Uma leitura ao dia saúda setembro com La Primavera del Prete Rosso di Venezia, Antonio Lucio Vivaldi (Serenissima Repubblica di Venezia, 1678-1741), interpretada pela então menina-prodígio violinista Maria Dueñas (Spaña/Granada, 2002) em um concerto quando tinha apenas 12 anos, com a Orquesta de Cámara Andrés Segovia.

Imagem: IPS

Isabella M. Weber

“[…] o Estado não deve trabalhar contra as forças espontâneas inerentes à economia, à sociedade e ao ambiente natural; ao contrário, deve usar essas forças para primeiro enriquecer e depois governar o povo. […]”

Obra: Como a China escapou da terapia de choque. 1. Participação burocrática no mercado. Os princípios da regulação de preços “leve-pesado” do Guanzi. Boitempo, 2023, São Paulo. Tradução de Diogo Fagundes. De Isabella M. Weber (Deutschland/Nürnberg, 1987).

Recentemente disse a um colega igualmente “austríaco” (alinhado com a Escola de Mises, Hayek, Hoppe e cia) que, para bem assimilar este livro da professora de economia da University of Massachusetts Amhers, será preciso recorrer à sabedoria zen de “esvaziar a xícara” pois, sem isso, ficará travado no velho debate intervencionismo versus laissez-faire.

Estou ainda no jardim da infância do pensamento econômico chinês e, após algumas madrugadas adentro tentando decifrar parte do enigma, no trecho (p. 61), entendo que identifiquei uma parte da essência do pensamento econômico predominante na atual China. Nem o modelo de planificação econômica sobre preços (o qual um tipo soviético ficou mais associado), nem o livre mercado no sentido do laissez-faire (utopia vendida no Ocidente), com pouquíssima atuação do aparato estatal. Quando menciono “utopia” para o laissez-faire, não significa que deixei de ser um apreciador do “livre mercado”; refiro-me tão -somente à hipocrisia da política no Ocidente de se apresentar como “capitalista” enquanto apela a intervencionismos avessos ao mercado, dos mais agressivos.

Percebi que na China não se aplica bem o conceito de “meio-termo”. É um tipo de “desenvolvimentismo reativo” orquestrado pelo Estado, que se pauta por indicadores de mercado e tem uma filosofia própria, antiga, que foi buscar, entre outras fontes, incluindo as de cunho neoliberal [456], inspiração em o Guanzi e o debate sobre o sal o ferro (pp. 54-72), um antiguíssimo texto chinês formatado em diálogos (p. 58), produzido majoritariamente entre o duque Huan (685-643 a.C.), e seu conselheiro Guan Zong (710-645 a. C.). No Guanzi há o princípio do “leve-pesado”, cuja interpretação usual indica que as mercadorias tidas como essenciais à produção e ao bem-estar são as “pesadas”, e as “leves” são as que não são essenciais.

Não se trata de uma definição estática. Possui um dinamismo conforme as circunstâncias, sendo a tarefa da política econômica, “pesar e equilibrar, usar o que é considerado pesado para compensar o que é leve. Ou, nas palavras do Guanzi, “usar o que é ‘pesado’ para atirar no que é ‘leve’, usar o barato para nivelar o caro, essas são as grandes vantagens que podem ser extraídas da aplicação da doutrina do ‘leve-pesado’” (em referência a Jichuang, A Concise History of Chinese Economic Trought, nota 45, p. 90). Os bens “pesados” são os mais escassos, não raramente sujeitos a problemas de monopólio, e representam reserva de valor (p. 62), sendo determinantes para o bom funcionamento da economia. Aos gestores governamentais cabe compreender a realidade passada pelo mercado, assumir o protagonismo pelo acúmulo do que seja “pesado” e assim criar condições para usar as relações de oferta e demanda para “enriquecer o Estado e ao mesmo tempo equilibrar e integrar a economia” (p. 63), fazendo uso do “princípio do qingzhong” (p. 64), o valor relativo das coisas (p. 54), a sugerir que o preço “depende de oferta em excesso ou em falta” (p. 65), considerando as sazonalidades (das estações) , de maneira que o Estado deve “usar o que é valorizado para adquirir o que não é valorizado e o que foi barato para aliviar o preço do que está caro” (p. 65, em referência a W. Allyn Rickett, Guanzi, nota 61, p. 91). O Estado então é um agente que realiza compras e vendas no mercado, de acordo com interesses de enriquecimento e estabilização de preços.

Em outras palavras, sendo o Guanzi uma das fontes que deu subsídios à reforma nos anos 1980, o que prevalece na China, penso, pode ser de um antigo pragmatismo político, sendo tradicional e intervencionista, que prefere não comprar briga ideológica entre os extremos que pautaram o debate econômico no século XX, os quais posso ilustrar como Keynes x Hayek no mainstream e, em bolhas austríacas e marxistas, Mises x Marx (os dois que, paradoxalmente, tanto apreço tenho).

456. 10/08/2025 16h19

Imagem: TVU Espanha

Walter Riso

“O que quase nenhum ambicioso sabe é que ser o ‘melhor’ não garante o bem-estar ou a felicidade.”

Obra: Maravilhosamente imperfeito, escandalosamente feliz. Premissa libertadora V. L&PM, 2023, Porto Alegre. Tradução de Célia Regina Rodrigues de Lima. De Walter Riso (Italia/Napoli, 1951).

Esta experiência de leitura tem uma curiosa relação com o que chamo de “paradoxo da pandemia”. Do que se trata? Desde 2005 passei a atender com foco no suporte remoto, o que tornou rara a atividade presencial e fez dos eventos em hotéis (até 2018) e treinamentos em escritórios (até 2019), oportunidades em que tive maior proximidade com os clientes.

Em 2020 quando estourou a covid-19, passei a investir maciçamente em vídeo conferência e então veio o paradoxo na distância forçada pela quarentena possibilitando uma reaproximação, no sentido em que ocorreram as conversas no Zoom: em um tempo de muito sofrimento coletivo, passei a escutar histórias de vida e até desabafos, o que fortaleceu vínculos me tornando muito mais próximo em comparação ao período em que realizava atendimento presencial.

Confesso ter uma inclinação para dar mais ouvidos a pessoas acima das sete décadas. Neste contexto se situa um contador que se desligou do escritório há dois anos, logo após alcançar 74 primaveras e ficar viúvo, quando então deixou a batuta para os demais sócios. Não tive como sentir sua falta porque ele continuou a solicitar agendamento, pelo menos, duas vezes ao mês. Ora pois, não trabalhando mais na empresa contábil, então, para quê servem os atendimentos? Conversamos sobre temas de legislação, novidades em tecnologia, e, em intensidade muito maior, problemas de economia, investimentos, história, política e até filosofia, de modo que, à mon avis, parece que virou uma terapia para ambos.

No caso do meu amigo no Zoom, quando ele estava na ativa, pude aprender um pouco de sua sabedoria na ética contábil, aprimorada ao longo de cinco décadas de profissão e, em especial, também nos tornamos mais próximos por um ponto em comum: o amor pela leitura. Neste contexto, quando nos reunimos, sempre há aquele momento em que um conta para o outro o que está lendo. Recentemente, ao informá-lo que tinha finalizado Maravilhosamente imperfeito, escandalosamente feliz, do terapeuta e professor italiano Walter Riso, após ele informar que irá conferi-la como sugestão de leitura, emendei um comentário: “verá que a quinta premissa parece ter sido escrita pelo senhor”, o que nos rendeu algumas risadas, e segui, “lembra-se de quando me disse que não importa ser o melhor no que faz e sim aproveitar bem cada momento para crescer como ser humano?”, é essencialmente isso que Walter Riso aborda nessa premissa (p. 98).

Nem dinheiro, nem status garantem uma boa qualidade de vida, aponta Walter Riso (p. 98) a definir (pp. 199-101) as características de uma pessoa de “Personalidade Tipo A”, que depende psicologicamente de mostrar que está no topo, é a “melhor”: querem estar sempre no controle, são agressivas, ansiosas negativamente, viciadas em trabalho, de modo que menosprezam sinais de estresse, repugnam o ócio, detestam o lazer habitual, além de que sofrem do que chamo da “síndrome da onipresença” [455] enquanto normalmente são utilitaristas (os fins justificam os meios), não medindo esforços para mostrarem a superioridade que acreditam possuir perante os demais.

Após ler para o meu amigo as páginas 100 e 101, ele logo se lembrou de quando conversamos, em outros agendamentos, sobre os casos em que se deparou, na sua carreira profissional, com pessoas tóxicas com complexo de superioridade, normalmente ocupando cargos de direção, sob muitas das características que Walter Riso aponta no capítulo.

455. 23/08/2025 14h06

Imagem: Portal da Literatura

Albert Camus

“Deixo Sísifo na base da montanha! As pessoas sempre reencontram seu fardo.”

Obra: O Míto de Sísifo. O Míto de Sísifo. Record, 2024, São Paulo. Tradução de Valerie Rumjanek. De Albert Camus (Argélia/Dréan, 1913-1960).

A leitura foi seguida por duas ilustrações do cotidiano:

São 16 e 45, Daniel torna ao absurdo diário em um misto de alívio e pesar; o primeiro por estar a 15 minutos do término de mais um plantão de suporte de TI em que nada de novo aconteceu, pelo menos debaixo do seu cinzento e extenuante céu de bugs em sistemas mal feitos combinados com clientes cuja a maioria está no rol dos insatisfeitos em atendimentos que ele realizou à risca no script, normalmente registrados no banco de dados do CRM como “finalizado com sucesso”; e o segundo, por saber que amanhã reiniciará a sua “rotina de Sísifo”, salvo se o mesmo céu desabar, sem saber se lhe restará algo extraordinário para fazer.

“Os deuses condenaram Sísifo a rolar incessantemente uma rocha até o alto de uma montanha” (p. 192), e desde quando a ele mencionei o mito, a partir desta obra de Camus, o jovem estagiário de uma grife de TI passou a considerar o “Sísifo que nele habita” e que, em um certo sentido, toma conta da vida de quase todo mundo que precisa diariamente “matar um leão” em uma rotina que parece não ter fim. Um pouco adiante, conhecendo parte de minha rotina profissional, perguntou-me sobre onde encontro tempo para Uma leitura ao dia, quando então lhe respondi: é a terapia para o Sísifo que habita em mim.

Sísifo segue a empurrar a enorme pedra na íngreme ladeira, para então vê-la despencar à base e ter que começar tudo novamente; ele desce “com passos pesados e regulares de volta para o tormento cujo fim não conhecerá” (p. 194), e eis que me vem por recordação a segunda ilustração, na imagem de um aluno a contestar o que entendeu por “falta de sentido” para o mito de um homem condenado a um loop de empurrar uma rocha ladeira acima, logo após escutar a abordagem feita pelo professor de filosofia, que então aproveitou para contar a história de um amigo sexagenário que passou a cultivar uma rotina de entrega total a cuidados paliativos mediante uma doença degenerativa que aos poucos toma conta da esposa. Um dia eles se encontraram para um breve cafezinho, e o seu amigo desabafou sobre a rotina que o leva diariamente à exaustão; desabou em lágrimas, mas o que faria em seguida o deixou ainda mais perplexo: rapidamente se refez, enxugou o rosto e lhe disse que tinha que voltar para “começar tudo de novo, até quando ninguém sabe”, mas não estava carregado de pesar ou melancolia; seu amigo tinha um ar de que o destino lhe pertencia ou no que Camus interpreta sobre Sísifo ter uma “alegria silenciosa” de um “homem absurdo” que “manda todos os ídolos se calarem quando contempla seu tormento” (p. 197) em uma “fidelidade superior” que “nega os deuses e ergue as rochas” (p. 198).

O olhar e o tom da voz do aluno então mudaram. Já não tinham mais a contestação de uma superficialidade, mas o contemplar de um horizonte profundo e aberto, no entendimento de que a beleza da vida pode se revelar na dureza da luta cotidiana que enche o coração (p. 198).

Imagem: EBC

Maria Leopoldina da Áustria

“O meu esposo se interessa somente pela maldita bruxa […]”

Obra: D. Leopoldina. A história não contada. A mulher que arquitetou a independência do Brasil. Parte III. Brasil – 1817-1826. A “mártir da paciência”. Ainda as dívidas de d. Leopoldina. Edição da Casa da Palavra, 2017, Rio de Janeiro, eBook Kindle. De Paulo Rezzutti (Brasil/São Paulo/São Paulo, 1972).

Em uma livraria de Lisboa conheci um professor português que deu a d. Pedro atributos impublicáveis, o que foi curioso de ouvir ao estilo lusitano. Quando lhe perguntei sobre o livro de Rezzuti que conta a história da imperatriz Maria Leopoldina da Áustria (1797-1826),o senhor não poupou elogios à obra e, sobretudo, à figura histórica da imperatriz.

Sem gerúndio (para não importuná-lo), ficamos a lamentar pela falta de amplo destaque da imperatriz no que é ensinado normalmente sobre a Independência do Brasil, não apenas em salas brasileiras, mas também portuguesas, pelo que escutei. Quanto à falta de destaque à d. Leopoldina, entendo que o professor está coberto de razão: foi a primeira mulher a ocupar o posto mais elevado na administração do Brasil na secessão da Coroa Portuguesa, processo pelo qual ela foi articuladora, deixando impressionado outro grande destaque, José Bonifácio, intelectual brasileiro muito bem considerado em Portugal. Foi d. Leopoldina quem sancionou, em 2 setembro, a deliberação do Conselho pela Independência (p. 182) [454]. Enquanto d. Leopoldina era muito inteligente, firme, estrategista e, o mais importante, fiel ao marido a aos brasileiros, o marido d. Pedro, segundo o professor, “não passava de um fidalgo cujos neurônios estavam mais dedicados a aventuras sexuais”.

É mesmo de causar perplexidade ver que uma das personalidades mais importantes da Independência do Brasil passou por um grande drama pessoal atrelado à sua vida pública. Primeiro com as aventuras extraconjugais do marido, sobretudo no caso da amante Domitila, a marquesa de Santos, e depois com o agravamento de suas finanças, causado por d. Pedro. D. Leopoldina certamente foi um caso do que hoje se classifica como pessoa “super endividada”.

O trecho (p. 284) é de uma carta ao seu secretário, Flach, no contexto em que ela implora para que consiga 8 contos de réis para cobrir obrigações. A imperatriz vivia em constante déficit em sua contabilidade, recebendo 1 conto e 600 mil réis por mês, verba limitada pelo imperador, que rompeu o tratado matrimonial enquanto desenvolveu uma fixação pela marquesa de Santos. O que d. Pedro autorizou para ser destinado à imperatriz nem chegava perto de cobrir os 34 contos anuais (p. 283) que a esposa precisava para cobrir despesas que envolviam a típica agenda da realeza à qual fora educada: “subvencionar seus asilos, dar esmolas aos pobres e doentes, cumprir com as pensões que precisava pagar e, ainda, cuidar de seu guarda roupa e de sua própria alimentação” (p. 283).

A “bruxa” é a famosa amante do imperador que, a esta altura, sem o peso da agenda de compromissos da imperatriz, gozava de amplo prestígio por parte de d. Pedro, envolto em uma paixão visceral e escandalosa. Enquanto isso, d. Leopoldina teve que suportar ver Domitila ser presenteada pelo marido e imperador com “palacete, joias, roupas, criados, carruagens e cavalos” (p. 284).

A imperatriz acabou ficando ao relento, mas tinha a simpatia de populares e seguia em uma desordem financeira que apontava um quadro de “abandono do lar” proporcionado pelo marido, a considerar o relatório do barão de Mareschal, de 13 de dezembro de 1826 (p. 286). Ainda em 1826 a imperatriz adoeceu, iniciando um processo que terminou em seu falecimento em 11 de dezembro daquele ano; começou com febre, passou por excreção vaginal, e então sofreu um aborto (p. 291) enquanto apresentava um quadro de melancolia (p. 292). Corriam rumores de brigas que antecederam aos primeiros sinais de adoecimento e até uma história de um pontapé no ventre, supostamente dado por d. Pedro que, afirma o autor, “se tornaria uma das maiores lendas envolvendo o primeiro imperador” (p. 287).

As dívidas de d. Leopoldina foram quitadas após a sua morte, por um decreto de 11 de outubro de 1827, com dotação de 80 contos de reis para os credores (pp. 284-285).

454. 07/09/2022 19h23

Imagem: Portal da Literatura

Franz Kafka

“K. não respondeu mais nada. ‘Devo’, pensou ‘deixar-me perturbar ainda mais pelas futilidades destes meias-tigelas – pois eles próprios se reconhecem como tal? De qualquer modo, falam de coisas de que não compreendem nada. A sua firmeza é produto da sua estupidez. Duas ou três palavras que trocarei com uma pessoa do meu nível tornarão as coisas incomparavelmente mais claras do que uma interminável conversa com estes indivíduos.'”

Obra: O Processo. Detenção. Publicações Dom Quixote, 2009, Alfragide. Tradução de Guimarães Editores. De Franz Kafka (Tchéquia/Praga, 1883-1924).

A essência do Estado estatal moderno consiste em produzir sistemas de poder e controle normativo institucional propositalmente de elevada complexidade, sendo assim incompreensíveis para o homem comum em sua individualidade que se apresenta vulnerável, não estando versado na enganosa moral da compliance, sendo a narrativa da detenção de Josef K, em O Processo, uma das mais poderosas metáforas a respeito produzidas no século XX.

Penso em duas linhas de interpretação. A primeira seria um problema restrito ao aparato jurídico normativo deste medonho estado moderno. A segunda envolve algo inerente ao espírito humano, independente do âmbito, ao lidar com aspectos coletivistas do poder. O realismo do romance, acerca da instrumentalização da burocracia na modernidade, aponta para uma descrição de um aparato público institucional, o qual o autor, assim como a personagem central, são íntimos, contudo, O Processo, de alguma forma, faz-me pensar em uma amplitude que me aponta mais à segunda linha de interpretação.

Kakfa atuou como funcionário da Assicurazioni Generali, depois em um instituto de seguros na Boêmia; ele certamente conhecia bem a burocracia, a complexidade dela derivada e os vícios de quem interpreta a legislação, fatores que tornam perdido, nesse emaranhado, o homem simples, transformado uma presa fácil. Josef K detido sem saber a causa, é uma metáfora, à mon avis, adaptável aos dias atuais, por exemplo, das legislações que fazem do Brasil um manicômio jurídico na teia de regras a indicarem uma estrutura montada para fazer com que o cidadão comum fique incapaz de cumpri-las, enquanto se torna facilmente manipulado por uma indústria de “especialistas” que dela toma proveito.

Desde quando tive o primeiro contato com esta obra, conservo uma interpretação de que se trata de uma sofisticada denúncia sobre a perversidade do mundo ordenado pela burocracia da justiça moderna, regada por um moralismo vazio que se camufla no seu poderio compulsivo, cuja hierarquia “abrange escalões infinitos e, mesmo o iniciado tinha dificuldade em se identificar nela” (p. 68), compondo uma vasta organização dissimulada “que não só emprega guardas corruptos, inspectores estúpidos e juízes de instrução modestos no melhor dos casos, mas sustenta além disso uma alta magistratura e uma magistratura suprema, com o seu incontornável cortejo de oficiais de diligências, de escrivães, de polícias e de outros auxiliares”, cujo sentido seria “fazer prender pessoas inocentes e em intentar contra elas processos judiciais loucos (p. 30), onde nos escalões inferiores atuam “funcionários desleais e corruptos, o que provoca de certo modo falhas no sistema fechado do tribunal” (p. 67).

Der Prozess (1914) me faz pensar em 1984, de Orwell, ainda quanto ao seu teor de denúncia em minha interpretação, onde também considero o elemento da advertência sobre para onde essa modernidade caminha. Em 1984 a denúncia e a advertência se entrelaçam no estado totalitário, a destacar o problema dos controles sociais de um aparato estatal fascista. Em O Processo, Kafka trabalha um subproduto deste poder violador: a burocracia, e de forma magistral demonstra como provoca danos comportamentais, partindo dos que atuam no aparato até os que são por ele coagidos e humilhados.

Imagem: University of Warwick

Drake Equation – Fermi’s Paradox

“Given the size and age of the universe, it would be surprising if earth was the only inhabited planet; not only would one expect life to be common, with at least as many, rather than than fewer, advanced beings than ourselves, but also vastly more sophisticated and revealing technologies – in which case, why do we not know about them?”

Obra: Fermi’s Paradox – Cosmology and Life. Chapter 11. FERMI´S PARADOX. Establishing Contact. 11.1. Introduction. Trafford Publishing, 2014, eBook Kindle. De Michael Bodin.

Li algumas versões deste famosíssimo paradoxo atribuído ao físico italiano Enrico Fermi (1901-1954). Desenvolvi uma versão pessoal, dedicada a um colega que acredita em vida inteligente fora do nosso planeta:

Na imensidão do Universo e nos 1,38 x 10¹⁰ de anos estimados à sua idade, penso o quanto considero intrigante a ciência ainda não ter conseguido encontrar vida além da que habita em nossa linda esfera azul no Sistema Solar. Sendo evidente tal vastidão em planetas, estrelas e sistemas, razoável é considerar que a vida seja potencialmente comum na Galáxia, então, onde se encontra, nessa diversidade, além da nossa espécie?

“Sou um descrente desse tipo de coisa; apenas a aprecio como arte, por romance, quando em um bom filme ou livro”, disse ao meu coleta entusiasta sobre a existência de vida extra terrestre. E o que isso significa em minha concepção? Algo simples: apenas acreditar, entendo, está fora da alçada científica. Quando alguém afirma que acredita na existência de ET, à mon avis, é tão-somente uma afirmação de fé como qualquer outra crença, sem base em evidência que possa ser atestada, demonstrada, sendo assim sem qualquer valor para uma abordagem científica. Até mesmo a Equação de Drake (imagem) requer humildade para considerar, como ressalva, que muitos dos seus termos são especulativos.

Pelo menos no que é de conhecimento público, em termos de disponibilidade científica, não há evidência de vida extraterreste, eis um fato, contudo, o mesmo espírito científico que não pode atestar algo apenas por convicção, não tendo competência para analisar questões de “fé”, deve-se manter vigilante sobre outro problema que lhe diz respeito: “a ausência de evidência não é evidência de ausência”. A minha descrença é para a afirmação “existe”, e não para a possibilidade de existir, a qual entra na questão probabilística da ciência.

Talvez não seja uma boa ideia, na perspectiva humana em sua linda esfera azul (quem sabe muito distante e quase imperceptível), procurar por vida inteligente fora da Terra ou ficar emitindo sinais de um “oi, estamos aqui”, pois, pensei, o que acontece na natureza quando uma espécie, em seu habitat, é descoberta ou identificada por outra mais evoluída ou potencialmente capaz de dominá-la? O que o ser humano costuma fazer com outras espécies na Terra?

Imagem: Editora Rocco

Clarice Lispector

“Eu me sinto uma charlatã. Por quê? É como se minha última veracidade eu não revelasse.”

Obra: Um sopro de vida – Pulsações . Rocco Digital, 2020, eBook Kindle. De Chaya Pinkhasivna Lispector (Ucrânia/Chechelnyk,1920-1977).

Uma experiência de leitura pode proporcionar momentos de transcendência quando o meu pensamento fica totalmente envolvido com as cifras do texto. Eis o que ocorrera quando logo em seguida li (p. 54):

“Eu tenho que tirar a roupa e ficar nua na rua. Isso não é tão difícil. Mas o difícil é ficar com a alma nua.”

É Ângela a falar, uma outra em Clarice, “um espelho” (p. 17), penso, quem sabe o que resultou de um sonho em que sua criadora brincava com o próprio reflexo (p. 17)?, eu diria, de tudo que desejava ser e não foi (p. 19). Quando a realizou, alcançou o que não sabia definir (p. 20).

Ângela seria uma heterônima?, ela é “ágil, graciosa, cheia do badalar de sinos” (p. 21); é para ser desbravada (p. 22) e foi revelada, quem sabe, em retribuição ao sopro de vida em que nasceu a escritora, que se sente enclausurada, e assim formam um dueto insólito para, talvez, “entender essa falta de definição da vida” (p. 12), formada por fragmentos aqui, acolá, de um “trabalho em ruínas” (p. 13) de uma mente inquieta que pulsa por vários caminhos, inclusive o “fatal beco sem saída” (p. 18).

Em seu “fôlego de sete gatos”, Ângela pode dar medo. Nela remonta uma longa saudade enquanto esconde o próprio fracasso e, em sua fragilidade, tristemente coleciona frases de amor. Ao se sentir uma charlatã, incapaz de se despir nas profundezas do seu ser, refugia-se em Deus (p. 54). Mas ela tinha que se desnudar, sair de si para se captar tonta em seu enigma e ficar amalgamada na própria identidade (p. 55).

Defrontando-se com o impossível de si mesma, assim ela desafinou e, fantasmagórica, seguiu no grave erro de pensar (p. 67). Carecia de um refúgio na loucura (p. 111) para o enfrentamento de sua nudez mais profunda, mostrando o que há de mais sujo e baixo em si mesma (p. 111), e destarte pode se conhecer além das trivialidades do lugar comum, para clamar pelo perdão e ter abertas as portas do céu e da percepção (p. 112).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *