aos que apreciam uma mentalidade primitiva comum que amaldiçoa quem empreende e comete o “pecado” de ter lucro ou o que dissera o genial compositor Tom Jobim sobre o sucesso no Brasil ser considerado “ofensa pessoal” me soa como algo tombado pelo “patrimônio histórico” dos compadres “amigos do rei”.

A segunda reflexão envolve a ideia do iluminismo como mais uma das apropriações fraudulentas no mundo da política que, em nome da “razão”, com uma pretensão “científica”, se desenvolveu a partir do seu nascedouro europeu para trazer “luz” a um mundo que supostamente estava nas “trevas” das tradições medievais, e que virou moda abaixo da linha do Equador. O monarca “iluminista” usou a “razão” para clarear o país com seus políticos fiéis que se articulavam para sabotar Mauá e tudo que parecesse moderno em economia de mercado, em nome de um nacionalismo conservador, escravagista, em “berço esplêndido” na commodity do café, coisa não muito diferente de um certo governo de tempo republicano que sentou no boom das commodities e explorou a ignorância da massa com o “progresso” em meio ao clássico negócio do capitalismo de laços que resultou em megapropinodutos.

Penso ser simplista demais a ideia de que “a história se repete”; talvez seja mais interessante refletir sobre a essência de coisas que se conservam e ganham novas vestimentas ou disfarces em um mundo onde estelionatários das ideias discursam espalhando a crença de trabalham para o tornarem “melhor”.

07/08/2022 11h18

Imagem: flickr oficial

Olavo de Carvalho

“Um público que está contaminado de doutrinação marxista até a medula não tem, por isso mesmo, a menor ideia de que está sendo doutrinado. A primeira etapa da doutrinação é puramente cultural, difusa, e não visa a incutir no sujeito a menor convicção política explícita, mas apenas a moldar sua cosmovisão segundo as linhas básicas da filosofia marxista, sem este nome, naturalmente, e apresentada como se fosse ‘o’ conhecimento em geral.”

Obra: A Nova Era e a Revolução Cultural. Apêndices. Doutrinação Difusa. Vide Editorial, 4a. edição, 2014, formato físico. De Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (Brasil/São Paulo/Campinas, 1947-2022).

Doutrinação Difusa, artigo publicado em O Globo em 27/01/2001. No mesmo parágrafo, afirma Olavo de Carvalho que “são raros os cidadãos brasileiros que já não estejam conquistados para essa visão de mundo, no mínimo por desconhecer que ela é uma visão e não o próprio mundo” (p. 153).

Comecei a ler Olavo de Carvalho em paralelo um pouco depois de minha descoberta dos austríacos, que se deu em 2007 e percebi o quanto estava ainda condicionado a pensar em favor marxista, embora, à época, acreditava ser um “liberal em economia”. Mises, Hayek e Rothbard, com Olavo em paralelo, provocaram um choque endógeno, profundo, em minha estrutura de raciocínio. Hoje percebo que os mais de vinte anos sendo “catequisado” no marxismo, a priori por fruto de um desejo adolescente, que se consolidou ao ler um resumo de O Capital de Julian Borchardt, formou um jovem socialista “convicto” que consumiu tempo considerável em leituras e seguiu pensando, sem notar, como marxista e se achando “liberal em economia” após o ilusório abandono das crenças, quando parei de votar no PT e, ocasionalmente, na legenda do Partido Comunista após 2002. Penso que a base que formei por leituras marxistas seja mais robusta que a de um apaixonado militante esquerdista médio. Entre 2003 e 2007, quando esbarrei com um surrado exemplar de Ação Humana e um PDF de Anatomia do Estado, ainda tinha afeto pela “Constituição Cidadã” e acreditava nas políticas públicas para “tutelar”, principalmente a educação, e tantas outras coisas que julgava de “interesse nacional” acima da realidade chamada “mercado”. Não conseguia entender que é no mercado que descobrimos o que está a ocorrer e sob efeito da dispersão de conhecimento, agradável ou não, e que tentar manipulá-lo trará consequências muitas vezes caríssimas e quando ocorre na política, o efeito se socializa podendo ser devastador sobretudo aos mais pobres; não se trata de uma questão de “gostar do mercado” ou, per si, de coisas que acontecem nele e sim de reconhecer seu peso na sociedade e os perigos de tentar ignorá-lo a pensar que pode contê-lo sem provocar sérios danos a si mesmo e aos outros, o que aprendi com os austríacos.

Olavo de Carvalho menciona neste artigo a “burocracia estatal” que “se tornou invisível o bastante para que os efeitos de suas ações sejam atribuídos à ‘classe dominante’, compreendida no sentido de ‘os ricos’ ou ‘os capitalistas'” (p. 154). de fato, fui um dos que não conseguiam perceber o que estava por trás da burocracia estatal, em termos de controles sociais, instrumento marxista. e que entra governo, sai governo, não importa se de “esquerda”, “centro” ou “direita” e essa linha de ação prossegue na colcha de retalhos peculiar da mentalidade de ocupação marxista. Hoje observo bolsonaristas tentando se passar por “liberais em economia” e “conservadores nos costumes” quando na verdade não são uma coisa nem outra (liberais no sentido clássico). Defendem ideias de tutela, intervenções, controles, protecionismos e demais corporativismos em torno do Estado e é nesse sentido que os chamo de “irmãos rixosos dos petistas”.

Na educação tutelada pelo Estado, também não conseguia enxergar o reducionismo marxista pelas superestruturas dos interesses de classes no vocabulário corrente (p. 154) onde prevalece um sentido comum ou de dominância subliminar de ideias empacotadas sob um disfarce “democrático” ou “livre”, em um aparente ambiente de tolerância ao debate de ideias, apenas aparente, pois quem busca se inteirar de outra versão da história ou apresentar entendimento diverso do convencionado ou “politicamente correto”, independente se está em bases razoáveis de ciência, termina exposto ao ridículo; “reacionário”, “conservador” e até “fascista”. Senti isso na pele quando, convidado para falar sobre a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em um grupo universitário de discussão, por conta de minha formação de economista e uma certa experiência no setor trabalhista, ao ser indagado sobre qual seria minha posição política em relação ao instrumento jurídico, tive minha opinião associada a de um “fascista” por externar um entendimento contrário à preservação da CLT, o que denotou uma ironia.

Essa mentalidade de ocupação marxista é tão poderosa que hoje um liberal em economia que está no governo defende, ao mesmo tempo, o combate da burocracia do Estado e coisas soviéticas como os controles do Big Brother Fiscal (eSocial/Sped) e se alguém considerar o assunto, ocorre normalmente uma reação “com quatro pedras na mão” (p. 154) se a coisa for entendida como denúncia. Não vi categoria laboral tão impregnada dessa mentalidade quanto a de profissionais de contabilidade, dos meramente manipulados aos influencers, cada um sob interesses diversos, mas a instrumentalizado pela mesma mentalidade.

Outro fator que Olavo destaca, como “segunda fase da doutrinação” (p. 155) se relaciona ao que conforme “soe de maneira a parecer associado aos ‘interesses de classe’ dos bondosos pobres ou dos malvados ricos” (p. 155) onde o discurso estatizante é apresentado como algo em favor dos “excluídos”, passando como um “Cavalo de Tróia” [101] com a burocracia do aparato estatal e a carga tributária “escorchante” (p. 155) que, à mon avis, vendida como necessária, encarece a vida e prejudica justamente os mais pobres e assim os que verdadeiramente dominam se atrelam às vítimas e passam a acusar de dominadores os que estão dominados enquanto submetidos aos seus controles sociais.

101. Um termo pessoal para o que entendo sobre toda forma imposta pelo governo estatal quando surge o discurso da “melhoria do ambiente de negócios” que na verdade, é uma proposta para entorpecer ainda mais a sociedade com controles sociais.

06/08/2022 16h20

Imagem: Editora Unesp

Jean-Jacques Rousseau

“O primeiro que tendo cercado um terreno se lembrou de dizer: isto é meu e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: ‘Livrai-nos de escutar esse impostor, estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém!’.”

Obra: Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.  Segunda parte. Edição da Martin Claret, 2005, São Paulo, formato físico. Jean-Jacques Rousseau (Suíça/Genebra, 1712-1778).

Foi no primeiro contato com esta obra (1994, graduação em economia) que escutei de um professor (“nada” marxista) que a paz entre os homens foi perdida no momento em que a cerca foi inventada. De formas variadas, sob a mesma essência, fui doutrinado em vários momentos de minha vida estudantil para ver a propriedade privada como causa primeira dos maiores conflitos da humanidade. Imagino a partir da disseminação dessa crença – com o crivo de “verdade científica” – que muitos passaram a simpatizar com ideias progressistas e comunistas em torno de uma espécie de saudosismo do estado primitivo. E as experiências socialistas desde o século passado “provaram” essa crença difundida como um mantra sutil em escolas e faculdades, mas o “paraíso na terra” foi rejeitado pelos homens…

Rousseau reconhece que percorreu “como um traço” as “multidões de séculos” (p. 64) a tratar uma questão que, à mon avis, se deu em um processo longuíssimo desde o alvorecer do homem de bando, totalmente passivo diante da natureza, não por isso deixando de ser um guerreiro contra a própria espécie em agrupamentos rivais, enquanto coletor da subsistência, até chegar no fenômeno social do chefe de família em uma propriedade separada da tribo ou da aldeia. No entanto, voltando ao ícone do iluminismo:

“Quanto mais o espírito se esclarecia, tanto mais a indústria se aperfeiçoava. Logo, deixando de adormecer na adormecer na primeira árvore, ou de retirar nas cavernas, encontravam-se certas espécie de machados de pedras duras e afiadas que serviram para cortar a madeira, cavar a terra e fazer cabanas de galhos, que ocorreu, em seguida, endurecer com argila e ferro. Foi a época de uma primeira revolução que formou o estabelecimento e a distinção das famílias e que introduziu uma espécie de propriedade de onde já nasceram, talvez, muitas rixas e combates.” (p.64).

A concepção sobre a família complementa a crença. No século seguinte ao de Rousseau, Marx e o marxismo (embora um tanto distintos em termos interpretativos) seriam os fenômenos mais chamativos na história progressista em favor de uma mentalidade que, sem cerimônia, apregoa a erradicação da família enquanto célula da propriedade privada sob o apelo da luta de classes:

“A burguesia arrancou à relação familiar o seu comovente véu sentimental e reduziu-a a uma pura relação de dinheiro […]

Supressão da família! Até os mais radicais se indignam com este propósito infame dos comunistas. Sobre que assenta a família actual, a família burguesa? Sobre o capital, sobre o proveito privado. Completamente desenvolvida ela só existe para a burguesia; mas ela encontra o seu complemento na ausência forçada da família para os proletários e na prostituição pública.” [99].

Curioso é que muitos adeptos dessa mentalidade, no auge das comodidades do poder político e da posse da riqueza (a mesma da burguesia causadora do “grande mal”), curiosamente não desejam levar adiante essa certeza ao não abrirem mão da propriedade e do conforto não raramente fincados em uma estrutura familiar tradicional. Nada mais emblemático que a dita “esquerda caviar” ou os psolistas do Leblon.

E eis que Rousseau segue a tratar de um espaço coletivo de famílias que viviam juntas onde nasceram “os mais doces sentimentos conhecidos dos homens: o amor conjugal e o amor paternal” (p. 64). No entanto, as mulheres se tornaram sedentárias, diz o autor clássico mais apreciado entre muitos progressistas, tendo em vista que ficavam para cuidar da cabana e dos filhos, e formas de organização foram se desenvolvendo a estabelecer normas sociais ou “deveres de civilidade” (p. 66) com o crescente desenvolvimento das trocas comerciais entre os grupos familiares.

“Adquire-se o hábito de considerar diferentes objetos e compará-los; adquirem-se, insensivelmente, ideias de mérito e de beleza, que produzem sentimentos de preferência.” (p. 66).

Na medida em que o conhecimento, traduzido em tecnologia, foi sendo aplicado em maior escala por esse homem mais dado ao espírito privado, Rousseau aponta uma tese importante na sua análise: a metalurgia e a agricultura como fatores que civilizaram o homem que perdeu o “gênero humano” (p. 66), onde a divisão do trabalho habilitou os mais engenhosos em meios de ganhar mais ou de abreviar o trabalho, de forma diversa aos mais rudes, e nessa diversidade de produções:

“[…] o lavrador tinha mais necessidade de ferro, ou o ferreiro mais necessidade de trigo e, trabalhando igualmente, um ganhava muito, enquanto outro mal podia viver. É assim que a desigualdade natural se desenvolve insensivelmente, com a combinação, e que as diferenças dos homens, desenvolvidas pelas das circunstâncias, se tornam mais sensíveis, mais permanentes nos seus efeitos, e começam a influir na mesma proporção sobre a sorte dos particulares.” ( p. 70).

E torno à essência desse raciocínio de Rousseau, tão poderosamente presente, no mínimo desde 1755 (ano da primeira publicação), por formas diversas, enquanto apropriado e rebatizado conforme as conveniências político-ideológicas, segue no imaginário popular-educacional não apenas hoje entre esquerdistas radicais, mas de forma subliminar, imperceptível, em indivíduos que foram “educados” em uma “cosmovisão” marxista naquilo em que Olavo de Carvalho chamou de “doutrinação difusa” [100].

99. Manifesto do Partido Comunista, 2a. edição, Edição dirigida por José BARATA-MOURA e Francisco MELO, Colectivo das Edições «Avante!», p. 32 e p. 46.

100. A Nova Era e a Revolução Cultural, Vide Editorial, 4a. edição, 2014, p. 153.

05/08/2022 23h40

Imagem: Casa Fernando Pessoa

Alberto Caeiro

“Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo…
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura…

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.”

Obra: “Eu sou do tamanho do que vejo.”, O guardador de rebanhos” (1911-1912). Poema VI. Obra poética de Fernando Pessoa. Volumes I e II. Edição da Nova Fronteira, 2016, Rio de Janeiro, eBook Kindle. De Alberto Caeiro (1889-1915) heterônimo por Fernando António Nogueira Pessoa (Portugal/Lisboa, 1888-1935).

Sou do tamanho do que vejo!

Minha riqueza está na Luz sobre o caos,
Paz no meio da agonia.
Que enxergo de olhos fechados…

Amargura, solidão e angústia
inevitáveis desta vida,
não importam.

Trevas que me cercam,
De abissal fadiga que me desaba
a revelar meu melancólico além-do-homem.

Luz sobre o caos,
Paz no meio da agonia
surgem em meus limites.
Em dor, tremor, temor deste mundo,
Minh’alma prevalece,
quando enxergo,
de olhos fechados…

Que sou do tamanho do que vejo!

Pastor Abdoral 05/08/2022 23h26

04/08/2022 23h43

Imagem: Jornal da USP

Ortega y Gasset

“[…] a história europeia parece, pela primeira vez, entregue à decisão do homem vulgar, enquanto tal. Ou dito na voz ativa: o homem vulgar, antes dirigido, resolveu governar o mundo.”

Obra: A Rebelião das Massas. XI A época do “filhinho de papai”. Edição do CEDET, Campinas, 2016, formato físico. De José Ortega y Gasset (España/Madrid, 1883-1955).

Assim escreveu Ortega y Gasset, um pouco antes de 1930 (ano da publicação), visto que o conteúdo de A Rebelião das Massas “tinha sido antecipado alguns anos antes em artigos e conferências” (p. 12).

Afirma um dos mais importantes ensaístas do século XX que o homem vulgar resolveu governar o mundo e tem “uma impressão nata e radical de que a vida é fácil”, vê-se como “completo seu depósito moral e intelectual” e assim é incapaz de colocar em questão suas opiniões; por isso “intervirá em tudo impondo sua vulgar opinião” (p. 173). É um “menino mimado”, “primitivo rebelde”, diferente do “primitivo normal” que é “mais dócil às instâncias superiores” (p. 174).

Esse homem grosso, raso, diria brutta figura, que se torna governante, o “menino mimado” que herdou a civilização com suas comodidades, foi o que resultou em “deformações que o luxo produz na matéria humana” (p. 174). E segue o filósofo espanhol a afirmar que esse homem “filhinho de papai” está sentado na “superabundância de meios, mas não as angústias”, e que se tornou possível pela índole da civilização do século XX (p. 177); inconsequente, “veio à vida para fazer o que lhe dê na telha” (p. 178), sendo um fingidor “com seus atos e palavras a convicção contrária” ( p. 181). Eis a tônica desse tipo assim chamado de “homem-massa”: a “insinceridade”, a “brincadeira”, em especial com a tragédia porque acredita que a verdadeira “não é verossímil no mundo ocidental” ( p. 181).

Foi um pouco antes de 1930… até parece que se refere aos líderes do tempo presente.

Fato é que Ortega y Gasset viveu em um tempo de borbulhar três centros de retalhos ideológicos que se alimentaram desse homem desprovido de maiores sofisticações, tão pleno de certezas, que glamouriza a estupidez: o fascismo, o nazismo e o bolchevismo.

E fico a pensar o que o pensador de Madrid diria hoje sobre como a política explora a manada eleitoral nas redes sociais tão plenas de soluções com seus políticos de estimação… O que diria dos governantes atuais, a começar do ambiente onde produziu sua obra prima e que hoje mergulhou a massa em uma crise de escassez de insumos enquanto demonstra ser incapaz de lidar com um antigo problema russo, hoje atualizado por Putin.

Nem vou indagar tanto sobre o quintal abaixo da linha do Equador, com seus novos ricos, incultos, truculentos nos modos, primitivos no intelecto, a ralé que é tão pobre que a única coisa que tem é o dinheiro, em uma sociedade hedonista-putrefata que delira na ilusão de que riqueza material é sinônimo de sabedoria, todos querendo ficar ainda mais ricos no socialismo de cada dia nos olhos dos outros, que é refresco para os idiotas úteis bancarem, e assim entram na política, inspirados em velhas raposas em um tabuleiro de experts com intelectuais comprados na base de privilégios estatais, todos a brincar com o trágico que aflige o homem simples, o mesmo dito incapaz de se governar, mas capaz de escolher quem o tomará nas rédeas, enquanto colocam a conta sobre os que jocosamente são chamados de “contribuintes”, cujo ápice dessas cavernas do pensamento consiste em personificações de um radicalismo de enésima vez.

03/08/2022 23h30

Imagem: Suno

Eduardo Giannetti

“Se o homem era por natureza livre e bom, a salvação era um ato de vontade. Não deixa de ser sintomático que o próprio Rousseau tenha abandonado seus cinco filhos recém-nascidos, sem nome ou indicação de paternidade na porta de orfanatos parisienses.”

Obra: Vícios privados, benefícios públicos? A ética na riqueza das nações. 1. O neolítico moral. Companhia das Letras, 2011, São Paulo. De Eduardo Giannetti da Fonseca (Brasil/Minas Gerais/Belo Horizonte, 1957).

Mais uma leitura de tempos pandêmicos. Obra de Giannetti provocou mais reflexão pessoal sobre o lugar da ética na ação humana e nas relações econômicas. Também contribuiu em minha visão sobre o significado do iluminismo, como desdobramento da questão sobre a ética que, na análise do economista e professor mineiro, teve duas posições distintas: a radical em Rousseau, Condorcet e Godwin e a linha que ele chama de “mais sóbria e moderada” em Hume, Adam Smith e Diderot.

Quanto ao trecho, a lembrança de Giannetti sobre Rousseau, no caso do abandono dos filhos, ilustra bem o curioso caso de quem deseja melhorar a humanidade, pregando ideias coletivistas na base da ‘coerção do bem”, enquanto não consegue realizar a nobre tarefa nem em si mesmo. Quão comum em minhas observações ver gente empolgada com ideias para consertar o mundo a decidir o que é melhor para as pessoas, mas não consegue sequer tomar conta do próprio quintal, uma espécie de “empreendedor de palco” em versão política, a mais tóxica.

Não me admira que o ícone iluminista de muitos progressistas, chegados a uma “engenharia social”, gostava de dar lições sobre educação de crianças – escreveu até um tratado sobre isso – enquanto pregava que a evolução tecnológica, com seus desdobramentos na vida econômica, e o consequente avanço na civilização, gerou um retrocesso moral no ser humano, por inserir uma ordem de “psicologia moral deformada” (tomo aqui uma expressão de Giannetti), o que denotaria uma insaciabilidade em função de um desejo de auto afirmação na sociedade.

E eu que na faculdade fui instruído a ver Rousseau como uma espécie de “santo laico”, demoraria um pouco para entender que não passou de mais um medonho caso de “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”.

02/08/2022 19h44

Imagem: TVU Recife

Miró da Muribeca

“o gari vai varrendo o mundo
e nada fica limpo
a sujeira tá no coração do
homem”

Trecho de Buíque, 3 de dezembro de 2011.

Obra: Miró até agora. Organizador: Sennor Ramos. Cepe Editora. 2a. edição. eBook Kindle. De João Flávio Cordeiro da Silva (Brasil/Pernambuco/Recife, 1960-2022) pseudônimo Miró da Muribeca.

Com um belo prefácio de Wilson Freire [94], em Miró até agora se tem uma visão geral do trabalho do poeta e cronista que nos últimos 30 anos está entre os mais importantes artistas literários de Pernambuco, com estética de crítica social-urbana, com viés de periferia cuja poética naturalmente se voltou ao popular com destaque sobre o cotidiano.

“os cachorros, mesmo sem
falar, conversam
tem pessoas que falando
nem sequer latem
essa raça nem ração merece
quem dera
tivessem a elegância de um
vira lata”

Trecho de Se olhar é preciso, viver não é preciso.

Miró faleceu no último dia 31. O primeiro nome do pesudônimo vem da fama de bom jogador em termos futebolísticos; o poeta torcedor do Sport Recife, nos anos 1970, foi comparado a um jogador do Santa Cruz (Mirobaldo) [95]. Iniciou a carreira com publicações independentes e teve obras traduzidas para o espanhol e o francês [96]. Miró até agora está na segunda edição. Outras obras: Quem descobriu o azul anil? (1984), Pra não dizer que não falei de flúor (2004), DizCrição (2012), aDeus (2015) e O céu é no sexto andar (2021) [97].

Legítimo e espirituoso; características que mais me impressionaram quando conheci o estilo de Miró.

“eu ando tão esquecido
de mim
que ontem à noite
ao chegar em casa
coloquei a roupa
na cama
e fui dormir
dentro do guarda-roupa”

Trecho de Filosofia pra pular no 1

“Recife
é o sol saindo
e o Bandeira Dois
anunciando seus mortos”

Abertura de Linha de risco.

Faz-me lembrar também o que dissera Rubem Fonseca sobre a relação desimpedida, de quem tem por ofício produzir arte no uso das palavras:

“Nós, escritores, não podemos discriminar as palavras. Não tem sentido um escritor dizer: ‘Eu não posso usar isso’. A não ser que você escreva um livro infantil. Toda palavra tem que ser usada.” [98].

E no periférico bairro da Muribeca surgiu um artista literário original, pleno, livre, intenso, pulsante e de um inconfundível espírito pernambucano: simplesmente Miró.

94. Roteirista e diretor do filme “Miró: Preto, Pobre, Poeta e Periférico” (2008), detalhes ver em Livre Opinião: “Não há grade que me agrade”, cinco poemas de Wilson Freire – 14 de fevereiro de 2017

95. Quatro cinco um, a revista dos livros: Poeta performático das ruas, Miró da Muribeca saiu da periferia recifense para tornar-se referência na poesia urbana nacional – 01ago2021 00h51 (01ago2021 08h07)

96. G1 Morre aos 61 anos, no Recife, o poeta Miró da Muribeca – 31/07/2022 12h23

97. Rádio Jornal/PE Aos 61 anos, morre o cronista e poeta Miró da Muribeca – Publicado em 31/07/2022 às 11:11 | Atualizado em 31/07/2022 às 16:05

98. El País: Morre Rubem Fonseca, o contista por excelência da realidade brasileira – São Paulo – 15 ABR 2020 – 16:03 BRT

01/08/2022 00h10

Imagem: El País

Rubem Fonseca

“Então é assim que o povo trata o doutor Getúlio?, pensou Gregório. Depois de todos os sacrifícios que fizera e fazia pelos pobres e humildes?”

Obra: Agosto. Edição da Nova Fronteira. Capítulo 1. 12a. edição, 2020, eBook Kindle. De José Rubem Fonseca (Brasil/Minas Gerais/Juiz de Fora, 1925-2020).

Romance de excelência, lido em tempos pandêmicos.

Combinar história e ficção é um trabalho complexo que Rubem Fonseca, da nata da literatura brasileira, com 30 obras, dominou muitíssimo bem, a começar com a construção da narrativa do assassinato do fictício empresário Paulo Gomes Aguiar, em paralelo ao atentado contra o jornalista Carlos Lacerda.

Rubem Fonseca não se ocupa com paixões ideológicas e até percebo um continuísmo ou um Varguismo sem Vargas; sem tomar partido, descreve em terceira pessoa e possibilita que a obra escape de ser um panfletário ideológico.

Insere personagens do mundo real, como Gregório Fortunato (citação), o chefe da Guarda Pessoal do Presidente Vargas, cuja atualização hoje se aproxima do típico “bolsonarista” Rottweiler, militante radical de governo que mata e morre pelo “Big Brother”. Destaco, pelo lado fictício, o comissário Alberto Mattos, provável alter ego (especulado na crítica literária) do autor, em uma provocação que parece fazer alusão ao brasileiro simples, de gosto incomum, diria refinado, um apreciador de livros e óperas italianas, que tenta sobreviver honestamente no país onde o corporativismo no estado é a regra e a corrupção borbulha na sociedade.

Agosto… Seria o “mês das bruxas” na política brasileira? A começar pelo pano de fundo histórico da obra em 1954; no Catete, o suicídio de Vargas com um tiro no coração, dia 24.

Jânio Quadro renunciou no dia 25, em 1961, depois de ter sido eleito para “varrer a corrupção” do Brasil.

No dia 22, em 1976, o ex-presidente Juscelino Kubitschek morreu num acidente de carro na Via Dutra onde sobram especulações.

Foi no dia 13, em 2014, que caiu o avião de Eduardo Campos, o jovem governador socialista que teria potencial para dar um novo caminho à esquerda, tragédia ocorrida no mesmo dia da morte de seu avô, Miguel Arraes (2005).

O impeachment de Dilma Rousseff foi consolidado no dia 31, em 2016.

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