Bem vindos à seção de recomendações de leitura do blog. Uma leitura ao dia segue neste mês da Ressurreição e de muitas vidas que se achavam perdidas, ao som de Nuvole Bianche, de Ludovico Einaudi (Italia/Tornino, 1955) ao piano de Marnie Laird do Brooklyn Duo.

30/04/2022 14h42

Imagem:  El Español

Umberto Eco

“Em 1942, aos 10 anos de idade, ganhei o primeiro prêmio nos Ludi Juveniles (um concurso com livre participação obrigatória para jovens fascistas italianos — vale dizer, para todos os jovens italianos). Tinha trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema: “Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?” Minha resposta foi afirmativa. Eu era um garoto esperto.”

Obra: O fascismo eterno. Editora La Nave di Teseo, Milão, 2018, no Kindle. De Umberto Eco (Itália/Alexandria, 1932-2016).

E assim começa Umberto Eco a esmiuçar o tema do Ur-Fascismo e fico a imaginar as risadas, com a ironia fina, e o imenso privilégio dos ouvintes da Columbia University ao apreciarem, no dia 25 de abril de 1995, a conferência em inglês que deu origem a esta obra.

O garotinho Umberto foi esperto nessa coisa de “livre participação obrigatória”, o que me lembra a tal “coerção do bem” defendida por gente que tem político de estimação, típica de regimes totalitários onde ele junta ao fascismo o nazismo e o stalinismo (p.23), este último para o incômodo de gente intelectual ambidestra da Pindorama canhota que sofre de indignação seletiva. A parte mais interessante sobre Mussolini na obra consiste quando se desnuda a colcha de retalhos na retórica do duce que “começou como ateu militante para em seguida assinar a concordata com a Igreja” (p. 27) e a debilidade filosófica do fascismo ou seu totalitarismo fuzzy [21], o que percebi em Dottrina del Fascismo quando trata da união do povo sem fazer distinção de raça [22], o que sinaliza que o antissemitismo pode ter sido adotado posteriormente, por conveniência com a aliança nazista. Voltando ao texto de Umberto Eco, nesse ponto afirma que “o fascismo não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de ideias políticas e filosóficas, um alveário de contradições” (p. 32), e nessa confusão peculiar ao pragmatismo político, que me remota às raízes socialistas de Mussolini, é apresentado o termo mais importante da obra: Ur-Fascismo ou “o fascismo eterno” com seus sinais que podem ser identificados onde convido o leitor deste blog a conferir na obra. O fascismo eterno é um texto de notável inteligência, não por coincidência produzido por um dos mais importantes intelectuais italianos dos últimos tempos.

21. Termo usado em lógica que indica algo de contornos imprecisos, pode ser traduzido por “esfumado”, “confuso”, “impreciso”.

22. Talvez surpreenda alguns a visão do fascismo raiz em abordar o papel da raça perante a Dottrina: Non razza, nè regione, geograficamente individuata, ma generazione storicamente perpertuantesi, moltitudine unificata da un`idea, che è volontà di esistenza e di potenza: coscienza di sé, personalitá.

29/04/2022 22h29

Imagem: flickr oficial

Olavo de Carvalho

“Não espanta que toda tentativa de fusão entre capitalismo e socialismo resulte numa contradição ainda mais funda: quando os socialistas desistem da estatização integral dos meios de produção e os capitalistas aceitam o princípio do controle estatal, o resultado, hoje em dia, chama-se “terceira via”. Mas é, sem tirar nem pôr, economia fascista. De um lado, burgueses cada vez mais ricos, mas — como dizia Hitler — “de joelhos ante o Estado”. De outro, um povo cada vez mais garantido em matéria de alimentação, saúde, habitação, etc., mas rigidamente escravizado ao controle estatal da vida privada.”

Obra: O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. A vitória do fascismo. Record, 2017, São Paulo. De Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (Brasil/São Paulo, 1947-2022)

Uma coletânea de artigos de Olavo de Carvalho, eis o que é “O mínimo…”. Bem, no mínimo que se precisa saber está o fato de que o mundo pós URSS se consolidou como de “economia fascista” e nesta semana tão dialética, com Marx e Hayek se encontrando por aqui, não poderia deixar de reservar um dia para quem foi o mais lúcido, polêmico e marrento intelectual brasileiro que tenho conhecimento, diga-se de passagem, de conhecimento oceânico sobre os temas fascismo, marxismo e “terceira via”.

Vejo a “economia fascista”, a qual Olavo de Carvalho discorre de forma tão cirúrgica, como um pilar do neofascismo. À mon avis, os modelos de socialismo nacional desenvolvimentista, defendidos desde que a política apeteceu os seres humanos, sendo assim um traço o fascismo, morreu com Mussolini e o nazismo, com Hitler. O que restou foi a poderosa mentalidade de “terceira via” com a suavização de regimes democráticos, e hoje são celebradas nos quatro cantos do mundo, das elites aos bestializados que preferem a tutela estatal em troca da própria manipulação. A “economia fascista” rege o mundo contemporâneo em relações de laços de negócios entre empresários, players do mercado, políticos e demais agentes estatais em torno do aparato do Estado que é um mega “hub” de segurança, entenda-se privilégios em uma mentalidade avessa à “economia de mercado” mais tendente à livre concorrência, assim como ao individualismo, que são engolidos pelo coletivismo gravitando no Estado. A economia fascista é a instrumentalização da crença no Estado para os interesses oligárquicos que visam se beneficiar de relações ao perceberem o atalho dos poderes coercitivos estatais e, sobretudo, com os que estão na cúpula governamental, que gerenciam esse jogo de “toma lá, dá cá” não importando aqui a ideologia supostamente defendida. Tolice nesse mundo é acreditar piamente nas ideias de socialismo e capitalismo pois na “economia fascista”, elites econômicas operam para usufruírem do que o capitalismo pode oferecer em torno do enriquecimento, enquanto se protegem de suas inconveniências de liberdade de mercado, e assim o fazem pelo uso de poderes regulatórios do Estado que aplicam planejamento central (é a utilidade do socialismo) onde políticos, cheios de pretensões em planejar a sociedade, entram em cena nesse complexo jogo de poder, sob convergência de interesses; eis o elo das elites econômicas com o poder político. É o empresário aliado de político ou grupos de poder; são os ícones do empreendedorismo de grande escala que não se importam em ficar “de joelhos ante o Estado”, desde que seus privilégios sejam bem conservados, e por essa via se pode compreender melhor porque empresários e investidores de alto calibre apoiam políticos mais intervencionistas, enquanto esse mesmo corporativismo em torno do Estado se dedicar a um vasto leque de assistencialismo baseado em coerção, onde os progressistas se aproveitam para seus momentos de grandeza a se consolidar no lado dos mais vulneráveis da sociedade, como forma de aprisionarem as massas no cabresto dos controles sociais do Estado. Ser de “esquerda”, “centro” ou de “direita” é apenas um discurso de conveniência para entreter a plateia do “imbecil coletivo” (aqui fazendo referência a outra obra de Olavo).

28/04/2022 22h38

Imagem: meer

Thomas Hobbes

“Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte. E a causa disto nem sempre é que se espere um prazer mais intenso do que aquele que já se alcançou, ou que cada um não possa contentar.”

Obra: Leviatã. OU MATÉRIA, FORMA E PODER DE UMA REPÚBLICA ECLESIÁSTICA E CIVIL. Capítulo XI. Das diferenças de costumes. Página 85. Edição da Martins Fontes, São Paulo, 2003, formato físico. De Thomas Hobbes (Reino Unido/Malmesbury, 1588-1679)

Leitura nos “pulmões do seminário” em 2004. O que fazer com “um perpétuo e irrequieto desejo de poder”? Lembro-me da sentença “lupus est homo homini non homo” na obra Asinaria, de Plauto (254-184), inserida nesta obra, popularizada pelo filósofo político inglês, que pode ser traduzida por “o homem é o lobo do homem”. Então, o que deve ser feito com o homem “lobo do homem”, o ser que busca autopreservação com “um perpétuo e irrequieto desejo de poder”? Como conter socialmente essa condição humana? Hobbes sugere um contrato (social) a ser administrado por um aparato de governo (no contexto da obra, fortemente influenciado por um conceito monárquico absolutista). No entanto, este contrato executado via aparato estatal por agentes de mesma natureza (humana), seria capaz de minimizar o reflexo do homem insaciável com “um perpétuo e irrequieto desejo de poder”? O homem “lobo do homem”, egoísta e potencialmente inclinado a fazer o mal, seria diferente acumulando poder (político) neste aparato para governar seus semelhantes? A questão suscitada por Hobbes sobre a natureza humana e a solução por ele apresentada envolve, à mon avis, uma reflexão sobre este complexo dilema.

27/04/2022 22h32

Image: Mises Institute

Friedrich August von Hayek

“[…] no mercado (como em outras instituições da nossa ordem ampliada), as consequências não premeditadas são soberanas: a distribuição de recursos é efetuada por um processo impessoal no qual os indivíduos, agindo em vista dos próprios fins (com frequência também bastante vagos), literalmente não sabem e não podem saber qual será o resultado geral de suas intenções. […] para os intelectuais em geral, a sensação de ser mero instrumento de forças de mercado ocultas, mesmo que impessoais, parece quase uma humilhação pessoal.”

Obra: Os Erros Fatais do Socialismo. Por que a teoria não funciona na prática. A presunção fatal. Faro Editorial, 2017, São Paulo. Tradução de Eduardo Levy. De Friedrich August von Hayek (Áustria/Viena, 1899-1992).

Achei por bem deixar Hayek próximo a Marx, assim como em março passado deixei o Olavo de Carvalho juntinho ao Lênin. A dialética desses encontros sempre me fascina. A obra foi a derradeira de Hayek, com a saúde debilitada por isso contando com a ajuda de sua assistente, Charlotte Cubitt. Milton Friedman afirmou que nenhuma figura teve influência tão grande sobre os intelectuais por trás da Cortina de Ferro e que os livros de Hayek contribuíram para o colapso da União Soviética. Conceitos incomuns a não iniciados em seu pensamento, como “ordem ampliada”, “propriedade separada” e “cataláxia”, são discorridos nesta obra. O que mais me chamou a atenção foi o capítulo 8 onde trata sobre a “ordem ampliada” e sua relação com o crescimento populacional.

Quanto ao trecho, penso que o mais conhecido dos economistas austríacos no mainstream toca no ponto mais crítico para intelectuais que fingem que não tem relevância o problema do conhecimento disperso, inerente ao mercado, a inviabilizar o planejamento central peculiar ao socialismo como uma visão política pretensiosa sobre a economia a partir da premissa de que decisões, costumes, juízos de valor, dos agentes econômicos (sobretudo os consumidores) podem ser tratadas com relativa margem de segurança para realização de formas de planejamento, sem levar em conta fatores subjetivos; e eis que intervenções, feitas por governos, acabam por distorcer mercados, afetando comportamentos de agentes que atuam por estímulos de maneira que compromete a compreensão dos fenômenos e a aplicação de recursos de modo racional, maximizado, com maior retorno satisfatório possível. Se ler Marx é indispensável, conhecer o pensamento de Hayek é ver a crítica mais cirúrgica como forma de uma saudável dialética de pensamentos econômicos. E se o planejamento central inerente ao socialismo é inviável por causa da dispersão do conhecimento, isso não significa que não será útil a quem finge que está no outro lado, digo, da economia com liberdade de mercado…

26/04/2022 22h54

Imagem: DW

Karl Marx

“O valor da força de trabalho é determinado pelo valor dos meios de subsistência habitualmente necessários a um operário médio. A massa desses meios de subsistência, ainda que sua forma possa mudar, deve ser considerada, numa certa época, e numa sociedade determinada, como uma grandeza constante, O que muda é o valor dessa massa.”

Obra: O Capital. Vol I, capítulo 15. Guanabara, 1982, Rio de Janeiro. Tradução de Ronai do Alves Schmidit. De Karl Marx (Reino da Prússia/Renânia-Palatinado/Tréveris, 1818-1883).

A edição que disponho é a resumida por Julian Borchardt (1868-1932). Quanto ao “resumida”, uma forma de identificar alguém derrapando na verdade, em relação ao conhecimento pleno desta obra, normalmente se dá quando afirma que a leu na íntegra (imagino que pouquíssimos a fizeram), dada que é fluvial enquanto repleta de alterações significativas, cuja edição francesa de 1872-5 tem peso maior que a primeira edição alemã, língua nativa do autor.

Primeira leitura de Marx se deu na adolescência; foi o primeiro pensador que despertou meu interesse por política e economia. Hoje penso que, independente da visão de mundo adotada, para quem se dispõe a entrar no debate econômico, conhecer suas obras é indispensável.

Quanto ao trecho, certa vez um senhor investidor, que claramente se posicionou na ocasião como uma pessoa de “direita”, “conservadora” e eleitora incondicional de Bolsonaro (combinação como “água e óleo” quanto a ser conservadora e bolsonarista), argumentou que o Brasil deveria ser como os países economicamente “avançados” (e citou a Alemanha) onde o salário base de um trabalhador parte do que é necessário para sua “subsistência”, o que converge, essencialmente quanto à ideia de valor do trabalho consoante ao que Marx defende em O Capital. No entanto, o mesmo sujeito se diz anticomunista, antisocialista e enojado com Marx. Ora, ora, não é difícil encontrar quem defenda Marx sem saber, onde “salário mínimo” é referência de valor para cobrir todas as necessidade “básicas” do trabalhador, inclusive a citar a “Constituição Cidadã” e, quando mais prendado, com menção ao inciso IV do art. 7o. [20] Em ambos os casos, à mon avis, serve para demonstrar como o pensamento de Marx está enraizado poderosamente na sociedade até nossos dias e, muitas vezes, entre indivíduos que se declaram fortemente contrários às suas ideias. Uma obviedade: o fato das ideias de Marx estarem tão presentes na forma de raciocinar de muitos “anticomunistas” não quer dizer que suas ideias sejam sustentáveis no tocante ao mundo real da economia (de fato, não são). Outra obviedade: o fato do conceito de valor da força de trabalho em Marx ser insustentável na prática não desqualifica ou não torna irrelevante o problema que ocupou considerável parte de seus textos: o aumento da desigualdade como fenômeno no “capitalismo”. A teoria do salário e da “mais-valia” em Marx foi um esforço de abordagem sobre o problema, e tal empreitada compõe uma mentalidade econômica que se revelou pífia e causadora de bancarrotas em sociedades que adotaram formas de planejamento central (característica do socialismo), onde desejo e viabilidade se confundem em detrimento do realismo da liberdade de mercado.

20. CF/88 Art 7o. IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

25/04/2022 23h08

Imagem: Google Arts & Culture

Leo Huberman

“O Prof. Hayek é um dos principais economistas de hoje. Não tem muita coisa em comum com os economistas que interpretam a sociedade do ponto de vista da classe trabalhadora,. Mas a importante questão de que apenas o lucro põe em movimento as rodas, está de acordo com Friedrich Engels.”

Obra: História da Riqueza do Homem. Capítulo 20 -O Elo Mais Fraco. Editora Guanabara, Rio de Janeiro, 1986, formato físico. De Leo Huberman (EUA/Nova Jersey/Newark, 1903-1968)

E assim foi em 1996, na leitura desta obra clássica marxista, que tomei conhecimento sobre Hayek e de forma um tanto irônica, para não dizer outra coisa, onde o xará Huberman deixa o economista austríaco e Engels em convergência no melhor estilo marxista: escorando-se em uma interpretação por “meia verdade”, pegando a parte que interessa para dar uma conotação conveniente.

História da Riqueza do Homem tem o típico roteiro economicista materialista dialético para a história que apetece marxistas: do feudalismo ao capitalismo e do capitalismo ao …? Advinha… Essa forma de conceber o mundo, como se estivéssemos em um roteiro, ainda que consoante ao econômico, é de fato sedutora e um dia eu fui um dos que se empolgaram com o script do livro. Estava a rever minhas anotações de 26 anos atrás e fiquei a meditar como um encontro do Leonardo de 1996 seria tenso com o Leonardo que escreve essas memórias de leitor. O Leonardo de 1996 tinha muitas certezas e “soluções” para os males da humanidade e o Leonardo de hoje ficaria apenas ouvindo. No mais, o clássico marxista de Huberman é uma leitura importante dentro da visão ampla que prezo a demandar leituras distintas sobre o que está acontecendo na saga da humanidade.

24/04/2022 09h43

Imagem: ex-isto

Sócrates

“[…] nenhum dos atuais sistemas de governo é merecedor do caráter de um filósofo. Par esse motiva que ele se altera e deteriora; tal como uma semente estranha, semeada num terreno diferente, costuma adulterar-se e se submete, adaptando-se ao local, assim também esta espécie, na atualidade não pode reter a sua força pr6pria, mas degenera num caráter diverso.”

Obra: A República. Livro VI. Martin Claret, 2002, São Paulo 2002. Tradução de Pietro Nassetti. De Platão (Atenas, 428/427 – 348/347).

Sócrates que, por convenção, não deixou nada escrito, está neste diálogo na República, escrita por Platão, seu discípulo. Penso nas discussões sobre a autoria do teor dos diálogos; teria sido de Sócrates mesmo ou Platão inseriu suas reflexões e as associou ao seu mestre?

No trecho, Sócrates conversa com Adimanto. Um diálogo longuíssimo onde se insere Glauco e que consiste em análises dos sistemas de governo. Fui educado para ver a democracia como uma espécie de “deus” (Hoppe diria “que falhou”, concordo). No primeiro contato, aos 17 anos, foi o que mais me chamou a atenção na obra (até hoje é o ponto mais crítico do livro, à mon avis). Reli esta obra em 2002 e sempre a revisito pela sua enorme importância para a filosofia. A democracia, “uma forma de governo aprazível, anárquica, variegada” (Livro VIII, p. 255), é esmiuçada não tendo o apreço de filósofos quanto à importância do comando ou leme do “navio” (alegoria) do Estado aos cuidados dos filósofos. Entre os problemas, a democracia se forma a partir da oligarquia, sofre alteração para dar lugar à tirania (p. 259) mediante “cúmulo da liberdade”; seria da liberdade em excesso (p. 262), que surge “a mais completa e mais selvagem das escravaturas” (p. 262) com os oportunistas, demagogos, se aproveitando da insaciabilidade dos desejos em torno da liberdade para manipular as massas e estabelecer um regime tirano, reflexão difícil de ser digerida em nossos dias para quem vive nas esperanças democráticas, algo que pode causar surpresas um tanto desagradáveis por conta da origem do debate, que envolve Sócrates no berço do sistema de governo que, diga-se de passagem, tinha uma forma bem diferente na sua operacionalização.

Seria a democracia um instrumento em favor de tiranos? Bem, entre tantos exemplos na história, Hitler, na base do populismo, explorando o desespero da população afligida em forte recessão e dívidas, com ideias extremistas e em espaços de liberdade, foi pela via democrática e teve uma expressiva vitória em julho de 1932 [19] com o seu partido Nacional Socialista que duplicou a base de apoio, indo de 18 para 37% dos votos e de 107 para 230 deputados, em comparação com às eleições anteriores (1930). Da mesma forma que o extremismo de esquerda se estabelece, a fazer uso da democracia como meio de propagação de radicalismos. Por isso, penso, a liberdade à democracia é um problema que cabe outro ainda mais complexo em termos éticos no seio da sociedade: as relações com a responsabilidade e seus desdobramentos na moralidade.

19. Ver 1931: Debt, Crisis, and the Rise of Hitler, de Tobias Straumann.

23/04/2022 14h28

Imagem: Camões Berlim

Teresa Veiga

“A pobreza dispensa muitas formalidades e torna-nos aptos para apreciar as coisas simples da vida.”

Obra: Gente Melancolicamente Louca. Editora Tinta-da-China, 2017, Lisboa, formato físico. De Teresa Veiga (Portugal/Lisboa, 1945). Teresa Veiga é um pseudônimo que começou a ser adotado pela autora em 1980 na edição de seu primeiro livro, Jacobo e Outras Histórias.

Quem será Teresa Veiga? Eis um mistério, pois em raras ocasiões uma distinta senhora se permite fotografar. Sou fascinado por heterônimo e pseudônimo, o primeiro por influência de Fernando Pessoa cuja genialidade criou autores com personalidades bem distintas: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Bernardo Soares. O segundo caso foi por conta de Eric Arthur Blair, que adotou George Orwell, cujo pseudônimo é um dos mais famosos do século XX.

Fernando Pessoa explicou a diferença: “A obra pseudônima é do autor em sua pessoa, salvo no nome que assina; a heterônima é do autor fora da sua pessoa; é duma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu.” [17]

No caso de Teresa Veiga, acho fascinante a autora usar um pseudônimo que talvez a ajude a viver melhor com o seu nome real a ficar no anonimato, onde só as pessoas mais íntimas saibam a sua verdadeira identidade.

Quanto a Gente Melancolicamente Louca é uma coletânea de contos de uma escritora portuguesa muito apreciada pela crítica literária. Há em Portugal quem a compare na linhagem de Machado de Assis [18] o que, como brasileiro, me deixou com um certo orgulho. O estilo literário está repleto de ironias, metáforas e aforismos muito bem trabalhados nas sutilezas de personagens predominantemente femininas, um tanto solitárias ou enclausuradas, com traços marcantes e, no caso do título da obra, gente “melancolicamente louca”. Manuela, adolescente, tem uma biblioteca a se ocupar com leituras “consciente de que nunca seria a praça-forte cobiçada pelos homens.”, e Isabela faz do hábito uma forma de combater o tédio; “em menos de duas horas, pois só lia as passagens que lhe interessavam e ninguém conseguiria convencê-la de que não captara o que o livro tinha de mais interessante”. Já Natacha prefere os jornais para se auto educar e ter uma “vida social” em meio à “falta de contactos com pessoas reais”, uma rapariga (moça em Portugal) que “saboreava tudo tão devagar que distinguia claramente tempos diferentes onde uma mente apressada não vê senão um”. Tem até “falso conto policial” e outro envolvendo Sherlock Holmes (em situação para lá de constrangedora) e Watson; e assim a impressão que eu tenho é que “Teresa Veiga”, seja quem for (chegou-se a cogitar que seria um homem, mas depois da foto tal hipótese foi descartada), se diverte bastante a escrever.

17. Revista Presença, edição no. 17, (Dez/1928), Coimbra.

18. Cintilações, Isabel Cristina Mateus, Universidade do Minho.

22/04/2022 23h28

Imagem: Austrian Economics Center

Carl Menger

“A medida de valor é inteiramente subjetiva por natureza, e por isso um bem pode ter grande valor para um individuo que economiza, pouco valor para outro e nenhum valor para um terceiro, dependendo das diferenças em suas necessidades e montantes disponíveis.”

Tradução livre.

Obra: Principles of Economics. The subjective character of the measure of value. Labor and value. Edição do Ludwig von Mises Institute, 2007, Auburn, USA, Trasnslated by James Dingwall and Bert F. Hoselitz. De Carl Menger (Império Austríaco/Nowy Sącz, 1840-1921)

Fundador da Escola Austríaca de Economia.

No trecho (Capítulo 4, Teoria do Valor) discorre sobre a Teoria Subjetiva do Valor. Hoje isso é uma obviedade, mas há 15 anos, devido à minha formação keynesiana, parecia uma névoa com visibilidade zero. O valor de um bem não é determinado por qualquer propriedade inerente. Não está em si mesmo e sim no que os indivíduos subjetivamente definem. Não é definido pela quantidade de trabalho necessária para produzi-lo, como teorizou Karl Marx, mas pela importância que um indivíduo estabelece diante do que entende por suas necessidades ou interesses como bem; serviço, recurso, produto, no âmbito de acordo com que os indivíduos (tomadores/consumidores) definem e isso é observado nas relações de trocas no mercado entre quem está ofertando e quem está procurando. Quem oferta parte de um juízo e quem demanda (procura) também exerce subjetividade. É no mercado que essa dinâmica ocorre. Se o valor de um bem sendo ofertado por $ 10 estará sujeito a decisão do lado consumidor que vai sinalizar o quanto se está disposto a pagar. As vendas significam o resultado dessa dinâmica derivada do comportamento diante do preço no encontro de ofertantes e demandantes. O que Carl Menger descreveu há mais de 150 anos foi como a economia (mercado) funciona através do comportamento dos agentes econômicos, base de um problema que Marx ignorou: a economia sendo feita por pessoas que revelam seus desejos, um fenômeno natural, isto é, comportamental (psicológico) resultante da ação humana.

21/04/2022 13h37

Imagem: Site oficial do autor

José Martino

“- Por que você não se incumbe desta tarefa? É bem falante, desembaraçado…

– Meu amigo, o que valho eu? Sou apenas um pobre soldado, sem estudos…”

Obra: 1789 – A Inconfidência Mineira e a Vida Cotidiana nas Minas do Século XVIII. Excalibur Editora, 2020, 2a. edição em E-book, 2020, no Kindle. De José Antonio Martino (Brasil/São Paulo/Atibaia).

E assim é descrito um encontro entre José Álvares Maciel, um jovem estudante de filosofia que fora um dos articuladores das ideias da inconfidência (já presentes na sociedade à época), e o alferes do 6o. Regimento de Cavalaria Regular de Vila Rica, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.

Excelente obra de José Martino, que também é poeta e possui diversos prêmios literários pelo Brasil. É a recomendação para este 21 de abril.

A dedicação do autor aos detalhes é o que mais me chama a atenção neste trabalho onde pude aprender e revisitar muitas questões ou opiniões formadas sobre Tiradentes, alferes que prestava serviços como dentista nas horas vagas de onde se deriva a alcunha, filho de uma família com posses, mesmo que não fosse rica (na visão do autor, p. 73). Tiradentes veio de pais bem sucedidos com uma fazenda (Pombal), 35 escravos e certo prestígio onde o pai português, Domingos da Silva Santos, agricultor que passou a investir na mineração, entrou na política, “tendo sido eleito para o cargo de vereador da Câmara de São José Del Rei entre 1755 e 1757” (p. 73). Então, a história de um Tiradentes que morreu na forca porque era pobre (narrativa comum entre professores de história no intento de super estimar os males da monarquia), precisa de algumas ponderações; não só de berço bem abastecido, mas durante significativa parte de sua vida de adulto: “recebia 24$000 (vinte e quatro mil réis) de soldo pelo seu posto de alferes. Possuía um sítio grande, com cerca de oito sesmarias de terras[19], situado num local conhecido como Rocinha da Negra. Nesta propriedade existiam casas, monjolo, senzala, matos virgens, capoeiras, águas minerais, tendo sido avaliada em 700$000 (setecentos mil réis). Além disso, tinha um crédito de 200$000 (duzentos mil réis) com certo João Pereira de Almeida Beltrão, sem dizer que era proprietário de três escravos (Francisco Caetano, Bangelas e João Camundongo) e uma escrava (Maria Angola), com seu filho de dois anos. Ao todo, os seus bens foram avaliados judicialmente em 797$979 (setecentos e noventa e sete mil, novecentos e setenta e nove réis)” [16]. Tiradentes recebeu uma boa educação e escrevia bem. Aos onze anos perdeu os pais e foi morar com o padrinho, que era dentista, e daí aprendeu o oficio. Tinha interesse por ideias liberais; “Andava sempre com dois livros debaixo do braço. Um era um dicionário de francês e o outro uma tradução francesa da Constituição dos Estados Unidos” (p. 75). Foi bastante mulherengo (p. 82) e, pelo menos em uma ocasião, demonstrou capacidade de se compadecer do sofrimento alheio, quando decidiu interromper uma sessão de tortura, castigo socialmente aceito à época, sobre um escravo, partindo para cima do proprietário para lhe tomar o chicote, o que lhe custou um processo judicial com perda de patrimônio (p. 79), o que indicou o sentido do seu ódio ao regime dos portugueses, algo que pode ser considerado como uma motivação para suas ideias avessas à monarquia, marcando uma mudança em sua vida. Enquanto alferes, ironicamente ajudou em transportes do quinto feito pela coroa. Tiradentes foi um militante típico para ser usado em um contexto de vários interesses para tentar derrubar um regime político. Participou de uma conspiração entre os quais estavam descontentes ricos não alinhados com a coroa, prejudicados com a alta taxação e, por que não considerar, ele mesmo como um homem quebrado financeiramente, sem crédito pela condenação de seu ato de compadecimento pelo escravo. Então, a história de Tiradentes é complexa, exige muita leitura e reflexão sobre fatos em um jogo de interesses da política, onde sobrou para ele a forca como exemplo que os regimes tirânicos costumam adotar para dar um recado a conspiradores e afins.

16. Páginas 77 e 78.

20/04/2022 23h08

Imagem: Mises Institute

Hans-Hermann Hoppe

“Do ponto de vista puramente econômico, então, a solução para o problema da superpopulação deve ser imediatamente aparente. A propriedade dos filhos ou, mais corretamente, a custódia dos filhos deve ser privatizada. Em vez de considerar as crianças pertencentes coletivamente ou confiadas à “sociedade” ou ver os partos como um evento natural incontrolável e incontrolável e, consequentemente, considerar as crianças pertencentes ou não confiadas a ninguém (como meras “mudanças ambientais” favoráveis ou desfavoráveis), as crianças devem em vez disso, são consideradas entidades produzidas e confiadas de maneira privada.”

Obra: Uma Breve História do Homem. Progresso e Declínio. Capítulo I. Sobre a Origem da propriedade Privada e da Família. LVM Editora, São Paulo, 2018. Tradução de Paulo Polzonoff. De Hans-Hermann Hoppe (Alemanha/Baixa Saxônia, 1949).

Quando humanos viviam em bandos, eram coletores, caçadores e nômades, o surgimento da família foi uma consequência da luta pela sobrevivência em torno da falência de um modelo social onde crianças estavam aos cuidados na tribo, com as responsabilidades de subsistência socializada, na comuna, porém, a explosão populacional teria forçado um modelo de controle de natalidade e de atribuições de uma nova ordem social, privada, no tocante às responsabilidade com os filhos em um núcleo de gestão menor, descentralizado, pautado em laços de sangue. Surgiram então espaços delimitados em função das crianças derivadas da nova organização com ênfase matrimonial, com base no referencial da mãe em um primeiro momento, e aqui faço um adendo de outras leituras; a vinculação aos tios maternos, contrastando com experiência de poligamia, percorrendo um longo caminho até se chegar na monogamia, a forma mais “privativa” de organização familiar patrimonial, quebrando o paradigma da tribo, das comunas. A figura do “pai” responsável pela família foi um processo derradeiro de consolidação dessa ordem na “célula mater” da sociedade.

Com o papel paterno definido pela sociedade baseada em famílias na privatização da prole, encontrou-se um caminho para construir o que hoje é chamado de família tradicional. Esse processo se deu na transição do nomadismo para o sedentarismo, com o desenvolvimento de tecnologias que deram origem à agricultura, até o desenvolvimento da vida urbana em formas rudimentares de manufatura. Em outras palavras, a família é a mais antiga forma de propriedade privada socialmente convencionada, dando as bases para o surgimento de “terras privadas” (página 71).

19/04/2022 23h12

Imagem: Mises Institute

Friedrich August von Hayek

“A contínua injeção de quantias adicionais de dinheiro em alguns pontos do sistema econômico, gera uma demanda temporária que, inevitavelmente, acabará assim que o aumento da quantidade de moeda parar ou desacelerar, juntamente com a expectativa de um contínuo aumento nos preços, sacam a mão de obra e outros recursos para empregos que durarão somente enquanto a expansão da quantidade de moeda continuar na mesma taxa – ou até mesmo somente enquanto a expansão monetária continuar a acelerar numa determinada taxa. O que essa política produziu, não é tanto um nível de emprego que não pudesse ter sido criado de outras maneiras; mas uma distribuição do emprego que não pode ser indefinidamente mantida e que, após algum tempo, só pode ser preservada por uma taxa de inflação que inevitavelmente levará à desorganização de toda a atividade econômica.”

Obra: A pretensão do conhecimento. LVM Editora, 2019, São Paulo, eBook Kindle. De Friedrich August von Hayek (Áustria/Viena, 1899-1992).

A pretensão do conhecimento é o discurso de Hayek no banquete do “Nobel de Economia” de 1974, uma provocação e um grande alerta sobre problemas em torno da exploração da ciência para dar um ar de precisão sobre ideias que estão mais baseadas na ilusão do conhecimento.

Penso em minha geração, no populismo fiscal, na expansão de gastos em expansões de base monetária que inflam mercados, ocasionando no aumento dos preços e, consoante aos acionários, beneficia investidores enquanto a inflação vai destruindo a economia dos que são supostamente mais visados: os vulneráveis da sociedade. Governos e bancos centrais estão para o inflacionismo. A Nova Matriz no primeiro governo Dilma Rousseff (2011-2014) provocou o IPCA de dois dígitos em 2015. As medidas de estímulo durante a pandemia são inflacionistas e estão a provocar, em paralelo aos problemas na cadeia de insumos, os índices de inflação pelo mundo que, em primeiro momento teve o pretexto dos dramas sociais da pandemia e agora a “desculpa” com os choques de oferta mediante as sanções impostas contra a Rússia. No entanto, os sintomas de inflação já eram evidentes antes da guerra com o quantitative easing dos bancos centrais e os programas de distribuição de dinheiro dos governos. Fui educado para ver a economia mais como política econômica centrada em ideias intervencionistas onde John M. Keynes costuma ser uma base. O conceito de economia como ciência da escassez amadureceu através da Escola Austríaca.

A maior lição que tirei desta reflexão de Hayek diz respeito à importância de que os verdadeiros cientistas em economia reconheçam as limitações do que são capazes de fazer no campo das ciências humanas, não se deixando levar pelo apreço das multidões que costumam clamar por coisas impossíveis, onde só a política pode satisfazê-las, aqui lembrando um dito de Thomas Sowell.

18/04/2022 23h44

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Tiago Reis

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Jean Tosetto

“[…] a contabilidade é considerada a língua dos negócios, pois transmite informações das quais podemos extrair praticamente tudo a respeito de um empreendimento: se está crescendo ou está em declínio, se está saudável ou em dificuldade financeira.”

Obra: Guia Suno de Contabilidade para Investidores: Conceitos contábeis fundamentais para quem investe na Bolsa. Edição eBook Kindle, 2018. De Tiago Guitián dos Reis (Brasil/São Paulo) e Jean Tosetto (Brasil/São Paulo).

Para quem está começando a investir em ações com interesses em dividendos e, por tabela, em análise fundamentalista, a leitura desta obra é indispensável. Guia rápido e preciso sobre conceitos de contabilidade voltados para avaliação de balanços, DRE e fluxo de caixa, assim como a aplicação de índices. Embora tenha um público-alvo de investidores, também recomendo para contadores, sobretudo os que não mais vivem a contabilidade e se distanciaram da prática acerca do que esta ciência significa para a economia e a sociedade produtiva, considerando o trecho selecionado. Se a contabilidade morreu na vida de muitos profissionais de contabilidade quando vivem tão-somente de calcular impostos e elaborar guias de recolhimento, este livro pode ser uma oportunidade para um reencontro com a ciência de riqueza ou a “língua dos negócios”.

Se hoje a contabilidade, em termos gerenciais, está mais restrita a grandes corporações de auditoria e profissionais que lidam com grandes empresas, via de regra, de capital aberto, apreciar esta obra poderá abrir perspectivas sobre o uso da contabilidade pelo seu real significado. Se não é possível hoje trabalhar com contabilidade enquanto contador no manicômio tributário que assola o universo das médias, pequenas e microempresas, pelo menos como investidor essa experiência pode ser garantida.

17/04/2022 11h26

Imagem: The Orthodox Church in America

São João Crisóstomo

“[…]Desfrutem todos da festa da fé, das riquezas da bondade. Ninguém lamente sua pobreza, pois o reino universal se revelou. Ninguém chore as suas iniquidades, pois o perdão da tumba se levantou. Ninguém tema a morte, pois o Salvador da morte nos libertou. Aquela por quem estava preso, Ele a aniquilou. Cativo fez o Inferno, quando lá baixou. Afligiu o Inferno quando a Sua carne provou. E Isaías, isso prevendo, clamou: o Inferno, diz ele, foi afligido, quando Te encontrou embaixo. Ele foi afligido, pois foi derrubado. Ele foi afligido, pois foi zombado. Ele foi afligido, pois foi executado. Ele foi afligido, pois foi subjugado. Ele foi afligido, pois foi acorrentado. Ele recebeu corpo, e a Deus encontrou. Ele recebeu terra, e o Céu encontrou. Ele recebeu o visível, e foi destruído pelo invisível.

Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó Inferno, a tua vitória? Cristo ressuscitou, e tu foste subjugado. Cristo ressuscitou, e caíram os demônios. Cristo ressuscitou, e se regozijam os anjos. Cristo ressuscitou, e a vida reina. Cristo ressuscitou e nenhum dos mortos permanece no túmulo. Pois Cristo, sendo ressuscitado dos mortos, se tornou as primícias dos que dormem. A Ele seja a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.”

Tradução livre.

Obra: Homilia Pascal. The Paschal Sermon. Publicação em inglês, The Orthodox Church in America. De São João Crisóstomo (Império Romano/Antioquia, 347-407).

É a alegria da ressureição em um sermão pascal [15] do quarto século, homilia épica do “boca de ouro”. São João Crisóstomo, Arcebispo de Constantinopla ficou assim conhecido na cristandade pela sua oratória. Ele foi o maior pregador do cristianismo após a era apostólica, ministro das homilias que atravessaram os séculos. São João Crisóstomo é constantemente mencionado por papas católicos, além de ser uma das mais importantes referências dos ortodoxos, assim como por eruditos no lado protestante que estudam a fundo o cristianismo raiz e reconhecem o imenso valor das tradições de onde veio o cânon do Novo Testamento. Quanto mais leio os textos de São João Crisóstomo mais impactado fico ao perceber a capacidade que ele tinha de analisar textos canônicos, principalmente as cartas de São Paulo, e fazer uso da palavra como um bom pastor para dar aos fiéis um alimento espiritual riquíssimo de fé e conhecimentos que contribuíram para que a fé cristã seguisse o seu caminho sem ser uma religião de ignorantes ou desesperados enquanto o Império Romano desabava. Só pode haver fé cristã com a Palavra da Cruz e a Ressureição de Cristo. A Palavra da Cruz é o Amor de Deus em todos os sofrimentos humanos regados à esperança; a fé cristã significa para mim Deus ao nosso lado em todos os momentos, e não raramente sentimos mais essa presença nas horas em que ninguém pode estar, na mais profunda dor. Ao estudar a Igreja antiga, as tradições apostólicas e a patrística com o que se preservou das Escrituras, posso entrar nesse mundo de fé, sofrimento e esperança que não cansa de se renovar porque vem de Deus. Então, fiquei a imaginar uma celebração hoje com o “boca de ouro” em um domingo de páscoa, a pregar com a alegria da ressureição:

Desfrutem, venham, o Reino é de todos, ricos, pobres, não há distinção. É a festa da fé. Ninguém lamente sua pobreza;
desolados, esquecidos, sedentos, famintos, abandonados e refugiados, desfrutem as riquezas da bondade.

Ninguém tema a morte; desenganados e desamparados. Quando a escuridão chegar, o fechar dos olhos não será o fim, é a Vida que reina.

Onde há amargura, remorso e solidão. Onde há desprezo, intrigas e ódio, ninguém mais chore suas iniquidades,
pois o perdão da tumba se levantou, Cristo, a Rocha dos Séculos, ressuscitou!

15. O texto em grego deste sermão pode ser estudado em https://earlychurchtexts.com/main/johnchrysostom/paschal_sermon.shtml

16/04/2022 00h08

Imagem: ABC Cultura

Antonio Piñero

“Jesus formou um cortejo começando por Adão, seguido pelos patriarcas. A procissão saiu das profundezas da terra e se dirigiu por caminhos invisíveis ao Paraíso. Ali, os justos deveriam esperar pelo julgamento definitivo. Quando chegaram às paragens celestes, Jesus entregou toda a comitiva ao arcanjo Michael (Miguel), que os acomodou em diversos lugares do Paraíso. É neste lugar maravilhoso que os justos irão viver felizes à espera da glória definitiva após o Grande Juízo. Outros justos de especial santidade, que morrerem antes do Grande Juízo, também encontrarão conforto neste lugar, enquanto que a maioria terá que esperar em outra parte o momento da sentença final.”

Obra: O outro Jesus segundo os evangelhos apócrifos. Capítulo IX – Descida aos infernos. Mercuryo, São Paulo, 2002. Tradução de Silvia Rojo Santamaria. De Antonio Piñero Sáenz (Espanha/Cádiz/Chipiona, 1941).

Leitura de 2003 deste trabalho de referência sobre os evangelhos e demais textos da igreja primitiva não aceitos no cânon, classificados como apócrifos, produzido por Antonio Piñero, filólogo renomado que se especializou sobre o Jesus histórico e textos antigos da cristandade. Trecho é do Evangelho de Bartolomeu (I, 31-34). O que nos textos canônicos é registrado de forma direta com brevidade (Efésios 4:8-10 e I Pedro 3:18-20), a descida à mansão dos mortos (Symbolum Apostolicum, compondo o quinto artigo que seria do antiguíssimo Símbolo ou Credo dos Apóstolos, segundo versão católica romana), no Evangelho de Bartolomeu é contada em detalhes: Jesus vai ao sheol [14] que é organizado em compartimentos: há divisões para os “irrecuperáveis”; blasfemos, suicidas, homicidas, entre outros aguardando a sentença definitiva; neste ponto, certamente foi uma referência para Dante Alighieri (1265-1321) produzir a Divina Commedia cerca dez séculos depois em relação às divisões que descreve sobre os círculos da danação. Tornando ao Evangelho de Bartolomeu, em outras divisões ficam as almas dos justos. Jesus se encontra com os justos desde Adão, pega Satanás pela cabeça, entrega aos anjos assistentes e ordena que o deixe acorrentado até a sua segunda vinda. Em remissão dos pecados, Jesus batiza os mortos que creram, e então segue o resgate em um cortejo até o Paraíso. Jesus teria ficado por 12 anos na terra instruindo os discípulos após a ressureição (página 143). Os textos apócrifos usados na pesquisa para a produção do livro, conforme o autor, vão do século II até meados do século VII.

14. Em hebraico designa onde repousam as almas dos mortos sem o sentido de danação dado ao “inferno” na terminologia cristã.

15/04/2022 13h42

Imagem: Vaticano

Papa Francesco

“Em primeiro lugar, vejamos. Mas o que João viu sob a cruz? Certamente o que os outros viram: Jesus, inocente e bom, morre brutalmente entre dois criminosos. Uma das muitas injustiças, um dos muitos sacrifícios sangrentos que não mudam a história, mais uma demonstração de que o curso dos eventos no mundo não muda: os bons são removidos e os maus vencem e prosperam. Aos olhos do mundo, a cruz é um fracasso. E também nós corremos o risco de parar neste primeiro olhar superficial, de não aceitar a lógica da cruz; não aceite que Deus nos salva deixando que se desencadeie sobre Ele o mal do mundo. Não aceitar, exceto em palavras, o Deus fraco e crucificado, para em seguida sonhar com um deus forte e triunfante. É uma grande tentação. Quantas vezes aspiramos a um cristianismo de vencedores, a um cristianismo triunfalista, que tem relevância e importância, que recebe glória e honra. Mas um cristianismo sem cruz é mundano e torna-se estéril.

São João, por outro lado, viu na cruz a obra de Deus. Ele reconheceu a glória de Deus em Cristo crucificado. Ele viu que, apesar das aparências, ele não é um perdedor, mas é Deus que se oferece voluntariamente para cada homem. Por que ele fez isso? Ele poderia ter poupado sua vida, poderia ter mantido distância de nossa história mais miserável e crua. Em vez disso, ele queria entrar nela, mergulhar nela. Para isso escolheu o caminho mais difícil: a cruz. Porque não deve haver ninguém na Terra tão desesperado que não possa encontrá-lo, mesmo ali, na angústia, no escuro, no abandono, no escândalo de sua própria miséria e erros. Bem ali, onde se pensa que Deus não pode existir, Deus veio. Para salvar quem está desesperado, Ele quis experimentar o desespero, para fazer seu o nosso sofrimento mais amargo, Ele gritou na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” (Mt 27,46; Sl 22,1). Um grito que salva. Salva, porque Deus fez seu até o nosso abandono. E nós, agora, com Ele, não estamos mais sozinhos, nunca.”

Tradução livre.

Obra: Divina Liturgia Bizantina di San Giovani Crisostomo Presieduta dal Santo Padre. 12-15 SETTEMBRE 2021, publicação online do Vaticano, em italiano. De Papa Francesco, Franciscus (2013), Jorge Mario Bergoglio (Argentina/Buenos Aires, 1936).

Divina Liturgia Bizantina di San Giovani Crisostomo é uma linda mensagem do papa Francesco, proferida em setembro do ano passado, na ocasião de sua visita a Budapeste. Tradução é pessoal e tem pequenas diferenças da edição em português [13], disponibilizada pelo Vaticano. Se há católicos que não gostam dos posicionamentos políticos do Papa Francesco, prefiro vê-lo como um pastor de enorme envergadura para liderar espiritualmente os católicos romanos; ele é carismático (pude atestar isso em duas ocasiões, in loco) com uma teologia moderna, que faz uso de uma linguagem leve, acessível, sem ser rasa, enquanto fácil de ser lida e que reflete a sua ética do diálogo em diversas linhas de pensamento. Se o papa João Paulo II foi três em um, pastor, teólogo e político (aqui no sentido de chefe do Estado do Vaticano capaz de lidar melhor com as cobras criadas do mundo político), e se o papa emérito Bento XVI, o alemão Joseph Aloisius Ratzinger (1927), é um teólogo de mão cheia (um dos melhores da atualidade), Papa Francesco é o típico pastor de igreja que eu admiro muito, pois demonstra saber cuidar muito bem das ovelhas, além de teólogo, à mon avis, muito interessante pois vem promovendo contribuições importantes no pensamento cristão, mas enquanto político, tem deixado muito a desejar porque não foi preparado para lidar com a geopolítica e, talvez por isso, tenha tantas dificuldades de exercer o diálogo com vertentes ideológicas além dos populistas de esquerda, assim como andam muito lentamente suas articulações com a Igreja Ortodoxa na Rússia (que apoia Putin). Quanto ao trecho, poderia ser lido como sermão em igrejas protestantes. Se fosse assinado por um pastor batista, metodista, episcopal anglicano, presbiteriano, da Assembleia de Deus, entre outras confissões, seria pregado sem qualquer divergência teológica, dada a consistência com a poderosa Mensagem da Cruz, que autentica a fé cristã, e não o cristianismo que se baseia no materialismo da teologia da prosperidade, que faz do relacionamento com Deus um negócio, quando não contaminado por ideias marxistas que são totalmente antagônicas à mensagem da caridade evangélica de Cristo.

13. DIVINA LITURGIA BIZANTINA DE SÃO JOÃO CRISÓSTOMO PRESIDIDA PELO SANTO PADRE

14/04/2022 23h14

Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Padre António Vieira / A. J. Nunes J.or 1868. – 1 pintura : óleo sobre tela, colo

133x105cm, dimensão com moldura: 146×118 cm

(Colecção de Pintura da BNP)

Padre António Vieira

“Se lançarmos os olhos portado ao mundo, acharemos que todo, ou quase todo, é habitado de gente cega. O gentio cego, o judeu cego, o herege cego, e o católico, que não deveria ser, também cego. Mas de todos estes cegos, quais vos parece que são os mais cegos? Não há dúvida que nós, os católicos. Porque os outros são cegos com olhos fechados, nós somos cegos com os olhos abertos. Que o gentio corra sem freio após os apetites da carne, que o gentio siga as leis depravadas da natureza corrupta, cegueira é, mas cegueira de olhos fechados; não lhe abriu a fé os olhos. Porém, o cristão, que tem fé, que conhece que há Deus, que há céu, que há inferno, que há eternidade, e que viva como gentio, é cegueira de olhos abertos, e por isso mais cego que o mesmo gentio.”

Obra: Sermão da Quinta-Feira da Quaresma na Misericórdia de Lisboa, ano de 1669. Vidit hominem caecum. Em Os Sermões do Padre António Vieira, edição da Montecristo Edittora, 2012, no Kindle. De Padre António Vieira (Portugal/Lisboa, 1608-1697).

Há muitos benefícios a serem experimentados quando se lê os sermões do padre António Vieira, produzidos no século 17. Vai ajudar a quem deseja melhorar o português, tanto na fala como na escrita, pelo contato com uma literatura clássica de excelência; garanto que será melhor que fazer curso de oratória. Segundo, vai contribuir para enriquecer conhecimentos em filosofia com certos traços de análise psicológica, antes mesmo da psicologia ser reconhecida como ciência. E, principalmente, nas lições de âmago espiritual, independente da confissão religiosa, pois António Vieira foi um grande pastor de almas, um padre pregador extraordinário; ícone cristão que passou pelo Brasil. Quanto ao trecho, António Vieira fez uma análise dos milagres de Jesus na cura da cegueira para chegar a uma reflexão que parece ter sido feita para os dias atuais; cegos de olhos fechados e cegos de olhos abertos é uma interessante ilustração neste sermão dado em Lisboa na Quinta-Feira da Quaresma em 1669. Cegueira de olhos fechados, o gentio que corre “sem freio após os apetites da carne”, que segue “as leis depravadas da natureza corrupta”. E o que se diz seguidor de Cristo e vive assim? Estava vendo trechos de uma missa ortodoxa com o Vladimir Putin rezando, enquanto autoriza o bombardeamento por mísseis que matam os ucranianos. Seguir a Cristo requer renúncia a muitas coisas amadas neste mundo: a libertinagem, as vulgaridades, o faltar com a verdade, a desonra nos compromissos, quem sabe em casos de indivíduos bem religiosos que gostam de ostentar na sociedade com “conquistas materiais” às custas do não cumprimento financeiro com quem lhe prestou serviços, coisa por demais comum nesses dias que podem ser classificadas como “apetites da carne” de uma “natureza corrupta”, além do apreço de coisas obscenas. O que me fascina no teor da homilia é sua altamente proposta reflexiva, de teor comunitário; típico de mensagens onde o pregador usa a primeira pessoal do plural (“nós”) e, no contexto, direcionado aos “católicos”, o que fora bem aplicado em uma semana onde a confissão se torna evidente no ambiente de fé do catolicismo romano, e no protestante também, se bem que em contextos teológicos distintos, mas na essência, apontando ao que Jesus Cristo significa pelo que fez por todos os pecadores no Gólgota, o que abre espaço para uma profunda auto crítica, questão altamente relevante, trabalhada com frequência na teologia do padre António Vieira, refletindo o que pode ser apreciado no Sermão da Montanha, nas cartas de São Paulo, passando pela teologia da patrística tendo Santo Agostinho de Hipona como maior referência, nas argumentações escolásticas por São Tomás de Aquino, (1225-1274), pensei também nas teses de Martinho Lutero (1483-1546), o reformador que, não por coincidência, foi um monge agostiniano (e daí se deriva seu criticismo ousado para a época), assim como me lembrei da filosofia cristã existencial de Søren Kierkegaard (1813-1855) quanto ao sofrimento e à esperança cristã, bem como das pregações do doutor Martin Luther King Jr. (1929-1968) e nos sermões de São João Paulo II (1920-2005), entre tantas produções cristãs onde o convite à introspecção pode ser visto em evidência.

13/04/2022 22h52

Imagem: IHU

Pastor Dietrich Bonhoeffer

“Continua sendo uma experiência de valor incomparável termos aprendido a olhar os grandes eventos da história do mundo a partir de baixo, da perspectiva dos excluídos, dos que estão sob suspeita, dos maltratados, dos destituídos de poder, dos oprimidos e dos escarnecidos, em suma, dos sofredores.”

Obra: Resistência e Submissão. Edição da Sinodal, 2018, São Leopoldo, formato físico. De Dietrich Bonhoeffer (Polônia/(Wrocław, 1906-1945)

Leitura importantíssima que marcou minha formação teológica e moral. Herói moderno da fé. Guerreiro da liberdade. O pastor Dietrich Bonhoeffer entregou sua vida como um agente de contra inteligência para combater a tirania do nazismo dentro de seu propósito que, à semelhança do que ocorreria duas décadas adiante, com o pastor Martin Luther King Jr, pagaria também com a própria vida pela defesa da liberdade, em um contexto bem diferente. Se no ambiente do doutor Luther King Jr a não-violência foi uma tática dentro de um contexto onde havia relativa liberdade de expressão, e nesse aspecto o ministro batista deu grandes discursos e articulou movimentos pacíficos que entraram para a história, no mundo nazista, onde estava o pastor luterano Bonhoeffer, o cenário exigia outro caminho, a luta contra um assassino em massa, Hitler, e seus asseclas nazistas; Dietrich Bonhoeffer é um caso de legítima defesa pois restava a absoluta censura, a mordaça implacável, a proibição de leitura de seus livros, a prisão e a morte, destino a todo aquele que contestava o regime. E assim ambos, cada qual dentro de seu devido contexto, se tornaram duas grandes referências de martírio cristão no âmbito do protestantismo do século XX. Pastor Dietrich Bonhoeffer conspirou para matar Hitler porque às vezes, é extremamente necessário usar a força física para defender inocentes.

Resistência e Submissão é um registro dos últimos anos de vida dele na prisão, onde passou a dar assistência pastoral aos demais prisioneiros políticos. Ele não queria saber de ficar apenas indignado com as atrocidades de Hitler e asseclas e então foi ao campo de ação para conspirar contra o regime nazista na Alemanha; primeiro foi acusado de cooperar com a fuga de 14 judeus para a Suíça (Operação 7). Em seguida se tornou alvo prioritário de execução pela cúpula nazista, na ocorrência do fracasso da Operação Valquíria, golpe de estado em modo “cortina de fumaça”, atrelado à tentativa de assassinato de Hitler em 20 de julho de 1944 pelo coronel Stauffenberg, uma das tramas onde o teólogo da Igreja Confessante teria conhecimento. Contribuiu em outras conspirações para assassinar Hitler e acabou executado no dia 9 de abril de 1945 no campo de concentração de Flossenbürg.

12/04/2022 23h33

Imagem: Vaticano

São João Paulo II

“Prosseguindo no tempo, a mesma Tradição da Igreja sempre ensinou unanimemente o valor absoluto e permanente do mandamento “Não matarás”. Sabe-se que, nos primeiros séculos, o assassinato foi colocado entre os três pecados mais graves – juntamente com a apostasia e o adultério – e uma penitência pública particularmente onerosa e longa era exigida antes que o assassino arrependido fosse perdoado e readmitido na comunhão eclesial.

Isso não deveria surpreender: matar o ser humano, no qual está presente a imagem de Deus, é um pecado de particular gravidade. Só Deus é o mestre da vida! No entanto, diante dos muitos e muitas vezes dramáticos casos que a vida individual e social apresenta, a reflexão dos crentes sempre procurou alcançar uma compreensão mais completa e profunda do que o mandamento de Deus proíbe e prescreve. Existem, de fato, situações em que os valores propostos pela Lei de Deus aparecem na forma de um verdadeiro paradoxo. É o caso, por exemplo, da legítima defesa, em que o direito de proteger a própria vida e o dever de não prejudicar a do outro são, na prática, difíceis de combinar. Sem dúvida, o valor intrínseco da vida e o dever de levar amor a si mesmo não menos do que aos outros estabelecem um verdadeiro direito à autodefesa. O mesmo exigente preceito de amor ao próximo, enunciado no Antigo Testamento e confirmado por Jesus, pressupõe o amor a si mesmo como termo de comparação: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mc 12,31). Portanto, ninguém pode renunciar ao direito de defender-se por falta de amor à vida ou a si mesmo, mas somente em virtude de um amor heróico, que aprofunda e transfigura o próprio amor-próprio, segundo o espírito das bem-aventuranças evangélicas (cf. Mt 5, 38-48) na doação radical de que o próprio Senhor Jesus é um exemplo sublime.

Por outro lado, “a legítima defesa pode ser não só um direito, mas um grave dever, para quem é responsável pela vida de outrem, pelo bem comum da família ou da comunidade civil” [11]. Acontece, infelizmente, que a necessidade de colocar o agressor em condições de não molestar implique, às vezes, a sua eliminação.. Nessa hipótese, o desfecho fatal deve ser atribuído ao próprio agressor que a ela se expôs com sua ação, ainda que não tenha sido moralmente responsável pela falta do uso da razão. [12]

Tradução livre.

Obra: Evangelium Vitae. Encíclica. Publicação do Vaticano, em italiano. Libreria Editrice Vaticana, formato digital. De Karol Józef Wojtyła (Polônia/Wadowice, 1920-2005), S. Ioannes Paulus PP. II (1978-2005), São João Paulo II.

São João Paulo II abre nesta parte da encíclica o complexo e diversificado leque de questões sobre homicídio e legítima defesa. Parte das Escrituras, integrantes das tradições da Igreja, “detalhe” ignorado ou subestimado por protestantes. Quanto ao trecho, no tocante à legítima defesa, cita o Catecismo da Igreja Católica número 2265 e em seguida faz uso de um argumento baseado em São Tomás de Aquino. Curioso é o caso de indivíduos que se dizem “católicos” e se deixam levar por um outro “catecismo”, o progressista canhoto ideológico que incrimina a legítima defesa e protege quem viola a vida e a propriedade privada. Não por acaso, São João Paulo II foi o papa que se destacou durante a Guerra Fria por articular politicamente para derrotar o comunismo; neste aspecto, é preciso considerar suas origens, pois sentiu na pele como era viver nesse regime. Foi teólogo e pastor, catedrático e carismático, enquadrou uma ala que hoje se sente mais à vontade com papa Francesco. Então, penso, como o papa de minha infância e juventude trataria as questões atuais considerando as características conservadoras refletidas em seus textos? Como seria em sua visão de mundo no tabuleiro do politicamente correto se ficar em cima do muro nunca foi opção? Uma coisa me parece evidente: seria implacável com os que tem Marx como Cristo.

11.Catechismo della Chiesa Cattolica, n. 2265

12. Cf. S. ‘I’omás de Aquino, Summa Theologiae, II-II, q. 6-1, a. 7; S. Alfonso de Ligório, Theologia moralis, I. III, tr. 4, C. 1 dub. 3.

11/04/2022 22h40

Imagem: Perfil oficial no Twitter

Nassim Nicholas Taleb

“Se você tem as recompensas, você também deve assumir parte do risco, não deixar que outros paguem o preço de seus erros. Se você inflige riscos aos outros, e eles são danosos, você precisa de algum preço por isso.”

Tradução livre.

Obra: Skin in the Game. Book 1: Introduction. Edição da Random House, em inglês, New York, 2018, no Kindle. De Nassim Nicholas Taleb (Líbano/Greater Amyoun, 1960).

“Skin in the Game” foi como passei a chamar um sujeito que acorda cedo e a primeira coisa que lhe vem à mente é agradecer porque o “pulso ainda pulsa”. “Skin in the Game” sabe que terá que “matar mais um Leão” no dia e vai à luta enquanto as recompensas se apresentam; sem titubear, assume os riscos. Neste mundo há quem prefira tratar as coisas de um modo diferente. O “consultor” empresarial que só sabe dar conselhos e não vai pagar a conta se estiver errado não quer ouvir falar de “Skin in the Game”. O palestrante, “especialista” ou “empreendedor de palco” que fala sobre algo, mas se esconde na hora de colocar a mão na massa, e não vive as coisas que fala, também detesta “Skin in the Game”. O assessor de investimentos com seus relatórios e recomendações não faz “Skin in the Game” por subterfúgio. E o político então… Quem vive de gastar o dinheiro dos outros e quando erra socializa com os pagadores de impostos o preço dos erros (algumas vezes falcatruas) que cometeu, só tem uma coisa a fazer com o “Skin in the Game”: ridicularizá-lo. “Skin in the Game” não vai fazer sucesso em redes sociais, não vai ser uma celebridade que viraliza publicando bobagens. “Skin in the Game” costuma não aparecer nos palcos para receber aplausos e pode ser mais facilmente encontrado em algum negócio tentando fechar contas, sentindo um frio na barriga e o peso das responsabilidades que carrega nas costas surradas e no juízo que arde. “Skin in the Game” toma decisões que lhe cortam na carne ou no saldo bancário. Muitas vezes o vi chorar no final de um dia difícil, senão com lágrimas à vista, pelo semblante. Quando erra, costuma se espatifar. Quando acerta, celebra a recompensa, mas sempre tem um risco à espreita. “Skin in the Game” é o Rocky Balboa no último assalto, surrado e dizendo ao Apolo, “vem bater mais, vem!”. “Skin in the Game” é o empresário que arrisca o patrimônio, que não usa laranjas e acredita no que empreende expondo a si mesmo; também é o chefe de família que se anula em muitas coisas para preservar os filhos, o conjugue e todos os entes queridos. “Skin in the Game” não tem vergonha de tentar um caminho diferente sabendo que pode errar e passar vergonha; ele/ela não vai fugir das consequências de seus erros. Ele é o bravo que chora e se arrepia quando percebe que está à beira do abismo; ele vive entre a razão e a intuição, geme todos os dias em dores enquanto experimenta novos limites. Quanto aos covardes, tolos, oportunistas, marqueteiros, lobistas, “amigos do rei”, preguiçosos, invejosos, à turma do mi mi mi, aos “filhinhos de papai”, dissimulados e acomodados, “Skin in the Game” é a única coisa que tenho a lhes dizer.

10/04/2022 10h06

Imagem: DW

Nietzsche

“Falou-se do espírito alemão e foi afirmado que está se tornando mais grosseiro e mais plano. E no fundo, há uma outra coisa que espanta: como a seriedade alemã, a profundidade alemã, a paixão alemã, pelas coisas intelectuais vão diminuindo dia a dia. Transformou-se não só a inteligência, mas também o phátos [10]. De vez em quando me aproximo das universidades alemãs: que atmosfera respiram esses sábios, que espiritualidade vazia, satisfeita, entibiada! […] Nossas universidades são, para pesar próprio, verdadeiras estufas que pioram o espírito nos seus instintos. Todas a Europa já principia a percebê-los,; a alta política não engana ninguém. A Alemanha vai sendo considerada o povo mais vulgar da Europa. […]”

Obra: Crepúsculo dos Ídolos. O que os Alemães Estão na Iminência de Perder. Nova Fronteira, 2017, Rio de Janeiro. Tradução de Edson Bini e Márcio Pugliesi. De Friedrich Wilhelm Nietzsche (Reino da Prússia/Röcken, 1844-1900).

Nietzsche assina o prefácio desta obra em 30 de setembro de 1888. Primeira leitura em outra edição, no tempo do seminário (2004), período em que conheci diversas obras do filósofo que me foi apresentado, não raramente, como o mais mais importante do século XIX.

Não poupa a cultura alemã, não raramente associada a uma ideia pré-concebida de povo “culto”, por ele vista em “decadência”. O espírito alemão estaria, já nessa época, “se tornando mais grosseiro e mais plano”. Se atualmente alguns parecem assustados com a decadência alemã, Nietzsche viu isso nos anos 1880, pelo menos. A época de Nietzsche foi de efervescência de ideias progressistas ainda tomando proveito da ingênua visão da ciência como forma única de explicar todos os dilemas da humanidade (cientificismo muito em moda hoje) e, claro, sendo ferramenta política de manipulação das massas. O socialismo marxista tinha aflorado e vivia seus tempos de modismo enquanto o liberalismo econômico entrava em decadência, o laissez-faire começava a ser sentenciado à masmorra intelectual.

Chamou-me a atenção também o antagonismo destacado por Nietzsche entre a ideia do política em evidência, relacionada ao Estado, e à cultura. Esse detalhe é importante quando associam, bisonhamente, o filósofo ao nazismo, ideologia que começaria a assombrar a Europa 20 anos após a sua morte, forjado por um socialista patológico, frustrado com as falhas nas teorias de Marx após suas experiências de soldado derrotado na Primeira Guerra Mundial. Se Nietzsche tivesse vivido até o final dos anos 1920, teria sido um marrento octogenário e, certamente, teria visto a ascensão de Hitler como a mais evidente situação da decadência alemã.

10. πάθος, “sofrimento”, “afeto”. mas em Nietzsche assume um sentido contrário á metafísica.

09/04/2022 22h45

Imagem: Câmara Recife

José Nivaldo Júnior

“Uma questão que se coloca é de como Hitler e seus seguidores conseguiram enganar por tanto tempo um povo culto, com um elevado nível de civilização, como o alemão. Na verdade, o povo alemão não foi ludibriado pelos nazistas e sua máquina de propaganda, mesmo porque nanhum aparato de comunicação consegue enganar um povo. O que se consegue é canalizar, exacerbar, manipular sentimentos. E isso os nazistas souberam fazer muito bem.”

Obra: Maquiavel – o Poder, História e Marketing. Capítulo 8 – O mito da propaganda nazista. Edição da Martin Claret, 2002, São Paulo., formato físico. De José Nivaldo Barbosa de Souza Júnior (Brasil/Pernambuco/Recife, 1951). Nascido em Recife, criado em Surubim.

José Nivaldo Júnior lecionava História das Ideias Políticas na UFPE quando lançou esta obra em 1991 (li em 2003), bem conhecida no meio do jornalismo especializado em política, que ficou no ano 2000 em destaque por várias semanas entre as mais procuradas nos rankings de diversas publicações de circulação nacional [5]. Há um interessante prefácio nesta edição, assinado pelo professor Cristovam Buarque sobre Os arcaicos maquiavéis de hoje. Tornando ao autor da obra, também é publicitário especialista em marketing político tendo no currículo trabalhos para partidos de esquerda. Em 1973 foi sequestrado por agentes de segurança da ditadura militar. Em 2015 entrou para a Academia Pernambucana de Letras. Quanto ao trecho, está na essência do marketing político a canalização de sentimentos no âmago coletivo. Em paralelo à Alemanha nazista, na Itália de Mussolini, segundo o historiador alemão Hans Woller [6], 2/3 dos italianos eram vinculados ao Partito Nazionale Fascista (PNF) após abraçarem as ideias de Mussolini que soube adaptar sua formação no socialismo marxista para um nacionalismo em meio a uma profunda recessão econômica e um desejo coletivo de intervenção estatal pela ideia de “terceira via”, em um ambiente regado a um desprezo por ideias econômicas liberais e uma certa rejeição ao extremismo socialista marxista diante da questão da propriedade privada do meios de produção. Voltando ao interessante livro de José Nivaldo Júnior, um projeto político de poder, para ser bem sucedido, deve saber identificar certos desejos predominantes no eleitorado e assim explorar sentimentos mais impulsivos para capitalização política. Considerando a essência, penso no Brasil dos últimos 20 anos quando o PT chegou ao poder vencendo as majoritárias de 2002 a explorar o “fora FHC.” depois do difícil e impopular segundo mandato tucano (1999-2002) e assim conseguiu votos além do curral. Uma guinada se deu com Bolsonaro em 2018 explorando o antipetismo com os escândalos do Petrolão e talvez Lula retorne com o antibolsonarismo crescente. Quanto ao povo alemão ser “culto”, é preciso considerar certa ideia de obediência ao Estado pela falta de vontade revolucionária por influência do pensamento de Lutero, algo tratado por Paul Tillich [7], o que foi canalizado pelos nazistas a exacerbar a figura do “Führer. Também me lembrei de Nietzsche em 1888 a falar sobre a diminuição da paixão alemã pelas coisas intelectuais [8]. Então, pode ser simples demais a premissa de um povo “culto” manipulado e aqui penso na análise de Hayek [9], a discorrer sobre a unidade de um movimento político (e isso foi tratado no contexto do nazismo) pela conquista de indivíduos com entendimento raso, pois são mais fáceis de serem conquistados pelo pensamento uniforme que assim é canalizado para interesses de poder, enquanto eleitores intelectualmente mais sofisticados tendem a pulverizar arranjos ideológicos e comprometer a unidade de um movimento liderado sob a intenção de se popularizar, e isso ocorre justamente pelo espírito mais crítico que dissemina divergências.

5. Ver PE A-Z

6. Il primo fascista.

7. História do pensamento cristão.

8. Crepúsculo dos ídolos: O que os alemães estão na iminência da perder (3).

9. O Caminho da Servidão, Capítulo X.

08/04/2022 23h14

Imagem: Bráulio Bessa site oficial

Bráulio Bessa

“Quando a vida bater forte
e sua alma sangrar,
quando esse mundo pesado
lhe ferir, lhe esmagar…
É hora do recomeço.
Recomece a LUTAR.

Quando tudo for escuro
e nada iluminar,
quando tudo for incerto
e você só duvidar…
É hora do recomeço.
Recomece a ACREDITAR.

Quando a estrada for longa
e seu corpo fraquejar,
quando não houver caminho
nem um lugar pra chegar…
É hora do recomeço.
Recomece a CAMINHAR.

Quando o mal for evidente
e o amor se ocultar,
quando o peito for vazio,
quando o abraço faltar…
É hora do recomeço.
Recomece a AMAR.

Quando você cair
e ninguém lhe aparar,
quando a força do que é ruim
conseguir lhe derrubar…
É hora do recomeço.
Recomece a LEVANTAR.”

Obra: Recomece (trecho). Poesia que transforma. Edição da Sextante, Rio de Janeiro, 2018, no Kindle. De Bráulio Bessa Uchoa (Brasil/Ceará/Alto Santo, 1985).

Da série Maravilhas do Ceará… Natural que ao revisitar uma obra de Rachel de Queiroz, no dia seguinte esteja a reviver este que deve ser o poema mais conhecido de Bráulio Bessa. O poeta cearense é o que posso definir como um iluminado na arte de manejar a língua portuguesa em poesia moderna a tocar profundamente o coração de quem se permite ao apreço. Então, voltando ao meu jeito de ser conservador, com essa mania de olhar o passado para tentar entender, pela cultura da língua, de onde vim e para onde vou, enquanto aprecio as coisas boas do presente e me encanto com o passado, achei oportuno registrar o poeta Bráulio Bessa logo após a Rachel de Queiroz, primeiro para homenagear a riquíssima literatura cearense e depois porque imaginei, nesta agradável noite de sexta, um belíssimo encontro entre essas duas gerações da nata da literatura em língua portuguesa. Conta o autor, no livro em destaque, que Recomece é um poema de julho de 2017 produzido por solicitação de pauta do programa Encontro (Fátima Bernardes/Rede Globo) que relembrou a história da menina Laura Beatriz (convidada do programa) que, em 2010 perdeu vários familiares em um deslizamento do morro do Bumba em Niterói. Impressionou o poeta a força da menina diante da tragédia em uma reportagem da época (entrevistada pela própria Fátima Bernardes), quando tinha oito anos de idade. Bráulio Bessa conseguiu traduzir neste poema o que penso e sinto quando compreendo a significado do recomeço quando reflito a minha relação entre fé e razão. Enquanto a razão me sinaliza um lado objetivo de minha formação ao avaliar fatos e números, a fé trabalha o outro lado, a renovar minhas esperanças por uma outra visão, mais humana, sobre um sentido mais profundo das lutas que preciso travar em minha caminhada. Recomece é como um falar divino lá no fundo da alma enquanto sinto o cansaço que me entristece: Não desista, continue!

07/04/2022 23h06

Imagem: ABL

Rachel de Queiroz

“— Vocemecê pode ir embora com os seus soldados e o seu papel. Esse delegado pode abusar com mulher da vida e cachaceiro, na Vargem da Cruz; mas comigo é diferente. Aqui eu estou na minha casa. Este sítio é meu, foi o que meu pai sempre me disse. Se os ladrões dos meus primos querem tomar o que é meu, que venham, com delegado e tudo. Eu enfrento. Da minha casa só saio à força e amarrada.”

Obra: Memorial de Maria Moura. Editora José Olympio, 2009, Rio de Janeiro., no Kindle. De Rachel de Queiroz (Brasil/Ceará/Fortaleza, 1910-2003).

A cearense Rachel de Queiroz está entre as mais importantes escritoras do século XX que a literatura brasileira produziu. Primeira mulher a integrar a Academia Brasileira de Letras (1977). Prestes a completar 20 anos, publicou sua primeira obra: O Quinze (1930). memorial de Maria Moura tem o verismo realista que marca os trabalhos da escritora combinado com o discurso memorialístico (narrador-personagem) em um ambiente rural, sertanejo, à sombra de uma mentalidade de feudo em um sistema de poder que se define no latifúndio. Maria Moura aos 17 anos encontra a mãe morta, enforcada, sofre assédio sexual do padrasto que também morre e então passa a ser perseguida por primos que cobiçam a herança; eis o cenário inicial onde a personagem se desenvolve em uma rica e complexa dinâmica de interesses até se estabelecer em um banditismo que a retrata na busca de ascensão dentro de uma estrutura de poder patriarcal em que tenta se impor. Maria Moura é mais uma mulher de forte personalidade retratada em um romance brasileiro de excelência. Obra prima, recebeu uma adaptação em minissérie da TV Globo (1994).

06/04/2022 22h38

Imagem: Richard Preston site

Richard Preston

Quando um vírus está tentando, por assim dizer, colidir com a espécie humana, o sinal de alerta pode ser um respingo de quebras em diferentes momentos e lugares. São microinterrupções. O que aconteceu no Hospital de Nairóbi foi uma emergência isolada, uma microinterrupção de um vírus da floresta tropical com potencial desconhecido para iniciar uma cadeia explosiva de transmissão letal na raça humana.”

Tradução livre.

Obra: The Hot Zone: The Terrifying True Story of the Origins of the Ebola Virus. Edição Anchor, em inglês, 2012, no Kindle. De Richard Preston (EUA/Massachusetts/Cambridge, 1954).

Obra importantíssima para conhecimento da história do Ebola vírus e como um processo de transmissão em cadeia é complexo. Em 1989, nas instalações do laboratório de pesquisa de Reston, no estado da Virginia, EUA, ocorreu um surto de um filovirus (do latim filiforme, significando “compridos e finos”) descoberto até então, a partir de casos do vírus “Marbug”, que deu início à família de vírus, descoberto na cidade que deu o seu nome, na Alemanha, em 1967. Um novo filovirus foi descoberto em 1976, primeiramente no Sudão, e logo depois próximo ao rio no Zaire chamado “Ebola”, provocando uma doença parecida com a do Marbug, com sintomas devastadores em comparação ao que faz o atual coronavírus e suas variantes que geram a covid-19. O Ebola vírus provoca diarreia, vômitos, sangramentos nos olhos, sintoma de onde vem casos onde se “chora sangue”, atingindo mais sangramentos no nariz, na gengiva, nos ouvidos, incluindo inflamação em áreas íntimas, com alguns casos de mudança da coloração da íris que ficam esverdeadas. O estado avançado da infecção é identificado com o surgimento de manchas e bolhas de sangue na pele, espalhadas em várias partes do corpo, que vai definhando e entrando em estado de choque pela hemorragia generalizada. Foi identificado que tem alta capacidade de contágio com evidências de se propagar pelo ar. Uma das partes mais dramáticas no livro está no registro de forças militares do Zaire que decidiram tocar fogo em aldeias no surto de 1976, incluindo corpos espalhados por vias, dizimando totalmente alguns vilarejos, na tentativa de evitar a propagação do vírus da alta letalidade. Um outro momento dramático se deu em 1989 na decisão de se realizar uma operação militar em Reston para sacrificar cinco centenas de macacos e acabar com as instalações que ficavam a cerca de 10 km da sede do governo dos EUA. Em um dos momentos que me chamou a atenção foi quando a doutora veterinária Nancy Jaax, coronel do exercito dos EUA, que se destaca na obra pela coragem e determinação no trato com o vírus, fecha os olhos de um dos macacos que receberam a injeção letal e deixa transparecer seus sentimentos de amor e pesar pelo que estava sendo feito com os animais em meio a uma ameaça do surto ganhar o território americano. O Ebola, assim como o HIV (AIDS) são vírus onde a natureza “devolve” ao agressor humano determinados efeitos de sua imprudência diante do meio ambiente, pensando que pode manipular o mundo natural sem grandes e graves consequências. O livro aborda o problema do hábito de se consumir alimentos com base em morcegos,  raposas voadoras, uma tradição entre nativos no oeste africano, que acaba sendo uma forma de desenvolvimento de mutações de vírus para adaptações em humanos que provocam variantes. Os vírus estão nas florestas e todo ser humano carece de ter respeito profundo ao entrar em contato com um ambiente em que perdeu a adaptação dos antepassados.

05/04/2022 23h44

Imagem: National Review Institute

Kevin D. Williamson

“O que distingue um Estado de bem-estar social ordinário de um sistema que pode e deve ser identificado como socialista? Além da provisão pública de bens não públicos, um segundo fator – planejamento econômico central – será crucial para identificar e compreender as diferenças entre o socialismo real e a abundância de políticas de bem-estar social tipicamente encontradas nas democracias liberais e formas correlatas de governo no Ocidente.”

Obra: O Livro Politicamente Incorreto da Esquerda e do Socialismo. Edição da Nova Fronteira, 2013, Rio de Janeiro. Tradução de Roberto Fernando Muggiati. De Kevin Daniel Williamson (EUA/Texas/Amarillo, 1972).

O título original desta obra é The politically incorrect guide to socialism. A adaptação para o português forçou um pouco para o acéfalo binarismo brasileiro porque socialismo é um fenômeno político ambidestro.

Socialismo, política elitista de aversão a riscos, é a síntese que mais considero na obra. O autor, no trecho, discorre sobre uma diferenciação comum e apreciada entre liberais (socialistas com medo de sair do armário) quando chamados de “socialistas” por libertários austríacos. Mesmo a considerar a distinção entre socialismo e o que seria “Estado de bem-estar social”, Williamson não poupa críticas às políticas públicas dos Estados americano, prussiano, sueco, britânico, além daqueles que liberais adoram achincalhar em seus papers e textões: o soviético, o fascista, o nazista, o norte-coreano, o venezuelano, o cubano… Nem o pacífico Gandhi escapa. Apresentado como filósofo de uma autossuficiência hostil ao desenvolvimento tecnológico, segundo o autor, o líder espiritual indiano contribuiu para moldar uma Índia mergulhada na pobreza. O “Obamacare” e o sistema de educação americano também não são poupados, juntamente com o sistema de saúde inglês.

Há de se pensar em ambientalistas, quando o autor lembra dos desastres do mar de Aral e Chernobyl, entre outras constatações politicamente incorretas para demonstrar que “o socialismo é sujo” (cap. 8) enquanto poupado pela indignação seletiva.

O livro reforça uma visão que tenho sobre o socialismo, entre tantas coisas, um negócio altamente lucrativo para quem sabe explorar o imaginário popular sobre as tutelas do estado democrático de direito e não quer lidar com a livre competição e as imprevisibilidades naturais do capitalismo.

04/04/2022 22h45

Imagem: El Pais

Gabriel García Márquez

“O segredo de uma boa velhice nada mais é do que um pacto honesto com a solidão.”

Obra: Cem anos de solidão. Edição da Record, São Paulo, 2019, no Kindle. De Gabriel José García Márquez (Colômbia/ Magdalena/Aracataca, 1927-2014).

A última coisa que me interessa neste gênio da literatura é a sua visão sobre política. De forma alguma isso atrapalha minha admiração pelo trabalho literário de Gabriel Garcia Márquez, pois é salutar apreciar um artista enquanto artista. E Gabriel Garcia Márquez foi um artista dos romances, um mestre no manejo das palavras; uma das maiores referências que tenho no meu propósito de seguir adiante na ideia de concluir e publicar meu primeiro romance.

Foi em 1995 meu primeiro contato com esta obra e fiquei perplexo com o estilo do escritor; Gabriel Garcia Márquez conta histórias com uma riqueza pulsante que interage com a minha imaginação em detalhes que me estimularam a enxergar o romance com aspectos criativos inovadores, diferenciados, que contribuíram para o Nobel de Literatura de 1982, o que passou a ser chamado de “realismo mágico”, onde o surreal constitui uma construção literária em linguagem universal e, à mon avis, entendo ser um dos fatores que tornam esta obra tão cativante.

O autor encontrou um jeito de conectar os leitores com traços de subjetividade (existenciais) a sentimentos de lutas, interesses, conflitos e a solidão, o tema maior, que em muitos momentos gravita em “causas perdidas”, assim como são as lutas na América Latina que nunca amadurece e parece um adolescente ao tentar politizar a obra que também me serve de referência sobre a maturidade necessária que se deve ter para publicar um romance, no sentido de ter repertório que possa encontrar o seu espaço no coração dos leitores.

Quanto ao trecho, foi o que mais me marcou desde o primeiro contato e penso hoje ser uma síntese do realismo sobre as personagens que tentam lidar com a derradeira sensação de isolamento, muitas vezes por formas desesperadas no decorrer da existência ambientada na trajetória familiar (os Buendía) que serve de fio condutor sobre essa experiência tão comum e complexa da vida, seguindo um curso por gerações, onde o autor desenvolve seu estilo inconfundível e profundo de romancista. Penso que a solidão na velhice pode ser inevitável, enquanto não necessariamente se resuma a apenas ser marcada pela melancolia; talvez seja um momento de se buscar serenidade em um caminho ou “pacto” para que a maturidade possa compensar e enriquecer os sentimentos dessa fase da vida, mediante as limitações físicas impostas pela soberania do tempo.

03/04/2022 11h30

Imagem: Chateau de la Brède

Montesquieu

“Um legislador sábio teria procurado restaurar os espíritos por um justo equilíbrio de punições e recompensas; por máximas de filosofia, moral e religião, combinadas com esses caracteres, pela justa aplicação das regras de honra: pelo suplício da vergonha; pelo gozo de uma felicidade constante e da doce tranquilidade […] A atrocidade das leis, portanto, impede a execução. Quando a dor é imensurável, muitas vezes se é obrigado a preferir a impunidade.”

Tradução livre.

Obra: De l’esprit des lois. LIVRE SIXIÈME. CHAPITRE XIII Impuissance des lois japonaises. Edição da TV5MONDE em formato digital. De Charles-Louis de Secondat, Montesquieu (France/La Brède, 1689-1755).

Do Espírito das leis. Primeira leitura da obra foi em português (2003) com releituras em uma edição francesa da TV5 por estímulo ao estudo da língua francesa. O canal de TV francês promove bastante a literatura, tendo inclusive o sinal disponível, por assinatura, no Brasil com um programa muito interessante que passa no final da noite e sempre que posso, confiro: La grande librairie [3].

No trecho selecionado, o barão de La Brède e de Montesquieu analisa a “impotência” das leis japonesas à época (1748) quando a pena de morte era aplicada a “quase todos os crimes” o que denota, na visão do autor, em algo que ” não se trata de corrigir o culpado, mas de vingar o príncipe” (P.160). Argumenta na abertura que “penas excessivas podem corromper o próprio despotismo” (p.160). Montesquieu se notabilizou pela teoria da separação dos poderes que influiu enormemente na civil law [4].

Na essência do problema apresentado por Montesquieu se pode tirar lições da realidade brasileira, que é uma derivação da mentalidade civil law francesa a considerar o rigor peculiar em muitos aspectos das legislações que impedem a execução, a começar pelo manicômio tributário e pelo sistema trabalhista que estimulam a informalidade (traço de impedimento da execução) e a impunidade, servindo para retroalimentar o clientelismo, o lobismo, o capitalismo de lações e a corrupção tanto no aparato do Estado, assim como entre empreendedores.

3. TV5 Monde: página de La Grand LibraIrie

4. Ver The Constitution of Liberty e Law, Legislation and Liberty, de F. A. Hayek.

02/04/2022 19h56

Imagem: Vatican News

São Paulo

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse caridade, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse caridade, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse caridade, nada disso me aproveitaria. A caridade é sofredora, é benigna: a caridade não é invejosa: a caridade não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade nunca falha: mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos; Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado (8). Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face: agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e a caridade, estas três, mas a maior destas é a caridade.”

Obra: Hino ao amor fraterno. Primeira carta à Igreja de Corinto. No Novo Testamento (I Cor 13). Almeida Revisada e Corrigida (1969). De São Paulo (Império Romano/Cilícia/Tarso, atual Turquia, 5-67). A imagem foi resultado de um trabalho de pesquisa com base em Atos de Paulo e Tecla e o ícone encontrado em junho de 2009 nas catacumbas de Santa Tecla (Roma).

O apóstolo São Paulo aponta aos cristãos da igreja de Corinto um conceito de amor como um caminho de excelência, por ἀγάπην, agapēn [1] [2], substantivo feminino acusativo que significa amor fraterno, benevolência com o próximo, afeição, amor de irmão, por isso o uso de “caridade” em muitas edições em português para diferenciar de outros sentidos possíveis para “amor”. A raiz (αγαπη, agape) do termo usado pelo apóstolo também se relaciona com as refeições dos primeiros cristãos; eram momentos fraternos de comunhão. Ter o amor fraterno ou a caridade dentro de si é uma experiência humana superior a, na ausência da caridade, ter “fé ” (πιστις, pisti, no sentido de ter convicção sobre a verdade de algo), conhecimento, ciência, capacidade profética, benevolência com a riqueza material e até mesmo ao martírio (onde muitos cristãos à época foram submetidos e neste aspecto os destinatários tinham esse problema sempre à espreita).

A caridade (ἀγάπη, agape) se dá com a ação paciente (μακροθυμεῖ, makrothymei), no sentido de ter um espírito que não perde o ânimo para fazer o bem ao próximo e não tem segundas intenções; o termo ζηλοῖ (zēloi) com o advérbio de negação (οὐ) indica que o apóstolo quer chamar a atenção para que a caridade não seja confundida com o “arder em zelo” ou ζηλοo (zeloo) que, neste contexto, indica um sentimento de fervor em ciúme. A caridade não se gaba (περπερεύεται, perpereuetai, no sentido de não se exibir), nem age pelos próprios interesses, não é um negócio para se obter vantagem (ζητεω, zeteo, exigir algo de alguém), e neste ponto a caridade entre cristãos se diferencia da “caridade” para fins de auto promoção. Quem faz “caridade” para se exibir não está dentro do conceito apresentado pelo apóstolo que visivelmente faz uma diferenciação com a benevolência ou os atos “caridosos” (demagógicos) politicamente explorados, algo comum no contexto das estruturas políticas de poder do Império Romano onde a benevolência era (e é até hoje) uma recorrente estratégia de promoção política. A caridade não fica contente, não se regozija (χαίρει, chairei) com a injustiça (ἀδικίᾳ, adikia); o que alegra a caridade é a verdade (ἀληθείᾳ, alētheia). A maturidade está para a caridade (verso 11) a indicar o que é “perfeito” (τέλειον, teleion, que vem de τελειος, teleios, a significar o que foi finalizado, que nada carece para estar completo).

O conceito sumariamente introduzido no desfecho do capítulo anterior (12.31, ὑπερβολὴν ὁδὸν, hyperbolēn hodon, m caminho para se ir mais longe), destacado na abertura, com sua perenidade desenvolvida – e perfeição apontada no verso oitavo com o uso da expressão οὐδέποτε πίπτει, oudepote piptei, que nunca falha, no sentido de nunca cair ou jamais se deslocar de um lugar mais alto para um mais baixo – encerra o hino a sacramentar a caridade em um nível superior em relação à fé e à esperança.

  1. Ver Dicionário do NT Grego de W. C. Taylor;
  2. Ver Novo Testamento Interlinear Grego-Português por Vilson Scholz.

01/04/2022 20h16

Imagem: O Observador

Luís Vaz de Camões

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor

Obra: Amor é fogo que arde sem se ver. Rimas, Edição eBook Kindle, 2010. De Luís Vaz de Camões (Portugal/Lisboa, 1524-1579 ou 1580).

Um dos poemas mais lindos que pude ler produzido em língua portuguesa, do autor do maior poema épico em português de todos os tempo, Os Lusíadas, que estabeleceu em 1572 a modernidade da língua em Portugal. Amor é fogo que arde sem se ver é uma maravilhosa demonstração da técnica do soneto italiano, que se notabilizou por Francesco Petrarca (1304-1374). Acredito que muitos adolescentes e jovens nos anos 1980, como este que vos escreve, entrou em contato pela primeira vez com este poema pela voz de Renato Russo. O meu interesse pelo português clássico aumentou bastante depois que iniciei os estudos em italiano (2016) e percebi a íntima relação, pela raiz do latim, entre as obras clássicas italianas e os clássicos em português. A vasta e genial produção literária de um dos maiores escritores de todos os tempos foi acompanhada por uma personalidade um tanto desconhecida; alguns diriam que foi polêmica, considerando o pouco que se sabe, o poeta teria sido um homem cuja vida foi cercada de problemas; Camões teria sido um homem que conviveu com dívidas pesadas, e dizem que foi boêmio e dado a casos amorosos. Onde nasceu e estudou os portugueses debatem até hoje sem chegar a um consenso e até mesmo a data da morte dele não se tem certeza porque não há documentos e sobram especulações. Camões foi o poeta que deixou uma indelével marca na história da literatura universal e o homem comum que passou quase sem deixar vestígios.

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