O que é poesia?, perguntaram-me. Não sei, frustrante resposta… mas por um milagre a reconheço quando transpassa minh’alma peregrina, além de palavras e versos. Julho é recebido em Uma leitura ao dia na teatralidade de Jamie McDermott, com o seu disfarce em The Irrepressibles para ilustrar o fascínio do poético que me envolve e permanece em segredo na própria revelação.

Imagem: PETRLUDWIG Bio

Petr Ludwig

“Quando a paralisia decisória aumenta, aumenta também a procrastinação.”

Obra: O Fim da Procrastinação. Introdução. A atual era da paralisia decisória. Sextante, 2020, Rio de Janeiro. Tradução de Ivo Korytowski. De Petr Ludwig (Tchéquia/Pardubice, 1986).

Em um mundo “estonteante” de oportunidades e opções, com um vasto conhecimento acessível a poucos cliques, a expectativa de vida cada vez maior, menos violento, tudo em comparação com qualquer outra era (p. 21), verifica-se um cenário que aparentemente indica que nossa espécie hoje vive melhor, mas “por que não estamos significativamente mais felizes do que no passado?” (p. 22), pergunta Petr Ludwig. Aqui penso, como saber se os antigos eram mais ou menos felizes do que somos hoje? Não é possível saber, penso, mas há uma sensação desagradável no bombardeio de opções que o mundo tecnológico oferece.

Com um leque cada vez mais amplo de informações, soluções, ofertas, mediante um poderio para fazer escolhas, vivemos diante do que Petr Ludwig chama de “tesoura do potencial”, que nos é apresentada em paralelo com a liberdade individual para compor uma crença de que a felicidade advém do exercício nessa liberdade de definição (p. 21), contudo, quanto mais opções se tem diante de determinado problema, a considerar sua complexidade, mediante comparações que são exigidas, mas difícil será para se tomar uma decisão, o que tende a forçar o adiamento decisório, evento que é seguido pela ausência de ação, concluindo um processo que leva à procrastinação (p. 22). Eis o problema da paralisia decisória, mencionada no trecho (p. 23) desta Leitura. Em suma, ser exposto a opções em excesso conduz a este tipo de paralisia que é fonte da procrastinação (p. 23).

Até mesmo quando se decide, pode ser questionada a decisão tomada no sentido de indagar como seria caso a escolha fosse diferente, onde eventuais defeitos no que fora escolhido podem emergir, o que sinaliza um processo de dilemas que, de certa forma, continuam, mesmo após uma decisão.

O dilema de não conseguir obter uma definição sobre o que fazer diante de inúmeras tarefas pendentes é ilustrado no que escuto com frequência durante atendimentos no Zoom: “tenho tantas coisas para fazer que nem sei por onde começar”. Outra situação comum: o cliente está diante de um problema que começou a resolver, considerado muito importante, no entanto não consegue se desconectar do telefone e/ou do WhatsApp, e na medida em que retorna ligações e/ou mensagens durante a realização da tarefa em curso, com assuntos normalmente diversos, começa a reduzir o ritmo de maneira que, não raramente, interrompe a produção do que estava fazendo enquanto tenta lidar com as demandas que surgiram em paralelo. Na verdade, trata-se de um exemplo de paralisia decisória por conta da não decisão sobre o que é prioridade naquele momento em que realiza um a tarefa que fora planejada. São dois casos, entendo, quando não se tem uma identificação clara, objetiva, adequada, acerca de prioridades, onde tarefas que ficam melhor quando colocadas em sequência, convergem para o mesmo instante, que fica congestionado mediante a ideia ilusória de que os problemas são opções equivalentes quando na verdade possuem níveis de relevância e urgência distintos. Tratá-los como se fossem opções equiparadas em um leque conduz a uma paralisia decisória sobre o que importa e o que não importa para o momento, o que provoca um desgaste desnecessário que pode ser ilustrado em outra frase que também costumo escutar, normalmente no final do dia: “hoje trabalhei tanto, corri demais, mas não vejo resultado”.

Imagem: IPS

Isabella M. Weber

“[…] a mudança no fim da década de 1970 não foi o resultado de iluminações teóricas ou lutas ideológicas; para eles, tratava-se de um imperativo econômico.[…]”

Obra: Como a China escapou da terapia de choque. 4. O ponto de partida. A urgência da reforma e o papel dos preços. Boitempo, 2023., São Paulo. Tradução de Diogo Fagundes. De Isabella M. Weber (Deutschland/Nürnberg, 1987).

Obra com relevância para várias abordagens.

No trecho (p. 215) desta Leitura, “eles” são economistas e autoridade chinesas e internacionais, envolvidos na reforma econômica chinesa nos anos 1980, que a professora de economia da University of Massachusetts Amhers conversou, entre os quais estava Weng Yongxi, “um dos quatro cavalheiros da reforma” (p. 217). que associou a mudança no final dos anos 1970 como consequência de “um grande fracasso”; a China, ao longo de três décadas de dados continuava com sérios problemas de pobreza, onde 200 milhões dos 800 milhões de camponeses careciam de vestuário adequado e enfrentavam problemas de abastecimento de alimentos, com muitos fugindo para a colônia de Hong Kong (aqui, penso, onde o capitalismo pode ser definido no Brasil como “selvagem”).

É curioso observar como na China o controle administrativo dos preços, que inclusive bem lembra a autora, usado na industrializada economia de guerra dos Estados Unidos, foi deixado de lado pelos revolucionários em favor de um sistema de controle indireto através de agências estatais que realizavam intervenções determinadas contra ataques especulativos (p. 178). Então se verificou um imperativo econômico marcado por mudanças em comandos políticos e pela aceleração da abertura da economia ao mundo ocidental em 1977 (p. 218), logo após a morte de Mao Tsé-Tung (1893-1976), em um “adeus ao internacionalismo socialista e ao terceiro-mundismo” (p. 218) sob a ideia de “liberação das forças produtivas” que misturava o impulso de industrialização ao estilo soviético com a abertura ao capitalismo (p. 219), o que representou uma ruptura crítica à Revolução Cultural promovida por Hua Guofeng (1921-2008), considerado “um escudeiro relativamente medíocre de Mao” (p. 219), após os primeiros esforços de Deng Xiaoping (1904-1987) em 1975, ainda na era Mao, colocado no comando da modernização econômica (p. 217). Deng retornaria, desta vez para assumir o Comitê Central e o Politurbo, após o desgaste de Hua com o “Salto Adiante rumo ao ocidente” (p. 220).

A ideia de Deng proposta ao Partido Comunista consistia em abrir mão da abordagem doutrinária para aprender “pela prática , pelos livros e pela experiência, tanto positiva, quanto negativa, de outros, mas também da nossa própria” (p. 222). Entre os pontos revisados, o igualitarismo deu lugar a “cada um segundo seu trabalho” a exigir “pagamento de acordo com a quantidade e qualidade do trabalho realizado” (p. 222), algo bem mais próximo do capitalismo, em comparação com ideias marxistas que são defendidas atualmente.

Uma economia que recorre aos dados produzidos no mercado e com forte presença de empresas estatais e regulação voltadas para promover o desenvolvimento. Um modelo híbrido, penso. Nem o livre mercado, nem o socialismo marxista ou à moda soviética. A China redefiniu seu caminho de uma visão revolucionária implementada após a guerra civil para outro que estou longe de razoavelmente compreendê-lo. Alguns o chamam de “socialismo de mercado”, termo oximoro se o conceito de “socialismo” for marxista, outros arriscam um comunismo aprimorado. A única certeza que tenho é que preciso fazer uma longa jornada de leituras e reflexões para ter a chance de alcançar uma mínima noção do que realmente é o modelo chinês.

Imagem: Corriere della Sera

Corrado Augias

“Ancora in epoca moderna la consacrazione dei reignanti poggiava sulla formula che il sovrano riceveva la corona ‘per grazia di Dio”

Obra: Paolo. L’uomo che inventò il cristianesimo. 19. Como se fonda una dottrina. Rai Libri, 2023, Roma. De Corrado Augias (Italia/Roma, 1935).

Este trecho (p. 274) me fez lembrar de uma reflexão difícil que realizei sobre Romanos 13:1-4 lá pelos idos de 2007. Tudo começou com uma pergunta em meu foro íntimo sobre como conciliar a doutrina de São Paulo sobre a submissão devida às autoridades de governo com teologias de viés crítico-progressista ou revolucionário na política, o que envolvia exemplos que observava entre professores e pastores adeptos da “Igreja Integral”, alguns inclusive com viés marxista.

Desta primeira questão, um tanto rasa (hoje entendo), desdobrei em outra um pouco melhor: pensei em se tratar de um texto dificílimo quando se reflete acerca de governantes autoritários. Levado pela literalidade, argumentei, poderia justificar a submissão a um Hitler ou a um Stalin; seria uma base para suporte a regimes ditatoriais. Em seguida me veio a relevância do contexto histórico para entender melhor a questão. Então iniciei uma dialética onde encontrei uma síntese que apontava a situação de uma fé recém saída do judaísmo, advinda do Oriente, com suas particularidades acerca de uma divindade estranha à mentalidade romana pragmática e de panteão.

Um pouco mais entre teses e antíteses, notei que São Paulo versou sobre uma fé com um propósito missionário, expansionista, ou seja, bem diversa da religião-raiz pela qual ele tinha saído, desenvolvendo-se em um ambiente de império consolidado e com um sistema brutal de repressão ideológica contra quem ousasse fazer oposição. Não foi difícil entender que o envolvimento político de cristãos tornava inviável e até fatal sobreviver no propósito do “ide e pregai”. Qualquer polêmica de natureza política entre os seguidores da nova fé seria altamente prejudicial dentro das restrições já impostas pelo sistema romano. O que São Paulo orientou sobre este tema, entendo, pode ser visto como algo de inteligência estratégica (isso pensei sob o prisma de quem é indiferente à inspiração) ou um exemplo de pastoreio espiritual (para os que creem na inspiração) a considerar o seu propósito elementar.

De 2007 retomei à reflexão em uma recente leitura de cabeceira; entendi o quanto é injusto cobrar do texto uma suposta apologia à passividade para conformar quem obedece cegamente. O contexto histórico-político é uma chave indispensável. Depois pensei no momento atual de instituições democráticas que me cercam; de certa forma funcionam, apesar das dificuldades que enfrentam. Razoavelmente ainda vivo sob uma relativa liberdade de expressão em uma sociedade com forte presença de variadas confissões cristãs sob visões políticas diversas ou sem envolvimento mais notório, e então pude enxergar que a literalidade aplicada como interpretação do texto como tinha meditado em 2007, é ainda mais imprópria, inconsistente, no mundo atual, mais pluralizado e progressista.

A doutrina de São Paulo serviu para monarcas se ostentarem sob aspirações absolutistas, penso, mas foram abrandados pela fórmula com o acréscimo “e pela vontade da nação”, como bem lembra (p. 275) o autor, e também me fez pensar no perigo da literalidade mediante a arrogância de alguns “messias” que vez ou outra aparecem na política atual e chegam ao poder com a pretensão de atuarem como “voz divina”, o que significa que a crítica não deve ser feita ao texto em si, mas à interpretação literal, totalmente fora do contexto, por alimentar uma passividade tóxica que apodrece o tecido social que alimenta a vida política.

O problema que Corrado Augias aponta sobre a interpretação de Santo Agostinho sobre esta doutrina paulina, no tocando à autoridade política legítima ao serviço de Deus, o que envolvia a perseguição aos “hereges”, penso, é outro desdobramento que ficará para uma leitura oportuna em outro momento, feita em paralelo, com referências diretas a textos agostinianos.

Imagem: filosofia.arcos

Hannah Arendt

“More specific in totalitarian propaganda, however, than direct threats and crimes against individuals is the use of indirect, veiled, and menacing hintsagainst all who will not heed its teachings […]”

Obra: The Origins of Totalitarianism. CHAPTER ELEVEN. The Totalitarian Movement. I: Totalitarian Propaganda. Meridian Books, 1962, Cleveland. De Hannah Arendt (Deutschland/Niedersachsen/Hannover, 1906-1975).

Como o totalitarismo conquistou espaço político para chegar ao poder durante o século XX? Como foi possível o nazismo na Alemanha, o fascismo na Itália e o stalinismo na Rússia?

O stalinismo se revelou um caso bem à parte de uma pergunta que ocupou bastante meus pensamentos desde os anos 1990. Tive contato então com The History of the Russian Revolution [400], de Trotsky. Fora disso, na busca inicial por respostas, recorri somente a intérpretes e foi assim que entendi o bolchevismo de um lado “não totalitário”, sendo o stalinismo uma espécie de desvio que teria desvirtuado a “boa” revolução, para se aproximar do lado do fascismo e do nazismo.

Na década seguinte li O Caminho da Servidão [401] de Hayek, o que representou um recomeço por meio de uma visão que não tive a oportunidade de conhecer durante a graduação. Hayek me despertou para ver pontos em comum entre nazismo, fascismo e comunismo quanto ao totalitarismo. Do austríaco então fui provocado a ler Mussolini e Hitler em Dottrina del Fascismo [402] e Minha Luta [403], respectivamente; foram experiências que me deram uma visão menos superficial do que fora apregoado nos movimentos. Bem mais adiante, 1931: Debt, Crisis, and the Rise of Hitler [404] de Tobias Straumann e Il Primo Fascista [405], de Hans Woller, revelaram-se leituras bem proveitosas sobre como se deram os processos de conquista do poder.

Esta obra de Hannah Arendt se situa entre as que considero indispensáveis ao tema. A filósofa abre o capítulo a argumentar acerca do processo de conquista em torno da propaganda, disseminada de maneira que, “sob governo constitucional e liberdade de opinião, movimentos totalitários recorrem ao terror somente de forma limitada”; é algo “parcialmente verdadeiro” a propaganda e o terror como dois lados da mesma moeda, argumenta, pois em um ambiente com alguma democracia, totalitários “compartilham com outros partidos a necessidade de conquista de apoiadores”, de modo que “parecem plausíveis para um público que ainda não está rigorosamente isolado de todas as outras fontes de informação” (p. 361).

Entendo que nesta fase há uma sombra do terror pela polarização agressiva a tudo que não se submeta à sua visão de mundo, o que me faz pensar no que a autora aponta acerca da convivência da propaganda totalitária com a oposição, onde se evocam “insinuações indiretas, veladas e ameaçadoras contra todos os que não acatam seus ensinamentos”, como aponta o trecho (p. 365) desta Leitura. No comunismo, as pessoas que relutam ao movimento são apontadas como as que perderam “o trem da história”, e assim estão “irremediavelmente atrasadas em relação ao seu tempo”, e no nazismo, esse tipo de assédio foi trabalhado de forma ameaçadora sobre os que eram taxados como contrários “as leis eternas da natureza e da vida, com uma deterioração irreparável e misteriosa do seu sangue” (p. 365). Aqui penso o quanto em movimentos extremos, seja de esquerda ou de direita, é imposta uma carga de apelos sedutores pelo lado “certo” que dizem representar, enquanto propagam ódio a quem questiona suas ideias.

Somente após a consolidação do poder é que movimentos totalitários passam a substituir a propaganda pela doutrinação e “fazem uso da violência não tanto para assustar as pessoas (o que ocorre nos estágios iniciais, quando ainda há oposição), mas para concretizar de forma constante suas doutrinas ideológicas e suas mentiras práticas” que estabelecem por narrativas negacionistas acerca de problemas econômicos que afetam seus regimes, além de reescreverem o passado, como Stalin fizera em 1938 ao determinar uma nova versão oficial da história do Partido Comunista (p. 362).

Outro elemento que destaco na leitura está no papel de intérprete infalível do tempo, com ares de profeta que se atribui ao líder supremo a convergir com intenções ocultas, em um modo subliminar ou por meio de auto realização. Para ilustrar, encerro com uma fala de Hitler destacada pela autora, pronunciada no Reichstag alemão (janeiro/1939): “Quero hoje, mais uma vez, fazer uma profecia: caso os financiadores judeus… mais uma vez consigam lançar os povos em uma guerra mundial, o resultado será… a aniquilação da raça judaica na Europa” (p. 349). :

400. 09/03/2024 14h03

401. 22/02/2022 23h30

402. 31/03/2022 23h32

403. 21/05/2022 08h14

404. 22/01/2022 19h30

405. 01/02/2022 22h44

Imagem: Grupo Editorial Record

Elisama Santos

“Não existe disponibilidade infinita para o outro. Empatia pede energia, pede espaço interno, pede entrega, e nem sempre os temos.”

Obra: Conversas corajosas: como estabelecer limites, lidar com temas difíceis e melhorar os relacionamentos através da comunicação não violenta. Capítulo 5. O que a outra pessoa quis dizer? Não existe disponibilidade infinita para o outro. Paz e Terra, 2024, São Paulo. De Elisama Santos (1985).

Ter disponibilidade para o outro que nos procura em um momento de dificuldade e saber ouvi-lo são virtudes que compõem a empatia, uma capacidade inata (p. 138) que encontra certos empecilhos na sua execução (p. 139) sendo o primeiro, penso, relacionado com a citação que Elisama Santos faz de Escutatória, obra de Rubem Alves: “A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito” (p. 135), em silêncio, com calma, sem a pretensão de dar conselhos, para ilustrar a importância desse saber ouvir.

A empatia também pode esbarrar na atitude de se inserir o próprio sofrimento enquanto se escuta o desabafo do outro, evidenciando uma disputa pelo que a autora chama de “prêmio de perdedor patético” (p. 140) ou quando se tenta demonstrar que a dor do outro não é tão grande ao fazer comparações. Usar uma frase de efeito para tentar despertar o outro em aflição para uma perspectiva de positividade que, neste caso, é tóxica por mudar o rumo da conversa rompendo com o elemento essencial da escuta (p. 141) ou abordando a filosofia de vida que se adota quando o outro carece de ser visto “além da nossa forma de enxergar o mundo” (p. 142).

A empatia e a compaixão “pedem de nós uma abertura para a vida, que poucos temos”, afirma (p. 137) a psicanalista. Uma conversa com quem saber escutar vai fazer da angústia parecer algo um pouco menor; supera a simpatia que é importante mas, neste caso, insuficiente, “superficial, rasa” (p. 137). Contudo, receber empatia não significa que as dores desaparecerão, e sim de que se encontrará apoio para lidar com elas (p. 136).

Elisama Santos desenvolve o tema sob uma linguagem leve, desprovida de jargões técnicos; é um texto acolhedor, principalmente para o leigo, permeado de exemplos bem precisos sobre os conceitos apresentados. No trecho (p. 158) desta Leitura, a autora aborda uma questão que considero essencial na disposição da empatia: não cair na ilusão de que sempre se estará apto para concedê-la, quando há momentos em que o estado interno de quem é procurado se encontra desorganizado a impedir que se abra mais espaço para o que está em desordem no outro (p. 158) ou quando se ignoram os próprios limites do sofrimento, mediante situações em que a dor é tão profunda que não será possível haver uma conexão com quem espera empatia; “somos limitados pelas nossas histórias, pelas nossas feridas, pelas nossas expectativas”, aponta, e sendo assim “a escuta e a empatia não podem nos custar pedaços importantes de quem somos”, conclui (p. 159).

O tema me fez pensar na empatia no âmbito profissional. Um dos motivos do atendimento por vídeo conferência que ofereço diariamente, consiste na intenção de escutar os clientes. Muitas vezes passo boa parte do tempo no agendamento tomando nota de problemas, dificuldades e receios em torno de situações que enfrentam como gestores de escritórios e empresas. Ao longo dos anos percebi que simplesmente ouvi-los funciona melhor do que dar conselho ou opinião, sobretudo na situação em que não fui requisitado para fazê-lo.

Em uma situação específica, uma gestora do setor fiscal me contou sobre suas dificuldades para lidar com determinados clientes acessos à “comunicação não violenta”(CNV), tema caro à autora deste livro; rudes na linguagem, não raramente agressivos quando apontam erros e exercem pré-julgamentos, imediatistas (tudo é para “ontem”) e inconvenientes, sobretudo quando acionam serviços do escritório fora do horário de expediente, em especial pelo WhatsApp, entre outras formas agressivas de relacionamento. Ela tentava ser simpática, bem disposta a atendê-los sem requerer à agressividade como resposta. Em alguns casos percebeu que se tratava de empresários muito estressados, que precisavam ser ouvidos com mais atenção. Fazer isso por um tempo ajudou, mas ela percebeu que não conseguia evoluir em bons resultados, quando percebi que a profissional tinha chegado em certos limites da empatia que exigem determinação de prioridades mediante a tensão contínua e tóxica que estava sendo exposta, algo que pode provocar problemas de saúde mental. A conclusão é de que, primeiro, poderia procurar um psicólogo e em seguida promover uma reformulação no relacionamento com clientes, no sentido de estabelecer políticas de atendimento que deixem bem claro os limites, em especial para os que fazem uso de uma comunicação violenta.

Imagem: Texas Woman’s University

Mary Elise Sarotte

“To convince Gorbachev to relinquish this military and legal might, Baker uttered the words as a hypothetical bargain:”

Obra: Not One Inch: America, Russia, and the Making of Post-Cold War Stalemate. Introduction Foreclosing Options. Yale University Press, 2021, New Haven. De Mary Elise Sarotte (1968).

E a “barganha hipotética” do então secretário de Estado americano, James Baker (1930), para Gorbachev foi: “e se você abrir mão da sua parte da Alemanha (Oriental) e concordarmos que a OTAN “não se moverá um centímetro para o leste de sua posição atual?” (p. 17). Em Mikhail Gorbachev. The Road. We Traveled. The Challenges. We Face [398] e em Perestroika, [399] o último premiê soviético aborda o problema mal resolvido desde a Guerra Fria.

A parte soviética foi realizada, no entanto, o lado ocidental seguiu na expansão da OTAN, sendo um dos fatores com enorme peso na posição crítica atual da Federação Russa, que herdou a maior parte do que fora a extinta União Soviética (URRSS), cujo colapso em dezembro de 1991 foi sucedido de um repensar por parte de Washington em relação às opções para lidar com a polêmica. Lembra a historiadora americana que em março de 1999 ocorreu uma expansão para toda a Europa Central e Oriental, alcançando a fronteira entre a Polônia e a Rússia, enquanto em 31 de dezembro daquele ano, Vladimir Putin chegou ao poder no Kremlin, de maneira que a OTAN se expandido passou a ser um fenômeno acompanhado pelo novo governante russo que decidiu “fazer uso da violência em um esforço para garantir que nem um centímetro a mais de território se unisse (à OTAN). O jogo de mover-se por centímetros resultou em um impasse” (p. 17).

E assim é introduzida a questão esmiuçada nesta excelente obra, em torno das pendências da Guerra Fria que hoje repercutem gravemente na geopolítica, em se tratando de um conflito entre a Rússia e os Estados Unidos que tem como “pano de fundo o cenário amplo e imprevisível da década de 1990” (p. 18). Os anos 1990 foram marcados por questões complexas para os Estados Unidos tratarem em torno dos estados pós-URSS – bálticos e a Ucrânia — acerca da escolha que fariam sobre seu próprio destino mediante as possíveis reações de Moscou, enquanto se pensava na promoção de uma “cooperação com a frágil nova democracia da Rússia”. Para M. E. Sarotte, as duas questões prioritárias deveriam ter sido tratadas à época (p. 20).

Neste contexto, penso, a Ucrânia, desligada da URSS e da Federação Russa, na medida em que a OTAN reduzia a distância que mantinha da Rússia em comparação com o que havia nos tempos soviéticos, passou a ter um peso ainda maior como ponto de segurança estratégica e seu ingresso na Aliança Ocidental, sob a visão do Kremlin, é inaceitável, algo compreensível, entendo, pois tornaria possível a instalação de bases militares da OTAN bem mais próximas a Moscou. Entendo que a presença da OTAN em território da Ucrânia é concebida como algo extremamente ofensivo para Moscou também porque foi em Kiev que nasceu a civilização russa desde o medioevo.

398. 24/04/2025 23h05

399. 26/02/2022 16h10

Imagem: flickr oficial

Olavo de Carvalho

“A pergunta decisiva, para os próximos anos é: a Rússia e a China vão se contentar em prosseguir desfrutando do seu quinhão na partilha do mundo entre os três grandes blocos, ou vão tentar um golpe de mão para livrar-se dos parceiros e apossar-se de tudo de uma vez?”

Obra: O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. Salvando o triunvirato global. Record, 2017, São Paulo. De Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (Brasil/São Paulo, 1947-2022).

Torno ao mais querido filósofo entre progressistas da Pindorama, hoje indignados com os ataques de Trump à soberania nacional, todos pintados para a guerra e à espera de uma heroica retaliação do inquilino do Palácio.

Sempre que revisito Olavo de Carvalho, lembro-me de um professor em 2002 que tentava me recrutar para seu partido-linha-auxiliar do carro-chefe da esquerda no país, enquanto gastava alguns preciosos minutos de sua concorrida agenda para tentar me convencer de que não deveria investir meu tempo em leituras “pobres de consciência crítica”, quando viu um exemplar de O Imbecil Coletivo em minha mesa, sem saber que a lei da não-recomendação em mim produz um resultado inversamente proporcional.

A questão no trecho (p. 574) é de 2012 e, à mon avis, soa oportuna quando penso o quanto pode ser uma cortina de fumaça, em certo sentido, relacionada a “Bolsonaro”. A taxação (sanção) de 50% para camuflar uma pressão sobre a província do Brasil para que tome a posição de se afastar do bloco russo-chinês. Em parte, inserir Bolsonaro na questão faz parte do conjunto de interesses no sentido de abrir uma possibilidade de candidatura e reeleição que realinharia o Executivo no Brasil à Casa Branca, o que poderia frustrar o avanço do BRICS+.

Trump promove uma coerção (no desespero?) do BRICS+ se fortalecendo, contando com o oportunismo de Bolsonaro com seu capital político e, talvez, em meio a uma suposta grave crise no que Olavo de Carvalho aponta quanto à delicada “área de interseção entre os três grandes esquemas globalistas” (p. 573) que dividem o comando do mundo: (1) o “russo-chinês”; (2) a elite financeira ocidental; e (3) a Fraternidade Muçulmana [397].

Curiosamente, Olavo de Carvalho enxergava uma “frágil unidade” nesse triunvirato em meio aos interesses de cada esquema globalista. Vê a “política fabiana” interessada na demolição dos três, enquanto o tripé desmontado se caracterizaria de um contra o outro ou dois contra um. Prevalecendo o triunvirato, conclui, haveria uma “ditadura mundial”, e ocorrendo uma ruptura, “a guerra mundial” (p. 573).

Ora, em um governo progressista brasileiro que se afastou da Casa Branca, entorpecido por suas paixões ideológicas, sem considerar que as agendas políticas interna e externa não são apenas formadas pelo Executivo, na forma do governo, mas também dizem respeito às relações institucionais de Estado, enquanto o governante do Alvorada na empolgação de agente do BRICS, dedicado à pregação da “multipolaridade” com toda a agenda contrária aos interesses do bloco da “elite financeira ocidental” apontada pelo filósofo brasileiro, alinha-se a uma pauta vendida pelo bloco russo-chinês… Destarte, e se o “triunvirato” é uma realidade e está ocorrendo o racha que Olavo de Carvalho indaga neste artigo, então…

397. 26/02/2023 16h14

Imagem: X

Dmitry Grozoubinski

“The economies of Russia and Ukraine were significantly interconnected […] It certainly caused some problems for Russia, but it did not ultimately deter aggression.”

Obra: Why Politicians Lie About Trade: … and What You Need to Know About It. Chapter 15. Trade and Peace. Canbury Press, 2024, Kingston upon Thames. De Dmitry Grozoubinski.

Há quem acredite que certo grau de conexão econômica entre países seja suficiente para evitar que entrem em conflito armado. O comércio está para a paz, uma obviedade percebida desde nossos ancestrais, como aponta Grozoubinski (p. 193), no entanto, um mundo de economias abertas, bem integradas, seria capaz de evitar uma guerra em grande escala ou “países que abraçaram o capitalismo e o comércio internacional a ponto de abrigarem franquias do McDonald’s teriam superado a possibilidade de guerra” (p. 194)?

Quem responde sim, entendo, certamente, em parte, apega-se a uma crença de viés economicista com doses românticas de liberalismo, o que pode se tornar distante da realidade geopolítica, penso, quando se incorpora a economia como instrumental em mesas de grandes arranjos de poder para sanções e demais procedimentos de “guerra comercial”, aqui penso quando o autor aponta que “decisões governamentais são o resultado de uma equação com muitas variáveis” (p. 197), embora não raramente as consequências costumam ser catastróficas, contudo, tais ações podem ser um preâmbulo de uma guerra às “vias de fato”; o bélico é um tipo de política quando a diplomacia não funciona.

O expert em trade policy nesta obra de espirituoso título, lembra que desde o início das ofensivas em 2014, as economias da Rússia e da Ucrânia estavam significativamente interconectadas, de maneira que as empresas russas de construção naval precisaram de mais de oito anos para alcançarem um ponto de não mais dependerem das fábricas ucranianas na cadeia de insumos para suas turbinas (p. 194). Certamente a relação econômica atrasou, mas não impediu a execução do que os russos preferem chamar de “operação militar especial”.

Se não os evita em definitivo, a integração entre países reduz o risco de conflitos armados? Não há dados suficientes para cravar a questão, aponta Grozoubinski ao analisar alguns exemplos. Penso na relação do Ocidente com a China, face aos problemas com Taiwan, aparentando sugerir que “os dois lados precisam um do outro demais para correr o risco de um conflito aberto” (p. 196), mas, em termos de fatores políticos, as aparências podem facilmente enganar, assim entendo quando o autor afirma que “embora todos esperemos que o status quo se mantenha, certamente há indícios suficientes nas ações de ambos os lados para sugerir que se trata de algo precário” (p. 197).

Imagem: BBC

Noam Chomsky

“Pode-se distinguir duas trajetórias na história atual: uma delas está voltada para a hegemonia […] A outra está comprometida com a crença de que ‘um outro mundo é possível’ […]”

Obra: O Império Americano: Hegemonia ou Sobrevivência. Capítulo 9. Um Pesadelo Passageiro? Campus/Elsevier, 2004, Rio de janeiro. Tradução de Regina Lyra. De Avram Noam Chomsky (EUA/Pensilvânia/Filadélfia, 1928).

Enquanto reconhece a impossibilidade de apontar qual das duas vias prevalecerá (o contexto da obra está logo após o 11 de setembro), Chomsky especifica a segunda: “o Fórum Social Mundial, desafiando o sistema ideológico reinante e buscando alternativas construtivas de pensamento” (p. 240).

Mudança… por automatismo é associada a uma transformação para o melhor, no entanto, a história tem lições amargas, a começar nos anos 1920, quando fascistas e nazistas propagavam outro mundo, “melhor” na percepção de suas doutrinas, e que ganharam notoriedade mediante o laissez-faire desacreditado e o comunismo bolchevique que assombrava a Europa. Foi justamente como “terceira via” que o nazi-fascismo, em parte, ganhou espaço na política, sendo por outro lado suportado até por liberais acometidos pelo utilitarismo contra o comunismo, este último desnudado pelo bolchevismo que massificou o ideal de mudança contra a aristocracia do czar e se converteu no epicentro do socialismo no leste europeu para se tornar outro regime de elites autoritárias. Penso também no Brasil de 1964 de diversos setores da sociedade que apoiaram o golpe militar na esperança de uma mudança sobre a temida perspectiva de sovietização do país e no final ganharam um regime autoritário de direita que adotou um capitalismo de Estado e o inevitável planejamento socialista que repercute ainda em nossos dias.

O BRICS seria fundado em 2009 para, entre entusiastas, reavivar a crença por uma nova ordem sem a sombra americana intervindo nas nações, promovendo guerras por procuração, financiando regimes autoritários e ditando políticas econômicas. Então, na mudança global pela “multipolaridade” vendida no BRICS+, penso o quanto essa propaganda escamoteia o teor nada multipolar, em seus ambientes domésticos nos termos do que meu amigo de infância manifestou ontem no tocante a, pelo menos, duas lideranças de peso nesse bloco radiante pelo “novo mundo”: Rússia e China.

A citação de Bertrand Russel (p. 240), principalmente no desfecho da Terra “incapaz de sustentar a vida”, e assim tornar à paz, é oportuna inclusive ao contexto atual do Império Americano mediante os que arrogam a multipolaridade enquanto ambos promovem guerras pelo mundo. Chomsky não é tão “cruel” em refletir sobre o destino e revela uma ponta de esperança quanto ao despertar do pesadelo antes que seja irreversível.

Imagem: Brasil 247

Pepe Escobar

“Pressure on Brazil, for instance, is much heavier than Saudi Arabia or Indonesia.”

Obra: EURASIA v. NATOstan (Chronicles of Liquid War Book 7) . Part III. The hegemon will go full hybrid war. Against BRICS+. Nimble Books LLC, 2024, Ann Arbor. De Pepe Escobar (Brasil/São Paulo, 1954).

O ditador do mundo versus BRICS+ – por pastor Abdoral Alighiero

Do alto da montanha vejo o vulcânico ditador do mundo em mais uma erupção, desta vez em relação à cúpula do BRICS e suas expansões na congregação de swing states (p. 111). O imperador da Casa Branca, em mais uma crise de diarreia mental, promete sobretaxar importações, com maior peso, os países que se envolverem com o bloco do “Sul Global”, que parece incomodar o marketing do MAGA.

O alinhamento no BRICS+ promete uma “multipolaridade”, algo curioso quando se verifica entre alguns de seus protagonistas, regimes onde o trato das liberdades política e de expressão é tão autêntico quanto o que se vende na loja do tio Xing Ling. Eis o mundo “multiambíguo”: de um lado, a aberração que conduz o Império depressivo à caminho de “Adrianópolis”, e do outro um grupo de velhos ricos sob a bandeira do progressismo e que posam de zeladores de uma “nova ordem” a esconder uma peculiar plutocracia com traços de devaneios neofascistas.

Pelo lado do ditador do mundo prevalece a sagrada doutrina da supremacia americana que o assessora, aparentando uma concepção de rivalidade mediante o BRICS+ sob o peso da China ao lado da Rússia, em um tabuleiro onde a pressão sobre o Brasil, por razões óbvias na pujança do papel que tem nas commodities, tende a ser mais severa (p. 112).

Fico aqui com meus botões a pensar no que indica o provocante “Pepe Café” sobre os possíveis benefícios financeiros da Rússia no movimento pró-yuan (p. 113); quem sabe seja mesmo a via que o “multipolar” Putin explora para suportar com grande resiliência as sanções de sua “operação especial” na Ucrânia, o que parece refletir nos números apontados de sua economia doméstica (p.112), mediante uma suposta “desdolarização” que, na visão do jornalista da Eurásia, encontra-se no Sul Global em uma “caravana que avança implacavelmente” (p. 113).

Imagem: Penguin Livros

Primo Levi

“Essas coisas realmente aconteceram, não séculos atrás, não em países remotos, mas há quinze anos, e no coração desta nossa Europa.”

Obra: Assim foi Auschwitz. Testemunhos 1945-1986. Carta à filha de um fascista que pede a verdade. Companhia das Letras, 2015. eBook Kindle. Tradução de Federico Carotti. De Primo Levi (Italia/Torino, 1919-1987) e Leonardo De Benedetti (Italia/Torino, 1898-1983).

Em 29 de novembro de 1959 na seção Specchio dei Tempi do La Stampa publicou uma carta de uma leitora, filha de um fascista, aluna do ginásio, pedindo a verdade sobre o que viu em uma exposição dos campos de concentração alemães.

Após 14 anos do fim da Segunda Guerra, a adolescente descreve certa descrença em uma colega da escola sobre as fotos da exposição (938/4187) em meio a um negacionismo sob a ideia de “propaganda antialemã”. Ela revela estar assustada com o que viu e pediu a Deus que o pai seja inocente do massacre (946/4187).

O que aconteceu nos campos de concentração do regime nazista rompe qualquer ideia extrema que se possa ter sobre maldade. Talvez por isso muitos se voltem a um questionamento no assombro que parece acenar para a incredulidade, mas está mais para um choque. É tão difícil, pesado, absurdo, devastador, que a mente parece relutar no processamento das coisas, das imagens… dos testemunhos. Foi assim que entendi a reação de um colega no final dos anos 1990, após assistirmos a um documentário sobre Auschwitz. Sua perplexidade depois de um tempo foi dando lugar a um profundo pesar na descoberta do quanto o ser humano pode ser perverso. Eu tinha experimentado o mesmo alguns anos atrás.

Em outro caso percebi não um assombro, mas um negacionismo por um viés ideológico ancorado em uma teoria da conspiração onde judeus globalistas teriam exagerado para tomarem proveito político em favor do sionismo na Palestina. Neste caso, penso, é uma espécie de “terraplanismo histórico” onde mentes perversas se aproveitam de indivíduos intelectualmente frágeis e suscetíveis a crenças disseminadas sem qualquer chance de dar algum espaço para a razão.

Primo Levi respondeu no dia 3 de dezembro daquele ano: “Não, senhorita, não há como duvidar da verdade dessas imagens” (958/4187). A quem duvida, sugere ir até os locais. Aqui me lembrei de um senhor indignado com o atual progressismo na Alemanha a cogitar que talvez um tipo “linha dura de direita” possa dar um jeito naquele pais. Eu sugeri que seria oportuno ele visitar Auschwitz, aproveitando que iria fazer um passeio pela Europa.

Sobre professores que conseguiam apenas falar “infelizmente” em torno do Holocausto, o que deixou a aluna pensativa enquanto cobrava mais dos livros de história (sobre algo relativamente recente e tão impactante para quem produz em termos de historiografia), Levi entende que até mesmo inocentes sentem vergonha e ficam em silêncio (958/4187), o que se aproxima um pouco do que percebi em meu colega que ficou assombrado, da mesma forma que eu tinha ficado. Porém, após o tempo do choque, o silêncio deve ser vencido pela disseminação do conhecimento da verdade e do testemunho diante do negacionismo, penso.

Levi encerra no desejo de que o pai da adolescente seja inocente, a considerar o contexto do fascismo italiano envolto em certa visão distinta da alemã nazista. Neste ponto, lembrei-me da “solução final à italiana” em Il Primo Fascista, de Hans Woller [396].

396. 26/02/2024 00h01

Imagem: upaninews.com

Mileva Marić

“What’s the point of him falling in love nowadays, anyway? It’s such an old story….”

Obra: Einstein, history, and other passions: the rebellion against science at the end of the twentieth century. Of Physics, Love, and Other Passions: The Letters of Albert and Mileva. Harvard University Press, 2000, Cambridge. De Gerald James Holton.

Trecho (p. 176) de uma carta da jovem estudante Mileva Marić (Sérvia/Titel, 1875-1948), de Heidelberg ao seu colega Einstein, o qual tinha passado um tempo pagando as mesmas disciplinas na Escola Politécnica Federal Suíça.

Mileva usa uma linguagem formal e parece passar uma mensagem de seu (aparente) desinteresse por relacionamento amoroso ao mencionar uma situação de outro conhecido; aparenta não ter intimidade com Einstein, pela linguagem formal, no entanto, revela que, “em uma visita à sua casa, contou ao pai tudo sobre Albert” (p. 175), o que soa contraditório.

Mileva se tornaria a primeira esposa de Einstein. Na medida em que fui pesquisando mais sobre sua trajetória, percebi uma história de vida extraordinária em se tratando de um tempo tão adverso para a presença feminina no ambiente acadêmico. Somente em 1863 universidades da França passaram a aceitar mulheres, seguida pela Universidade de Zurique em 1865 (p. 171) e Mileva fez parte de um grupo de pioneiras no final do século XIX. Ela foi para a Suíça em 1894, cursou os dois últimos anos do ensino médio, fez um semestre de verão em medicina na Universidade de Zurique e em 1896 conseguiu se matricular na “Poly” da Suíça (p. 172). Da paixão ao casamento, e do casamento ao divórcio, quando Einstein a trocou pela prima, Elsa, Mileva seguiu a carreira mais nobre de todas: cuidar dos filhos, quando recebeu o dinheiro do prêmio Nobel de 1922, repassado por Einstein como promessa no divórcio, o que pode ter abrandado suas vicissitudes materiais, no entanto, faleceu na Suíça em 1948, sob “más condições físicas e mentais” (p. 189)

Em outra obra, Einstein’s wife: the story of Mileva Einstein-Marić [395], pude conhecer outros detalhes de uma carreira que começou sob um foco, transformando-se nos desdobramentos de seu relacionamento amoroso com Einstein que, penso, prejudicaram sua carreira no propósito científico, além da polêmica em torno de sua possível contribuição nas publicações em torno da Relatividade, o que é abordado de uma forma crítica mais realista (pp. 190-191), à mon avis, pelo autor desta excelente obra na leitura de hoje, ao indicar que “o exagero do papel científico de Mileva, muito além do que ela própria jamais alegou ou foi provado, apenas reduz seu lugar real e significativo na história […] ela foi uma das pioneiras no movimento para trazer mulheres para a ciência, mesmo que não tenha colhido seus benefícios. Com grande sacrifício pessoal, como foi descoberto adiante, ela parece ter sido essencial para Albert durante os anos penosos de seu período inicial mais criativo, não apenas como uma âncora para sua vida emocional […] uma companheira simpática com quem ele podia expor suas ideias altamente não convencionais […]” (p. 191).

395. 19/03/2025 22h49

Imagem: Vaticano

Papa Francesco

“A cultura do encontro requer que estejamos dispostos não só a dar, mas também a receber dos outros, e nos pede que saiamos de nós mesmos e sejamos peregrinos. […]”

Obra: Papa Francisco: Esperança. A Autobiografia. 8. A vida é a arte do encontro. Fontanar, 2025, São Paulo. Tradução de Frederico Carotti, Iara Machado Pinheiro e Karina Jannini. De Papa Francesco, Franciscus (2013-2025), Jorge Mario Bergoglio (Argentina/Buenos Aires, 1936-2025), com Carlo Musso.

Torno a esta bela obra autobiográfica no trecho (p. 114) que indica a maior contribuição que recebi como leitor de Bergoglio.

Neste tema do “encontro”, penso o quanto ilustra o que encarnou ao longo de sua vida, em favor do diálogo como um construtor de pontes para se contrapor a visão antagônica de mundo que se fecha ao levantar muros, pautada por comunicação agressiva e polarizada.

O “encontro”, penso, significa um continuo exercício de sabedoria para interagir com as diferenças e promover o diálogo, o que implica em um esforço para escutar o outro e, quando em meio a discordâncias, pautar-se com um espírito de cuidado e respeito. No mesmo parágrafo, Francesco cita Vinícius de Moraes: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, versos que compõem um samba, “um gênero musical que, aliás, surge justamente do encontro de culturas, diferenças e instrumentos”, lembra.

Francesco menciona “uma longa história de desavenças” em sua família, entre “tios, primos, brigados e separados, na Argentina, e entre a Argentina e a Itália”, mas que, felizmente, fizeram as pazes (p. 113). Recorda também dos “medos de infância” quando percebia alguma desavença entre os pais e conta um episódio onde caiu em prantos ao pensar, por engano, que sua mãe tivesse deixado o lar após uma discussão com o seu pai, quando na verdade tinha saído para fazer compras logo após o ocorrido, sendo tranquilizado pela filha da vizinha (p. 113). Entende que a briga de casal até certo ponto é “absolutamente normal”, mas deve ser evitada na frente dos filhos, além de que deve haver um esforço em favor da reconciliação antes do final do dia, por conta do perigo da “guerra fria do dia seguinte” (p. 114).

Na abertura do capítulo, menciona a atividade esportiva que se caracteriza por unir, em vez de dividir, bem como toda atividade social genuína que favorece a “cultura do encontro” por combater “o obscurantismo da separação e do preconceito” (p. 112).

Um apreciador da música clássica por herança da mãe (p. 119) e um amante da leitura desde menino, revelou-se “curioso e voraz”, “lia um pouco de tudo”, dos clássicos aos quadrinhos onde cita o Superman (p. 115). Erbame Dich de Bach (1685-1750) cada vez lhe parece “mais sublime” (p. 119). Teve uma criação envolvida por esportes, cultura e brincadeiras que refletem o menino e adolescente que se desenvolveu em um bairro onde “quase todas as casas tinham um pátio ou um jardinzinho”: “vivíamos ao ar livre, todos se conheciam e se cumprimentavam” (p. 116).

Lembra dos professores do primário e do ensino fundamental; resume sua educação como “muito humana” (p. 117). Ilustrando a cultura do encontro, penso, menciona Gustav Mahler (1860-1911) para abordar seu entendimento sobre o sentido de “tradição”: não como uma volta às cinzas, mas “uma raiz, indispensável, para que a árvore possa sempre dar frutos novos” (p. 119).

Também revela seu gosto de música popular: Édith Piaf (1915-1963), outra paixão de sua mãe, e, não poderia faltar, o conterrâneo Carlos Gardel (1890-1935) e o tango para então se conectar ao tema do drama, embora seja muito mais do que o lamento de uma derrota e a melancolia que se segue, é nostalgia, esperança, fibra, força… o guiar e o ser guiado como ato de cuidar do outro (p. 121), o que me fez pensar na força da interação da dança como metáfora sobre o significado do “encontro”, e enquanto sob o pano do fracasso, relaciona-se com o tema da vitória, no sentido de retomada, e para isso faz uso de uma canção dos Alpes: “na arte da subida, a vitória não consiste em não cair, mas em não permanecer caído”, a refletir uma sabedoria de quem se reergue cujo ápice está na história da salvação pelo “fracasso” da cruz (p. 120).

Imagem: Entendendo a Esquizofrenia

John Forbes Nash Jr.

“[…] the ideas I had about supernatural beings came to me the same way that my mathematical ideas did. So I took them seriously.” [1]

Nota da autora: 1. George W. Mackey, professor of mathematics, Harvard University, interview, Cambridge, Mass., 12.14.95.

Obra: A Beautiful Mind. Prologue. Simon & Schuster Paperbacks, 1998, New York. De Sylvia Nasar (Deutschland/Rosenheim, 1947).

A primeira vez que ouvi falar sobre John Nash foi a partir do que hoje é chamado de bullying. Um mestrando em física dava uma aula particular de integral para um grupo de estudantes de economia, o qual eu fazia parte, lá pelos idos de 1995. Entre uma explicação e outra, o professor dava um tique nervoso. O filhinho-de-papai da turma então teve seu momento “quinta série” com piadas e desdenho. Quando compartilhei com ZW minha indignação, recebi uma aula sobre a história de Nash, o esquizofrênico gênio americano da matemática aplicada ao equilíbrio em torno da “teoria dos jogos”, sendo um dos agraciados com o “Nobel de Economia” no ano anterior.

John Forbes Nash Jr. (EUA/Virgínia Ocidental,( 1928-2015) foi um gênio de “lampejos irracionais de intuição”, como definiu o matemático Paul Halmos (p. 16). Em um ambiente onde estavam Albert Einstein, John von Neumann e Norbert Wiener, decidiu seguir um caminho pautado pela busca da originalidade no pensamento; um jovem que falava nos anos 1950 sobre “máquinas pensantes” como se estivesse antecipando o tema da inteligência artificial; definiu-se ateu e tinha seu próprio vocabulário para interagir com o que chamava de “humanoides” (p. 97). Um dos mais notáveis matemáticos de sua geração teve a carreira devastada pela esquizofrenia; “abandonou a matemática, abraçou a numerologia e a profecia religiosa, além de ter passado a acreditar ser uma “grande figura messiânica de grande, mas de importância secreta” (p. 19).

O filme homônimo (2001) consegue contar muito bem a trajetória de Nash, tirando as inevitáveis licenças poéticas e imprecisões típicas de adaptações. No livro pude perceber em detalhes como se deu o diagnóstico da doença e o papel decisivo da impressionante esposa, Alicia Lopez-Harrison de Lardé (1933-2015), de resiliência e lealdade incomuns. Alicia se ofereceu para acolher Nash após o divórcio, quando ele não tinha com quem ficar após as internações e a perda da carreira acadêmica (p. 215). O livro aprofunda os bastidores da escolha do Nobel e contrasta com a entrega do prêmio dividido com mais dois agraciados, embora seja retratada no filme como se fora individual. Aborda a falta de evidência dos supostos problemas com o FBI (p. 103), além de aspectos da excentricidade do jovem Nash , como se pode verificar na resposta (p. 16) que deu ao professor George Mackey (Harvard) sobre seu entendimento de que extraterrestres lhe enviavam mensagens.

A história de vida de Nash retrata o esvaziamento e o drama de um gênio que, no final da vida, conseguiu lidar com o que parecia insuperável; conviver com a esquizofrenia e alcançar um propósito que tinha na juventude, após uma longa trajetória de humilhações que parecia sentenciá-lo ao mais completo ostracismo.

Imagem: Bet Magazine Mosaico

Rubino Romeo Salmoni

“Il mio: A15810. Infatti ci hanno fatto il tatuaggio con il numero all’avambraccio sinistro. Non ero più Rubino Salmonì, ma l’ebreo A15810 da sfruttare fino allo stremo.”

Obra: Ho sconfitto Hitler. Appunti, note e frammenti di memoria di un sopravvissuto ad Auschwitz-Birkenau. L’arrivo. La Scatola Chiara, a cura di Progetto storia e memoria. Presidenza della Provincia di Roma, 2011. De Rubino Romeo Salmoni (Italia/Roma, 1920-2011).

Foi nos testemunhos de Rubino Romeo Salmoni, o judeu prisioneiro A15810 de Auschwitz (p. 45), que Roberto Benigni (1952) e Vincenzo Cerami (1940-2013) foram encontrar como uma das inspirações para compor o roteiro do premiadíssimo filme La Vita è Bella (1997).

O imaginário popular da liberação do campo de concentração na figura do soldado americano que adentra em um tanque e acolhe o menino Giosué, é uma das licenças poéticas do roteiro de Benigni/Cerami que mais me marcaram, pela construção da narrativa que converge ao ápice do “prêmio” ilustrado pelo pai, Guido, enquanto não reflete o que de fato ocorreu na liberação em Auschwitz: não foram os americanos mas “os russos com poderosos carros armados” (p. 79), embora no filme não se defina exatamente o campo de concentração.

“Os dias passam, um mais terrível que o outro, não há como escapar. As seleções (para a câmara de gás) se tornam mais frequentes: uma noite, depois do trabalho, passamos em frente ao acampamento cigano, vi certa movimentação lá dentro e muitos da SS. De manhã, o campo estava completamente vazio: todos foram eliminados durante a noite; aliás, durante o dia, o crematório funciona a todo vapor: eles (ciganos) eram também, como disse Hitler, sub-homens a serem eliminados assim como os ‘judeus odiados’ ” (p. 55). “Na seleção de chegada, doze membros da família (de um membro que conversou com Salmoni e Josef Salisciaski, seu amigo) foram enviados para a câmara de gás, incluindo duas crianças de quatro anos e seus pais de idade avançada, considerados inúteis para o trabalho forçado do infernal campo de Auschwitz; Josef e eu ouvimos atentamente. Depois de terminar o trabalho que o chefe nos havia ordenado, voltamos ao bloco muito chateados e nos perguntamos: ‘Em quem podemos confiar?’ No campo havia desconfiança, ódio e malícia, mesmo entre os companheiros do bloco” (p. 61).

Como foi possível se chegar a tanta maldade?

“Você nunca sai completamente de Auschwitz. No silêncio do lar, muitas vezes, as memórias vêm à tona”, afirma Salmoni (p. 99), e aqui penso, a quem tem humanidade, abalar-se é inevitável diante do que se compartilha nesta obra.

Imagem: FEBRAPSI

Contardo Calligaris

[…] os cristãos defendem a família como se fosse um valor cristão, quando, de fato, ela é apenas um valor para qualquer ideologia dominante que lute para se manter dominante. […]”

Obra: Cartas a um jovem terapeuta. 5. O que diz a família? Planeta do Brasil, 2019, São Paulo. De Contardo Luigi Calligaris (Italia/Milano, 1948-2021).

O termo “dominante”, neste trecho (p. 71), fica melhor de ser refletido, à mon avis, desarmado da carga ideológica que acompanha concepções marxistas, e a reflexão em geral pode ser melhor aproveitada sem o espírito panfletário de uma visão dogmática-religiosa sobre a instituição “família”.

O psicanalista italiano que se estabeleceu no Brasil afirma que a instituição da família, “em suma, é o que inventamos de melhor para garantir a sobrevivência dos rebentos e da espécie” (p. 71), o que me fez lembrar um pouco da abordagem de Hans-Hermann Hoppe sobre a privatização da custódia dos filhos [394]. No mesmo parágrafo Calligaris se versa a uma concepção da família como instrumento à ordem social e à ideologia que entra em choque com “anseios de autonomia do indivíduo”. Sendo assim, a família se torna naturalmente um ambiente de conflito entre interesses de indivíduos, pautados nessa autonomia, e a obediência em seu escopo coletivo.

No contexto da psicoterapia servir para ajudar o paciente no amadurecimento de perspectivas não necessariamente alinhadas ao que lhe foi estabelecido no bojo familiar, marcado por “desejos medos, esperanças, rivalidades, ciúmes, amores, ódios, indiferenças piores que o próprio ódio, e claro, com expectativas explícitas ou silenciosas de pais e outros antepassados (próximos e distantes)”, (p. 66), pode-se assim cogitar uma oposição, mas é preciso considerar a função primordial da família na sobrevivência humana, onde seus rebentos precisam de mais anos para alcançar uma autonomia, em comparação com outras espécies, o que denota uma situação dual de efeitos na convivência forçada; a família “é ao mesmo tempo, uma bênção e uma praga” (p. 67), é “patógena (produz neurose) e insubstituível” (p. 68).

A ênfase em problemas complexos na formação de indivíduos, muitos quase sempre oriundos da infância, derivados da influência familiar, pode se alinhar com utopistas que desejam o fim da família, aponta Calligaris (p. 67), que lembra as neuroses ocorridas, derivadas de experiências entre hippies (p. 68) que coletivizaram a responsabilidade pela criação dos rebentos, (aqui, penso, em uma tentativa de reeditar o que ocorria com humanos que viviam em bandos antes da consolidação da privatização da prole). Ao abordar o problema, Calligaris entende que “não há, aparentemente, instituições diferentes da família, que possam criar e produzir humanos ideais” (p. 68), embora o antagonismo em pacientes seja algo tão evidente em relação a problemas que herdam da infância (p. 69), a família concentra uma capacidade de proteção que não é vista fora de sua estrutura elementar.

Então, as terapias familiares servem para “melhorar” (p. 68) uma instituição problemática e virtuosa que se estabeleceu sem que houvesse outra melhor para o desenvolvimento da nossa espécie, até que se prove o contrário. E em se tratando de terapia família quanto a este propósito, diz respeito à participação de todos os membros, “nunca um membro só” (p. 69).

A defesa da família como um valor moral em si, na visão de Calligari, soa como algo “pouco ridículo” (p. 69). Enquanto instituição essencial para a proteção e a criação dos rebentos, em meio a seus problemas, o conceito de “valor” dado à família pode não passar de interesses para se manter uma ordem determinada que pode refletir mais os anseios e frustrações dos pais (p. 70), do que uma educação que preze verdadeiramente por um melhor desenvolvimento dos filhos, o que pode exigir mudanças que a ordem estabelecida pode rejeitar.

394. 20/04/2022 23h08

Imagem: Jornal Opção

Otto Maria Carpeaux

“[…] o mundo perdeu a cabeça, porém Goethe deseja conservar a sua. […]”

Obra: Ensaios Reunidos. Volume I. 1942-1978. Origens e Fins. Primeira Parte: Profecias. Presença de Goethe. Topbooks/UniverCidade, 1999, Rio de Janeiro. De Otto Maria Carpeaux (Áustria/Viena, 1900-1978).

A presença de Goethe sob o olhar de Carpeaux.

De um “espírito apolítico” (p.86), afirma, enquanto corria a Revolução Francesa, preferiu as forças feudais, apesar do desprezo que tinha por elas. Um artista que não compreendeu o debutante romantismo na literatura e preferiu beijar a mão de Napoleão assim traindo “a humanidade, a arte e a sua própria dignidade humana” (p. 87).

Um homem que não fazia coro, cético diante de tormentas, que não tinha sistema, não se pautou em um programa diante de um mundo “em que os sistemas da ciência servem a programas criminosos” (p. 87), Goethe, na visão de Carpeaux, preservou-se de “todo espírito de partido’, cultivou uma independência por um pessimismo advindo do pensamento cristão e “filosófico (p. 87). Sendo filho da “velha burguesia medieval” (p. 88), foi indiferente a impulsos, delírios e anseios de seu tempo; “o humano, continuou, para ele, acima do político” (p. 87). O político estava para um arranjo na superficialidade das vicissitudes. O espírito de Goethe parece ilustrar o quanto um gênio pode ter sua humanidade romantizada quando se esquece de que possa significar uma provocante mentalidade sem as ilusões que tentam maquiá-la dentro de uma falsa piedade no deslumbramento dos grandes rótulos, o que talvez seja frustrante para sonhadores de um mundo melhor.

Encontrou um “asilo misericordioso” (p. 88) ao se debruçar com a história natural. O homem, na medida em que participa da “tranquilidade do Universo”, vai se purificando de suas “paixões banais”; a vida na morte que é uma metamorfose (p. 89). O entendimento de sua posição na Natureza fez Goethe conceber as ciências naturais não como um saber para servir ao ser humano pela técnica, e sim um estudo que “deve fazer do homem um ser consciente de si mesmo, dar-lhe um coração puro, em harmonia com o Universo” (p. 90). Penso o quanto esse mergulho na Natureza em seus mais diversos aspectos, deva ter pesado no conceito de “demônio” em Goethe, explicado por Carpeaux; “o lado perigoso do espírito”, necessário à dialética enquanto movimento (p. 91), o que expressa como o alemão mais reverenciado na literatura concebeu Napoleão, o mesmo que adulou.

Esta crítica de Carpeaux me remeteu, por contraste, a de Nietzsche em Crepúsculo dos Ídolos; para o meu filósofo marrento e do martelo, Goethe foi o último alemão em que inspirou respeito [391], uma “tentativa gloriosa de vencer o século XVIII”, um humano que portava em si “os mais enérgicos instintos: o sentimentalismo, a idolatria pela natureza, o anti-historicismo, o idealismo, o quimérico e a tendência revolucionária (esse aspecto revolucionário é apenas uma forma de antirrealismo). Recorreu à história, às ciências naturais e a Spinoza, mas em primeiro lugar à atividade prática […]” [392]. No entanto, ao se voltar ao século XIX, Nietzsche revela certo desapontamento ao que representara o que entendeu sobre as obras de Goethe [393].

391. 49. Goethe. Nova Fronteira, 2017, Rio de Janeiro. Tradução de Edson Bini e Márcio Pugliesi, p. 114.

392. Ibid, p.115

393. 05/03/2023 15h06

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *