20/10/2024 Um novo 1991
por Leonardo Amorim
Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não para
Não para, não para
(O Tempo Não Para, Cazuza)
Sob o sol do meio-dia no Recife, o que vos escreve subia escaldante as escadarias de um antigo prédio na Conde da Boa Vista, repleto de salas de representantes comerciais, escritórios advocatícios e contábeis naquele 1991 de um Brasil muito mais complicado que o atual. Enquanto convivíamos com a inflação que parecia um carma, digeríamos ainda, alguns de forma trágica [6], o confisco da poupança e dos fundos (1990) protagonizado pelo fatídico governo Collor.
Era o único horário em que poderia realizar a apresentação do sistema de folha de pagamentos que tinha acabado de concluir. Tudo muito corrido, pois o trabalho formal de carteira assinada ocupava a segunda metade da manhã [7] e a tarde das 14 à 18h. Tinha começado em dezembro (1990), mês em que completei 16 anos; meu primeiro emprego foi de operador no Bairro do Recife antes de virar sede do Porto Digital.
Na porta de entrada, um pouco acima do nome do escritório, a expressão INFORMATIZADO me chamou a atenção. Tinham implantado as escritas contábil e fiscal, mas a folha de pagamentos do pacote não tinha agradado o DP. O contador que tinha marcado a reunião, ao notar minha adolescência:
– Quanto anos você tem meu filho? – dezesseis, respondi.
– Ah, ele tem dezesseis, que bom!, não é melhor estar na escola? – retrucou.
Talvez esperasse pelo tipo engomadinho-boçal de feiras de informática da época…
Apesar da indelicadeza, consegui fazer a demonstração e quando o seu empregado afirmou que gostou mais da “folha do menino”, em comparação com a da grife, perguntou se o meu sistema tinha nome: “não, vai se chamar SEIFolha a partir de hoje”, respondi. Ele vestiu a carapuça.
Foi naquele mesmo 1991 que também comecei a desenvolver pequenos aplicativos de contabilidade que ajudavam a minha mãe na empresa onde trabalhava como contadora. Quando adentrei pela primeira vez na sala onde estava o PC-AT para instalar uma rotina customizada para escrituração de um livro caixa, o operador quase de meia-idade olhou para mim muito desconfiado; talvez não lhe fizesse sentido um adolescente estar ali para aquele tipo de trabalho. Enquanto isso, seguia a desenvolver rotinas de contas a pagar, a receber e controle de estoque e nessas andanças conheci um jovem empresário no ramo de papelaria que, dada a raridade de encontrar sistemas customizados naquela época, combinou de, na minha casa mesmo, implantar uma base de dados para sua lista de preços e controle de estoques a ser impressa em minha GRAFIX enquanto seu conjunto de computador/impressora não chegava, por conta das dificuldades com a famigerada reserva de mercado. O XT que tinha adquirido em 1990 foi a muito custo e o então moderno IS30 Plus do emprego, que rodava o CYSNE PLUS (parecia uma imitação do IBM-PC-DOS que usava em meu XT, de onde saiu o MS-DOS), já era uma flexibilização da infeliz política arcaica protecionista herdada do capitalismo de laços dos militares, algo que caminhava para caducar durante o conturbado governo do “caçador de marajás”, na medida em que a economia deixava de ser tão fechada e se permitia transferência de tecnologia, no caso do IS30 Plus, da IBM para a Itautec.
Enquanto isso, acumulei a função de programador no emprego formal por conta da entrega dos programas fontes de um sistema de gestão de convênios e cobrança cujo programador contratado tinha desistido. Em paralelo, corria em busca de escritórios de contabilidade e empresas que tivessem interesse em adquirir o meu então novíssimo sistema de folha de pagamentos e algumas aplicações customizadas. Começava a viver um conflito de horários entre o trabalho de carteira assinada e alguns serviços de implantação com contadores e outros clientes que surgiam interessados em informatizar rotinas.
Na medida em que fazia demonstrações, notei um padrão entre os que as solicitavam, todos no ramo de serviços contábeis. Reconheciam que a inovação, no contexto em que viviam [8], do trabalho com microcomputadores XT/AT e sistemas para realizar rotinas aos poucos estava se alastrando, porém a maioria soava indiferente e até relutante em considerar que sistemas informatizados com computadores, programas e impressoras substituiriam rapidamente a velhíssima mecanografia e o trabalho manual com calculadoras e máquinas de datilografia. Em parte, estavam afetados pelas dificuldades com a situação econômica do país agravada com o confisco do dinheiro feito pelo governo federal, combinada com a escassa oferta de pessoal qualificado [9] e a carestia de equipamentos e sistemas. Poucos estavam realmente abertos ao conhecimento. Céticos, acomodados, pareciam duvidar de que a novidade da informatização seria tão impactante como as empresas de software e desenvolvedores falavam. Nessa mentalidade ficavam apenas esperando para ver se o que o vizinho estava fazendo de diferente daria algum resultado. Assim vi escritórios crescerem rapidamente naquele ano com a informatização, enquanto outros que esperavam para ver o que iria acontecer, entraram no ostracismo; alguns conseguiram retomar as rédeas, outros ficaram no meio do caminho.
A placa que apelava ao chamado ESCRITÓRIO INFORMATIZADO hoje seria anacrônica e kitsch. Os colegas do prédio talvez não conseguiram, à época, entender exatamente o que queria dizer, além de uma jogada de marketing, mas quando começaram a ver o concorrente da placa produzir balanços, livros de apuração do ICMS, folhas de pagamentos e recibos impressos em um tempo absurdamente menor que o exigido enquanto ainda estavam trabalhando com somas em calculadoras e datilografia, perceberam que tinham ficado para trás.
Passados 33 anos, os microcomputadores estão popularizados em todas as classes sociais e os sistemas sofisticados se juntaram à internet (comercializada a partir de 1996 no Brasil), com a integração de bases que evoluiu desde então e se atrelou a robotização de rotinas e agora à Inteligência Artificial (IA), vivemos um tempo de outras inovações onde o trabalho humano repetitivo será substituído integralmente para exigir um perfil de profissional de contabilidade mais íntimo da TI e capaz de realizar tarefas de análise e supervisão, mas o que vejo?
Primeiro, escritórios tendem a ficar ainda mais compactos, com infraestrutura enxuta, quase tudo na nuvem, sem espaço para empregado cuja função possa ser substituída por robôs de aplicativos com IA. Isso posto, um pequeno grupo de contadores parece perceber que essas mudanças profundas estão correndo enquanto a maioria parece letárgica, a repetir exatamente a receita da inércia, de falta de leitura da realidade, de comodismo e até de desprezo ao conhecimento e ao investimento ou seja, em certo sentido:
Estou em um novo 1991.
Segundo ponto é que o problema agora terá impacto muito mais profundo e, certamente, irreversível. Em 1991 havia muito mais tempo para rever posicionamentos e evitar grandes perdas na carteira de clientes. Na era presente, as mudanças acontecem de forma muito mais rápida e dramática. Escritórios que estão migrando para a nuvem, robotizando escrituração e atendendo cada vez mais fazendo uso de IA em chats e redes sociais combinadas com WhatsApp, estão a compor uma dinâmica no mercado que possibilita produzir muito mais com menos, abrindo mais espaço para ofertar serviços com preços cada vez menores e isso simplesmente vai fazer desaparecer os que não se adaptarem em um período que pode ser curtíssimo.
Não me causará surpresa se os pioneiros colocarem “placas”, entenda-se, divulgações em mídias diversas com algum dito de marketing a fazer alusão à robotização e à IA com capacidade de oferecer processamento muito superior aos níveis atuais, com preços absurdamente baixos e serviços consultivos que eram impossíveis até então, pois a “falta de tempo” foi superado por seus bots agora realizando trabalho humano repetitivo lhes dando espaço para tarefas mais sofisticadas e próximas das que fazem um verdadeiro contador.
[6] Conheci, pelo menos, um caso de um empresário que se suicidou e outros tantos que adoeceram de forma grave, aparentemente por causa do confisco em 1990, que durou 18 meses.
[7] Tinha obtido de meu chefe uma liberação do horário das 08 às 10h para realizar as lições do ensino médio que cursava à noite
[8] A informatização para muitos foi uma novidade naquele ano, mas para alguns poucos, não. Conheci relatos sobre contadores que já trabalhavam com sistemas informatizados desde os anos 1970 em empresas maiores.
[9] Não era tão simples encontrar um profissional que soubesse o básico do MS-DOS ou do IBM PC-DOS naquela época, além de noções de lógica e operação de sistemas. Muitas vezes era necessário passar alguns conceitos, o que tornava o treinamento mais moroso e desgastante.
11/08/2024 A abolição do homem
por Leonardo Amorim
They are not men at all: they are artefacts. Man’s final conquest has proved to be the abolition of Man
(C. S. Lewis em The Abolition of Man)
O jovem contador entrou confiante na primeira reunião e tudo transcorria muitíssimo bem com a nítida qualidade das peças contábeis e dos relatórios, repletos de comentários com uma qualidade incomum de detalhes sobre os resultados auferidos no último exercício encerrado.
De repente o “céu de brigadeiro” naquela sala, diante de uma apresentação tão elogiável, daria lugar a nuvens cinzentas e carregadas de dúvidas sobre a competência do jovem profissional em uma abrupta escuridão; interpelado pelo auditor, o tecnológico contador não conseguiu responder, de forma clara, firme, segura, conforme se espera de um contador autor de um material tão rico, sobre como tinha calculado as depreciações, as compensações de prejuízos fiscais na parte B do Livro de Apuração do Lucro Real, além de detalhes acerca das notas explicativas que tratavam de uma controvertida legislação tributária estadual, bem como também não sabia explicar a nova estrutura do plano de contas relacionada com as adoções de centros de custos e normas internacionais.
Ao termino do encontro, a impressão que ficou é de que outra pessoa tinha produzido toda aquela belíssima e complexa escrituração contábil. E a “outra pessoa” na verdade não se tratava de um ser humano com CRC que assina balanços e responde por suas publicações, e sim uma coisa; um complexo de base de dados coordenadas por um bojo de aplicativos pautados por robotização e inteligência artificial.
De forma análoga, em outro caso, o deslumbre era nítido em um gestor de contabilidade com o seu mais novo sistema de escrituração robotizada que toma decisões em tempo real durante as importações de XMLs de NF-e, NFC-e, CT-e e NFS-e, para registrá-los em seu sistema de gestão fiscal e as apurações para fins do Simples Nacional, processo encadeado pela mesma “inteligência artificial” que organiza os retornos do sistema da Receita Federal e os entrega de forma consolidada em guias e relatórios de apuração. Porém foi do deslumbre ao constrangimento quando percebeu que não sabia explicar ao cliente os cálculos do seu super sistema, quando questionado por uma consultoria tributária.
Em outra situação estava apresentando um robô que desenvolvi cuja função principal é ler e transformar em partidas dobradas para qualquer sistema, lançamentos de folha de pagamentos sob cruzamento do plano de contas utilizado versus o mapeamento de naturezas de rubricas do eSocial e outras naturezas internas não previstas nos leiautes do governo. Em um certo ponto da demonstração fui interrompido por um dos contadores que não conseguiu entender por que o robô decidiu debitar e creditar, em contas do passivo circulante e não nas contas de resultado, os descontos de INSS dos empregados. A pergunta me deixou perplexo dado o nível primário de contabilidade, digna de um estudante do primeiro período que ainda está a aprender o que é débito e crédito; fez-me acender o sinal de alerta sobre o significado do uso de tecnologias baseadas em robô-contador diante de contadores que a utilizam sem o preparo devido para analisar e criticar as escriturações produzidas.
Durante a apresentação do meu robô, enfatizo que se trata de um sistema que é “ensinado”, e o termo aqui é apenas uma expressão pedagógica para tentar aproximar aos leigos o fato de que decisões tomadas por sistemas dessa natureza dependem de uma imensidão de dados combinados e a diretriz que, até o momento, só pode ser humana, supervisionada por um bom contador, o tipo que está na única inteligência autêntica, sim, de novo, a humana, que tenho conhecimento neste mundo, o que me faz pensar que o uso do termo “inteligência artificial” deve ser usado de forma prudente para que não se caia em falácias típicas de marqueteiros que estão mais interessados em vender produtos baseados nas fantasias que os leigos possuem acerca do tema. Por sinal, temo que aconteça com a “inteligência artificial” na contabilidade, o mesmo que aconteceu com o advento do Sped e do eSocial: uma enxurrada de palestrantes caça-níqueis que falam demais sobre, mas não vivem a realidade do desenvolvimento ou seja, não passam de canastrões empreendedores de palco.
Nos casos que ilustrei, o que mais me chamou a atenção é a situação de profissionais que deveriam saber em detalhes sobre a produção contábil que apresentaram a seus clientes no uso massivo de tecnologias robotizadas mas que, infelizmente, demonstraram um grave problema de desconhecimento básico de contabilidade, algo que revela o quão inaptos estão para lidar com esse tipo de solução para contabilidade, isso posto pois o uso de robotização e inteligência artificial generativa é importantíssimo quando se pensa em economia de escala, produtividade exponencial e máxima redução de custos, porém, não exime o profissional do conhecimento necessário para que atue com competência em seu campo de trabalho, caso contrário, será o estopim para fazer parte de uma geração de apertadores de botão, profissionais perdidos na sua utilização, sem saberem exatamente o que estão entregando a seus clientes.
Precisa-se entender bem que por trás do botão que se aperta e do robô que se utiliza há um arsenal de recursos encadeados que precisam funcionar bem, incluindo o fator humano. O uso massivo de “inteligência artificial generativa” para contabilidade no desenvolvimento exige a combinação, em um mesmo profissional, de sofisticados conhecimentos de programação e TI com conhecimentos qualificados em práticas contábeis, fiscais e trabalhistas, por isso, contadores veteranos, dispostos a se aprofundarem em programação e TI podem encontrar nesse segmento uma grande oportunidade para se reinventarem no mercado de trabalho.
Ficou então o alerta que também me faz refletir sobre a atualidade do conceito de “modernidade líquida” de Baumann, caracterizada pela ausência de valores essenciais e pautada em relativismos, utilitarismos, aversão à intelectualidade, pobreza ética e um vazio da tecnologia, debilidades que retratam uma atualização do homem-massa de Ortega y Gasset para a era da dita “inteligência artificial”, o ser desprovido de consciência do valor do humano e do legado que recebeu, tudo combinado com o conceito de “abolição do homem” que vejo em C. S. Lewis em sua obra de mesmo nome, onde essa modernidade e esse homem bruto, sem pedigree, em minha releitura, passa a ser refém de um viés ideológico perverso que intenciona transformá-lo em um “artefato”, como afirma Lewis, um ser desumanizado, incapaz de pensar por si mesmo, marionete de forças com inúmeros e obscuros interesses de manipulação, ou no que se sintetiza brilhantemente em The Abolition of Man [5] cuja citação que abre este artigo inspirou esta reflexão.
5. The Abolition of Man. p. 41. The Macmilllan Company, 1947, New York. De Clive Staples Lewis (UK/Belfast, 1898-1963).
02/06/2024 Os dois sistemas
por Leonardo Amorim
“The great obstacle to discovering the shape of the earth, the continents, and the ocean was not ignorance but the illusion of knowledge.“
Daniel J. Boorstin (1914-2004) em The Discoverers: A History of Man´s Search To Known His World and Himself
É atribuída a Stephen Hawking (1942-2018) a frase “o maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, mas a ilusão do conhecimento”, que parece ser uma paráfrase do que pode ser apreciado na obra do historiador americano Daniel J. Boorstin. Tenha dito ou não o físico teórico britânico, talvez a vivenciou em si mesmo em relação à sua tese sobre buracos negros face a um estudo que publicou na revista Nature em janeiro de 2014, onde nega coisas que defendeu em tese [1], surpreendendo a comunidade científica na ocasião.
Do fantástico universo de uma mente brilhante para o cotidiano nosso de cada dia, estava a iniciar um atendimento quando um cliente apresentou tudo o que tinha realizado para resolver um problema de validação de um arquivo digital, o qual fui acionado para tratar, e enquanto executava um checklist de diagnóstico, era interrompido pelo cliente na vídeo conferência com instruções que deveria seguir, as quais repetiam as tentativas de solução que ele tinha realizado sem êxito. E entre ‘faça isso, deve ser aquilo”, “faça aquilo que vai resolver”, eu respondia “como sabe que a causa é essa?” e ele respondia “eu acho que é”, e eu retornava, “não sei”, seguido de um “estou investigando”. De tantos “não sei” e “estou investigando”, passaram-se uns 15 minutos e o cliente, com certa irritação falou:
– Leo, não está funcionando e preciso entregar isso hoje.
Respondi:
– Posso te falar duas coisas no momento: a primeira é que, a considerar que você realizou os procedimentos de forma correta no contexto adequado, seu próprio relato aponta que não funcionaram e o curioso é a sua insistência para que eu os repita; lamento informá-lo, não tenho capacidades mágicas. A segunda é que não vou repeti-los porque o tempo é escasso e é mais prudente elaborar um diagnóstico, o que não faz parte da execução de uma possível solução imediata e sim da obtenção de conhecimentos sobre o problema em si, sua natureza e suas possíveis causas. Isso posto, não acho produtivo tratar a situação com opiniões do tipo “acho que é isso ou aquilo” e ficar na base da tentativa e erro, entendeu?
– Nossa! Não precisa me dar um “bale” [2], respondeu com a voz entonando um riso.
Então também me permiti a um breve sorriso quando me dei conta que, naquele diálogo, estavam em conflito dois sistemas: 1-Rápido, intuitivo, imediato, sintético; e o 2-Lento, reflexivo, mediato, analítico.
Veio-me por um flash a imagem da ilusão de Müller-Lyer (1857-1916) usada por Daniel Kahneman (1934-2024) em Rápido e devagar [3], por recordação de uma publicação de Uma leitura ao dia [4]:
[…] mesmo após medir e constatar que as linhas da Figura 3 têm a mesma extensão, o meu sistema 2 (pensamento lento, atencioso, mais concentrado, de análises complexas) será abordado pelo truque ou tentação do meu sistema 1 (pensamento rápido, intuitivo, diria automático) que me faz pensar que a linha de cima é menor que a de baixo.
Fiz o teste sobre o que indica o autor: mesmo após atestar a igualdade nas extensões das linhas, o sistema 1 segue a me perturbar quando me volto ao sistema 2, de onde extraí a verdade. O sistema 1 é onde as ilusões ganham força e celeridade em minhas tomadas de decisão e, imagino, é o recurso explorado manipuladores, enquanto o sistema 2 é um recurso de validação que posso ser tentado a descartar pela comodidade perigosa oferecida pelo sistema 1 em repassar de forma imediata uma resposta inicial quando, em muitas situações, deve ser apreciada em um pensamento mais crítico, reflexivo e amparado em fatos ou seja, por meio do sistema 2.
Pautado apenas pelo sistema 1, o cliente ficou um pouco intrigado com o meu comportamento um tanto “frio” na adoção do outro modelo, o chato sistema 2, que costuma ser estigmatizado por uma irritante lentidão aos olhos de um entusiasta adepto do imediatismo sedutor do sistema 1. Porém, apesar dos protestos, o sistema 2 seguiu na luta que travava em um belo passo-a-passo investigativo pela verificação dos (1) saldos do balanço de abertura, (2) mapeamento de contas do plano referencial, (3) conferência de lançamentos sensíveis às contas transitórias e (4) análise dos parâmetros de encerramento do balanço. Nesse processo, descobri problemas no item 3, impossíveis de serem tratados adequadamente com os procedimentos que o cliente tinha adotado e que pareciam um tanto óbvios para “dar certo”, pelo histórico de tratamentos bem sucedidos com o mesmo método. No sistema 1, em busca de uma solução rápida, o cliente olhou para o que parecia óbvio nos procedimentos anteriores e se guiou no achismo de que também daria certo pela crença disfarçada de conhecimento técnico; estava em uma dispendiosa ilusão de conhecimento.
O massivo uso do sistema 1, penso, é um grande problema na sociedade moderna, de pessoas hiperconectadas e crentes de que em pequenos cliques e breves dicas, certas questões um tanto complexas serão resolvidas. O drama da ilusão do conhecimento permeia a modernidade líquida, imediatista, utilitarista, intuitiva, insaciável, avessa à leitura, agora manipulada pela dita “inteligência artificial”, que confunde pressa com agilidade, conhecimento com sabedoria; uma sociedade doente na imensidão de suas distorções cognitivas camufladas pelo culto das próprias ideologias, e quando surge um “dinossauro” adepto do sistema 2, vem o incômodo; a rapidez do sistema 1 denuncia a lentidão do sistema 2, pois o domínio do sistema 1 se baseia em uma crença infantil na praticidade de soluções de questões que exigem mais reflexão, mais investigação, mais intelectualidade, mais leitura, mais conhecimento depurado, sendo retroalimentado por um transtorno que, entre tantos fatores que podem ser suscitados, penso, é uma epidemia: a ansiedade.
Para não cair na ilusão de estar imune, encerro a confessar que diariamente vivo em um fogo cruzado dentro de meus pensamentos, em uma luta interior protagonizada pelo encontro desses dois sistemas. Nessa dor intelectual estou a perceber que a grande tarefa do meu tempo é aprender a não se curvar aos ditames da modernidade líquida e a cuidar do espírito para nunca perder de vista a minha humanidade que se atesta pela capacidade de refletir, reavaliar, questionar, concluir, duvidar e simplesmente aprender.
2. Expressão pernambucana para repreensão, exortação, chamada de atenção.
3.Nature: Stephen Hawking: ‘There are no black holes’
25/05/2024 Contador na política
por Leonardo Amorim
Por que não trabalho para pessoas politicamente expostas
Foi no dia seguinte ao tomar conhecimento da candidatura do cliente “empresário de contabilidade” que preparei o aviso prévio de 90 dias. Cliente envolvido com política sinaliza elevado risco de abrupto aumento de custos de suporte, fator principal para minhas restrições em trabalhar para pessoas e organizações politicamente expostas, um critério de foro íntimo cujo valor assimilei ao longo de 32 anos prestando serviços a escritórios e contadores autônomos.
Escritório de contabilidade é um vetor de atração e tratamento de um objeto que possui íntima relação com a burocracia forçada pelo Estado. E em se tratando do Brasil, onde há um manicômio tributário que incentiva vícios administrativos, a figura do político se torna central como intermediária entre o cidadão comum e o aparato estatal. Profissional de contabilidade no Brasil, e em boa parte do mundo que pude observar, opera em duas categorias que podem coexistir no mesmo profissional ou na mesma instituição; a primeira diz respeito ao taxmaker, que no Brasil é chamado de “contador”, mas na verdade se limita a ser um “darfista”, profissional que atua como despachante de serviços da burocracia na elaboração de guias de impostos. A segunda categoria, cada vez mais rara, é a do contador que de fato exerce o ofício de apuração e análise do patrimônio, um tipo que pode ser visto em grandes e médias empresas com condições de investir em contabilidade, além de companhias de capital aberto, na Bolsa de Valores; é mais sofisticado, mais disciplinado e mais ciente da enorme importância da profissão contábil para a sociedade.
Contador debutante na política insere então em sua agenda uma nova relação; não mais é apenas um agente passivo que lida com demandas do aparato compulsivo e coercitivo do Estado. Seu envolvimento na condição de político o torna peça ativa, seja na formulação ou na execução de atos do poder público, nas relações dos cidadãos com o Estado, enquanto, mantendo a atividade de contador, terá que policiar sua conduta de forma especial, à luz da ética profissional e das leis aplicáveis, para separar bem suas atuações nos dois ambientes. Enquanto candidato, estará em um processo eleitoral que é sumariamente uma corrida pelo poder, o que pode influenciá-lo para uma visão mais arrojada, abrangente, que não fica mais restrita a demandas de clientes do escritório; terá dois públicos para se relacionar, os clientes e os eleitores em geral, e tudo o que tiver prestígio econômico e/ou social, pode ser visto como alvo na busca pelo precioso capital político para a conquista de votos. Como estou a pensar em um país repleto de vícios administrativos derivados do manicômio tributário (talvez o sistema seja assim justamente para abastecer políticos com “oportunidades” de incrementar o clientelismo), então o contador que possa ter uma inclinação para tentar agradar seus clientes, sem o rigor ético diante do famoso “jeitinho brasileiro”, pode potencializar isso mediante suas demandas na corrida eleitoral, abrindo-se a um mundo de relacionamentos que podem se tornar tenebrosos, problema que também potencializa riscos que vão desde o aumento abrupto de serviços repassados ao escritório, que afetam a qualidade de vida profissional dos colaboradores, ate o envolvimento com problemas que podem resultar em casos de corrupção, em situações mais extremas.
Aprendi a entender melhor a questão quando um cliente de médio porte entrou na “vida pública” e mudanças ocorreram de imediato no trabalho de TI e consultoria: houve um repentino aumento de demandas de serviços, o que trouxe elevação de custos e prejuízos ao suporte, acompanhado da crescente insatisfação com a falta de retorno financeiro na elevação de tarefas, incluindo a de colaboradores. A situação se repetiu em outro caso e passei a identificar um padrão: junto a carga elevada de acionamento do suporte com pedidos intempestivos do ponto de vista das boas práticas e da organização que compete a um escritório contábil. Nesse padrão foi verificado que a causa do aumento do fluxo de serviços se deu por problemas de gestão do proprietário dividido entre a agenda de campanha e as atribuições comuns de quem comanda um escritório contábil. Nos casos em que fora escolhido alguém para substituir quem partiu para a política, o resultado padrão foi de não conseguir dar conta, muito abaixo da competência do proprietário. Outro ponto foi o aumento repentino da carteira de clientes, muitos em dificuldades com obrigações de impostos e até em processo de insolvência. Outro problema foi a piora na qualidade do serviço. Junto ao tsunami de problemas aumentou a inadimplência, incluindo com o suporte, dado o descontrole com a cobrança em paralelo ao desânimo dos colaboradores junto com as falhas e os atrasos nas entregas de declarações que também se tornaram frequentes. Os problemas foram bem camuflados pelo marketing que, nesse período se tornou mais arrojado, de modo que a imagem preservada era de escritórios prósperos e muito bem administrados, combinando com discursos de palanque, como reza a cartilha de quem busca êxito na política.
Escritórios que já estavam com problemas financeiros e de gestão, tornaram-se ambientes tóxicos para colaboradores e prestadores de serviços. Com os proprietários mais preocupados com a política, funcionários se sentiam “abandonados”; faltavam-lhes liderança, sobravam ordens para atender a exigências hilárias que quase sempre tinham relações com empresários falidos, desesperados e totalmente indisciplinados em relação ao poderiam fazer para tentar se reerguer com uma gestão mínima diante das obrigações básicas; muitos procuravam um milagre em uma espécie de versão de clientelismo tão peculiar à cultura política brasileira.
Em outra situação análoga cheguei até a recusar indicações para oferecer serviços a empresas indicadas por clientes candidatos, ao descobrir que tinham problemas administrativos incentivados por quem deixou a impressão de acreditar mais em político de estimação do que em méritos de gestão. Comecei então a entender que trabalhar para escritório e/ou contador politicamente exposto gera um estresse desnecessário; não é um bom negócio dentro do tipo de suporte que ofereço por causa do aumento de custos que desestimula minha permanência na oferta de serviços. Outro fator que mencionei é considerado como hipótese: um potencial envolvimento com fraudes e corrupção.
Pode até acontecer a situação onde os problemas de gestão que relatei nos parágrafos anteriores não ocorram, enquanto a corrupção que trato como hipótese venha a se concretizar. O contador mesmo quando fora da política já é um profissional exposto que, por razões éticas, poderá ter que dizer um bom “não” a um empresário mal intencionado, quando percebe que propõe ferir normas, sobretudo em se tratando do objeto de trabalho que diz respeito a declarações aos fiscos com o trato de documentos e dados sensíveis, incluindo o zelo que deve ter com balanços e outras diversas demonstrações, e quando esse profissional entra na política, terá que ser ainda mais disciplinado para dizer o mesmo “não”. Contudo, poderá se sentir tentado a promover “soluções” com base na ilusão de que, sendo um expert em burocracia e normas, tem a capacidade de burlar regras legais sem ser flagrado, na ânsia de agradar grandes apoiadores em troca de prestígio político. Ao meditar sobre isso, percebi que trabalhar para pessoa politicamente exposta também envolve um custo de risco com clientes eventualmente envolvidos com tentativas de fraudes que venham a me importunar, onde não estou sequer disposto a ouvir; a única coisa que desejo então é distância.
Foi assim então, no conjunto dessa medonha obra, que amadureci a ideia de me demitir quando o cliente entra na política.
19/05/2024 A Regra de Ouro
por pastor Abdoral
Tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós a eles, porque esta é a lei e os profetas.
(Mateus 7:12)
Do alto da montanha sou agraciado pela Regra de Ouro do Sermão da Montanha para cifras filosóficas do cotidiano… ou… suas atitudes com os semelhantes refletem como gostarias de ser tratado?
Jesus de Nazaré, mestre da síntese, reuniu em apenas uma frase filosófica toda a plenitude do cumprimento da lei e o legado dos profetas.
Se desejas o bem para contigo, deverás ser íntegro em fazer o mesmo bem para com o próximo; se quiseres seguir a ética de Jesus, não exijas do semelhante o bem que não estás disposto a lhe conceder. O respeito dado é reflexo do respeito que se deseja receber.
Nas cifras do cotidiano, a invencível ética de Jesus atravessa as aparências do homem carnal, terreno, e penetra a alma alcançando o homem espiritual; é por ela que se pode não apenas conhecer, mas também viver, saborear, aprender e evoluir com a verdade que nos torna um pouco mais próximos de Deus.
Certa vez um cliente contador perguntou ao meu amigo de infância por que ele ficou tão ofendido após tê-lo oferecido uma “gratificação” para desmarcar alguns agendamentos com outros colegas em seu favor (meu amigo de infância trabalha por agendamentos e leva isso muito a sério). Então, a Regra de Ouro lhe veio novamente como aquela “espada que cicatriza” uma vez assim dita pelo doutor King Jr. para ilustrar a filosofia de superar as coisas antiéticas tão somente com a prática do bem. Meu amigo de infância perguntou ao “pragmático”, tão crédulo que o dinheiro resolve tudo, se gostaria que alguém que tivesse marcado um compromisso com ele, cancelasse o que fora combinado em favor de outrem que ofereceu dinheiro para ficar em seu lugar. O silêncio dividiu o espaço com Mateus 7:12, o que para uma pessoa muito religiosa e ativa em uma determinada denominação soou com um impacto fulminante, avassalador, uma cifra filosófica que apresenta a dura e poderosa verdade de que ser bem visto aos olhos rasos do cotidiano da sociedade no manto religioso é uma coisa, seguir a Jesus, não raramente, é outra, totalmente diferente.
Para alguém com aparência de ser tão religioso e “consagrado” a fé, Mateus 7:12 caiu como um raio que fulminou a falta de integridade entre o que prega e o que faz. A espiritualidade é um dom divino a ser experimentado em todos os momentos da vida, da esfera íntima aos negócios, em todas as ocasiões, não apenas em algo ritual da porta de templos religiosos para dentro, se não quisermos ser vistos como “sepulcros caiados” pelo próprio Jesus à semelhança do que se referiu aos fariseus.
Em outra ocasião, meu amigo de infância recebeu uma reclamação de um cliente, também contador (parece que ética nesse ramo, não raramente, encontra-se em profunda crise): fora sumariamente removido de um atendimento em vídeo conferência no Zoom “apenas porque atendeu a uma ligação telefônica, diga-se de passagem, nada discreta. O que o demandante não mencionou segue na resposta que veio novamente com a Regra de Ouro, ao ser indagado se gostaria de ter sua conversa privada exposta por aí a um terceiro desconhecido, por meio do áudio de uma vídeo conferência, no caso de um viva voz no telefone, por quem lhe tem por confiança. Para evitar o vício de execução de teor privado em ambiente com microfone aberto não conhecido e sequer autorizado pela fonte, seja de ligação telefônica ou de aplicativos de mensagens como o WhatsApp, o procedimento é adotado e aos eventuais insatisfeitos com a ida à sala de espera, fica apenas um triste exemplo de desprezo por uma coisa que todo profissional que lida com sigilo deveria ter como sagrada: a privacidade de seus clientes.
Em um escritório gerenciado por um contador considerado “rígido demais” (do tipo onde a disciplina coloca muitos desleixados em situação desconfortável), um jovem e brilhante analista de custos, aguardado por sua expertise no assunto pela expectativa que fizesse questionamentos relevantes ao apresentador, chegou praticamente no final de uma reunião no Zoom onde corria o evento técnico considerado muito importante para o futuro da empresa. O apresentador do projeto, contratado a “peso de ouro”, também de mesma linha do proprietário, como bem reza a cartilha da seriedade, começou e terminou rigorosamente o trabalho nos horários previstos. Em uma reunião restrita a colaboradores para análise do que fora apresentado, o jovem analista que chegou atrasado, após ser repreendido, fez uso de uma desculpa esfarrapada, com base em uma ocupação por uma rotina comum que poderia ser realizada após o evento (aparentemente foi um problema de não saber lidar com tarefas em prioridade). Então minimizou o atraso como se fosse uma coisa qualquer sem importância, quando o escritório pagou caro para ter o encontro com o doutor; assim, o jovem desleixado recebeu uma resposta do chefe que o surpreendeu (e acredito que a muitos naquela sala), pois foi ao estilo Mateus 7:12:
“Pois bem, você gostaria que alguém considerado mais apto do escritório, na área, sendo o mais esperado para a reunião depois do apresentador, chegasse atrasado, e no seu caso foi ainda mais grave porque foi praticamente no final do estudo, e atrapalhasse o andamento dos trabalhos se fosse sua a incumbência de estar à frente do negócio que sustenta esse escritório? O que você pensaria se um colaborador, onde há grande expectativa, fizesse isso com você?, mas a parte pior ainda não é essa, porque o que fazemos de prejudicial aos outros acaba pesando mais em nós mesmos, lá na consciência, quer você queira ou não, quer tenha maturidade ou não para entender e aceitar isso, pois leve em consideração que o bem que esperamos dos outros deve ser o mesmo que praticamos para que tenhamos alguma credibilidade na vida, coisa difícil de ser conquistada, enquanto muito fácil de ser perdida e não falo isso apenas diante de pessoas mortais aqui dessa sala mas, acima de tudo, diante de Deus, que tudo vê, e viu sua verdadeira intenção, então pense nisso e procure cumprir seus compromissos com afinco.”
24/03/2024 A Caminho da Falência
por Leonardo Amorim
Três narrativas que escodem causas mais profundas da crise entre escritórios contábeis tradicionais
No tempo em que realizava trabalhos presenciais, lá pelos idos de 2015, após finalizar um treinamento contábil, fui convidado a conhecer o terceiro andar do escritório, onde encontrei uma estrutura de TI instalada em uma sala climatizada com armários modernos e cabeamento em fibra ótica. Tudo muito impressionante.
Nas outras três salas do mesmo piso, as portas internas foram removidas de maneira que se conectavam a formarem uma estrutura com uma única finalidade: guardar documentos de clientes em armários com endereços similares a de uma biblioteca. Perguntei então ao proprietário se havia alguma cobrança extra pelo serviço tão organizado e a resposta foi de que se tratava de um “mimo” dentro do pacote da mensalidade. O que mais me chamou a atenção foi a convicção de que aquela estrutura, que consumia 75% do andar, fazia parte de uma “inovação” em um tempo onde os documentos fiscais eletrônicos estavam em um processo de massificação, além de serviços de digitalização que dariam mais sentido a investimentos a um tipo de armazenamento em servidores, não necessariamente locais; referia-me ao que é popularmente chamado de “nuvem”.
Infelizmente em 2017 o escritório cessou de oferecer lucro aos sócios, que retiravam pró-labore de 8k. Em 2018 o prejuízo aumentou. Em 2019 os sinais de definhamento eram evidentes para todos, além da análise dos resultados contábeis e no final de 2021 a empresa tinha perdido 64% da carteira de clientes, em comparação com 2016 (o último ano lucrativo). Foram 25% dos clientes perdidos que tinham dado baixa no CNPJ e o restante foram os que migraram para opções mais econômicas de serviços contábeis, a maioria em formato online. O quadro de empregados derreteu para 30% nesse ínterim e o terceiro andar acabou sendo convertido em salas comerciais, junto com o segundo e o primeiro. A caminho da falência e com o negócio de aluguel de salas como alternativa mais pragmática, no final de 2022 decidiu-se pelo encerramento das atividades do escritório contábil com a recomendação aos clientes que considerassem os poucos empregados que ainda estavam na organização para assumirem as escritas. Era o fim de uma história de quase 40 anos.
Encontrei nesse tempo, três narrativas comuns que escondem as causas mais profundas da crise que acomete muitos escritórios tradicionais:
A primeira apela à pandemia para explicá-la. Considero a mais ilusória e que tenta ignorar problemas com o fato de que o custo operacional estava elevado de maneira que ficou incompatível antes de 2020, o que se agravou em um tempo onde empresários tentavam sobreviver e o corte de custos se tornou ainda mais imperativo. O escritório tradicional que fechou em 2022 já vinha cambaleando e seguiu na pandemia sem correção de rumo, como um Titanic indo direto ao iceberg, com um quadro inchado de colaboradores mal pagos e mal treinados, métodos de atendimento anacrônicos, investimento pesado e desnecessário em servidores locais que ensejavam em custos enormes com manutenção e reposição de equipamentos, este último problema poderia ter sido evitado com a adoção de serviços na nuvem. Mas nada foi mais ilustrativo que a preservação da sala de documentos, um dos maiores exemplos de gestão desastrosa de espaço físico que tinha visto até então. Igualmente desastrosa foi a gestão de recursos humanos; com vícios de empresa familiar onde o mérito reside exclusivamente na afetividade entre sócios e empregados, muitos com deficiências de conhecimentos técnicos em um tempo onde havia uma transição das obrigações fiscais acessórias para meios digitais, o que exigia uma nova economia na demanda de capital humano mais atualizado com as mudanças; havia gente demais, umas batendo nas outras, sem liderança, desorientadas e com baixa qualidade técnica. A falta de liderança ficava visível em situações mais delicadas onde a análise profissional de um problema exigia conhecimentos e um código de procedimentos bem depurado. A direção da empresa não promovia a primeira, nem tinha capacidade de sequer cogitar a segunda. Junte-se esse cenário tenebroso, a crença de que os principais clientes dificilmente sairiam por conta da “consideração”, algo que só durou até o momento em que descobriram escritórios digitais oferecendo serviços mais sofisticados, com estrutura dinâmica de colaboradores em home-office (isso antes da pandemia), mais qualificados e em quantidade menor, com recursos de TI robotizados em um bojo de excelência que resultava em maior agilidade e preço, muitas vezes, pela metade.
A segunda narrativa para justificar a bancarrota foi a de que o meio de serviços contábeis ficou por demais “prostituído” ou “uberizado”. Seria um problema mais por “culpa” do mercado e menos de quem sofre com perda de clientes. Este tipo de análise reflete uma carência comum encontrada entre contadores sobre conhecimentos primários acerca do funcionamento da economia de mercado; ignora totalmente os fenômenos de oferta e demanda, sobretudo o lado do consumidor diante do que significa a principal linha em que atuam: na burocracia forçada pelo aparato estatal-fiscal. Certa vez perguntei a um contador, do tipo indignado com o “absurdo” de um concorrente que conseguia processar a escrita fiscal de mais empresas, com menos empregados e preços menores, via economia de escala, se um dia pensou em se colocar na posição de um empresário diante dos custos com serviços burocráticos e como reagiria se encontrasse opções mais econômicas… Acontece que a burocracia é custo (onde formas de cortá-lo são sempre saudáveis) e contabilidade é outra coisa, mas muitos proprietários de escritórios se acomodaram em explorar apenas um segmento que é típico de despachantes, que por sinal anda muito desgastado no meio produtivo, enquanto ignoram a importância da adoção de serviços para gerar valor agregado e métodos de atendimento que reduzam seus custos operacionais com trabalhos repetitivos para melhorar a margem do negócio, e isso implica em investimentos em TI e em pessoal mais qualificado, em quantidade menor, salários maiores e retornos potencialmente superiores. Fazer menos com mais através de TI e capital humano mais sofisticados ainda é uma questão pouco apreciada em proprietários de escritórios, sobretudo os que não se interessam em compreender os fenômenos de mercado, onde a oferta massificada de soluções de TI está forçando a queda de preços, além da falta de envolvimento com com as atividades técnicas para a compreensão de suas relações com a TI. Seguem em um raciocínio obsoleto que demoniza a concorrência; estes são os mais propícios ao caminho da falência.
A terceira narrativa se situa no vitimismo para esconder deficiências técnicas, em casos de escritórios tradicionais que perderam grandes clientes ou seja, aqueles que retornavam maiores honorários e normalmente operam sob o lucro real. Escritórios com deficiências de recursos humanos não conseguem oferecer serviços consultivos e se lamentam por suposta “concorrência desleal” em face de clientes que encontraram serviços com esse tipo de pessoal qualificado e decidiram pela mudança. Não penso aqui em coisas mais sofisticadas sobre “contencioso tributário” e complexos estudos comparativos de regimes de tributação. Penso em coisas mais simples como o caso do escritório que passou anos calculando PIS e Cofins sobre receitas de produtos monofásicos e um dia se deparou com a irritação do cliente de maior honorário ao descobrir que estava pagando tributos muito mais do que devia, após ter um estudo de uma consultoria tributária que, não raramente, também atua como escritório contábil. O vitimismo também se situa em casos de escritórios com deficiências na própria contabilidade, a começar dos proprietários que atuam apenas como “empresários” e são desqualificados para lidarem com questões técnicas, muitas até elementares, mediante prerrogativas; são comerciantes de serviços contábeis portando CRC, nada além disso. E a falta de competência técnica é um problema gravíssimo que pode destruir um escritório, pois:
Como vão conduzir um negócio que exige aptidão intelectual por conhecimentos contábeis sem possuí-los de fato?
Como vão liderar colaboradores se apenas dão ordens enquanto não possuem autoridade legítima, algo que vem com o indispensável discernimento técnico sobre o que estão ordenando?
E como conseguirão tomar decisões mais acertadas sobre investimentos e custos sobre um negócio tão sensível às leis de oferta e demanda, se desconhecem o que está ocorrendo no mercado?
14/01/2024 Crise de Atenção
por Leonardo Amorim
Concentrar-se e se dedicar por um longo tempo é uma questão muito importante. Somos cada vez menos capazes de fazer isso da forma correta”
(Zygmunt Bauman em Educação 360, 2015, Brasil por Fronteiras)
Vivo constantemente tendo que lidar com o que o sociólogo e filósofo polonês tanto alertou sobre um dos problemas da “modernidade líquida”: a crise de atenção.
O problema diz respeito, primeiramente, ao meu próprio comportamento e como lido com as ferramentas de trabalho. Um das tarefas mais importantes que procuro tratar consiste nos meus problemas de atenção.
Enquanto me submeto a esta crítica, percebi este problema entre clientes há algum tempo e passei a adotar formas de amenizá-lo. Não raramente tenho que repetir orientações, muitas elementares, a usuários que não conseguem se concentrar o suficiente, pois dividem o tempo do suporte agendado com telefonemas (alguns até pessoais), retornos em WhatsApp e outras redes sociais, além de terem que enfrentar um ambiente de trabalho hostil à atenção, com poluição sonora e fluxos de pessoas que adentram sem critério e interrompem o atendimento, comprometendo inclusive a privacidade face a assuntos que são externados. Quando um cenário desse tipo se estabelece, dou orientações ao mesmo tempo em que proponho o desafio de tentar segui-las para comparar se a produtividade aumentou, mas sobretudo se o estresse diminuiu. É uma forma de demonstrar ao usuário que as proposições podem melhorar o desempenho e a próprio relação emocional que possui com o trabalho.
Em outros casos, quando usuários, por carência de um plano de ação, tentam realizar várias tarefas ao mesmo tempo, procuro mostrá-los a importância do sequenciamento lógico de atividades. Em muitos casos se deseja realizar em modo de multitarefas, um problema que pode ter relação também com transtornos de ansiedade e torna-se mais sério quando se tratam de tarefas que condicionadas a outras quando, por exemplo:
Para chegar na tarefa C é preciso concluir a tarefa B, e para concluir a tarefa B, é preciso superar a tarefa A. Indo passo a passo, o usuário percebe que estava tentando chegar ao terceiro andar sem passar pelo primeiro e aceita o sequenciamento.
O sequenciamento lógico de tarefas não deveria ser uma coisa incomum entre profissionais de contabilidade, visto que a ciência contábil é, por natureza, regrada por processos sequenciados de problemas a serem resolvidos. Acredito que o distanciamento de contabilidade propriamente dita explique parte dessa dificuldade em muitos profissionais de área.
Em outros casos, quando são tarefas que não se relacionam em termos de condicionantes entre si, proponho que o usuário defina prioridades e escolha o que deseja realizar de imediato face ao tempo disponível. É um bom exercício sobre o que os economistas chamam de “custo de oportunidade”, pois o tempo é um recurso escasso e é preciso aplicá-lo em função de uma coisa em detrimento de outra, o que enseja na capacidade de saber definir bem as prioridades. Procuro demonstrar que se o usuário tentar resolver vários problemas em paralelo, com o tempo que resta, correrá maior risco de terminar o expediente sem ter resolvido pelo menos um.
A crise de atenção se mostra ameaçadora também por conta de profissionais que não tem como hábito a leitura mais profunda e preferem atalhos perigosos em dicas de grupos de redes sociais, muitas descontextualizadas e rasas mediante o problema que tentam solucionar. Procuro alerta-los sobre os perigos de não ter o hábito de separar um tempo do expediente para simplesmente estudar, ler comunicados, analisar notas importantes dos fiscos e manuais, dentro de um plano de trabalho.
Sendo a crise de atenção no suporte para contadores um fenômeno complexo, separei três casos emblemáticos para reflexão:
Crise de atenção I – O curioso caso do Sped Contábil enviado com receitas e sem despesas no livro diário
Transcorria normalmente a reunião no Zoom até que surgiu para análise uma Demonstração de Resultado do Exercício (DRE). Pedi a atenção do contador, que estava sobrecarregado em meio a ligações telefônicas (a tentativa de onipresença é habitual nesta profissão) para que reparasse um problema na DRE: estava apenas com receitas, sem qualquer despesa. A perplexidade ficou evidente, o contador ficou um tempo mudo e depois veio a se lamentar por ter assinado o documento sem perceber um erro tão grotesco que, evidentemente, refletiu em mais erros no Balanço Patrimonial (BP).
Pensamos em como algo assim pode ter acontecido, pois há um processo de conferências desde a escrituração integrada, contudo no checklist, verificamos que dois itens essenciais foram queimados de maneira que provocou a falta de percepção da escrituração das despesas. O primeiro foi na análise prévia que deve ser feita sobre o balancete, no entanto, lembrou-se que foi conturbado o dia em que estava a realizar a conferência, com muitos problemas acionados por clientes no telefone e no WhatsApp. Então, em meio a tanta informação para processar ao mesmo tempo, a sua mente lhe traiu ou seja, na correria ele passou a pensar que conferiu o balancete, e desta ilusão encerrou o exercício, gerou o arquivo do Sped e realizou a importação. O segundo ponto do checklist foi queimado de outra forma, e se deu na segunda conferência que recomendo, a ser feita dentro do próprio Sped Contábil, procedimento que jamais deve ser desprezado; o usuário não a fez devido a “falta de tempo” que a sobrecarga de tarefas estava a lhe provocar naquele dia, que era o último para entrega. A crença na referência falsa de que tinha conferido o balancete e o fato de que 100% das declarações importadas nos últimos 10 anos de Sped sempre batem com os saldos do sistema contábil o seduziu a queimar a etapa da conferência minuciosa no PVA da Receita Federal. Foi o único ato de erro consciente que cometeu, pelo risco, e grave. A parte mais delicada desta sequência de falhas foi ter que explicar no J800 do Sped Contábil o motivo da substituição do livro diário digital e das notas para a DRE e o BP.
Crise de atenção II – Uma dica para fazer um cliente perder um importante financiamento
Penso agora em um importante caso de perda de financiamento por entrega de demonstrações incompletas por parte do contador. A financeira tinha emitido um e-mail com instruções que envolviam o preenchimento de um formulário com índices que deveriam ser extraídos das demonstrações contábeis entregues. Por alguma razão até então desconhecida, a recusa da financeira, embora comunicada em tempo hábil, só chegou ao conhecimento do contador em um momento em que os recursos disponíveis para financiamento tinham sido esgotados.
O contador garantiu que tinha lido o documento na íntegra e com atenção, mas o não envio do formulário com os índices o deixou em uma situação contraditória e delicada de maneira que acabou perdendo o cliente.
Moral da história: quem quiser um roteiro para perder um cliente, a dica numero um, e mais importante, é não ler com atenção as instruções da financeira na ocasião de um pedido de financiamento.
Crise de atenção III – Quando “ver” não é sinônimo de “ler” e como fazer das tecnologias da modernidade líquida um caminho para o caos
Reunião agendada no Zoom com vistas a uma malha fiscal com o prazo se esgotando para retificação do Sped Contábil (ECD) com repercussão no Contábil Fiscal (ECF) e multas acima de 100k em jogo. Ao demandante, na véspera, foi enviada uma notificação com o dia e hora da reunião em negrito, além dos dados de acesso. No dia seguinte, até 08h30, como segue o protocolo que adoto, foi enviada outra notificação lembrete da reunião com as mesmas características. Com duas notificações recentes em seu privado do WhatsApp a indicar visualização, além da confirmação do agendamento 10 dias atrás (em comunicado no mesmo privado do WhatsApp), chegou a hora da reunião e o demandante não compareceu. O tempo limite de espera é de 20 minutos e com 10 minutos de atraso foi enviada outra notificação. Por se tratar de um assunto de nível máximo de prioridade, a envolver notificações críticas da Receita Federal com prazo final próximo, o protocolo determina entrar em contato com o contador por outro meio, no caso, o telefone e ao atendê-lo, após algumas tentativas, ficou nítida a surpresa com o contato; ambos, chefe e assistente, estavam crentes de que a reunião, prevista para durar duas horas, seria no dia seguinte e não naquele momento.
O que aconteceu? O assistente do contador viu mas não leu as notificações mais recentes. Sua mente estava programada para “ver” uma data enquanto minha notificação mostrava outra pois, tinha na sua agenda uma anotação para o dia seguinte, que foi realizada com base em uma leitura errada que fizera do comunicado de agendamento, a que lhe foi encaminhada havia 10 dias. Do erro da anotação se originou todo o processo de confusão e assim seguiu, pelo viés de confirmação, sem nível de atenção suficiente para ler os dois comunicados (véspera e dia da reunião) e perceber a inconformidade com a data registrada erroneamente em sua agenda. E se nem no privado a atenção fora suficiente para conferir datas, as outras fontes de informações (externas) passam ainda mais distantes: a do site, onde a grade semanal de agendamento é publicada, e a ordem do dia de atendimentos, publicada no grupo de WhatsApp. O desencontro consumiu 25 preciosos minutos da reunião.
Um tempo depois o funcionário ficou cobrando a si mesmo sobre sua constante falta de atenção (bom sinal) em face de outros esquecimentos que estão a desgastar o relacionamento profissional com o seu chefe. Propus ao jovem uma autoavaliação sobre como utiliza tecnologias de atendimento durante o expediente e o resultado foi alarmante: além das rotinas contábeis e fiscais que, por si já comprometem o expediente na íntegra, ele precisa ficar atento ao WhatsApp da empresa nas chamadas no privado e no grupo criado para clientes (este último passei a chamar de CDA – Central para Desvios de Atenção), além do e-mail e do Instagram.
Minha conclusão: o funcionário vive sob um conjunto desumano de tarefas. É o típico caso onde o uso de tecnologias para relacionamento com clientes provoca o caos e não agrega valor em termos de bom atendimento.
E em sugestões solicitadas, apontei:
- Estabelecer uma política de atendimento eletrônico;
- Estabelecer processos internos de triagem de tarefas;
- Revisar o ambiente de trabalho de maneira a evitar o constante fluxo de pessoas estranhas à realização das tarefas ao mesmo tempo em que tenha um agenda de humanização de relacionamentos com atividades a serem promovidas pelo RH;
- Como desdobramento do item 2, robotizar os atendimentos no privado do WhatsApp, no Instagram e no e-mail, canalizando os pedidos para posterior análise e classificação de graus de prioridade, dando sequenciamento lógico às tarefas;
- Transformar o grupo de clientes no WhatsApp para o modo comunicação de maneira que somente administradores possam postar mensagens que se destinam a informar fatos relevantes (mudanças nas legislações, notas de esclarecimento, horários de expedientes, etc). desta forma, este canal deixar de ser uma fonte constante de desvios de atenção forçados por clientes que precisam ser educados no processo de atendimento.
Por último, penso que a crise de atenção não se combate efetivamente com sistemas de atendimento e sim com um processo de educação de colaboradores e clientes mediante uma política para uso dos meios de atendimento que neutralize imediatismo e torne a produção auto sustentável a formar um conjunto de normas orientadas por um código de ética.
01/01/2024 Homo Analgesicus
por pastor Abdoral
“A mudança de paradigma em torno da dor traduziu-se uma prescrição maciça de comprimidos de bem-estar”
(Anna Lembke, psiquiatra americana, em Nação dopamina)
Do alto da montanha, nesta chuvosa tarde debutante do ano, aqui estou a cumprir a convocação do meu amigo de infância que, no dia 18 do derradeiro mês do ano que há pouco se findou, teceu em Uma leitura ao dia [1] curioso comento sobre a obra Nação dopamina, da psiquiatra americana Anna Lembke, autora de outro livro com um título bem sugestivo, Nação tarja-preta, o que me fez pensar no tipo comum: o Homo Analgesicus, assim denoto o indivíduo deliberadamente devotado a evitar o sofrimento, anular a dor, em suas mais diversas formas.
Evitar a dor hoje é o maior mimo que a medicina oferece como praxis ao Homo Analgesicus, algo bem diferente do que ocorria no século XIX quando a dor era tolerada e até incentivada na prática da medicina, segundo conta a psiquiatra, contudo, penso, longe de ser uma questão consoante ao aspecto material da vida, a dor física é um temor menor perto da dor psicogênica, onde os “controlados” Diazepans da vida são requisitados. Nada como uma boa receita de um relaxante ou ansiolítico para quem busca alívio imediato em um sofrimento emocional. Infelizmente, na busca de se evitar ou abrandar uma dor na alma, podem se desenvolver outros problemas que vão desde a dependência química à passividade na falta de enfrentamento de dilemas ou dificuldades inerentes à existência. Quando o Homo Analgesicus se torna um dependente da química farmacológica que lhe evita a dor, de tal maneira passa a confundir os sintomas com as causas na dificuldades do viver, com as questões que precisam ser resolvidas, e tudo passa a ser visto como angústia, ansiedade ou profunda tristeza.
Quando o desejo de se evitar a dor emocional passa a ser sinônimo de desejo de se evitar dificuldades, descobre-se que não há remédio eficaz para tratar dilemas na vida que exigem enfrentamento, embora muitos palestrantes de auto ajuda e líderes religiosos queiram nos convencer do contrário. Não apenas coachs e pastores de prosperidade exploram este mercado como exímios vendedores de ilusões, outros tipos como economistas de linha intervencionista vendem “soluções” para diminuir as dores de ciclos econômicos em fase terminal ou de bolhas em estouro, o que atende pelo nome de “políticas anticíclicas” que não são nada além de antidepressivos aplicados no sistema econômico que, ao terem seus efeitos cessados, tornam em dores ainda maiores aos “pacientes” ou seja, aos agentes econômicos “beneficiados” com as políticas de intervenção.
Não há relaxante, ansiolítico, antidepressivo que tomem decisões por nós, isso é óbvio, mas alguns agem como se tais coisas existissem; decisões têm que ser tomadas sejam certas e significativas ou erradas, muitas de alta complexidade diante das dificuldades, que provocam dores, caso contrário, alguém ou algo as tomará por nós e se chegarmos a este ponto, perdemos nossa autonomia, nos tornamos “vegetativos” no intelecto quanto às aptidões para tratarmos de nossos próprios dilemas.
Se uma vida desorganizada, seja material ou espiritual, financeira ou afetiva, trás dificuldades, entra as quais síndromes de ansiedade e depressão, quem sabe tais problemas começaram a se agigantar por causa do comodismo de se evitar decisões delicadas ou por decisões infelizes, mal refletidas. No entanto, também nos impõe uma carga considerável de dificuldades manter uma vida em ordem, as finanças em dia, os relacionamentos afetivos saudáveis, entre outras demandas da existência. Em suma, o Homo Analgesicus não poderá contar com seus remedinhos e apetrechos de relaxamento, programas de entretenimento, experiências religiosas apenas baseadas na emoção (culto-show que é a cervejinha e a balada do crente), para resolver tais questões; cedo ou tarde, terá que fazer escolhas sobre as dificuldades que deseja lidar na vida, sejam as que se originam por preferir subterfúgios, comodismos, infidelidades, falta de empatia e de coragem, sejam as que se dão pelo comprometimento, pela fé e pelo amor a Deus que se traduz em integridade no amor ao próximo, pela verdade dentro de si, pela dedicação com as coisas que realmente importam, muitas vistas como “pequenas”, pela seriedade, pela ética, pela compaixão, pela fidelidade e toda forma moral onde se é possível ter enlevo espiritual no sofrimento.
Se a vida do acomodado, do mentiroso, do irresponsável, do desonesto parece ser uma tentação quando se pensa em atalhos ou em evitar sofrimento para se ter êxito na vida, na medida em que aqueles que se conduzem assim têm que lidar com as consequência de seus atos, passam a um sofrimento em dores na alma em níveis onde a medicina farmacológica, que fascina hipocondríacos, não pode solucionar em termos de causas, apenas cuidar dos sintomas, ao mesmo tempo em que ser comprometido, honesto, responsável, gera uma carga de dores e dificuldades inevitáveis, sobretudo em um mundo onde a degeneração da sociedade se tornou tão intensa, onde ser honesto, ético, íntegro e sério podem ser qualidades tratadas como coisas “inconvenientes”. No enfrentamento da vida é impossível escapar do bojo de dramas sociais de se estar constantemente em dificuldades éticas que ultrapassam os limites de todo tarja-preta.
O Homo Analgesicus segue bem educado no vicio de tratar os sintomas e não dar muita atenção às causas de seus dilemas, remediando pela buscar de atalhos em vez de soluções sustentáveis, e assim se distancia da arte de viver bem, que consiste não em evitar, mas em saber escolher as dificuldades da vida.
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