Übermensch, eis a seção deste blog com reflexões de Leonardo Amorim e heterônimos neste gracioso ano de 2024, ao som do concerto de Yann Tiersen em Nantes, 2016.

24/03/2024 A caminho da falência

Três narrativas que escodem causas mais profundas da crise entre escritórios contábeis tradicionais

No tempo em que realizava trabalhos presenciais, lá pelos idos de 2015, após finalizar um treinamento contábil, fui convidado a conhecer o terceiro andar do escritório, onde encontrei uma estrutura de TI instalada em uma sala climatizada com armários modernos e cabeamento em fibra ótica. Tudo muito impressionante.

Nas outras três salas do mesmo piso, as portas internas foram removidas de maneira que se conectavam a formarem uma estrutura com uma única finalidade: guardar documentos de clientes em armários com endereços similares a de uma biblioteca. Perguntei então ao proprietário se havia alguma cobrança extra pelo serviço tão organizado e a resposta foi de que se tratava de um “mimo” dentro do pacote da mensalidade. O que mais me chamou a atenção foi a convicção de que aquela estrutura, que consumia 75% do andar, fazia parte de uma “inovação” em um tempo onde os documentos fiscais eletrônicos estavam em um processo de massificação, além de serviços de digitalização que dariam mais sentido a investimentos a um tipo de armazenamento em servidores, não necessariamente locais; referia-me ao que é popularmente chamado de “nuvem”.

Infelizmente em 2017 o escritório cessou de oferecer lucro aos sócios, que retiravam pró-labore de 8k. Em 2018 o prejuízo aumentou. Em 2019 os sinais de definhamento eram evidentes para todos, além da análise dos resultados contábeis e no final de 2021 a empresa tinha perdido 64% da carteira de clientes, em comparação com 2016 (o último ano lucrativo). Foram 25% dos clientes perdidos que tinham dado baixa no CNPJ e o restante foram os que migraram para opções mais econômicas de serviços contábeis, a maioria em formato online. O quadro de empregados derreteu para 30% nesse ínterim e o terceiro andar acabou sendo convertido em salas comerciais, junto com o segundo e o primeiro. A caminho da falência e com o negócio de aluguel de salas como alternativa mais pragmática, no final de 2022 decidiu-se pelo encerramento das atividades do escritório contábil com a recomendação aos clientes que considerassem os poucos empregados que ainda estavam na organização para assumirem as escritas. Era o fim de uma história de quase 40 anos.

Encontrei nesse tempo, três narrativas comuns que escondem as causas mais profundas da crise que acomete muitos escritórios tradicionais:

A primeira apela à pandemia para explicá-la. Considero a mais ilusória e que tenta ignorar problemas com o fato de que o custo operacional estava elevado de maneira que ficou incompatível antes de 2020, o que se agravou em um tempo onde empresários tentavam sobreviver e o corte de custos se tornou ainda mais imperativo. O escritório tradicional que fechou em 2022 já vinha cambaleando e seguiu na pandemia sem correção de rumo, como um Titanic indo direto ao iceberg, com um quadro inchado de colaboradores mal pagos e mal treinados, métodos de atendimento anacrônicos, investimento pesado e desnecessário em servidores locais que ensejavam em custos enormes com manutenção e reposição de equipamentos, este último problema poderia ter sido evitado com a adoção de serviços na nuvem. Mas nada foi mais ilustrativo que a preservação da sala de documentos, um dos maiores exemplos de gestão desastrosa de espaço físico que tinha visto até então. Igualmente desastrosa foi a gestão de recursos humanos; com vícios de empresa familiar onde o mérito reside exclusivamente na afetividade entre sócios e empregados, muitos com deficiências de conhecimentos técnicos em um tempo onde havia uma transição das obrigações fiscais acessórias para meios digitais, o que exigia uma nova economia na demanda de capital humano mais atualizado com as mudanças; havia gente demais, umas batendo nas outras, sem liderança, desorientadas e com baixa qualidade técnica. A falta de liderança ficava visível em situações mais delicadas onde a análise profissional de um problema exigia conhecimentos e um código de procedimentos bem depurado. A direção da empresa não promovia a primeira, nem tinha capacidade de sequer cogitar a segunda. Junte-se esse cenário tenebroso, a crença de que os principais clientes dificilmente sairiam por conta da “consideração”, algo que só durou até o momento em que descobriram escritórios digitais oferecendo serviços mais sofisticados, com estrutura dinâmica de colaboradores em home-office (isso antes da pandemia), mais qualificados e em quantidade menor, com recursos de TI robotizados em um bojo de excelência que resultava em maior agilidade e preço, muitas vezes, pela metade.

A segunda narrativa para justificar a bancarrota foi a de que o meio de serviços contábeis ficou por demais “prostituído” ou “uberizado”. Seria um problema mais por “culpa” do mercado e menos de quem sofre com perda de clientes. Este tipo de análise reflete uma carência comum encontrada entre contadores sobre conhecimentos primários acerca do funcionamento da economia de mercado; ignora totalmente os fenômenos de oferta e demanda, sobretudo o lado do consumidor diante do que significa a principal linha em que atuam: na burocracia forçada pelo aparato estatal-fiscal. Certa vez perguntei a um contador, do tipo indignado com o “absurdo” de um concorrente que conseguia processar a escrita fiscal de mais empresas, com menos empregados e preços menores, via economia de escala, se um dia pensou em se colocar na posição de um empresário diante dos custos com serviços burocráticos e como reagiria se encontrasse opções mais econômicas… Acontece que a burocracia é custo (onde formas de cortá-lo são sempre saudáveis) e contabilidade é outra coisa, mas muitos proprietários de escritórios se acomodaram em explorar apenas um segmento que é típico de despachantes, que por sinal anda muito desgastado no meio produtivo, enquanto ignoram a importância da adoção de serviços para gerar valor agregado e métodos de atendimento que reduzam seus custos operacionais com trabalhos repetitivos para melhorar a margem do negócio, e isso implica em investimentos em TI e em pessoal mais qualificado, em quantidade menor, salários maiores e retornos potencialmente superiores. Fazer menos com mais através de TI e capital humano mais sofisticados ainda é uma questão pouco apreciada em proprietários de escritórios, sobretudo os que não se interessam em compreender os fenômenos de mercado, onde a oferta massificada de soluções de TI está forçando a queda de preços, além da falta de envolvimento com com as atividades técnicas para a compreensão de suas relações com a TI. Seguem em um raciocínio obsoleto que demoniza a concorrência; estes são os mais propícios ao caminho da falência.

A terceira narrativa se situa no vitimismo para esconder deficiências técnicas, em casos de escritórios tradicionais que perderam grandes clientes ou seja, aqueles que retornavam maiores honorários e normalmente operam sob o lucro real. Escritórios com deficiências de recursos humanos não conseguem oferecer serviços consultivos e se lamentam por suposta “concorrência desleal” em face de clientes que encontraram serviços com esse tipo de pessoal qualificado e decidiram pela mudança. Não penso aqui em coisas mais sofisticadas sobre “contencioso tributário” e complexos estudos comparativos de regimes de tributação. Penso em coisas mais simples como o caso do escritório que passou anos calculando PIS e Cofins sobre receitas de produtos monofásicos e um dia se deparou com a irritação do cliente de maior honorário ao descobrir que estava pagando tributos muito mais do que devia, após ter um estudo de uma consultoria tributária que, não raramente, também atua como escritório contábil. O vitimismo também se situa em casos de escritórios com deficiências na própria contabilidade, a começar dos proprietários que atuam apenas como “empresários” e são desqualificados para lidarem com questões técnicas, muitas até elementares, mediante prerrogativas; são comerciantes de serviços contábeis portando CRC, nada além disso. E a falta de competência técnica é um problema gravíssimo que pode destruir um escritório, pois:

Como vão conduzir um negócio que exige aptidão intelectual por conhecimentos contábeis sem possuí-los de fato?

Como vão liderar colaboradores se apenas dão ordens enquanto não possuem autoridade legítima, algo que vem com o indispensável discernimento técnico sobre o que estão ordenando?

E como conseguirão tomar decisões mais acertadas sobre investimentos e custos sobre um negócio tão sensível às leis de oferta e demanda, se desconhecem o que está ocorrendo no mercado?

14/01/2024 Crise de atenção

por Leonardo Amorim

Concentrar-se e se dedicar por um longo tempo é uma questão muito importante. Somos cada vez menos capazes de fazer isso da forma correta”

(Zygmunt Bauman em Educação 360, 2015, Brasil por Fronteiras)

Vivo constantemente tendo que lidar com o que o sociólogo e filósofo polonês tanto alertou sobre um dos problemas da “modernidade líquida”: a crise de atenção.

O problema diz respeito, primeiramente, ao meu próprio comportamento e como lido com as ferramentas de trabalho. Um das tarefas mais importantes que procuro tratar consiste nos meus problemas de atenção.

Enquanto me submeto a esta crítica, percebi este problema entre clientes há algum tempo e passei a adotar formas de amenizá-lo. Não raramente tenho que repetir orientações, muitas elementares, a usuários que não conseguem se concentrar o suficiente, pois dividem o tempo do suporte agendado com telefonemas (alguns até pessoais), retornos em WhatsApp e outras redes sociais, além de terem que enfrentar um ambiente de trabalho hostil à atenção, com poluição sonora e fluxos de pessoas que adentram sem critério e interrompem o atendimento, comprometendo inclusive a privacidade face a assuntos que são externados. Quando um cenário desse tipo se estabelece, dou orientações ao mesmo tempo em que proponho o desafio de tentar segui-las para comparar se a produtividade aumentou, mas sobretudo se o estresse diminuiu. É uma forma de demonstrar ao usuário que as proposições podem melhorar o desempenho e a próprio relação emocional que possui com o trabalho.

Em outros casos, quando usuários, por carência de um plano de ação, tentam realizar várias tarefas ao mesmo tempo, procuro mostrá-los a importância do sequenciamento lógico de atividades. Em muitos casos se deseja realizar em modo de multitarefas, um problema que pode ter relação também com transtornos de ansiedade e torna-se mais sério quando se tratam de tarefas que condicionadas a outras quando, por exemplo:

Para chegar na tarefa C é preciso concluir a tarefa B, e para concluir a tarefa B, é preciso superar a tarefa A. Indo passo a passo, o usuário percebe que estava tentando chegar ao terceiro andar sem passar pelo primeiro e aceita o sequenciamento.

O sequenciamento lógico de tarefas não deveria ser uma coisa incomum entre profissionais de contabilidade, visto que a ciência contábil é, por natureza, regrada por processos sequenciados de problemas a serem resolvidos. Acredito que o distanciamento de contabilidade propriamente dita explique parte dessa dificuldade em muitos profissionais de área.

Em outros casos, quando são tarefas que não se relacionam em termos de condicionantes entre si, proponho que o usuário defina prioridades e escolha o que deseja realizar de imediato face ao tempo disponível. É um bom exercício sobre o que os economistas chamam de “custo de oportunidade”, pois o tempo é um recurso escasso e é preciso aplicá-lo em função de uma coisa em detrimento de outra, o que enseja na capacidade de saber definir bem as prioridades. Procuro demonstrar que se o usuário tentar resolver vários problemas em paralelo, com o tempo que resta, correrá maior risco de terminar o expediente sem ter resolvido pelo menos um.

A crise de atenção se mostra ameaçadora também por conta de profissionais que não tem como hábito a leitura mais profunda e preferem atalhos perigosos em dicas de grupos de redes sociais, muitas descontextualizadas e rasas mediante o problema que tentam solucionar. Procuro alerta-los sobre os perigos de não ter o hábito de separar um tempo do expediente para simplesmente estudar, ler comunicados, analisar notas importantes dos fiscos e manuais, dentro de um plano de trabalho.

Sendo a crise de atenção no suporte para contadores um fenômeno complexo, separei três casos emblemáticos para reflexão:

Crise de atenção I – O curioso caso do Sped Contábil enviado com receitas e sem despesas no livro diário

Transcorria normalmente a reunião no Zoom até que surgiu para análise uma Demonstração de Resultado do Exercício (DRE). Pedi a atenção do contador, que estava sobrecarregado em meio a ligações telefônicas (a tentativa de onipresença é habitual nesta profissão) para que reparasse um problema na DRE: estava apenas com receitas, sem qualquer despesa. A perplexidade ficou evidente, o contador ficou um tempo mudo e depois veio a se lamentar por ter assinado o documento sem perceber um erro tão grotesco que, evidentemente, refletiu em mais erros no Balanço Patrimonial (BP).

Pensamos em como algo assim pode ter acontecido, pois há um processo de conferências desde a escrituração integrada, contudo no checklist, verificamos que dois itens essenciais foram queimados de maneira que provocou a falta de percepção da escrituração das despesas. O primeiro foi na análise prévia que deve ser feita sobre o balancete, no entanto, lembrou-se que foi conturbado o dia em que estava a realizar a conferência, com muitos problemas acionados por clientes no telefone e no WhatsApp. Então, em meio a tanta informação para processar ao mesmo tempo, a sua mente lhe traiu ou seja, na correria ele passou a pensar que conferiu o balancete, e desta ilusão encerrou o exercício, gerou o arquivo do Sped e realizou a importação. O segundo ponto do checklist foi queimado de outra forma, e se deu na segunda conferência que recomendo, a ser feita dentro do próprio Sped Contábil, procedimento que jamais deve ser desprezado; o usuário não a fez devido a “falta de tempo” que a sobrecarga de tarefas estava a lhe provocar naquele dia, que era o último para entrega. A crença na referência falsa de que tinha conferido o balancete e o fato de que 100% das declarações importadas nos últimos 10 anos de Sped sempre batem com os saldos do sistema contábil o seduziu a queimar a etapa da conferência minuciosa no PVA da Receita Federal. Foi o único ato de erro consciente que cometeu, pelo risco, e grave. A parte mais delicada desta sequência de falhas foi ter que explicar no J800 do Sped Contábil o motivo da substituição do livro diário digital e das notas para a DRE e o BP.

Crise de atenção II – Uma dica para fazer um cliente perder um importante financiamento

Penso agora em um importante caso de perda de financiamento por entrega de demonstrações incompletas por parte do contador. A financeira tinha emitido um e-mail com instruções que envolviam o preenchimento de um formulário com índices que deveriam ser extraídos das demonstrações contábeis entregues. Por alguma razão até então desconhecida, a recusa da financeira, embora comunicada em tempo hábil, só chegou ao conhecimento do contador em um momento em que os recursos disponíveis para financiamento tinham sido esgotados.

O contador garantiu que tinha lido o documento na íntegra e com atenção, mas o não envio do formulário com os índices o deixou em uma situação contraditória e delicada de maneira que acabou perdendo o cliente.

Moral da história: quem quiser um roteiro para perder um cliente, a dica numero um, e mais importante, é não ler com atenção as instruções da financeira na ocasião de um pedido de financiamento.

Crise de atenção III – Quando “ver” não é sinônimo de “ler” e como fazer das tecnologias da modernidade líquida um caminho para o caos

Reunião agendada no Zoom com vistas a uma malha fiscal com o prazo se esgotando para retificação do Sped Contábil (ECD) com repercussão no Contábil Fiscal (ECF) e multas acima de 100k em jogo. Ao demandante, na véspera, foi enviada uma notificação com o dia e hora da reunião em negrito, além dos dados de acesso. No dia seguinte, até 08h30, como segue o protocolo que adoto, foi enviada outra notificação lembrete da reunião com as mesmas características. Com duas notificações recentes em seu privado do WhatsApp a indicar visualização, além da confirmação do agendamento 10 dias atrás (em comunicado no mesmo privado do WhatsApp), chegou a hora da reunião e o demandante não compareceu. O tempo limite de espera é de 20 minutos e com 10 minutos de atraso foi enviada outra notificação. Por se tratar de um assunto de nível máximo de prioridade, a envolver notificações críticas da Receita Federal com prazo final próximo, o protocolo determina entrar em contato com o contador por outro meio, no caso, o telefone e ao atendê-lo, após algumas tentativas, ficou nítida a surpresa com o contato; ambos, chefe e assistente, estavam crentes de que a reunião, prevista para durar duas horas, seria no dia seguinte e não naquele momento.

O que aconteceu? O assistente do contador viu mas não leu as notificações mais recentes. Sua mente estava programada para “ver” uma data enquanto minha notificação mostrava outra pois, tinha na sua agenda uma anotação para o dia seguinte, que foi realizada com base em uma leitura errada que fizera do comunicado de agendamento, a que lhe foi encaminhada havia 10 dias. Do erro da anotação se originou todo o processo de confusão e assim seguiu, pelo viés de confirmação, sem nível de atenção suficiente para ler os dois comunicados (véspera e dia da reunião) e perceber a inconformidade com a data registrada erroneamente em sua agenda. E se nem no privado a atenção fora suficiente para conferir datas, as outras fontes de informações (externas) passam ainda mais distantes: a do site, onde a grade semanal de agendamento é publicada, e a ordem do dia de atendimentos, publicada no grupo de WhatsApp. O desencontro consumiu 25 preciosos minutos da reunião.

Um tempo depois o funcionário ficou cobrando a si mesmo sobre sua constante falta de atenção (bom sinal) em face de outros esquecimentos que estão a desgastar o relacionamento profissional com o seu chefe. Propus ao jovem uma autoavaliação sobre como utiliza tecnologias de atendimento durante o expediente e o resultado foi alarmante: além das rotinas contábeis e fiscais que, por si já comprometem o expediente na íntegra, ele precisa ficar atento ao WhatsApp da empresa nas chamadas no privado e no grupo criado para clientes (este último passei a chamar de CDA – Central para Desvios de Atenção), além do e-mail e do Instagram.

Minha conclusão: o funcionário vive sob um conjunto desumano de tarefas. É o típico caso onde o uso de tecnologias para relacionamento com clientes provoca o caos e não agrega valor em termos de bom atendimento.

E em sugestões solicitadas, apontei:

  1. Estabelecer uma política de atendimento eletrônico;
  2. Estabelecer processos internos de triagem de tarefas;
  3. Revisar o ambiente de trabalho de maneira a evitar o constante fluxo de pessoas estranhas à realização das tarefas ao mesmo tempo em que tenha um agenda de humanização de relacionamentos com atividades a serem promovidas pelo RH;
  4. Como desdobramento do item 2, robotizar os atendimentos no privado do WhatsApp, no Instagram e no e-mail, canalizando os pedidos para posterior análise e classificação de graus de prioridade, dando sequenciamento lógico às tarefas;
  5. Transformar o grupo de clientes no WhatsApp para o modo comunicação de maneira que somente administradores possam postar mensagens que se destinam a informar fatos relevantes (mudanças nas legislações, notas de esclarecimento, horários de expedientes, etc). desta forma, este canal deixar de ser uma fonte constante de desvios de atenção forçados por clientes que precisam ser educados no processo de atendimento.

Por último, penso que a crise de atenção não se combate efetivamente com sistemas de atendimento e sim com um processo de educação de colaboradores e clientes mediante uma política para uso dos meios de atendimento que neutralize imediatismo e torne a produção auto sustentável a formar um conjunto de normas orientadas por um código de ética.

01/01/2024 Homo Analgesicus

por pastor Abdoral

“A mudança de paradigma em torno da dor traduziu-se uma prescrição maciça de comprimidos de bem-estar

(Anna Lembke, psiquiatra americana, na obra Nação dopamina)

Do alto da montanha, nesta chuvosa tarde debutante do ano, aqui estou a cumprir a convocação do meu amigo de infância que, no dia 18 do derradeiro mês do ano que há pouco se findou, teceu em Uma leitura ao dia, curioso comento sobre a obra Nação dopamina, da psiquiatra americana Anna Lembke, autora de outro livro com um título bem sugestivo, Nação tarja-preta, o que me fez pensar no tipo comum: o Homo Analgesicus, assim denoto o indivíduo deliberadamente devotado a evitar o sofrimento, anular a dor, em suas mais diversas formas.

Evitar a dor hoje é o maior mimo que a medicina oferece como praxis ao Homo Analgesicus, algo bem diferente do que ocorria no século XIX quando a dor era tolerada e até incentivada na prática da medicina, segundo conta a psiquiatra, contudo, penso, longe de ser uma questão consoante ao aspecto material da vida, a dor física é um temor menor perto da dor psicogênica, onde os “controlados” Diazepans da vida são requisitados. Nada como uma boa receita de um relaxante ou ansiolítico para quem busca alívio imediato em um sofrimento emocional. Infelizmente, na busca de se evitar ou abrandar uma dor na alma, podem se desenvolver outros problemas que vão desde a dependência química à passividade na falta de enfrentamento de dilemas ou dificuldades inerentes à existência. Quando o Homo Analgesicus se torna um dependente da química farmacológica que lhe evita a dor, de tal maneira passa a confundir os sintomas com as causas na dificuldades do viver, com as questões que precisam ser resolvidas, e tudo passa a ser visto como angústia, ansiedade ou profunda tristeza.

Quando o desejo de se evitar a dor emocional passa a ser sinônimo de desejo de se evitar dificuldades, descobre-se que não há remédio eficaz para tratar dilemas na vida que exigem enfrentamento, embora muitos palestrantes de auto ajuda e líderes religiosos queiram nos convencer do contrário. Não apenas coachs e pastores de prosperidade exploram este mercado como exímios vendedores de ilusões, outros tipos como economistas de linha intervencionista vendem “soluções” para diminuir as dores de ciclos econômicos em fase terminal ou de bolhas em estouro, o que atende pelo nome de “políticas anticíclicas” que não são nada além de antidepressivos aplicados no sistema econômico que, ao terem seus efeitos cessados, tornam em dores ainda maiores aos “pacientes” ou seja, aos agentes econômicos “beneficiados” com as políticas de intervenção.

Não há relaxante, ansiolítico, antidepressivo que tomem decisões por nós, isso é óbvio, mas alguns agem como se tais coisas existissem; decisões têm que ser tomadas sejam certas e significativas ou erradas, muitas de alta complexidade diante das dificuldades, que provocam dores, caso contrário, alguém ou algo as tomará por nós e se chegarmos a este ponto, perdemos nossa autonomia, nos tornamos “vegetativos” no intelecto quanto às aptidões para tratarmos de nossos próprios dilemas.

Se uma vida desorganizada, seja material ou espiritual, financeira ou afetiva, trás dificuldades, entra as quais síndromes de ansiedade e depressão, quem sabe tais problemas começaram a se agigantar por causa do comodismo de se evitar decisões delicadas ou por decisões infelizes, mal refletidas. No entanto, também nos impõe uma carga considerável de dificuldades manter uma vida em ordem, as finanças em dia, os relacionamentos afetivos saudáveis, entre outras demandas da existência. Em suma, o Homo Analgesicus não poderá contar com seus remedinhos e apetrechos de relaxamento, programas de entretenimento, experiências religiosas apenas baseadas na emoção (culto-show que é a cervejinha e a balada do crente), para resolver tais questões; cedo ou tarde, terá que fazer escolhas sobre as dificuldades que deseja lidar na vida, sejam as que se originam por preferir subterfúgios, comodismos, infidelidades, falta de empatia e de coragem, sejam as que se dão pelo comprometimento, pela fé e pelo amor a Deus que se traduz em integridade no amor ao próximo, pela verdade dentro de si, pela dedicação com as coisas que realmente importam, muitas vistas como “pequenas”, pela seriedade, pela ética, pela compaixão, pela fidelidade e toda forma moral onde se é possível ter enlevo espiritual no sofrimento.

Se a vida do acomodado, do mentiroso, do irresponsável, do desonesto parece ser uma tentação quando se pensa em atalhos ou em evitar sofrimento para se ter êxito na vida, na medida em que aqueles que se conduzem assim têm que lidar com as consequência de seus atos, passam a um sofrimento em dores na alma em níveis onde a medicina farmacológica, que fascina hipocondríacos, não pode solucionar em termos de causas, apenas cuidar dos sintomas, ao mesmo tempo em que ser comprometido, honesto, responsável, gera uma carga de dores e dificuldades inevitáveis, sobretudo em um mundo onde a degeneração da sociedade se tornou tão intensa, onde ser honesto, ético, íntegro e sério podem ser qualidades tratadas como coisas “inconvenientes”. No enfrentamento da vida é impossível escapar do bojo de dramas sociais de se estar constantemente em dificuldades éticas que ultrapassam os limites de todo tarja-preta.

O Homo Analgesicus segue bem educado no vicio de tratar os sintomas e não dar muita atenção às causas de seus dilemas, remediando pela buscar de atalhos em vez de soluções sustentáveis, e assim se distancia da arte de viver bem, que consiste não em evitar, mas em saber escolher as dificuldades da vida.

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