Maio se abre com o Hino à Alegria da Nona Sinfonia de um gênio da música e da superação, Ludwig van Beethoven (Sacro Império Romano-Germânico, hoje Alemanha/Bonn, 1770-1827) da obra cinematográfica Copying Beethoven.

31/05/2023 22h00

Imagem: Museu da Língua Portuguesa

Gilberto Freyre

“[…] indios nús quasi dentro das igrejas, de olhos arregalados para os padres dizendo missa, cobras cahindo do telhado por cima das camas ou enroscando-se nas botas dos colonos […]”

Obra: Sobrados e Mucambos. Ascensão do bacharel e do mulato. Companhia Editora Nacional, Bibliotheca Pedagogica Brasileiro, 1936, São Paulo. De Gilberto de Mello Freyre (Brasil/Pernambuco/Recife, 1900-1987).

Torno a edição de 1936,curioso vocabulário à época.

Os jesuítas foram preponderantes para que fossem formados os primeiros bacharéis, sem evidência de que tinham interesse em elevar intelectualmente os negros (p. 340), escolas da ordem estavam no centro de um processo que envolveu o surgimento do “homem fino da cidade” em meio a decadência do patriarcado rural no século XIX (p. 305). Primeiras escolas em “mucambos de palha” (p. 96), pouco espaço para estudo de ciências, (p. 105), muito ensino de disciplinas eclesiásticas e latim, sob uma pedagogia de castigos severos: “o alumno atravessava a phase mais dura das declinações e dos verbos sob a vara de marmelo e a palmatoria do padre-mestre” (p. 269).

No entanto, chamou-me a atenção o espírito corporativista de alienação para formar “adultos passivos e subservientes”, promovido pela ordem, bem conhecida pela ortodoxia intransigente, na forma como conduzia o processo de educação religiosa ao “conseguirem dos índios que lhes dessem seus columins, dos colonos brancos que lhes confiassem seus filhos, para educarem a todos nos seus internatos, no temor do Senhor e da Madre Igreja; lançando depois os meninos, assim educados, contra os proprios paes. Tornandoos filhos mais delles, padres,· e della, Igreja, do que dos caciques e das mães caboclas, dos senhores- e das senhoras de engenho” (p. 93). Os jesuítas também realizaram “experiências genéticas” (p. 341): “estimularam o cruzamento nas senzalas de suas fazendas. Cruzamento de caboclo com escravo. De índio com negro” (p. 340).

30/05/2023 23h24

Imagem: Perfil oficial no Twitter

Nassim Nicholas Taleb

“Para o antifrágil, o dano provocado pelos erros deve ser menor do que os benefícios.”

Obra: Antifrágil. Livro I. Capítulo 4. O que me mata deixa os outros mais fortes. Aprendendo com os erros dos outros. Edição best. business, 2017, Rio de Janeiro. Tradução de Eduardo Rieche. De Nassim Nicholas Taleb (Líbano/Greater Amyoun, 1960).

Taleb se refere especificamente a erros que não levam à ruína e possibilitam dados para prevenir calamidades maiores. Erros podem trazer benefícios em termos sistêmicos ou seja, em uma ampla concepção de aprendizado, sobretudo para evitar contágio e aprimorar a segurança, embora estejam acompanhados de danos para algumas partes individuais, eis o que entendo quando Taleb menciona Henry Petroski sobre as lições do Titanic para a indústria naval, e quando o autor cita o desastre de Fukushima na ciência dos problemas com reatores nucleares (p. 101), além dos acidentes aéreos que fornecem elementos que servem de fundamentos para que o próximo voo seja mais seguro (p. 102) e as companhias de resseguro, concentradas em riscos catastróficos, que procuram manter seus erros no menor nível possível (103).

À mon avis, ocorrências de erros, falhas ou deficiências técnicas percebidas no desenvolvimento de um trabalho se transformam em dados que podem ser melhor aproveitados para a superação. Quando estou diante de uma situação assim, seja em um dos sistemas que desenvolvo ou de consultorias que presto, erros apreciáveis abrem uma janela para viabilizar um desempenho melhor.

A olhar para a tríade no Prólogo (pp 45-48), o frágil odeia erros, muitas vezes se gaba por não cometê-los e costuma escondê-los a jogar a culpa sobre outrem; o sujeito robusto apenas vê os dados de suas ocorrências, sem explorá-los, enquanto o antifrágil os aprecia, desde que reversíveis, pequenos, em uma equação enfrentada apenas por espíritos livres.

29/05/2023 22h44

Imagem: BBC

Noam Chomsky

“Nos anos seguintes, a OTAN expandiu para as fronteiras da Rússia; agora há substanciais ameaças até mesmo para a incorporação da Ucrânia, no coração geoestratégico da Rússia. [17] Pode-se imaginar como os Estados Unidos reagiriam caso o Pacto de Varsóvia ainda estivesse vivo, a maior parte da América Latina tivesse se juntado, e México e Canadá estivessem se candidatando à filiação.”

Nota do autor: 17. Após a insurreição que instalou no poder o governo ucraniano pró-Ocidental, o parlamento decidiu “por 303 votos a 8 rescindir uma política de ‘não alinhamento’, e optar em vez disso pela busca de laços militares e estratégicos mais estreitos com o Ocidente […] dando passos no sentido de tornar-se membro da OTAN”. David M. Herszenhorn, “Ukraine Vote Takes Nation a Step Closer to NATO”, The New York Times, 23 de dezembro de 2014.

Obra: Quem manda no mundo? Capítulo 22. O que dizer sobre as crises nucleares iraniana e norte-coreana. Planeta, 2017, São Paulo. Tradução de Renato Marques. De Avram Noam Chomsky (EUA/Pensilvânia/Filadélfia, 1928).

Talvez seja, em escala mundial, o maior intelectual de esquerda em atividade e, claro, foi muito fácil entrar em contato com seus escritos nos tempos de faculdade. Definitivamente, o linguista que se declara socialista e libertário (combinação curiosíssima) está na lista dos pensadores mais admirados, citados e apresentados que pude observar; crítico afiadíssimo da política externa da Casa Branca, aprendi muito lendo Chomsky sobre a influência nefasta dos governos dos EUA em vários contextos, especialmente no Oriente Médio, apesar de ter a lamentável falha de, como típico intelectual de esquerda, passar pano para ditadores e/ou fingir que só existe maldade no lado oposto ao canhoto das ideias.

Sobre o trecho desta Leitura, recordação que me veio assim que, no final de 2021, surgiram os primeiros rumores da invasão russa. Chomsky toca em um dos pontos mais críticos da relação russa com o Ocidente, onde a OTAN foi concebida para se opor ao bloco alinhado com a URSS que permaneceu, mesmo em meio ao desmoronamento do sistema soviético. O que fora verbalmente prometido por ocidentais ao último premiê da URSS, não foi cumprido (“nos anos seguintes”), e a Ucrânia é o que falta para acabar com o curto pavio russo pois, como salienta o autor, está no “coração geoestratégico da Rússia”, nos confins da Rússia como divisor mais acessível e concomitantemente um campo de defesa imediato em um eventual ataque por terra a Moscou. Se há algum enlace entre Ucrânia a OTAN, os russos jamais o aceitarão pois significaria, como ilustra Chomsky – para se tentar compreender um pouco o lado do Kremlin – um “pacto de Varsóvia” (a versão opositora à OTAN no século passado, de bloco militar, sob controle soviético) com um grande integrante geopoliticamente avesso aos EUA, podendo hospedar bases militares de aliados com dispositivos nucleares, bem na fronteira americana; certamente, na Casa Branca não se ficaria nem um pouco conformado com isso.

Então, tratar sobre o conflito na Ucrânia em meio à infâmia dos crimes de guerra orquestrados pelas forças de Putin, é algo muitíssimo complicado a demandar um profundo conhecimento sobre o contexto histórico da formação de alianças militares no pós Segunda Guerra, a concepção russa herdada dos tempos soviéticos, além do bojo geopolítico de forças que enfrentam os EUA.

28/05/2023 14h52

Imagem: DW

Nietzsche

“Não há erro mais perigoso que o de confundir o efeito com a causa. Considero essa a verdadeira perversão da razão.”

Obra: Crepúsculo dos Ídolos. Os Quatro Grandes Erros. O Erro da Confusão entre Causa e Efeito. Nova Fronteira, 2017, Rio de Janeiro. Tradução de Edson Bini e Márcio Pugliesi. De Friedrich Wilhelm Nietzsche (Reino da Prússia/Röcken, 1844-1900).

Torno ao “seu Lunga” da filosofia que afirma “sem embargo” que na moral e na religião foi “santificado” o erro (p. 45) de “causas imaginárias” (p. 51), mediante explicações igualmente “imaginárias” (p. 52) sobre sentimentos gerais, sejam agradáveis ou não, mediante percepções de pecado, por entendimentos do que seja certo e errado, cuja “linguagem errônea” se dá em função de uma “psicologia do erro” (p. 53) a explorar outro engano: o do livre-arbítrio, “habilidade teológica de pior reputação” (p. 53) para inculcar sentimento de culpa pela invenção da “doutrina da vontade” advinda do cristianismo que, segundo o filósofo mais marrento que conheço, é “uma metafísica de verdugos” (p. 54).

Então, um “homem bem constituído”, comete atos enquanto teme realizar outros sob a exigência do “sentimento da ordem que ele representa fisiologicamente em suas relações com os homens e as coisas”(p. 46) até que conclui: “toda falta é consequência da degeneração do instinto” (p. 47). Sendo necessária a busca de todos os antecedentes de um ato para que se conheçam os motivos (p. 47), volta-se à causa do pensamento onde entende que a vontade, vista como causa primeira, seguida da noção de uma consciência (espírito) e do sujeito, o “eu”, em ocorrências posteriores. O que se chama de “motivo” é outro erro, entende, pois não passa de “um fenômeno superficial da consciência”, que mais oculta os antecedentes do ato. Penso em uma possível relação que fizera, neste ponto, no mesmo capítulo, sobre o que entende ser o homem: um fragmento ou uma pequena parte no todo que não pode julgar, medir, comparar e condenar sua existência, pois “isso equivaleria a julgar, medir, comparar e condenar o todo”. Torno ao trecho que desqualifica o imperativo da moral e da religião na “transmutação de todos os valores, sobre outra confusão que aponta: a do espírito como causa, confundindo-o com a realidade, como se fosse medida, o que denomina “Deus!”, e então percebo a ligação que faz do conceito como a maior das objeções contra a existência (p. 55).

Sentimentos “vagos e gerais” provocam o instinto de causalidade; “queremos que haja uma razão para que nos encontremos nesse ou naquele estado, para que nos sintamos bem ou mal” ou seja, busca-se sempre um motivo, onde se atrela a memória que reproduz estados anteriores e não sua causalidade verdadeira, o que pode trazer alívio (diria, ilusório) pela redução da coisa desconhecida a uma conhecida por experiências anteriores (p. 50).

Quando o imprevisto está excluído das causas possíveis, surge o problema de sistematizar as coisas a desterrar as outras causas ou “uma explicação qualquer é preferível à falta de explicação”, na busca de se livrar de “representações angustiantes” (p. 51) e, neste ponto, Nietzsche me faz lembrar o quanto se tentou inutilmente explicar o que estava a ocorrer com a pandemia (2020-2022); enquanto não se sabia das causas, dos porquês, especialistas seguiam dando “explicações” ansiolíticas.

27/05/2023 13h48

Imagem: Instituto Liberal

Karl Popper

“[…] creio têrmos razão mais do que suficiente para suspeitar de que sua filosofia foi influenciada pelos interêsses do governo prussiano, do qual era empregado.”

Obra: A sociedade aberta e seus inimigos. Vol 2. Capítulo 12 – Hegel e o novo tribalismo. Ed. Itatiaia, 1974, São Paulo. Tradução de Milton Amado. De Karl Raimund Popper (Austria/Viena, 1902-1994).

Mais um da lista dos que conheci melhor quando me distanciei do dito “ambiente acadêmico”, lugar esquisito onde há muitos “professores” que mais parecem doutos multiplicadores de militantes de esquerda camuflados como guardiões das “ciências” em geral enquanto, aparentemente, acreditam na boa fá dos que fazem “políticas públicas”.

No trecho, Popper se refere à filosofia de Hegel (p. 41) e destila ironia na abertura do capítulo onde destaca equívocos científicos (pp 33-34) do autor da Fenomenologia do Espírito. Define-o como “fonte de todo historicismo contemporâneo”, “mestre da lógica” que realizou “coisas miraculosas” com seus “poderosos métodos dialéticos” (p. 33), para argumentar que “o fato de um método filosófico tão surpreendentemente poderoso fosse levado a sério, só pode ser parcialmente explicado pelo atraso das ciências naturais germânicas naqueles dias”. Cita Schopenhauer a considerar Hegel como marco do começo da “era da desonestidade”, aponta impressionantes enganos na obra Filosofia da Natureza (p. 34) e mais adiante cita o que dissera Schopenhauer, após o encontro com o filósofo oficial do estado: “um charlatão de cérebro estrito” (p. 39).

Então, como fui instruído a ver Hegel entre os gigantes do pensamento, pelo menos até 2006, na primeira vez que li esta contundente crítica de Popper, após minha natural e imatura indignação, perguntei-me sobre como, na minha ingenuidade à época, a cogitar de se tratar de questão de incompetência (para não dizer outra coisa), Hegel conseguiu tanto prestígio? A resposta de Popper é imediata: “a autoridade do estado prussiano” (p. 35), a denotar uma forma de relação a qual chamo de compadrio, à mon avis, em versão filosófica.

Se entre cientistas Hegel nunca teve credibilidade, segundo Popper, o badalado filósofo da tríade se manteve em crédito nas ciências sociais e políticas, a servir de referência tanto a extrema esquerda marxista, como a extrema direita fascista e ao centro conservador (p. 36), o que, entendo, explica o uso de sua filosofia para atender a interesses de adoração ao Estado, cuja abertura, torno ao que pensa Popper, se deu na indicação de Hegel para suprir certa necessidade do partido reacionário que chegou a poder na Prússia, relacionada a reviver ideias dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta: Heráclito, Platão e Aristóteles (p. 37), aponta, e então sintetiza o hegelianismo como “renascimento do tribalismo” (p. 37).

Destaque para citações de trecho onde Hegel se alinha com Platão e os interesses do prussianismo de Frederico Guilherme, para fazer apologia ao Estado em um platonismo “bombástico e histérico” que se torna mais evidente quanto à ligação com o totalitarismo moderno (p. 38), problema que me remeteu ao termo “estadolatria” usado pelo papa Pio XI quando perdeu o encanto com o fascismo ao perceber o monstro que estava a tomar conta da Itália.

Para não dizer que deixei de apreciar a dialética, muitas vezes confundida como coisa restrita a Hegel, entendo que a leitura deste capítulo foi um dos melhores exercícios de “superação” que tive em relação à “formação” (para não dizer outra coisa) que recebi em tempos de faculdade.

26/05/2023 23h38

Imagem: Teologia Brasileira

Rudolf Bultmann

“As antíteses do “sermão do monte” (Mt 5.21-48) contrapõem a vontade de Deus ao direito: ‘Ouvistes que foi dito aos antigos… Eu, porém, vos digo…!'”

Obra: Teologia do Novo Testamento. Capítulo I – A pregação de Jesus. § 2. A explicação da exigência de Deus. Teológica, 2004, São Paulo. Tradução de Ilson Kayser. De Rudolf Karl Bultmann (Alemanha/Wiefelstede, 1884-1976).

Torno a esta leitura de Teologia do Novo testamento, debutada em 2006, obra fluvial de Bultmann, teólogo de referência do século XX com enfoque interpretativo existencialista.

Deus não exige do ser humano o mero formalismo da lei, o agir conforme mandamentos formulados, “que é a única possibilidade da lei, de modo que, para além disso. a vontade própria do ser humano estaria livre”. Neste ponto salientado por Bultmann, entendo, fica evidenciada a antítese em face do que Jesus aponta como vontade de Deus mediante o materializado que pode contrariar a essência de sua pregação em confronto com o direito sob a ótica legalista. Bultmann aponta que o decisivo não é o constatável, o material, e sim “o como”, a vontade do ser humano. Neste aspecto, são objetos da condenação divina não apenas o homicídio, o adultério e o perjúrio, assim como a ofensa, a ira , os maus desejos e a inverdade (Mt 5.21s, 27s, 33-37), e aqui, à mon avis, se situam os elementos imateriais internalizados na pessoa como as coisas que mais interessam a Jesus. Em suma, Deus “exige toda a vontade do ser humano e não faz abatimento” (p. 51).

Não há liberdade diante de Deus, no sentido de que o ser humano tem que se responsabilizar por sua vida como um todo e, neste ponto, Bultmann cita a parábola dos talentos (Mt 25.14-30 par.). Soberbos que insistem em méritos “são uma abominação para Deus ( Lc. 16.15)”, aponta. Jesus rejeita cálculos em termos de recompensa, pois ninguém é melhor do que o outro, o que se choca com o entendimento dos fariseus (Lc 18.9-14). Nesta leitura de Bultmann sobre a pregação de Jesus, o farisaísmo se choca com a ideia igualitária de recompensa que independe do tempo de serviço (Mt 20. 1-15), e está para a obediência fiel (p. 52).

Por trás da exigência de Deus há a promessa e a recompensa diz respeito ao que está em jogo: o verdadeiro ser da pessoa, o seu agir ético, a sua obediência autêntica, onde há a “paradoxal verdade” de que para se chegar a si mesma é preciso se entregar à exigência do bem, ao que Deus exige (p. 53).

Quem quer ganhar a sua vida perdê-la-á.
E quem quiser perdê-la ganha-la á. (Lc 17.33).

25/05/2023 22h00

Imagem: Pantocrator (História com gosto)

יֵשׁוּעַ

“Ouviste que foi dito: Olho por olho e dente por dente. Eu, porém vos digo: não resistais ao homem mau, antes, àquele que te fere na face direita oferece-lhe também a esquerda.”

Obra: Evangelho Segundo São Mateus. Capítulo 5, versos 38 e 39. Sermão da Montanha. Discurso Evangélico. A Bíblia de Jerusalém. Edição da Paulus, 2000, São Paulo.

Por pastor Abdoral

É no coração que se travam as batalhas que delineiam os caminhos da alma, o mesmo campo onde se operam, como dissera meu amigo de infância, a “cínica calma de um mafioso”, a “fala mansa trucidante”, o “olhar sereno avassalador” e os “gestos amistosos a camuflarem um mundo onde o hediondo se instrumentaliza”.

O gesto de dar a outra face pode ser dissimulado, pois alguém ofendido pode mansamente reagir para materializar uma aparência de bondade a oferecer a outra face enquanto no coração planeja a maldade para o outro. No entanto, dar a outra face no Sermão da Montanha em Jesus Cristo tem um significado à prova de dissimilações; o gesto é consequência e não causa de um coração onde o bem está acampado. O dar a outra face acontece quando se desnudam as reais intenções do coração diante de Deus e assim o ato é de adoração para se oferecer por completo à prova diante da oferta do mal, da ofensa, da agressão, para que passe e não encontre no nosso coração onde se alojar.

O bem que se almeja contra o mal que seduz pela sede de vingança, a benignidade que, no sofrimento, decide pela presença de Cristo versus o instinto de resolver tudo por si mesmo, de demonstrar “poder” e que arrazoa a se pagar a ofensa com a mesma moeda para corromper o coração.

Cristo se volta ao coração para desmontar a instrumentalização de ritos que retroalimentam o culto do fingimento celebrado como instrumento de cooptação, a manipulação do outro por antítese da via crucis de cada um; é a negação do Espírito Santo por um espírito da confusão que vem através do sentimentalismo nas coisas que se veem versus as que só podem ser apreciadas de olhos fechados e guiados pela fé.

A questão central do dar a outra face não é o ato em si, mas o saber se o bem vai triunfar ou não em nosso coração, após ser sacudido pela maldade à espreita.

Dar a outra face é sofrer enquanto se apega à presença de Deus, é celebrar a paz no meio da dor e da agonia.

24/05/2023 20h14

Imagem: Gazeta do Povo

Mario Puzo

“O insulto em si não o incomodou nem um pouco. Hagen aprendera a arte de negociar com o próprio Don. “Nunca se zangue”, ensinara-lhe o Don. “Nunca ameace. Arrazoe com as pessoas.” A palavra “arrazoar” soava muito melhor em italiano, ragionare, tão próxima de ragunare, unir, juntar. A arte da coisa consistia em ignorar todos os insultos, todas as ameaças, oferecer a outra face.”

Obra: O Poderoso Chefão. Livro I. Capítulo 1. Record, 2020, Rio de Janeiro. eBook Kindle. Tradução de Denise Bottmann. De Mario Gianluigi Puzo (EUA/Nova York/Nova Iorque, 1920-1999).

O roteiro da obra cinematográfica a manteve próxima da grandiosidade do livro, sobretudo na excepcional cena de abertura com o agente funerário Amerigo Bonasera diante de Don Corleone, na sobriedade do escritório, cuja sequência de tomadas da festa de casamento de Constanzia Corleone denotam a genial apresentação do universo onde se desenvolve o romance.

Mario Puzo fez de Don Corleone uma síntese da sofisticação da cínica calma de um mafioso, da fala mansa trucidante, do olhar sereno avassalador e de gestos amistosos a camuflarem um mundo onde o hediondo se instrumentaliza nos “negócios” nada pessoais.

Corleone intimida na profundeza dos maiores temores e com uma discrição estrategicamente pensada para não queimar etapas até, se julgar necessário, chegar à brutalidade. Joga no leque de opções variadas e proporcionalmente drásticas conforme o desenrolar dos fatos para não gasta energia com impulsos. O momento de crueldade se dá quando o preâmbulo de dar a outra face se esgota, e tudo se passa como um exercício contínuo de autocontrole para não cegar o próprio entendimento com a ira, por isso os insultos são neutralizados, e o arrazoar se evidencia pela cessão de uma cordialidade suprassumo de uma parcimônia para torturar o opositor, uma filosofia para construir um ambiente que melhor explore anseios e fraquezas emocionais de quem lhe afronta.

23/05/2023 23h20

Imagem: PlanetadeLibros

Max Gunther

“Fuja da opinião da maioria. Provavelmente está errada.”

Obra: Os Axiomas de Zurique. O 10o. Grande Axioma: Do Consenso. Best bussines, Rio de Janeiro, 2019. Tradução de Isaac Piltcher. De Max Gunther (UK/England, 1927-1998).

Ao estilo Descartes, citado, é melhor duvidar de tudo (p. 169), buscar a comprovação de verdades postuladas (p. 170), colocar em prova o que dizem os autoproclamados especialistas. A opinião da maioria (p. 171) a repercutir na vida financeira, pode custar dinheiro pois “é mais provável que a verdade tenha sido encontrada por poucos do que por muitos” (p. 172). Clichês são vistos como indiscutíveis, e assim a maioria coloca a fé e, não por acaso, a mesma que não é rica (p. 173).

As pressões da manada (prefiro este termo) são “perturbadoras” (p. 173) e, à mon avis, entendo, vai muito além do que acontece em decisões tomadas no mercado financeiro, de bastidores de empresas a decisões de vida pessoal, a força que a opinião da maioria exerce tem o poder de cegar o espírito, alimentar um comodismo que opera na consciência de não se atém a fatos, dados, resultados, para questionar, revisar passo a passo dúvidas e respostas obtidas e assim ter um melhor diagnóstico, mas também à própria intuição, ao sentimento mais profundo que pode fazer parte dessa dialética no espírito, no entanto presunções, achismos, palpites, opiniões da moda, sentimentalismos, saudosismos, entre tantos outras coisas compartilhadas, poderosas no âmbito coletivo, acabam por seduzir quem vai decidir e, até certo ponto, passam uma ilusória suavização da culpa, quando as coisas dão errado.

22/05/2023 22h12

Imagem: El Español

Umberto Eco

“Non sai vedere le connessioni. E non dai la dovuta importanza a quell’interrogativo che ricorre due volte: chi si è sposato alle nozze di Cana? Le ripetizioni sono chiavi magiche. Naturalmente ho integrato, ma integrare la verità è il diritto dell’iniziato. Ecco la mia interpretazione: Gesù non è stato crocifisso, ed è per questo che i Templari rinnegavano il crocifisso. La leggenda di Giuseppe d’Arimatea copre una verità più profonda:

Gesù, non il Graal, sbarca in Francia presso i cabalisti di Provenza. Gesù è la metafora del Re del Mondo, del fondatore reale dei Rosa-Croce. E con chi sbarca Gesù? Con sua moglie. Perché nei Vangeli non si dice chi si è sposato a Cana? Ma perché erano le nozze di Gesù, nozze di cui non si poteva parlare perché erano con una peccatrice pubblica, Maria Maddalena. Ecco perché da allora tutti gli illuminati, da Simon Mago a Postel, vanno a cercare il principio dell’eterno femminino in un bordello. Pertanto Gesù è il fondatore della stirpe reale di Francia.”

Obra: Il pendolo di Foucault. 6. TIFERET. Bompiani, 2018, Milano. De Umberto Eco (Itália/Alexandria, 1932-2016).

Umberto Eco considerou seu melhor romance [168].

É possível que O pêndulo de Foucault tenha sido uma das fontes de O Código da Vinci, de Dan Brown. A diferença entre os dois autores é que o primeiro é um mestre que, impiedosamente, destila erudição em forma de ficção para caçoar de teorias da conspiração, enquanto o segundo é um expert em captar o prazer de consumo literário do grande público interessado em crendices populares, como se tais coisas devessem ser levadas a sério, o que, por sinal, recebeu duras críticas do primeiro [169].

Crenças e tramas sobre os Iluminatti, a maçonaria, os cavaleiros templários, o desembarque na França de Jesus de Nazaré casado com Maria Madalena, a cabala, a alquimia, e outras questões que apelam ao ocultismo, são contadas em detalhes tão impressionantes que em um momento me perguntei se estava mesmo a ler uma ficção, no entanto, concomitantemente, provocou-me o toque de gênio que lhe é peculiar, um ar sutil de deboche, delicado, irônico, sofisticado ou como o mestre semiólogo sugeriu, o livro é uma “metáfora” onde, penso, os três personagens parecem ser nuances do próprio autor que assim provoca o leitor enquanto ridiculariza crenças em torno das conspirações.

Um clássico sobre teorias da conspiração, concebidas em uma vasta pesquisa que contrasta com a subliminar crítica singular de Umberto Eco sobre o que não passa de pseudociência e ganha ressonância na dramaticidade acerca do anseio pela revelação de um “grande segredo”.

168. Ver em Umberto, lo storico delle idee https://youtu.be/DahLMHk88X0?t=2913

169. Ver em https://youtu.be/SltDcfpkLXk?t=620 Lectio magistralis de Umberto Eco: “Conclusioni sul complotto. Da Popper a Dan Brown”, pronunciada em Turim em 10/06/2015.

21/05/2023 16h02

Imagem: aeon

Jacques Derrida 

“Desse paradoxo, decorre que em nenhum momento podemos dizer presentemente que uma decisão é justa, puramente justa (isto , livre e responsável), nem dizer de alguém que ele é um justo e, ainda menos, que ‘eu sou justo’. No lugar de ‘justo’, podemos dizer legal ou legítimo, em conformidade com um direito, regras ou convenções autorizando um cálculo, mas com um direito cuja autoridade fundadora apenas faz recuar o problema da justiça.”

Obra: Força de Lei. O “Fundamento místico da autoridade”. 1. Do direito à justiça. 1. Primeira aporia: a epokhé da regra. Martins Fonte, 2007, São Paulo. Tradução de Leila Perrone-Moisés. De Jacques Derrida (Argélia/El Biar, 1930-2004).

A desconstrução é a justiça, o direito é coisa distinta na filosofia de Derrida (p. 27) e “se eu me contentasse com a aplicação de uma regra justa, sem espírito de justiça e sem inventar, de certa maneira, a cada vez a regra e o exemplo, eu estria talvez a salvo da crítica, sob a proteção do direito, agiria de modo conforme o direito objetivo, mas não seria justo.”, afirma (p. 31). E penso, o que seria o “espírito de justiça”? Derrida forma a questão de outra forma, no sentido de indagar se uma pessoa é justa ou tal decisão é justa, e tenta demonstrar que se trata de algo “essencialmente impossível, for da figura da boa consciência e da mistificação”, o que desenvolve de modo que provoca o leitor a repensar tal (im)possibilidade (p 32), para em seguida argumentar que “é preciso ser justo com a justiça, e a primeira justiça a fazer-lhe é ouvi-la, tentar compreender de onde ela vem, o que ela quer de nós, sabendo que ela o faz através de idiomas singulares” (p. 37). Interessante a abordagem que faz sobre o uso da linguagem imposta em ordenamentos estatais, como forma de violência, ao citar o exemplo da transição do latim para o francês no contexto da memória histórica (pp 39-40) .

No trecho selecionado, a primeira aporia quando o direito consiste em ato de aplicação de regra, efetuação de um cálculo conforme norma enquanto não se pode dizer que se trata de algo justo enquanto o juiz confirmar seu valor por ato de interpretação re-instauradora, “como se a lei não existisse anteriormente” ou em um “fresh judgment“, com cada decisão sendo única (p. 44)., no entanto, não se pode apontar o mesmo algo justo se o juiz não considerar nenhuma regra em sua interpretação ou improvisar de maneira que fique fora de qualquer regra e princípio, o que, segundo Derrida, denota o paradoxo que segue na citação desta Leitura, cuja solução, entende, é violentamente resolvida no conceito de etat de droit (estado de direito) constituído (p. 45).

Foi em 2007 que me deparei pela primeira vez com o tema do justo versus legal de uma forma tão provocante, o que só poderia vir da filosofia, antes mesmo de refletir sobre a problemática entre legalidade e moralidade.

O que Derrida trabalha nesta obra é um prato cheio para cínicos ou medrosos que gostam de simplificar demais as coisas como relativismo. No primeiro contato não percebi que desconstrução não é destruição e sim uma exposição do funcionamento de um objeto, para que possa ser melhor analisado, bem como ser identificado quem beneficia e quem é penalizado com sua aplicação. Na desconstrução em Derrida, admite-se a instabilidade das coisas como algo perene e destarte, no tema da justiça, hoje percebo o valor de sua filosofia como crítica a funcionar como uma espécie de contra partida quando se pode confundir justiça com legalidade, onde muitas vezes a segunda pode ser instrumento para o que seja injusto.

20/05/2023 19h34

Imagem: Amazon

Robert Payne

“No emperor had ever enjoyed the power he possessed. He had taken the world by the throat, and forced it to do his will. He was one of the world-shakers, and when he died in 1953 it was thought proper that his remains should be exhibited as an object of reverence and worship in the Lenin mausoleum, the holy of holies of the Soviet empire.”

Obra: The Rise and Fall of Stalin. Lume Books, 2019, eBook Kindle. De Pierre Stephen Robert Payne (Reino Unido/Cornualha, 1911-1983).

Obra publicada 12 anos após a morte de um dos maiores facínoras de todos os tempos, o homem que pode ter superado Hitler em termos de crueldade.

Em meados dos anos 1990, o fim da URSS era um assunto em decomposição e não raramente escutava professores enviesados com saudosismo ingênuo ou perversidade ideológica, a passar pano para Stalin, o que gerava mais curiosidade para um jovem que fora um adolescente nos anos 1980 muito interessado em livros e filmes onde Stalin se juntava a Marx, Lenin, Trotsky e a formação da União Soviética.

Stalin foi um infeliz exemplar da espécie humana cujo termo “maldade” se torna simples demais para defini-lo. Certamente nenhum político foi mais idolatrado e temido do que ele, ovacionado ao mesmo tempo em que massacrava impiedosamente os resistentes, de vida amorosa intensa com o segundo casamento conturbado envolto a um provável suicídio da esposa (Nadezhda Alliluieva, capítulo 28), abalada pelas amantes onde se especula até sobre a cunhada, além das que estavam dentro do movimento revolucionário, incluindo esposas de colegas do partido.

Hoje entendo que professores contemporizavam mais por ignorância promovida por paixões políticas, do que qualquer outra coisa, como se a maior experiência socialista da história não tivesse produzido em Stalin o que nenhum imperador jamais desfrutou em termos de poder e ditadura, cuja síntese do trecho selecionado, da obra de de Robert Payne, é bem apropriada para tratar sobre um dos maiores assassinos de todos os tempos, que sistematizou formas de massacre sobre seu próprio povo (capítulo 29), nos desdobramentos do pós Segunda Guerra articulou a geopolítica que dividiu a Europa (capítulo 43), consolidou a Guerra Fria, um sujeito de um passado jovial religioso de seminarista onde o espírito revolucionário aflorou (pp. 41-42), expulso do seminário por propagar ideias marxistas (p. 61), enquanto o apetecia produzir poemas românticos e nacionalistas (p. 45), que conheceria Lenin para alcançar a cúpula do bolchevismo, se tornar militante expert em assaltos, sequestros, golpes financeiros, que não poupou a vida de camaradas para chegar ao poder, no momento oportuno que se deu após a morte de Lenin.

Permanece minha busca para melhor compreensão sobre porquês do fascínio que alguns criminosos em grande escala exercem, de incautos a doutos.

19/05/2023 23h08

Imagem: Revista Bula

Cecília Meireles

“COMO EU preciso de campo,
de folhas, brisas, vertentes,
encosto-me a ti, que és árvore,
de onde vão caindo flores
sobre os meus olhos dormentes.

[…]

Olham pássaros, das nuvens,
entre a luz dos mundos firmes
e a das estrelas cadentes.
E o orvalho da sua música
vai recobrindo o meu rosto
com um tremor que eu conhecia
nos meus olhos já levados,
idos, perdidos, ausentes …

(Leve máscara de pérolas na minha face não sentes?)”

Obra: Idílio. Cecília Meireles. Obra poética, Editora Nova Aguilar, 1983, Rio de Janeiro, p. 187. De Cecília Benevides de Carvalho Meireles (Brasil/Rio de Janeiro, 1901-1964).

Il canto della natura sta svanendo [167]

Cosa brama la più intelligente vita
in ogni passo senza la terra ascoltare,
è la propria estinzione che planifica,
nel grido della natura ad agonizzare.

Intrappolato nella illusione
su ciò che può determinare
divenne corona della distruzione
che fa la terra sanguinare.

Cos’è l’uomo ormai?
ciò che è sempre stato nel tempo,
alla natura che in polvere tornerai,
alla canzone che sta svanendo.

Pastor Abdoral, 19/05/2023 23h26

167. Inspirado em Broken Wings, de Ludovico Einaudi.

18/05/2023 19h14

Imagem: DW

 Schopenhauer

[…] Comparar a vida a um tecido bordado, do qual cada pessoa, na primeira metade de sua existência, consegue enxergar o lado direito, mas na segunda, o avesso. Este não é tão bonito, porém, é mais instrutivo, pois nos permite reconhecer a relação entre os fios” […]

Obra: A arte de envelhecer. Martins Fontes, 2012, São Paulo. Tradução de Karina Jannini. De Arthur Schopenhauer (Polônia/Gdansk, 1788-1860).

Ler é o exercício mais edificante que tenho conhecimento sobre tentar compreender o outro. Cito como exemplos Márcia Tiburi e Olavo de Carvalho, quando comparados um ao outro, dois extremos de pensamento, pois quando os leio, posso vislumbrar esse exercício a ganhar pleno sentido. Realizo-me quando os leio sem a intenção de julgá-los imediatamente e, muitas vezes, até mesmo a posteriori, tendo em mente um esforço para tentar entender e assim aprender um pouco sobre ideias por eles apresentadas enquanto me policio para desarmar o meu eu polemista na expectativa que não atrapalhe o que pretendem transmitir. Isto posto, Schopenhauer é um autor difícil neste intento, por ser muito apetecido a contradições, talvez por terem reverberado de sua vida polemista combinada com a de um bon vivant acomodado em uma herança, em especial com suas provocações a professores universitários enquanto não viveu materialmente da produção filosófica. Então, reler Schopenhauer tem sido uma experiência de auto crítica porque quando entrei em contato com suas obras, em 2004, não tinha a visão sobre o significado do ato de “ler’ que abre este parágrafo, algo que só começou a tomar forma predominante em meu jeito de pensar há pouco mais de dez anos.

Curiosamente pude perceber, na atual fase de leitor, que A arte de envelhecer é uma revisitação do próprio autor ao seu estilo misantropo e um tanto “carrancudo” sobre concepções à fé cristã (pp 86-87) e o que entende da metafísica para o povo, envolto a frustração com a recepção de suas ideias, e nesse processo se permite a uma tímida vazão para esvaziar um pouco do pessimismo em aforismos devotados a uma certa serenidade.

E sobre a vida como um “tecido bordado” e o envelhecimento ou o “avesso”, penso como um problema tão-somente do presente e não algo tocante ao que sonho ou posso fazer em termos de me planejar. Não imagino e tampouco acredito que posso “construir o meu futuro”, pois bem sei que qualquer pretensão nesse sentido esbarra na pequenez humana dando das coisas imponderáveis, porém isso não me impede de meditar na relação entre os fios deste “bordado” como algo que acontece agora, mesmo que não possa percebê-lo, enquanto força contínua; o envelhecimento me consome a cada segundo e me transforma queira aceitá-lo ou não, sendo o que me apraz no ato de fazer de cada instante um esforço por uma experiência melhor, no sentido da compreensão sobre meu próprio ser, de fatos, meus valores, minhas atitudes e meus juízos. Então, se conseguir fazer neste processo algo que resulte em uma versão melhor de mim mesmo a cada momento refletido, o futuro deixará de ser um vetor apenas de ansiedade e passará a ser um objeto da fé, como esperança realista sobre as coisas incontáveis e, muitas vezes imperceptíveis, que não posso controlar.

17/05/2023 19h24

Imagem: flickr oficial

Olavo de Carvalho

“Os gays encontram talvez menos satisfações no seu tipo peculiar de jogos sexuais do que nos mitos que cultivam a propósito de sua comunidade.”

Obra: O Imbecil Coletivo. Mentiras gays. Editora Record, 2018, São Paulo, 3a. edição. De Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (Brasil/São Paulo/Campinas, 1947-2022).

Olavo aponta a marginalização e a perseguição, além da superioridade intelectual, como mitos cultivados entre gays. Cita Calígula e Mao Tsé-Tung como tiranos homossexuais e não vou aqui citar o que o segundo fazia com os “guardinhas do Palácio da paz Celestial”. Também associa círculos homossexuais próximos ao poder e o comércio de meninos pelo mundo (p. 207).

Na questão da “superioridade intelectual”, Olavo argumenta a partir de sua discordância do conceito de “gay” aplicado em um “homossexualismo episódico” ou seja, a apenas por “indício, mesmo conjectural” e cita Lorde Byron visto como homossexual só porque transou com “meia dúzia de rapazes” enquanto se relacionou com “duas centenas de mulheres” (certamente há um termo mais apropriado ao caso), além da simples ausência de provas de casos heterossexuais vale como indício forte de que determinada pessoa pode ser gay (p. 208), o que me me faz lembrar a celeuma em torno de Leonardo da Vinci.

Entende que o homossexualismo é “desejo” e não uma “necessidade”. A homossexualidade suprimida totalmente resultaria em “muita insatisfação”, e se isso ocorresse com a heterossexualidade, haveria a extinção da espécie humana e, neste aspecto vê a hegemonia dos héteros como “justa” (p. 208). Quanto à aceitação, vê contrassenso quando um homossexual aceita alguém apenas como pessoa enquanto rejeita alguma condição, no caso mencionado, de cunho religioso, mas o mesmo homossexual se sente discriminado quando é aceito como pessoa, enquanto sua opção sexual é rejeitada:

“Pretende que aceitemos sua homossexualidade como um valor, ao mesmo tempo que ele não aceita nossa religião como um fato.” (p. 209).

Aponta a confusão entre “preconceito” e “conceito”; o primeiro como opinião irrazoável, e o segundo na ordem do que é bem elaborado, lógico e respeitável. Também contesta argumentos de ordem médica e a visão de “normalidade” que se pretende dar à homossexualidade (p. 209), além de refutar questões em torno de “superpopulação” e apontar que a inseminação artificial é uma relação heterossexual por meios indiretos (p. 211). O mais importante, à mon avis, consiste em sua crítica ao ensino da homossexualidade a crianças, para que seja feita uma livre opção, quando infantes não podem desfrutar plenamente da heterossexualidade, o que as incitaria ao homossexualismo e a longo prazo as entregaria “à mercê dos homossexuais adultos”, além de eclodir movimentos pela liberação das relações eróticas entre adultos e crianças (p. 213).

Os homossexuais têm o direito, na visão de Olavo, de não sofrer discriminação no emprego e na vida social por conta da conduta sexual privada, sendo que não é discriminatória a mera expressão de condenação moral e até mesmo o preconceito, desde que não resulte em atos agressivos ou danosos. Gays não têm o direito de induzir crianças à homossexualidade, bem como suas preferências não são mais dignas de respeito que convicções morais ou religiosas dos outros, enquanto a subsistência da espécie humana tem a primazia. No final, lembra dos “gays honestos”, incontaminados por uma ideologia que sacrifica a consciência no altar do gosto, “a mais arbitrária das divindades” (p. 214).

16/05/2023 20h30

Imagem: UFPE

Ruy Barbosa

“Solta Pedro I o grito do Ipiranga; e o caboclo em cócaras. Vem, com o 13 de Maio, a libertação dos escravos; e o caboclo, de cócaras. Derriba o 15 de Novembro um trono, erguendo uma república; e o caboclo de acocorado. No cenário da revolta, entre Floriano, Custódio e Gumercindo, se joga a sorte do país, esmagado quatro anos por Incitatus; e o caboclo, ainda com os joelhos à boca. A cada um desses baques, a cada um desses estrondos, soergue o torso, espia, coça a cabeça, “magina”, mas volve à modorra, e não dá pelo resto.”

Obra: A Questão Social e Política no Brasil – 1919. Jeca Tatu. Montecristo Editora, 2012, eBook Kindle. De Ruy Barbosa de Oliveira (Brasil/Bahia, 1849-1923).

Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, inspira o mestre na abertura desta obra, em uma crítica ácida da brasilidade sobre o tipo “a vegetar de cócoras, incapaz de evolução e impenetrável ao progresso” (p. 5), cujo ato mais importante é “votar no governo” (p. 6), bestializado que é um poço de crendices, síntese da nacionalidade (p. 7).

Aqui estou após 104 anos a revisitá-lo e, à mon avis, o Jeca mudou um tanto e agora é neo, “evoluiu” por demais, sobretudo na alienação mais sofisticada pelos “homens que a exploram”, seja no lado canhoto das ideias, seja no lado destro. Está bem mais politizado e virtualmente de cócoras, sem saber, a assistir desprovido de compreensão sobre o que se passa, sua caricatura de homem inculto se foi para dar lugar ao palpiteiro Dunning-Kruger, pleno de si, especialista em quase tudo a partir de cliques e buscas no Google, enquanto depósito de paralaxes; o NeoJeca é um”conservador” com fetiches socialistas ou um socialista que acredita que defende a liberdade enquanto é anti-qualquer-coisa-que questione-suas-crenças, amante da censura, pleno de seu papel de missionário laico pela coerção do bem, peripatético com seu político de estimaçãom, é o “cidadão esclarecido” que pensa ter alguma relevância para quem o manipula, além do voto e do fanatismo que o acompanha.

O neo Jeca tem convicções arranjadas para uma atualidade multicultural e destarte passou a ser um imbecil bem mais “produtivo” ao sistema pois, além de votar, na era da internet é um poderoso multiplicador de narrativas. Bem mais “escolarizado”; seus diplomas, embora inúteis para competitividade econômica, servem para reforçar a ilusória concepção de que “sabe o que está a falar” para espalhar desinformação e desconhecimento com espantosa eficiência, e envolto a dissonâncias cognitivas, revela um mercado especializado em atender a consumidores de idiotices escritas e faladas.

15/05/2023 00h00

Imagem: katholish.de

Hans Küng

“Os hereges condenados pela igreja deveriam ser entregues a julgamento secular – para uma morte pelo fogo ou pelo menos para ter a língua cortada.”

Obra: A Igreja Católica. 5. A Igreja está dividida. Edição da Objetiva, 2002, Rio de Janeiro. Tradução de Adalgisa Campos da Silva. De Hans Küng (Suíça/Sursee, 1928-2021).

Torno à obra do doutor da Igreja, peritus (consultor teológico) para o Concílio Vaticano II, após revisitar neste domingo a obra de Régine Pernoud.

O juizado da Igreja então não mandava os condenados por heresia diretamente para a fogueira. Após a sentença eclesiástica, o caso era remetido a um juízo secular que procedia até a execução capital, por isso, alguns católicos, ao lidarem com o tema tão constrangedor nos dias atuais, costumam argumentar que a Igreja nunca mandou condenados para serem queimados vivos; tratava-se de uma competência diversa, “secular”. Aqui penso em um paralelo com o problema sobre os responsáveis pela morte de Jesus Cristo, julgado pela “aristocracia do Templo” enquanto executado pela justiça romana, cuja leitura do capítulo 8 da obra Jesus de Nazaré, do papa Bento XVI (Joseph Aloisius Ratzinger, 1927-2022) parece-me apropriada.

No contexto medieval, afirma doutor Küng, apenas as autoridades da Igreja poderiam decidir acerca de questões de fé. Com o papa Inocêncio IV (Sinibaldo Fieschi (1195-1254), cerca de duzentos anos do martírio de Joana D’Arc, deu-se a autorização para fazer uso de tortura como forma de extrair confissões, cujos tormentos sobre as vítimas se tornaram “indescritíveis” (p. 131).

O período inquisitório católico romano acabaria com o advento iluminismo, aponta; a tortura e a fogueira cessariam, a Igreja arrumaria um nome (à mon avis, discreto e inofensivo) na atividade de investigar acusados de heresia: “”Santo Ofício” (p. 131).

14/05/2023 15h40

Imagem: Alchetron

Isabelle Romée

“Tive uma filha, nascida de casamento legítimo, a quem eu fiz ministrar dignamente os Sacramentos do Batismo e da Confirmação, conduzi-a na crença a Deus e no respeito às tradições da Igreja, na medida em que lhe permitiam sua idade e a simplicidade de sua condição, tanto que … ela frequentava bastante a igreja, fazia jejuns e rezava com grande devoção e fervor pelas necessidades muito grandes em que o povo se encontrava e de quem ela se compadecia de todo o coração; mesmo assim … certos inimigos processaram-na por falta de fé, sem que ajuda alguma tivesse sido prestada em favor de sua inocência, em um processo pérfido, violento e iníquo, sem sombra de direito… condenaram-na de forma abominável e criminosa e fizeram-na morrer muito cruelmente na fogueira.”

Obra: Joana D’Arc, a mulher forte. 8. Uma criança inocente diante de um chefe triunfante. Paulinas, 1996, São Paulo. Tradução de Jairo Veloso Vargas. De Régine Pernoud (France/Château-Chinon, 1909-1998).

Um traço da dor de Isabelle Romée (1377-1458), mãe da heroína e camponesa Joana D’Arc (1412-1431), vítima da Inquisição, era em que na Igreja Católica Apostólica Romana se julgavam os acusados de “heresia” que, uma vez condenados, eram entregues a autoridades civis, seculares que tinham competência para um juízo de executar a pena de morte na fogueira (p. 153); muitos pensam equivocadamente que a Igreja executava as penas, quando na verdade se limitava ao parecer de heresia ou não.

Joana, a jovem que inspirou os franceses a lutarem na Guerra dos 100 anos contra a monarquia inglesa, capturada por nativos aliados da Inglaterra, passou seus últimos dias em prisões, envolta em uma trama política, submetida a um processo cuja natureza fraudulenta se deu desde a primeira sessão “em uma quarta-feira, 21 de fevereiro de 1.431” (p. 126). Esperava ser transferida para uma prisão da Igreja (p. 147), pois mulheres sob a Inquisição eram encarceradas em dioceses e arquidiocese, aos cuidados de outras mulheres, no entanto ficou em “prisão inglesa e vigiada por carcereiros ingleses”, a denotar a condição de prisioneira de guerra (p. 126) submetida a interrogatórios que não seguiam regras comuns à época, e assim foi julgada sob pretexto de “heresia”. Guillaume Manchon, o escrivão, “contou como tentaram arrancar de Joana confissões deturpadas” (p. 130). Cabe lembrar que se tratou “de um processo da Igreja, conduzido por um tribunal da Igreja”.

Fato é que Joana foi queimada viva em 30 de maio de 1431, por conta de um juízo com “erros manifestos, de dolos e fraudes” (p. 163). Em maio de 1.452 começou uma investigação pelo núncio apostólico na França, Guillaume d’Estouteville, e pelo novo inquisidor francês, Jean Bréhal. Dois anos se passaram e o recém eleito papa, Calisto lll (Alonso de Borja, 1378-1458), encaminhou à família de Joana um “documento” de autorização para se proceder com a revisão do processo (p. 164).

Tornando ao trecho desta Leitura, faz parte da petição entregue por Isabelle Romée, evento ocorrido na Catedral de Notre-Dame de Paris em 7 de setembro de 1.455, onde se iniciou um longuíssimo processo de revisão ou “reabilitação”, onde 115 testemunhas foram ouvidas (p. 166), e eis que de herética condenada à fogueira, Joana foi inocentada, mais adiante seria consagrada a atravessar os séculos onde sua popularidade aumentou. O Vaticano publicou, a partir de 1894, em um conjunto de 17 volumes, o teor de um imenso processo onde Joana terminou declarada como “venerável”, beatificada em 1909 e canonizada em Roma, no dia 16 de maio de 1920 (p. 171).

13/05/2023 16h38

Imagem: johngreenbooks

John Green

— Você nunca joga os cigarros fora? — perguntei.
— Um dos benefícios de não fumar é que os maços duram para sempre — ele respondeu.

Obra: A Culpa é das Estrelas. Capítulo 5. Tradução de Renata Pettengill. Intrínseca, 2012, Rio de Janeiro. De John Michael Green (EUA/Indiana, Indianápolis, 1977).

Na primeiro capítulo, o espirituoso Augustus Waters provoca Hazel Grace com a “metáfora do cigarro”, lembrada ontem em minhas leituras do imperador Marco Aurélio. Augustus é um personagem fascinante por provocar ao pensamento com coisas simples e muitas vezes lúdicas sobre autocontrole:

“Já tenho esse aqui há quase um ano. Alguns cigarros estão rachados perto do filtro, mas acho que esse maço consegue chegar até meu aniversário de dezoito anos”.

O que parecia uma hamartia para Hazel Grace se tornou uma forma hilária de entender Augustus a lidar com a doença. No mesmo capítulo, mais adiante, com o cigarro apagado entre os dedos, Gus dá batidinhas como se estivesse descartando as cinzas e o torna à boca. Que figura!

No capitulo 10 sobra para a comissária de voo informá-lo que não é permitido fumar no avião e, ao ser informada que é uma “metáfora”, sem o típico senso de humor, ela não aceita a “explicação”, e como bom rapaz, Augustus guarda o maço; nada anormal em um mundo em que muitos se guiam por aparências e o analfabetismo funcional vai muito além de textos escritos.

12/05/2023 23h08

Imagem: Città Nuova

Marco Aurélio

“71. É ridículo não escapar de um vício ou maldade pessoal, algo que é possível, e tentar escapar do vício ou da maldade alheia, algo que é impossível.”

Obra: Meditações. Livro VII. 1a. edição da Edipro, 2019, São Paulo. Tradução de Edson Bini. De Marco Aurélio Antonino (121 d.C.-180 d.C.)

TΩN EIΣ EAYTON – Meditações do Imperador considerado filósofo. No Livro VIII torna ao tema do que se pode ou não lidar em relação a vícios ou maldades: “mesmo na hipótese de havermos nascido maximamente em função de uma reciprocidade, a faculdade condutora de cada um de nós possui sua própria soberania.” (56).

É ridículo não escapar de um vício ou maldade pessoal, algo que é possível” me lembra a “metáfora do cigarro” em A Culpa é das Estrelas, quando Hazel Grace, ao ver o cigarro que Augustus Waters colocou na boca quando “até mesmo tendo câncer dá seu dinheiro para conseguir mais câncer?”, e Augustus responde: “você põe essa coisa que pode te matar entre os dentes, mas não lhe dá o prazer de conseguir. Uma metáfora”. Estar no controle da situação sobre si mesmo para se tornar ridículo não escapar de um vício ou maldade, salvo quando se perde juízo, o que faz a questão se tornar psiquiátrica.

No entanto, também é ridículo “tentar escapar do vício ou da maldade alheia, algo que é impossível“, me remete ao problema: do que não se pode controlar, em comportamentos, sentimentos e atos alheios e, neste aspecto, se revela a ilusão de que se está no controle, quando na verdade essa condição é minimamente parcial, visto que o que posso controlar reside em mim mesmo, nos pensamentos, nos sentimentos e nas atitudes que tomo diante do mundo, e o incontrolável está no mundo cuja imensidão me impõe à prudência diante da infinitude das coisas desagradáveis que não posso evitar e das que desejo enquanto não posso realizar.

11/05/2023 20h58

Imagem: dfi.dk

Søren Kierkegaard

“Por trás do mundo em que vivemos, muito lá atrás, em último plano, existe um outro mundo; a sua relação recíproca assemelha-se á que existe entre as duas cenas que acontece vermos no teatro, uma por detrás da outra.”

Obra: Ou isso, ou aquilo: um fragmento de vida. I – Diário de um Sedutor. Abril Cultural, 1979, São Paulo. Tradução de Carlos Grifo. De Søren Aabye Kierkegaard (Dinamarca/Copenhague, 1813-1855).

Demasiadamente intelectual para ser um sedutor, no sentido vulgar do termo, Johannes seria Kierkegaard na “consciência artificiosa de um homem perverso”, através da abstração sob a “pobre Cordélia”, a pensar no que fizera a Regina Olsen, por ele dispensada no noivado e que se casou com Fritz Schlegel, sujeito estável e socialmente bem sucedido (tudo o que ele não pretendia ser), o afundando em tristeza, quem sabe depressão, para escrever, escrever, escrever até se voltar à Don Giovanni (4, Ária), e no primeiro capítulo da obra, “Diário do sedutor”, apresentar uma narrativa que esmiúça Johannes, esteta boêmio, em gozo mental que se esbalda perante uma jovem apaixonada, ciente de que a rejeitaria.

Teria dedicado esta suntuosa peça de “estágio estético da existência”, pela “situação poética da realidade” para convencer Regina Olsen de que o fim do relacionamento foi um livramento para ela, que havia uma maldição em sua família e que poupá-la seria uma renúncia por amor?

Seria uma tentativa de auto depreciação para aliviar algum suposto sentimento de culpa no tormento acometido a jovem renegada e que não reencontrava a paz e que o definiu como “tumulo da alegria” e “abismo da infelicidade”?

Estaria a poupar a jovem da outra cena, a correr por detrás do palco?

10/05/2023 22h26

Imagem: RAI Cultura

Indro Montanelli

Imagem: Il Giornale

Mario Cervi

“Un dato è certo: vigeva nell’Italia che conta un sistema marcio: tutte le aziende d’un a qualche importanza erano sottoposte a un a tassazione impropri a in favore dei partiti – le tangenti – e per potere elargire i fondi in nero che i partiti pretendevano dovevano falsificare i bilanci.”

Obra: Storia d’Italia. Vol XII. 1992-1997. L’Italia dell’Ulivo (1995-1997). Capitolo Primo – La Matamorsofi dei Tecnici. Edizione per Oggi, 2006, Milano. De Indro Montanelli (Italia/Fuccechio, 1909-2001) e Mario Cervi (Italia/Crema, 1921-2015).

Era uma vez um país onde grandes empresas pagavam a partidos para que seus políticos atuassem em favor de seus interesses. Todos fraudavam balanços para esconder o financiamento não permitido na legislação. “Empresários pagavam apenas para obter favores ilícitos, ou para obter o que era deles por direito? As respostas dependem de opinião pessoal e, talvez, de posição ideológica.”(p. 321), analisam os autores, ícones do jornalismo italiano.

Não… não é sobre a Pindorama do “propinoduto” da Lava Jato; era a Itália que se dava conta do capitalismo de laços por meio da Operação “Mãos Limpas”. Do encontro de Bettino Craxi, secretário do Partido Socialista Italiano (1976-1993) com magistrado Antonio Di Pietro, em 9 de outubro de 1993 (p. 543), às audiências que viraram capítulo de série sensacionalista, os italianos tomariam conhecimento de certas relações indecorosas entre políticos, da esquerda à direita, e grandes empresários. Complementam os autores: “Os industriais, que não são anjos, muitas vezes caem em travessuras” e há os que acreditam que “nem mesmo a poderosa FIAT conseguiu escapar, em suas inúmeras ramificações, dos automatismos implacáveis ​​do sistema, ou que em todo caso os custos da resistência pareciam maiores que os riscos de uma capitulação.” (p. 321).

A Primeira República Italiana teve suas “misérias expostas” (p. 77) na “tragicomédia judiciária” (p. 76) a cargo de Antonio de Pietro, que se notabilizou diante das câmeras de tv a ponto de entrar na política, um roteiro bem conhecido em quintais tupiniquins e que acabou, como se diz em Brasília, em uma bela pizza, com políticos, no final, impunes e magistrados perseguidos.

09/05/2023 21h46

Imagem: Instituto Rothbard

Joseph Salerno

“Uma sociedade sem cálculo monetário, ou seja, uma sociedade socialista é, portanto, literalmente uma sociedade sem uma economia.”

Obra: Por que uma Economia Socialista é “Impossível”? Posfácio à Edição norte-americana de 1990 de O Cálculo Econômico em uma Comunidade Socialista, de Ludwig Heinrich Edler von Mises (Áustria-Hungria/Leópolis, 1881-1973). LVM Editora, 2017, São Paulo. Tradução de Leandro Augusto Gomes Roque. De Joseph T. Salerno (EUA, 1950).

Em 1997 sentia um incômodo em estudar uma ciência apresentada tendo a “escassez” como objeto, repleta de proposições que pareciam ignorá-la. Foi-me apresentado, com maior destaque, um lado do interessantíssimo debate: o intervencionista, de raiz keynesiana, tentador, “amparado” por demonstrações matemáticas. O outro lado tinha discreto espaço e com predominância em referências a Adam Smith.

Dez anos se passariam e na solidão do segundo andar, comecei a pensar no então desconhecido texto de Human Action, seguido de um mais antigo, de 1920, a tratar sobre o problema do “cálculo econômico”, da parte de um senhor que tinha ouvido falar em poucas ocasiões nos anos 1990, não raramente em tom jocoso de alguns professores: Ludwig von Mises. Percebi que o senhor Mises apresentou a falta de cálculo econômico como o diagnóstico mais lúcido sobre o que, até então, era uma trava oculta no socialismo; ao estatizar meios de produção, eliminar a concorrência e o sistema de preços que emergem do livre mercado, o senso de escassez fica inviável, e não pode haver economia. Desta constatação comecei a pensar que não faz sentido o termo “economia socialista”, bem como “economia de mercado” não passa de redundância. Passei a outra concepção sobre as iatrogenias do controle de preços, juntamente com a manipulação de taxas de juros, políticas da mentalidade planificadora (socialista), práticas inflacionistas a promover caos na cadeia produtiva que forçam aumento de escassez ao desorientar produtores.

Neste posfácio do professor Salerno, a melhor parte está em Mises contra os hayekianos, no que aponta como divergência, dentro da Escola Austríaca, em relação à inviabilidade do socialismo como economia, entre o que entende Mises em relação à impossibilidade do cálculo econômico, e o que defende Hayek acerca da “ausência de um mecanismo eficiente para transmissão do conhecimento para os planejadores.” (p. 140).

Mises? Maior referência que considero em economia. Hayek? Releitura de Mises com Carl Menger, enquanto Rothbard e Hoppe são intérpretes libertários de Mises. Socialismo é política. Marx? Filósofo da dialética materialista social. Economia? Mercado.

08/05/2023 20h48

Imagem: DW

Vladimir Putin

“Fifty years ago, the Leningrad streets taught me a rule: if a fight is inevitable you have to throw the first punch,”

Obra: Vladimir Putin Book: The Biography of Vladimir Putin. Chapter 1. Family and Childhood. English Edition, eBool Kindle, 2022. Por University Press.

E o rapazinho de Leningrado, que não era o tipo aluno exemplar, mas professores nele viam “potencial” (p. 8), reverbera no Kremlin essa regra, disso não se pode duvidar.

No primário e no fundamental dava trabalho; pais foram chamados por causa de seu comportamento enquanto tinha interesse por espionagem (p. 8), ainda rapazinho se destacou como líder de grupos de escoteiros convertidos em movimentos para jovens leninistas. Decidiu seguir no desejo de ser oficial da KGB (p. 11). Entre 40 candidatos para 1 vaga (p. 11) venceu um concurso e foi parar no serviço secreto. Treinado em filosofia marxista, aprendeu técnicas de espionagem, sigilo de documentos, vigilância, linguagem codificada e a detectar contrainteligência (p. 12). O rapazinho seguiu na KGB, tornou-se pai de duas meninas, foi alocado na Alemanha Oriental (1985-1990), e quando voltou a Leningrado, assistiu à derrocada da URSS , então enveredou-se na política, e para incrementar a carreira se mudou para Moscou em 1996 (p. 16), enquanto deputado a chefiar staff, escrevia sua tese de doutorado em economia (p. 17).

O jovem da KGB pode até ter se decepcionado com o fim da URSS, mas decolou na Rússia “capitalista” onde, à mon avis, a economia seguiu um modelo neofascista, obviamente voltado para oligarcas. Veio 1998 e se tornou diretor do serviço federal de segurança (p. 17); um ano depois atuava como secretário no Conselho de Segurança na Federação Russa, e no alto escalão , acabou indicado por Boris Yeltsin para ocupar o cargo de primeiro ministro, e seus conhecimentos sobre certas “fraquezas” de políticos, em um dos países mais corruptos do mundo, sobretudo do então chefe Yeltsin, acabou sendo um trampolim para concorrer e vencer a corrida para presidente da Rússia.

Agarrou-se ao poder desde então. Reformas tributária, trabalhista, muito capitalismo de compadres, e uma jeito de fazer política externa deve ter confundido o presidente americano Bush, parecendo-se disposto a um diálogo, sobretudo no primeiro mandato acerca de questões armamentistas, enquanto foi implementando a retomada da visão imperialista da Rússia, penso, a começar pela incorporação da Chechênia (p. 19) e na Crimeia em 2014, a primeira invasão da Ucrânia (p. 22), e penso, violação que o mundo ocidental subestimou. De mandato em mandato se perpetuou e antes da segunda invasão à Ucrânia, andava pelo mundo para arregimentar mais presença russa na geopolítica e na economia, inclusive com negócios envolvendo gasodutos com terminais na Europa; seu capitalismo de laços se tornou uma marca.

A esposa pediu divórcio em 2014, tudo amigavelmente, depois de se convencer de que nele só havia espaço para o “trabalho” (p. 15), diga-se um tanto agitado com agenda de guerras ou de “operações especiais” (como gosta de chamá-las). Na sua profissão, quem lhe faz acusações pode desaparecer, como ocorrera em 1991 (p. 31), bem como a influenciar eleições nos EUA, conceder asilo a figuras um tanto controvertidas, como Edward Snowden (p. 24), quem sabe por troca de segredos da CIA até então de sete chaves, assim como cuidar do vasto arsenal nuclear, ampliar negócios financeiros obscuros entre outras coisas que, imagino, talvez foram um tanto além ao que pode ter imaginado aquele rapazinho de Leningrado quando sonhava em ser “agente secreto”.

07/05/2023 13h50

Imagem: EM

Márcia Tiburi

“Etimologicamente, ‘idiota’ tem relação com aquele que vive fechado em si mesmo. Na psiquiatria, a idiotia era uma patologia gravíssima e que, em termos sociais, podemos dizer que continua sendo muito grave.”

Obra: Como conversar com um fascista? 48. A arte de escrever para idiotas. eBook Kindle, Record, 2018, Rio de janeiro. De Márcia Angelita Tiburi (Brasil/Rio Grande do Sul/Vacaria, 1970).

Na obra percebi um destaque para o fator comportamental “psicopolítico” que denota a identificação de um fascista, “pessoa que luta contra laços sociais enquanto sustenta relações autoritárias, relações de dominação” (p. 30).

Entendi ser oportuna a análise de Tiburi ao apontar um “sistema de empobrecimento” de atos políticos, mediante interrupção do diálogo, este definido como “um ato linguístico capaz de promover ações de transformação em diversos níveis” (p. 29). Pela aversão ao diálogo é observado “o modo antidemocrático de exercer o poder” (p. 32), além do desprezo pelo “outro”, tratado como “ninguém” (p. 34), cuja negação se sustenta pela propaganda (p. 54) no que possa contrariar crenças em “verdades absolutas” a firmarem o modo de ser do fascista (p. 30).

Além de postura, Tiburi vê o autoritarismo como um “regime de pensamento” (p. 32), uma forma de exercer o poder (p. 51), o ódio é “sistêmico” (p. 37) cuja produção se relaciona com o modo que se produz o medo, cujo termo “med’ódio” (p. 46) me pareceu uma síntese para o que se dá por “miasma”, como uma atmosfera (p. 47) para servir ao autoritarismo que é “citacionista” a deformar a subjetividade pelo discurso (p. 48) cuja repetição é o treino (p. 49), e neste contexto, vejo a relevância do problema que a autora salienta na nova forma de retórica (trecho desta Leitura, p. 172): a arte de escrever para idiotas.

No lugar de se portar como vítima diante de um fascista, o que abre o flanco ao massacre, ao se inspirar na desconstrução de Theodor Adorno (1903-1969), Tiburi propõe uma posição de “postura de guerreiro sutil” a desafiar o poder de forma cuidadosa e delicada, desde sua interioridade (p. 59), mediante a promoção do diálogo como hábito, “tarefa filosófica” (p. 61), marcada pela “resistência” onde a dúvida é trabalhada para abrir a si próprio e o outro (p. 62) para que seja pensado no que “estamos fazendo uns com os outros” (p. 66).

Curiosa a leitura acerca do capitalismo associado ao autoritarismo e a um “sistema” voltado à opressão”, cuja sedução a escamoteia (p. 74), que usa a democracia como máscara (p. 40). A democracia verdadeira está a residir na partilha da miséria (p. 74). O capitalismo é também um reducionismo assim como é o patriarcado (p. 72), cujo o fascista é o sacerdote a descartar o outro (p. 55), o que me remete ao trecho em que argumenta a avareza a indicar falta de abertura, novamente na temática da negação do outro (p. 65), e novamente torna o tema ao reportá-lo ao ódio o relacionando com o patriarcal “judaico-cristão-islãmico, europeu” (p. 149). Outro ponto mais complexo trabalhado pela autora se situa quando vê o capitalismo com um “caráter pedófilo por manipular consciências imaturas e até mesmo inocentes” (p. 70).

Deus me poupe da moléstia gravíssima oportunamente citada pela autora, então fico a meditar:

Problemas tão bem discorridos seriam exclusividades da mentalidade fascista ou estariam também em arraiais que se apresentam como solução para o capitalismo?

Será que não existe autoritarismo, culto do ódio, rejeição ao outro que pensa diferente, interrupção do diiálogo, espírito antidemocrático, manipulação de jovens e crianças, perseguição política e morte de minorias, entre diversas mazelas em governos de regimes aversos ao capitalismo, tais como os da Venezuela, de Cuba, da Coreia do Norte e na versão mutante chinesa a combinar ditadura na política com abertura a mercados?

06/05/2023 16h42

Imagem: Nobel Prize

Friedrich August von Hayek

“Na década de 1930, muitos professores universitários conheceram estudantes ingleses e norte-americanos que, regressando do continente europeu, não sabiam ao certo se eram comunistas ou nazistas – sabiam apenas que detestavam a civilização liberal do Ocidente.”

Obra: O Caminho da Servidão. Capítulo I – O Caminho Abandonado. Sexta edição do Instituto Mises Brasil, 2010, São Paulo. Traduzido por Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. De Friedrich August von Hayek (Áustria/Viena, 1899-1992).

Hayek abre o parágrafo a afirmar que “a relativa facilidade com que um jovem comunista podia converter-se em nazista ou vice-versa era notória na Alemanha, sobretudo para os propagandistas dos dois partidos.” (p. 51). Mussolini (sem excluir Laval e Quisling), lembra, foram socialistas.

Nazismo e comunismo se notabilizaram por terem sido duas extremidades na arena política europeia nos anos 1930 em fileiras movidas por ódio e um inimigo comum; qual seria? Aponta, “o liberal da velha escola”. O austríaco mais conhecido no mainstream econômico cita Eduard Heimann como referência acerca da aversão liberal ao hitlerismo (p. 52, ver 9 Social Research (Nova York), v.VIII, n.º 4, nov. 1941). O liberalismo estava em baixa, “morto na Alemanha”, afirma (p. 52) e o comunismo, a olhar o contexto histórico, penso, foi uma assombração bolchevique que serviu para facilitar a aceitação social de regimes nazi-fascistas.

O terror que um associava ao outro alimentava o crescimento em suas bolhas de militantes. E, guardando as devidas proporções, à mon avis, no Brasil vejo um binarismo, com forças antagônicas populistas, estatistas, que se notabilizaram nas duas últimas eleições justamente por uma demonizar a outra como estratégia de massificação. O bolsonarismo a denunciar o “comunismo” petista, e o petismo a viver como remédio para o “fascismo” bolsonarista e nessa de um não viver sem o outro, não é que ambos tendem a odiar o tipo que se aproxima de valores análogos ao do liberal clássico, onde austríacos em economia se apetecem? Basta contrariar suas ideias de coerção que se pode ganhar o rótulo de “isentão” ou, de forma mais delirante, de “bolsonarista” por um petista e vice-versa. Que “coincidência” na “pequena confusão” com certos “liberais” que apoiaram o bolsonarismo e, tudo indica, como produtos de imitação barata, estão mais para os casos do “caminho abandonado” que marca o primeiro capítulo da monumental obra de Hayek.

E assim 90 anos se passaram, a civilização ocidental, enquanto defendida por “conservadores” que gostam de fazer Edmund Burke virar no túmulo, continua sob a mira do ódio, hoje mais notadamente por uma geração progressista anticapitalista que deseja salvar o planeta de todos os males do “patriarcado”, das “desigualdades sociais”, das “mudanças climáticas” provocadas pela poluição do ser humano, dos “fascistas” (só não querem livrar o mundo da coerção socialista e da fome que seus regimes provocam) e de tantos outros capirotos, uns espantalhos outros nem tanto, que não param de surgir aqui e acolá nas debilidades humanas, enquanto adepta de mais intervenções, mais controles sociais, que ensejam em mais arranjos de poder cada vez mais centralizadores, que desembocam em mais taxações, mais personalismo, mais populismo e mais autoritarismo.

Vai entender…

05/05/2023 21h58

Imagem: PNP.de

Hans Woller

“Persino il papa diede libero sfogo alla sua ‘tendenza a rifarsi con affettazione al sovrannaturale’ (47). Vedeva in Mussolini l’uomo mandato dalla Provvidenza per liberare il paese dall’eresia del liberalismo.”

Nota do autor: 47. G. Seibt. Roma o morte. La lotta per la capitale d’Italia. Garzanti, Milano, 2005, p. 314.

Obra: Mussolini, Il Primo Fascista. Roma, 28 ottobre 1922. Il fascista. Carocci, 2018, Roma. De Hans Woller (Alemanha/Aldersbach, 1952).

Torno a outro Hans, o senhor Woller, em minhas releituras ainda sobre o papa Pio XI, e eis que o historiador alemão afirma que o pontífice, a falar sobre Mussolini, deu “rédea solta à sua tendência a se referir afetivamente ao sobrenatural”; o papa enxergava o primeiro fascista como “o enviado pela Providência para libertar o país da heresia do liberalismo” (p. 97). Claro, tudo isso antes da publicação Non abbiamo bisogno, em 1931, quando externa oposição a rotular o regime de promover “estadolatria”.

Mussolini conquistou a Itália de maneira que conseguiu o deslumbre (seguida da desilusão) até do papa…

No regime de Mussolini, o duce era “soberano absoluto” sobre o Estado e o partido (p.98) enquanto tornava invisível a linha divisória entre as duas instituições, como bem lembra Woller (p. 99), e neste ponto, penso, algo similar ao que atualmente ocorre na China, em Cuba, na Venezuela e na Coreia do Norte, todos regimes políticos de cunho socialista extremo, que também não toleram oposição, sobretudo fora do partido, tampouco cogitam alternância de poder, e foi por um acontecimento na face totalitária do fascismo que se abriu a crise entre o papa Pio XI e o duce outrora tão elogiado.

Resumo da ópera: o fascismo foi para a Igreja um regime econômica e politicamente vantajoso, pelas cifras auferidas e pelos reconhecimentos de autonomia territorial via tratado de Latrão, e assim deslumbrado pelo papa Pio XI até o dia em que o mesmo regime se intrometeu em certos negócios da Igreja, mais precisamente no caso da Ação Católica, fato que desencadeou a ira papal e forçou a mudança de lado.

04/05/2023 22h12

Imagem: katholish.de

Hans Küng

“O culto sucessor de Benedito, Pio XI (1922-39), governou de uma maneira também autocrática e propagou a ‘extensão do reino de Deus’, acima de tudo através da ‘Ação Católica’ do laicato, embora este fosse continuar sendo um braço da hierarquia.”

Obra: A Igreja Católica. 8. A Igreja Católica – Presente e Futuro. Edição da Objetiva, 2002, Rio de Janeiro. Tradução de Adalgisa Campos da Silva. De Hans Küng (Suíça/Sursee, 1928-2021).

Torno a obra de referência em história, do peritus (consultor teológico) para o Concílio Vaticano II, no trecho em que trata sobre Pio XI, o papa que condenou o fascismo como ‘estadolatria’, dois anos após o tratado de Latrão ser assinado (1929) e receber uma “soma de dinheiro colossal” (p. 218) de indenização paga no regime de Mussolini,. No pontificado de Pio XI também foi marcado por concordatas com outros regimes fascistas na Espanha e em Portugal , além da Reichskonkordat (p. 218) na Alemanha nazista, acordo que aumentou a credibilidade de Hitler.

O papa Pio XI também teve um lado exclusivista, fechado ao diálogo entre confissões, ao proibir os católicos de participarem da conferência ecumênica de Lausane, organizada pela Fé e Ordem (1929), que seria predecessora do Conselho Mundial de Igrejas (p. 217). Também determinou o rumo da Igreja contra o controle de natalidade, elevou Roberto Bellarmino , o que em 1621 definiu “cristão” como o indivíduo que “obedece ao papa e ao pastor por ele nomeado” (p. 217), em uma clara demonstração de se manter fixo na pretensão de um monopólio religioso que reforçou o criticismo protestante, enquanto reconheceu na Encíclica Quadragesimo anno (1931), a necessidade de reformas (p. 218) a retomar temas da Rerum novarum, chegou a preparar uma Encíclica contra o antissemitismo e o racismo; faleceu, o texto não foi publicado e terminou arquivado.

03/05/2023 22h38

Imagem: Vaticano

Papa Pio XI

“[…] di un regime, sulla base di una ideologia che dichiaratamente si risolve in una vera e propria statolatria pagana non meno in pieno contrasto coi diritti naturali della famiglia che coi diritti soprannaturali della Chiesa.”

Obra: Non abbiamo bisogno. LETTERA ENCICLICA. SULL’AZIONE CATTOLICA ITALIANA. Edição online, Vaticano. De Ambrogio Damiano Achille Ratti (Italia/Desio, 1857-1939), Pius PP. XI (1922-1939).

“Uma verdadeira e própria ‘estadolatria pagã’ não menos em pleno contrasto com os direitos naturais da família e os direitos sobrenaturais da Igreja”, um regime que “manipula inteiramente a juventude, da primeira infância até a idade adulta”, e um pouco mais adiante acusa essa “estadolatria” de impedir os jovens de irem à Igreja, “porque onde está a Igreja, está Jesus Cristo”.

O regime chamado de “estadolatria pagã”? O fascismo, assim definido pelo papa Pio XI, em 1931 na Encíclica Nós não precisamos, publicada quando o autoritarismo e o culto ao duce Mussolini estavam em fase avançada na Itália. Qualquer movimento com ideias divergentes dos interesses do Partido Nacional Fascista se tornava alvo do aparelhamento estatal e a Ação Católica, movimento no laicato, provida pelo papa, foi um deles. A terceira via se revelava antidemocrática, antiliberal e anticomunista, construída sob o medo que os bolcheviques inspirassem uma Itália alinhada com Moscou, sendo o fascismo uma resposta forjada por um ex-líder do Partido Socialista Italiano que se declarava anticlerical, mas que em 1929 entrou em acordo com a Igreja no Tratado de Latrão, e ao perseguir a Ação Católica, Mussolini desencadeou a reação do papa externada na Encíclica, a mesma onde se afirma que a Igreja “nunca contestou os direitos e deveres do Estado sobre a educação”, contudo sob limites, “no âmbito da competência do Estado; competências que, por sua vez, são claramente estabelecidas pelas finalidades do Estado”, argumenta.

Uma pergunta me veio à mente com o termo “estadolatria pagã”:

Será que a “estadolatria” se restringiu tão-somente ao fascismo? Ou permanece orgânica nas sociedades por outras bandeiras, além da neofascista?

02/05/2023 21h54

Imagem: IEA USP

Luiz Felipe Pondé

“Como todos sabemos, o mercado, essa ordem espontânea e expandida (como dizia o economista austríaco Friedrich Hayek), se caracteriza por identificar necessidades a partir de seus agentes e propor soluções precificadas. Uma vez identificadas essas necessidades, produtos são oferecidos. A ansiedade é uma dessas necessidades.”

Obra: Você é ansioso?: reflexões contra o medo. Mercado da ansiedade. Planeta do Brasil, 2020, São Paulo. De Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé (Brasil/Pernambuco/Recife, 1959).

Quando Pondé menciona “ampliação de demanda” em torno do problema (p. 74), penso na ansiedade como um insumo para diversas aplicações de mercado, longe de ser algo restrito a profissionais em consultórios a impulsionar o resultado operacional da indústria farmacêutica, tampouco no mercado da fé, que talvez tenha a maior fama de explorá-la, ou quem sabe no binarismo eleitoral onde um candidato depende da demonização do outro, e vice-versa.

A ansiedade é o ingrediente indispensável na receita de marketeiros que superestimam problemas para vender facilidades e assim pode ser vista no influencer em redes sociais com uma crônica de uma catástrofe anunciada seguida de dicas mirabolantes em meio a dilemas encontrados aos montes em qualquer esquina.

A ansiedade está para a varinha de condão depois que se agigantou o espantalho, e e eis que surge o vendedor de curso de day trade para trouxas debutantes no mercado acionário que torrarão alguma fortuna, está na essência do negócio de palestrantes especialistas em pintar o terror das “multas” do fisco, sobretudo para tomar dinheiro de contadores e empresários ao deleite das indústrias de TI, interessada em vender software inútil ao meio produtivo, e de consultoria, com seus batalhões de advogados multiplicadores do Custo Brasil.

01/05/2023 19h16

Imagem: Skoob

Simone de Beauvoir

“Há seres cuja vida inteira se escoa num mundo infantil, porque, mantidos num estado de servidão e de ignorância, não possuem nenhum meio de quebrar este teto sobre suas cabeças; como a própria criança, podem exercer sua liberdade, mas somente no seio deste universo constituído antes deles, sem eles.”

Obra: Por uma moral da ambiguidade. Capítulo II. Nova Fronteira, 2005, Rio de Janeiro. Tradução de Marcelo Jacques de Moraes. De Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir (France/Paris, 1908-1986).

Mais uma dos tempos em que qualquer coisa servia de pretexto para ir a bibliotecas…

Além dos escravos, em muitas civilizações, “as mulheres que não podem senão submeter-se às leis, aos deuses, aos costumes, às verdades criadas pelos machos”, que vivem à sombra do marido ou do amante, e caem em meio à futilidade, se rendem aos interesses do macho e se tornam cúmplices, mas quando esse mundo aparentemente seguro ou “o edifício que as abriga parece em perigo”, a graciosidade costuma dar lugar à fúria e se tornam até mesmo mais cruéis que seus senhores. No entanto, entre a criança e a mulher submissa há uma diferença; a primeira, a servidão lhe foi imposta, e na segunda foi escolhida ou consentida (p. 37), argumenta.

Sendo muito raro que o mundo infantil se mantenha além da adolescência, momento onde as contradições dos adultos são percebidas e as escolhas morais são feitas, é a liberdade a se revelar que perturbará esse ser humano mediante processos de escolha que serão dados pela vida inteira em contingência. Então, pela contingência, menciona Calvino por associá-la ao que se estabelece ao ser humano com a doutrina da arbitrariedade da graça pela predestinação, mas no que aborda não se dá por um fator exterior, e sim por algo operado pelo próprio sujeito (p. 39), que então se lança ao mundo a desvelar o ser em formas de vitalidade, sensibilidade e inteligência (p. 40).

A intensidade desse desvelar definirá a hierarquia dos homens, dos mais plenos de vitalidades, aos mais contidos, e então apresenta o tipo sub-homem, o sujeito apático, sem paixão, que recusa a existência, ao enfrentamento da liberdade, indiferente; o sub-homem é o que se ausenta do mundo (p. 41), esconde-se “nos valores prontos”, dado às convenções em certas opiniões, contenta-se em seguir a etiqueta; “para ocultar sua indiferença vai se entregar com gosto a violências verbais ou até a arrebatamentos físicos”, e eis que se esvai a caminhar para a morte na negação de si mesmo (p. 42), a dissipar a própria liberdade enquanto se passa como “homem sério”. Cita então Hegel, Kiekergaard e Nietzsche como críticos desse “peso mentiroso do espírito sério” (p. 43).

O capítulo II desta obra é muito interessante. Uma vez me perguntaram sobre a razão de ler Simone de Beauvoir, Sartre, Nietzsche, Foucault e tantos outros autores, por ser visto como um “conservador”, avesso a pensamentos “progressistas” e outras rotulações peripatéticas do gênero de quem é chegado a grupos disso ou daquilo, abarrotados de “homens sérios”.

Como tento não ser um “homem sério”, e sim um leitor em busca de aliviar um pouco a ignorância, sigo nessa jornada e acredito que em muitos momentos minhas opiniões não são tão importantes quanto o hábito de deixar os autores falarem sem interrompê-los, mediante minhas ideias pré-concebidas. Apenas ao final da Leitura, a sentir em condições de faze-lo, realizo meu juízo onde normalmente prefiro deixá-lo bem guardado no foro de minhas intimidades e o revelo no momento apropriado, quando percebo que pode ser necessário ao que confiou ou pediu a minha reflexão.

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