E eis que uma leitura ao dia abre o mês da primavera com um encontro extraordinário de Martha Argerich (Argentina/Buenos Aires, 1941) e Mischa Maisky (URSS/Letônia/Riga, 1948) a tocarem a Sonata D 821 de Franz Peter Schubert (Áustria/Viena, 1797-1828), enquanto cuidava das minhas amigas do jardim, afinal uma boa música para o espírito é um bálsamo em tempos de grande poluição sonora bancada com o dinheiro de quem paga impostos.

09/09/2024 00h01

Imagem: Universität Konstanz

Jan Assmann

“Taking Exodus as a myth does not mean that we are dealing here with pure fiction without any historical core. Myths may very well be based on historical experiences. […]”

Obra: Exodus and Memory. Em Israel’s Exodus in Transdisciplinary Perspective. Springer, 2015, Cham. De Jan Assmann (Deutschland/Langelsheim, 1938-2024).

Este trabalho me atualizou sobre temas do êxodo bíblico até 2013 com abordagens que tinha conhecimento e novidades. O texto foi derivado de uma conferência em um evento na Universidade da Califórnia entre 31/05 e 03/06 daquele ano (Prefácio, v), dada pelo egiptólogo alemão, que também foi cientista da cultura e das religiões.

Assmann trabalha o êxodo sob a concepção de mito, algo que assimilei no seminário entre 2003 e 2007. No trecho (p. 5), aborda um problema melindroso: tratar o êxodo bíblico no Egito como um mito “não significa que se está lidando com pura ficção, sem qualquer núcleo histórico”, pois, entende, “os mitos podem muito bem ser baseados em experiências históricas”.

Quando saí do seminário, consegui finalizar uma questão que me incomodava: a historicidade do êxodo bíblico sob o protagonismo de Moisés. Isso posto, até 2003 lia o Antigo Testamento como se normalmente lê nas igrejas: como relato histórico sob a camada devocional, sendo o Pentateuco de autoria de Moisés (outra lenda), tudo a formar um bojo de tradições orais lendárias que foram se desmontando ao longo das aulas e, sobretudo, nas leituras nos “pulmões”. Penso que gostava mais da biblioteca do que das aulas, não por conta dos professores, que eram competentíssimos, mas sim devido ao ambiente; estava cercado por muitos discentes religiosos com mentalidade simplista e fundamentalista de igreja, e poucos com espírito acadêmico. Já na biblioteca, quando não estava só, era acompanhado por algum colega que tinha objetivos comuns em relação ao que se busca em um ambiente de espírito crítico.

Então, quando passei a ler as histórias de Moisés e o Êxodo como lendas, surgiu o problema sobre o que estaria por trás das narrativas, pois considerar que são mitos não diz muita coisa. Pensei que há uma história riquíssima que deve ter corrido por dentro da construção desses mitos e isso me fascinou quando tomei consciência. Notei algo familiar nesta abordagem do professor Asmannm quanto ao peso de interesses políticos na modelagem da mitologia, algo que tenho como linha de reflexão há algum tempo sobre o Pentateuco. Penso, pelo que entendi do texto cujo Abstract sinaliza, que se indica o Êxodo como “versão narrativa da grande transformação do politeísmo para o monoteísmo bíblico na antiguidade, cujo interesse da história, na qual o antigo Egito desempenha um papel tão papel importante e sinistro, não está no que realmente aconteceu, mas como, por quem, quando, em que forma e com que propósito foi contado em ao longo dos milênios. A história do Êxodo trata acerca do nascimento em viés revolucionário de um povo e de uma religião. Tem aspecto político e religioso; ambos estão ligados […]” (p. 1).

O que penso dos mitos de Moisés e do Êxodo, ambos como construções narrativas, é que foram elaboradas por um pano de fundo ideológico de poder político para uma auto afirmação voltada ao controle social, eis o que teoricamente consiste de historicidade a ser investigada. A religião institucionalizada é uma ferramenta de manipulação social e isso é um alvo comum da política. Quem controla as narrativas de fé religiosa, melhor submeterá os governados a seus interesses de poder. Então, talvez, a elaboração dos mitos de Moisés e do Êxodo, ao mesmo tempo em que forjaram o herói antigo que conduziu o povo à libertação, abrem o espaço vital para que o sistema religioso seja propagado como razão de ser do próprio povo que cultiva a crença religiosa, logo ter o controle desses esquemas narrativos significa dispor de um instrumental político.

Penso que a leitura devocional feita em igrejas, ao explorar mitos como se fossem histórias reais, provoca diversos problemas que passam desapercebidos pelos devotos. Certa vez escutei um sermão sobre a queda de Jericó, e enquanto o pastor se empolgava com a vitória dos eleitos por Deus para a “terra prometida”, pensava no genocídio que exaltava no púlpito: a matança de mulheres e crianças em nome de Deus. Isso ocorre, penso, justamente porque a camada devocional esconde dos fiéis a camada de possíveis interesses político-ideológicos que exploraram o mito na construção dos textos.

Torno ao texto do professor Asmann, e penso no que analisa sobre os apelos dos profetas (p. 5), sobre as tradições e no contexto da vassalagem com os assírios, onde o antigo mito da libertação do Egito ganha outra dinâmica nos acordos políticos, no contexto do que teria sido a primeira versão do Deuteronômio (2 Reis 22–23), onde se aplica”o mesmo conceito politizado da antiga ideia de fidelidade e amor entre Yahweh e Israel no Livro do Êxodo”, então, “o tratado ou a ‘aliança’ não é mais uma metáfora, como o matrimônio ou filiação, mas é coisa real” (p. 6), penso, aproveitada pela elite política que fez o acordo no pós-exílio. Asmann indica três elementos interessantes que ajudaram a enriquecer minha linha de pensamento na exploração política dos mitos: (1) a “teologização” do conceito político de aliança, (2) a transformação de um código de direito secular em ius divinum – ou seja, a Torá – e (3) a história humana na história sagrada (p. 7); eis o ponto do texto que me foi mais significativo nessa atualização.

08/09/2024 15h27

Imagem: DW

Karl Marx

“O comunismo é a eliminação positiva da propriedade privada como auto-alienação humana e, desta forma, a real apropriação da essência humana pelo e para o homem. […]”

Obra: Manuscritos Econômicos-Filosóficos. Capítulo 6. Terceiro manuscrito. Propriedade privada e o comunismo. Martin Claret, 2003, São Paulo. Tradução de Alex Marins. De Karl Marx (Reino da Prússia/Renânia-Palatinado/Tréveris, 1818-1883).

Havia algum tempo não revisitava meu herói da adolescência, fase da vida em que algumas crenças da infância se esfarelaram, enquanto afloraram outras essencialmente análogas que foram até o início da juventude. Tive contato pela primeira vez com o pensamento de Marx na adolescência: estava na Livro 7 quando vi em destaque uma edição de O Capital [257] resumida por Julian Borchardt (1868-1932).

A minha vida de crenças políticas foi uma sequência de metamorfoses; começou em uma forma boba, diria lúdico-literária em um adolescente com fantasias na receita de bondade do comunismo, seguido por um jovem frustrado com O Estado e a Revolução, de Lênin, e que assim passou a considerar “apenas” a transição (sabia bem diferenciar as coisas) ou seja, o socialismo, e logo depois, em meados dos anos 1990, sofreu outra metamorfose quando passou a se identificar com a social democracia e entender que sem mercado a “justiça social” não se sustenta. Foi a época em que se tornou eleitor do PT, para então romper, chegar aos 28 anos e se ver como “liberal em economia”; estava crente de que era de “centro direita”, mas essa fase durou pouco (até 2006) quando passou a estudar com mais afinco a Escola Austríaca, empreendimento que inaugurou um processo de metanoia por quase 12 anos de leituras e reflexões onde tudo desabou e o que foi construído no lugar reside no seu eu do momento; um sujeito que procura enxergar a política como ela é e não como gostaria que fosse, enquanto tenta não ser muito prejudicado por ela.

O meu eu adolescente nutria certo fascínio pela União Soviética e por Cuba enquanto queria entender melhor o comunismo, o que parecia ser uma coisa maravilhosa na sua ingenuidade, mas logo deu lugar a um estado de decepção, a partir do contato que teve com a obra Perestroika, em 1988, e percebeu, nas entrelinhas, que algo sério estava a comprometer aquela crença política que tinha até então. No decorrer de 1991, com as notícias que chegavam de uma crise profunda que culminou na dissolução soviética no final do ano, e com o conhecimento que tomou do que realmente ocorria em Cuba e no leste europeu, conseguiu entender que o comunismo era outra coisa, mais perversa que o imperialismo americano que tanto o enojava (e ainda o enoja). O fim da super potência soviética o fez reler a edição resumida de O Capital, mas não encontrou respostas, algo que somente teria com Mises, muito tempo depois, a partir de 2006. Tinha algo no sábio austríaco que ele não tinha aprendido na faculdade e foi ano seguinte que tomou conhecimento do artigo sobre o problema do cálculo econômico em sociedade sob o socialismo, o que começou a esclarecer a causa causante da derrocada soviética, e o que mais lhe deixou perplexo: foi produzido em 1920 [257].

Do meu eu que passou nos anos 1990, sobre o trecho (p.138) desta Leitura, lembro-me de quando um professor falou sobre o comunismo ser o caminho para a “real apropriação da essência humana”, nos “manuscritos de Paris”, obra que procurava e não encontrava em paralelo a O Capital. O comunismo como “naturalismo inteiramente evoluído” soava tão belo no dito de um professor curiosamente religioso e combinava tão bem com a concepção que eu tinha à época na consciência de viver em um país tão problemático (final dos anos 1980, era bem pior que o Brasil atual) estava na falta de humanidade do “capitalismo” que era um produto tão-somente dos poderosos, pelo menos era o que em minha mente juvenil interpretava. Ainda no contexto do trecho, lembro-me de outro professor, em meados dos anos 1990, desta vez de economia, que conheci na graduação antes de entrar no seminário. Ele tinha ido da fé batista (passou pelo seminário nos anos 1980) ao ateísmo marxista e me falou com brilho nos olhos sobre o comunismo ser “a verdadeira solução do conflito entre a existência e a essência”, e o que soava tão “filosófico”, apenas soava, pois ele estava a falar com outro descrente, no entanto justamente no reverso daquilo em que o docente abraçou após sua desconversão.

257. 10/05/2022 22h20

07/09/2024 13h05

Imagem: CAMHS Professionals

TEA

“Em 2014, a American Academy of Pediatrics emitiu um parecer recomendando que turmas do ensino médio não deveriam começar as aulas antes das 8h30min.”

Obra: O que a ciência nos diz sobre o transtorno do espectro autista. Fazendo as escolhas certas para o seu filho. 6. Exercício, sono e TEA. de quanto sono seu filho precisa? Artmed, 2021, Porto Alegre. Tradução de Sandra Maria Mallmann da Rosa. De Rafael A. Bernier, Ph.D., Geraldine Dawson, Ph. D e Joel T. Nigg, Ph. D.

Trecho (p. 150) curioso desta obra de utilidade pública. Menos de 20% das escolas seguiram a recomendação, afirma o trio Ph. D.

Por que começar as aulas um pouco mais tarde? São necessárias, pelo menos, 9 horas de sono, para adolescentes (p. 149), grupo etário que apresenta “retardo nos relógios circadianos” evidenciado pela maior resistência a ir para a cama mais cedo do que se observa em adultos, algo natural, mas que se torna “uma situação especialmente difícil” quando há o transtorno do espectro autista (TEA, p. 150) onde não se pode perder o sono, reparação que, segundo cientistas do sono, não apenas útil, é necessária (p. 146) em benefício da aprendizagem e da autorregulação (p. 150), “para manejar estresse e emoções e para ter a capacidade mental para a atenção focada” (p. 146); desta forma, sem o ajuste no horário de início das aulas que possibilite mais tempo de sono a considerar o problema do retardo nos circadianos, entendo, apontam que o acometido por TEA estará em desvantagem ainda maior. Aqui penso quando indicam que crianças com TEA podem enfrentar dificuldades à aprendizagem acadêmica a envolver transições e o manejo de interações sociais, até mesmo a ocasionar atrasos intelectuais (p. 138).

Então pensei em um aluno do ensino médio que consiga ir para a cama às 22h00, o que seria um feito louvável nos dias atuais. Adicionei as 9 horas de sono apontadas, mais 2 horas entre o despertar, as necessidades habituais, a incluir o desjejum, e o tempo gasto para chegar até a escola e se acomodar na banca de estudo, o que implicaria no início ideal das aulas às 09h00 ou seja, penso, a recomendação faz sentido.

É durante o sono que o cérebro “cria novas conexões, armazena memórias e recupera as células”, o que implica que durante essa reparação “a aprendizagem acontece”. Se uma criança parece aprender algo em um dia, mas precisa aprender tudo de novo em outro, os autores indicam a situação como um exemplo de “falha na consolidação da memória”, o que impossibilita o aprendizado (p. 145), o que, penso, face ao que ocorre durante o sono, relaciona-se com a abertura do capítulo ao abordar ao quão o cérebro é maleável e “plástico”, no sentido de “a um nível surpreendente, ‘reinventar-se’ com a aprendizagem, a experiência ou a estimulação certa”; sabe-se agora que alterações epigenéticas no cérebro o ajudam nesse intento (p. 133).

A leitura desta obra, no tocante ao que acontece no sono reparador, fez-me lembrar de uma decisão que tomei no final de 2022 de concentrar o trato dos problemas mais complexos de minhas triagens na consultoria, justamente na abertura do expediente, das 8 às 9h, assim como concentrar os agendamentos com temas mais desgastantes pela manhã, de maneira que vou suavizando o estresse no decorrer da tarde até o fechamento da jornada laboral do suporte.

06/09/2024 23h17

Imagem: Jornal Opção

Otto Maria Carpeaux

“[…] homem bilíngue que escreveu em português e inglês, maçom e partidário da ditadura militar, sabastianista místico e descrente blasfemador, contabilista que vivia na fabricação de horóscopo […]”

Obra: Ensaios Reunidos. Volume I. 1942-1978. Os heterônimos de Fernando Pessoa. Topbooks/UniverCidade, 1999, Rio de Janeiro. De Otto Maria Carpeaux (Áustria/Viena, 1900-1978).

Carpeaux a descrever traços de personalidades nos heterônimos de Fernando Pessoa (1888-1935).

Seriam máscaras de anonimato como contribuição mediante ao que a vida impõe, como sugere (p. 710), penso, para um mundo naturalmente plural quando se transpassa por ambientes tão diversos, em alusão ao que comenta? Ou seriam máscaras de encarnação? A comparação que Carpeaux sugere com o que fizera Søren Kierkegaard (1813-1855) foi o que me veio em mente (p. 710), quando a partir de 2004 passei a notar certa similaridade na forma de se atribuir a personagens a autoria da própria construção, mesmo diante de teores com propósitos distintos (poesia e filosofia), o que ligaria Fernando Pessoa à corrente existencialista europeia (p. 711), no entanto, penso, o gênio português não o seria, assim como Joseph Conrad (1857-1924) tão-somente definido pela forma de se comunicar por múltiplas personagens. Talvez sua construção poética, nada sistemática, se aproxime mais do conceito existencial que Carpeaux reconhece como algo que custa a empregar (p. 711).

Há um traço marcante em Fernando Pessoa no que chamo de inconclusividade eterna, não sei se porque o poeta português passa para mim uma relação forte, profunda, com a contemplação do ser natural enquanto se volta em uma poética de “eterno retorno”, e assim abre perspectivas onde o humano se entrelaça por caminhos de pensamentos que, em algum instante, rompem com a personalidade de até então para emergir em outra, e isso a ponto de se tornar um heterônimo.

Então torno a Carpeaux que menciona como um “método” a poesia heterônima a citar de Mensagem (p. 712):

“Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.”

Sobre o que Fernando Pessoa me transmite quando o aprecio, seja do ponto acerca do natural poetizado, seja pela “inconclusividade eterna” de seus versos fascinantes, encerro com Alberto Caeiro em O guardador de rebanhos:

“Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.”

05/09/2024 22h50

Imagem: Lapham’s Quarterly

Johan Huizinga

“Encontramos o jogo na cultura, como um elemento dado existente antes da própria cultura, acompanhando-a e marcando-a desde as mais distantes origens até a fase de civilização em que agora nos encontramos.”

Obra: Homo Ludens. 1. Natureza e Significado do Jogo como Fenômeno Cultural. Perspectiva, 2000, São Paulo. Tradução de João Paulo Monteiro. De Johan Huizinga (Países-Baixos/Groningen, 1872-1945).

Recordação dos tempos de seminário, nos “pulmões”.

Indaga Huizinga para apresentar sua ampla e interessantíssima abordagem sobre o conceito de jogo no âmbito da cultura:

“O que há de realmente divertido no jogo? Por que razão o bebê grita de prazer? Por que motivo o jogador se deixa absorver inteiramente por sua paixão? Por que uma multidão imensa pode ser levada até ao delírio por um jogo de futebol?”.

A intensidade e o poder do jogo não são elementos explicados por análises biológicas, afirma; trata-se de “uma evasão da vida ´real’ (p. 10) e assim não pode ser explicado pelo racional enquanto tem forma significante como elemento no palco social (p. 7); o jogo não tem função moral (p. 9), sendo evasão da vida ‘real’ (p. 10), seu significado no papel social, penso, relaciona-se com o que Huizinga afirma como força criativa, de representação imaginária; o jogo, “cria ordem e é ordem” (p. 11); está na atividade arquetípica da linguagem e da fala “como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas”, manifesta-se no manuseio das palavras cuja abstração oculta metáfora, onde residem o poético e o mito, este último como elaboração mais complexa do mundo exterior que se traduz nas bases do culto e origina “as grandes forças instintivas da vida civilizada: o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência” (p. 7).

O jogo opera poderosamente sobre o espírito humano; revela-se sedutor, provoca ao enfrentamento de dilemas enquanto excita à competição, não raramente ilude o jogador no apego ao “acaso”, alguns diriam “sorte”, enquanto pode se pautar como ingrediente de transtornos diversos; o jogo versa por uma pseudo-dialética que apela à razão em favor da intuição que desacata a lógica formal, flui pelo sentimento que rompe a sobriedade que se acredita ter, mas pode ser celebrado como coisa séria, não apenas ao degenerado. Pode ser uma atividade sem segundas intenções, lúdica-ingênua e construtiva de sociabilidades e afetos.

Entre tantos traços de sua disseminação na cultura, o jogo subsidia a representação, pode estimular fetiches, o cultivo de crenças e imagens pré-concebidas e assim revela índoles, mas pode esconder intenções disfarçadas na aparência de “santidade” no palco da vida onde se dissimulam pontos comuns na diversidade de propósitos, tanto egoístas, como altruístas, coletivizados ou sociais, por relacionamentos humanos orientados sob diversas interpretações da realidade.

O jogo no palco da vida se relaciona intrinsicamente com a máscara ou em sua natureza “extra-ordinária”, como afirma Huizinga (p. 13), do indivíduo disfarçado a representar outra pessoa e que se assume como tal onde “os terrores da infância, a alegria esfusiante, a fantasia mística e os rituais sagrados encontram-se inextricavelmente misturados nesse estranho mundo” (p. 13).

E, por fim, ao meditar no jogo como costura de fantasias, nada melhor do que pensar nesta época do ano em que surgem milhares de indivíduos numerados tão “bem intencionados” a melhorar o mundo torrando o dinheiro alheio, carregados de uma maquiagem de “cândido” que consegue, não raramente, disfarçar suas reais intenções.

04/09/2024 23h11

Imagem: Mises Institute

Hans-Hermann Hoppe

“As agressões e a guerra, diz-se com frequência, são resultado da civilização criada a partir da instituição da sociedade privada. Na verdade, a situação é praticamente o oposto.”

Obra: Uma Breve História do Homem. Progresso e Declínio. Capítulo I. Sobre a Origem da propriedade Privada e da Família. LVM Editora, São Paulo, 2018. Tradução de Paulo Polzonoff. De Hans-Hermann Hoppe (Alemanha/Baixa Saxônia, 1949).

“No dia em que o homem inventou o cercado, acabou a paz na terra”

Sempre que revejo o que chamo de “relicário da infância e da adolescência” com um boletim ginasial, alguns certificados, fotos (há uma com as professoras do primário que considero muito especial), percebo como me frustra ter vagas lembranças daqueles tempos tão significativos na formação do meu ser enquanto me esforço para recordar detalhes em meio à opacidade. No entanto há coisas que consigo me lembrar sem esforço, pois foram marcantes. Uma delas é a frase acima que escutei nos tempos do ginásio, protagonizada por um professor de história. Foi a primeira explicação escolar que me foi dada sobre o significado da propriedade privada, o que me veio em flash quando passei por este trecho (pp. 34-35) desta obra de Hoppe, a última que apreciei do filósofo austrolibertário.

Ao mencionar referências bibliográficas, Hoppe afirma que “o homem primitivo foi muito mais belicoso que o homem moderno” (p. 35). O “homem primitivo” romantizado por saudosistas da vida tribal, distante ser de minha realidade cuja instituição da família lhe fora estranha (base da propriedade privada),de seus filhos aos cuidados coletivos da aldeia, pois ninguém sabia ao certo a ligação paterna e nem fazia sentido essa questão por conta do padrão de relações sexuais com as responsabilidades de subsistência socializada na comuna, este ser humano que, não raramente, praticava canibalismo e sacrifício de crianças, penso.

Então torno ao argumento de Hoppe a citar estimativas de Lawrence H. Keeley (1948-2017), que menciona que “uma sociedade tribal conseguia dizimar 0,5% da população em combates todos os anos”, e se essa taxa for aplicada no século XX, Hoppe aponta que representaria “algo em torno de dois bilhões de pessoas (p. 35) o que, obviamente, não chega nem perto da mortandade produzida nas duas guerras mundiais e nos conflitos regionais do século comparado. Evidentemente o homem moderno consegue matar muito mais e com enorme celeridade por óbvia condição tecnológica, no entanto, o aspecto extremamente violento do homem primitivo revela que a relação da propriedade privada na origem dos conflitos humanos, não passa de uma narrativa fantasiosa que ignora o básico de que a vida primitiva não tinha propriedade privada de meios produtivos em termos individuais, cuja economia era de caça e coleta, com recursos de sustento coletivizados, sendo assim comunista, onde não se acrescentava nada para a subsistência, pois não havia agricultura, o que tornou natural a ocupação de territórios como um fenômeno de disputas violentas na medida em que a população aumentava nos encontros cada vez mais frequentes de tribos antagônicas (p. 37).

03/09/2024 22h25

Imagem: Aller Editora

Jean-Paul Sartre

[…] O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. […]”

Obra: O existencialismo é um humanismo. Os pensadores. Abril Cultural, 1984, São Paulo. Tradução de Rita Correia Guedes. De Jean-Paul Charles Aymard Sartre (France/Paris, 1905-1980).

Apologia do existencialismo feita por Sartre em uma conferência de 1945 realizada em Paris.

O homem em Sartre cuja existência precede a essência; inicialmente “não é nada”, será algo conforme o que fizer de si mesmo. Sendo assim, segundo o filósofo, não há natureza humana, não há um conceito universal para definir o particular, não há Deus para determinar o homem (p. 10), há “um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito”, e nesse sentido está sem amparo; “Deus não existe e que é necessário levar esse fato às últimas consequências” (p. 16), argumenta.

No lugar do homem-criatura, Sartre apresenta o homem que forja a si mesmo, sob o peso de ter que enfrentar a vida nesse decidir, angustiante via de regra, que se denota como pressão da realidade que o envolve,, “que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade” (p. 13), afirma. Aqui vejo uma referência do famoso conceito do homem “condenado a ser livre” de sua obra principal, O Ser e o Nada.

Sob o fato de ter que decidir, esse que entender ser o “homem-subjetivo” se questiona em seu íntimo e se não o fizer, “estará mascarando sua angústia” (p. 15). Argumenta Sartre que enquanto está diante da responsabilidade de fazer a si mesmo, de se assumir com efeitos que se estendem aos outros, a angústia é um componente desse processo; é “parte constitutiva da própria ação” (p. 16). Então, centrado no conceito de que o homem se faz levando consigo o peso de construir sua própria constituição, Sartre define sua concepção existencialista como um “humanismo”; trata-se de “uma doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana” (p. 5).

02/09/2024 00h01

Imagem: BBC

Sun Tzu

“Há momentos em que a maior sabedoria é parecer não saber nada.”

Obra: A arte da guerra. Os treze capítulos originais. I Análise e Planos. Jardim dos Livros, 2007, São Paulo. Tradução de Nikko Buchidô. De Sun Tzu (Reino de Chi, Século VI. a. C.).

Para um estudante de economia, deparar-se com um modelo de valuation aplicado em um caso real significava uma grande oportunidade de aprendizado. Por isso me ofereci para analisar a planilha que um cliente me apresentou sobre as bases de cálculo de um distrato entre amigos de infância. Passei alguns dias estudando os relatórios e as fórmulas quando percebi um problema em uma expressão dentro de uma função que afetava o resultado tomado do ativo imobilizado.

Levei então o que entendi como um erro para avaliação de um professor de financeira que tinha muita experiência em modelos dessa natureza. Passamos alguns minutos no quadro com a matemática. Eis que estava confirmado o erro. Fui até o cliente e apresentei o problema. Convidado a uma reunião para explicar o que descobri, fui interrompido pela ira dos sócios que ficariam no contrato social, mas o que tinha pedido a análise da planilha permaneceu sereno e, após mencionar este trecho, que depois descobri ser do capítulo I de A arte da guerra, sugeriu aos colegas que era necessário, no momento, todos ficarem calmos e discretos, pois só assim seria possível conhecer melhor as reais intenções do autor da planilha; “não vamos cair no erro de julgá-lo de forma precipitada, mas devemos ficar mais atentos aos seus movimentos de maneira que pense que somos inaptos a ter ciência desse erro que o beneficia”. Virou-se para mim e perguntou: “Leo, você já leu este livro?”. Respondi: “não, senhor”. Ele retomou e disse: “Leia-o assim que puder, é para toda sua vida, não apenas para generais”.

Passaram-se 26 anos e a sabedoria desta obra me veio novamente à baila: um contador de minha carteira de clientes estava preocupado com um consultor que, aparentemente, estava assediando o principal cliente de sua carteira de serviços contábeis. Em um relatório deixou a entender que seu cliente estava recolhendo tributos muito acima do que realmente deveria. Meu cliente queria respondê-lo logo, para demonstrar que estava atento a seu assédio. Foi quando sugeri que não fizesse nada em termos de discussão imediata com ele e parecesse inapto, incapaz, incompetente, despreparado. Recomendei: “Não responda às provocações, nem às indiretas. Sugiro ficarmos, no momento, em silêncio, vamos estimulá-lo a pensar que somos desqualificados, enquanto isso, vamos estudar ponto a ponto o que ele apresentou e marcar uma reunião no Zoom com ele e o seu cliente para tratarmos do assunto de forma profissional, respeitosa”. Durante os dias em que estudamos o relatório, descobrimos interpretações que, se adotadas, colocariam a empresa em situação de risco fiscal elevado. Consideramos os entendimentos consolidados pelo fisco e pelo poder judiciário como referências e não a heterodoxa linha de entendimento do consultor. O resultado é que o consultor ficou surpreso com a qualidade dos argumentos que desmontaram seu relatório e o cliente assediado percebeu claramente em qual lado estava a competência.

01/09/2024 20h28

Imagem: Grattacielo Intesa Sanpaolo

Alessandro Barbero

“[…] Del sogno e del cristogramma non sapeva nulla neanche il vescovo Eusebio di Cesarea, che nel 313-314 aggiunse gli ultimi libri all’Historia Ecclesiastica dedicando ampio spazio al racconto della battaglia di Ponte Milvio. Vent’anni dopo, scrivendo la Vita Constantini, Eusebio vi introdurrà una storia del tutto diversa […]”

Obra: Costantino: Il vincitore. Parte I · Adulatori e ideologi. ii · La storiografia del 312. 80 81
Problema storiografico. L’autenticità del sogno di Costantino. Salerno Editrice, 2016, Roma. De Alessandro Barbero (Italia/Torino, 1959).

Durante os tempos de estudante escutei diversas abordagens sobre a história da cruz que teria aparecido no céu, como um sinal de bênção para o imperador Constantino (?-337), mas foi por contato com esta obra do professor Alessandro Barbero que encontrei elementos mais substanciais, sobretudo acerca do problema historiográfico das versões conflitantes de Lactâncio (240-320) e Eusébio de Cesaréia (?-339) .

Trata-se de um relato sem base documental apoiado em testemunho. O sonho e o Cristograma nem mesmo o bispo Eusébio tinha conhecimento a considerar que em 313-314 acrescentou os últimos livros de sua Historia Eclesiástica com amplo espaço à história da batalha da Ponte Milvio. Porém, vinte anos depois, o mesmo autor escreveu a Vida de Constantino, uma biografia, e apresentou uma versão completamente diferente da batalha no tocante à aparição miraculosa da cruz no céu, em plena luz do dia e sob os olhos de todo o exército, não na véspera da batalha, mas mesmo antes da eclosão do confronto com Maxêncio (?-312). Eusébio conta que esta história lhe foi relatada em confiança pelo próprio imperador, e que tinha razões para crer em seu testemunho, o que torna a versão ainda mais diferente em relação ao que contara Lactâncio. Constantino deve ter lido De mortibus persecutorum, e ainda assim teve o cuidado de não confirmar a outra versão. Fato é que a versão posterior, tardia, contada por Constantino a Eusébio permanecerá desconhecida de outros autores cristãos contemporâneos, aponta o professor (p. 81).

Pensei em minhas passagens por Roma sobre a questão suscitada pelo professor sobre os escudos de várias legiões que podem ser verificados no Arco de Constantino, onde o Chi-Rho aparece discretamente em um única moeda de Cesare Crispo, cunhada em Trier em 322-323, o que parece irrelevante para um emblema (diferente do Cristograma) tão significativo que teria ocorrido antes da batalha. As representações do Cristograma em escudos apareceram com um pouco mais de frequência apenas depois da morte de Constantino, o que confirma, entre outras coisas, que os contemporâneos interpretavam o símbolo da forma como aborda Lactâncio, além de que “os símbolos cristãos eram visíveis nos escudos das tropas que marcharam nos desfiles triunfais a partir de 312”, o que é algo inquietante para o que a historiografia transformou em certeza em relação à versão de Lactâncio (p. 82).

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