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“Estudos estabelecem associação positiva entre o consumo de álcool e a sintomatologia depressiva em estudantes universitários.”
Obra: Casos clínicos em saúde mental: diagnóstico e indicação de tratamentos baseados em evidências. Capítulo 15. Transtorno relacionado ao uso de álcool. Artmed, 2022, Porto Alegre. De Marcia Fortes Wagner, Fernanda Machado Lopes, Murilo J Machado e Laisa Marcorela Andreoli Sartes. Organizado por André Luiz Moreno e Wilson Vieira de Melo.
O que relato aqui sobre ter nunca ter consumido bebida alcoólica e droga para uso recreativo, desde a adolescência, não significa que eu seja uma pessoa “especial”, “santa”, “consagrada”, mas tão somente se trata de um breve resumo do histórico de experiências que tive com pessoas sob dependência química.
Evidentemente, não vou mencionar nomes de indivíduos e instituições. Embora o capítulo verse sobre transtorno relacionado ao uso de álcool, entendi ser necessário, mediante o contexto, inserir situações em que me deparei com pessoas consumindo outras drogas como maconha e cocaína.
Fui exposto, durante a adolescência e a juventude, a diversas tentativas para o envolvimento com entorpecentes e em todas as ocasiões prevaleceu o NÃO. Vi indivíduos serem criados de forma mais rígida e acabaram se tornando dependentes químicos, enquanto os que viviam um tanto “soltos”, não passaram por esse problema, o que sinaliza a complexidade do assunto quando o propósito é explicar causas dentro de cada história de vida.
A primeira situação que consigo recordar ocorreu em um clube muito tradicional do Recife. Tinha 14 anos e, por curiosidade, subi ao palco para conferir os equipamentos de som. No canto foi formado um corredor entre os imensos caixas e ali me chamaram para conhecer um papel embrulhado. Corri assustado porque sabia que provavelmente era alguma coisa “muito errada” e depois, conversando com amigos, descobri que se tratava de maconha.
Com 15 anos de idade, em uma das viagens de ônibus que fazia frequentemente em finais de semana para Maceió com amigos, lembro-me de um dia em que sentei ao lado de um desconhecido que abriu uma mochila e apontou para papelotes com a erva, depois piscou um olho. Procurei outro assento para viajar.
Aos 16 anos, em meu primeiro emprego, no Bairro do Recife, saltava na parada do Bandepão e caminhava até o Marco Zero e, entre prostitutas naquelas ruas hoje badaladas, no meio dos prédios antigos, algumas ofereciam maconha e o que parecia ser pedras de crack, além de programas.
A partir de 1994 vi como a maconha rondava campus universitários. Foi-me oferecida em diversas ocasiões. Tinha 20 anos de idade e costumava ir para Boa Viagem, à casa de um aluno de mestrado em matemática para estudar estatística e econometria. Quando terminávamos, ele costumava desabafar seus problemas na universidade e a impossibilidade de ter um bom emprego, esculhambava o governo FHC, contava algumas de suas frustrações e, melancólico, tomava uma batida bem alcoolizada, esbaldava-se e depois ia até a varanda do 12o. andar, colocava alguma música do Bob Dylan e acendia um cigarro de maconha para “relaxar”. Em seguida me oferecia a bebida e a erva, apesar de minha negativa de sempre. Sabendo o que normalmente acontecia, levava minha água de coco ou água com gás; aliás, sofria o que hoje chamam de bullying, por isso, quando ia a encontros em bares para confraternização. O mestrando tentava me convencer a experimentar a erva mostrando um médico vizinho, de um condomínio em frente, que também curtia maconha do mesmo jeito: na varanda.
Foi então no ambiente universitário que, aos 21 anos, no primeiro semestre de 1996, vivi uma situação complexa, porque envolveu um relacionamento com uma jovem dependente e isso gerou depois um problema psicológico em mim de gatilho, principalmente no meio universitário, em relação a interação social com pessoas fumando e bebendo.
Eu tinha encerrado um relacionamento de união estável e seguia na graduação em economia e gostava de poesia. A jovem que recitou um poema de Lord Byron [485] na língua original, em um pequeno grupo de alunos que se reuniam para falar sobre poemas na universidade, veio em minha direção e iniciou uma conversa após um comentário que fiz sobre a tradução que ela fizera para o português. Seu inglês era impecável, mais britânico do que americano, e ela tinha um sotaque estranho quando falava português: lembrava o interior de São Paulo, mas tinha um tom diferente, meio que cantando, e assim comentou:
– Teria sido um conflito para além do bem e do mal? (risos) – em uma clara referência a Nietzsche. Quando me apresentei, sobre o meu nome, respondeu:
– Adorei. É italianíssimo!
A conversa se aproximava das 10 da noite. Uma amiga veio lhe chamar e notei ela sinalizando discretamente para deixá-la e ir embora, depois comentou que tinha “perdido” a carona. Obviamente, conseguiu o que queria quando decidi levá-la para sua casa na Av. Boa Viagem.
No caminho, acendeu um cigarro, tirou um walkman da bolsa, pôs um lado do fone em meu ouvido, outro no dela, e na fita-cassete colocou para tocar Se Bastasse Una Canzone, de Eros Ramazotti.
– Você me disse que não gosta de falar inglês, porque acha a língua de Lord Byron “feia”, não foi isso?, concordo, então vamos da madre língua de Dante Alighieri – falou enquanto dava baforadas. Parecia reger uma orquestra no ritmo da música. Em seguida, traduziu a letra e fez comentários. Deixou a impressão que me conhecia há anos. Ali nascia meu interesse pela língua italiana e também pelo francês, pois durante o caminho ela me convenceu a fazer uma matrícula em um curso francófono.
Quando chegamos em frente ao prédio onde morava, tirou os sapatos e me convidou para o que fazia de vez em quando: “molhar os pés na água do mar e saudar a lua antes de subir”. Aquela imprevisibilidade me desconcertou. Era muito engraçada. Não trocamos número de telefone e pensei que iríamos nos falar apenas no próximo encontro literário ou na aula de francês que começaria 15 dias depois. No entanto, quando cheguei no Parque da Jaqueira, sábado 19h, como era de costume, lá estava; ela tinha pego uma informação que dei de forma breve durante a conversa no carro, sobre o meu costume de aos sábados à noite correr naquele horário. Após darmos cinco voltas na pista de cooper, iniciamos um relacionamento que seria intenso e parecia promissor, mas terminaria de forma trágica em maio na mesma areia da praia em que molhávamos os pés.
Duas semanas antes do desfecho, a mãe dela pediu que a acompanhasse na feira de supermercado; um pretexto para uma sondagem. Sabendo que eu estava excluído dos amigos que formavam o círculo da filha na zona sul, por não consumir álcool e entrar em constante conflito com eles em relação à influência que exerciam nela para a bebida, o fato de trabalhar em dois turnos, estudar à noite, também a fez ter uma mínima confiança para olhar em meus olhos e pedir que eu respondesse “sem hesitação”: a mãe queria saber se eu tinha notado algo “estranho” na filha, se eu sabia de alguma coisa.
Descobri que eu e a mãe dela compartilhávamos das mesmas preocupações. Duas coisas me incomodavam muito, respondi: o consumo dela exagerado de bebida alcoólica, o que poderia ser uma possível dependência química enquanto eu tentava fiscalizar a quantidade de doses que ela ingeria quando saíamos, e por isso, seus amigos passaram a me chamar de “pai”; “chegou o teu pai”, diziam sempre em tom pejorativo. Expliquei a mãe dela que a minha aversão a bebida se dava, em parte, por experiências desagradáveis com pessoas próximas que se embriagavam, e outro detalhe era mais preocupante: nas últimas semanas, os olhos dela estavam constantemente avermelhados, e quando perguntava se havia algo mais do que álcool, sempre negava. Ainda no supermercado, lembro-me de ter comentado que ela mudava frequentemente de humor, reclamava da ausência do pai, que viajava muito. Tinha momentos de profunda tristeza, seguida de uma euforia contagiante. Era inconstante. Achava-se desvalorizada pela família que, na verdade, boa parte estava na Itália. Às vezes se sentia completamente inútil por, ainda aos 21 anos, viver de mesada e se comparava a mim que tinha relativa autonomia financeira. Imagino que eram fatores que a empurravam para o vício dos destilados e o mais grave que descobriria um pouco mais adiante.
Era muito inteligente e vivia nos extremos: amante de poesia, curiosamente fazia engenharia, também gostava de programação, entendia de linguagem C, dominava bem o inglês, falava italiano como nativa. Foi alfabetizada até os cinco anos na Itália quando então veio morar no Recife no final dos anos 1970, e por conta disso, ficou com um sotaque em português distinto. Algumas vezes ligava para a minha casa e deixava a secretária do lar curiosa em saber “quem era a moça simpática que falava estranho”. Eu desconversava.
Nas aulas de francês chamava a atenção pela rapidez com que aprendia as pronúncias. Era muito hábil para resolver derivada e integral, de maneira que passou a me ajudar nos exercícios de estatística e econometria. O perfil dela lembra um pouco o caso de “Lucas” (p. 166) relatado neste livro: talento e um sentimento de vazio existencial, assim como do colega mestrando em matemática que estudava comigo no ano anterior e se entregava no final ao álcool e à maconha. Todos os dois significavam exemplos de enorme desperdício de potencial por causa da dependência química.
Usar a rebeldia como forma de expressão para lidar com o vazio é típico da juventude. Eu tinha um pouco disso, com um certo juízo que procurava conservar. Ela não respeitava certas normas e reagia mal às críticas e advertências da mãe que a ameaçava de enviá-la para a casa da “nonna” (avó materna) na Itália se não mudasse de comportamento. Não queria saber de tratamento, respondia com agressividade quando se tocava no assunto. Quando eu me juntava à mãe para pressioná-la sobre o problema, fazia o contrário do que pedíamos por pura provocação. As brigas entre ela e a mãe foram se tornando frequentes. Muitas vezes não entendia o que falavam porque discutiam em italiano. Ficava claro apenas quando a mãe usava o português na minha presença, para que eu entendesse o que poderia acontecer em relação a ela ter que ir embora para a “nonna”.
A suspeita de que havia algo grave em sua dependência química seria confirmada em uma espécie de luau no final de maio em Boa Viagem. Um grupo fez uma roda, ela se juntou e quando me aproximei e percebi do que se tratava, mantive distância. O histórico de exposição a ofertas de drogas me ajudou nessa hora. Percebi logo do que se tratava. Iniciaram uma espécie de “celebração” à base de cannabis e “Morena Tropicana” ao violão. Foi quando passei a conhecer uma interpretação curiosa, bem distorcida, da letra belíssima desta canção de Alceu Valença: ao contrário do que o autor quis celebrar na origem da composição, na visão do grupo a canção seria uma espécie de “hino à maconha”. Ela então me ofereceu o “beijo travoso” (metáfora para passar o consumo da erva por um “boca a boca”); estava tentando me incluir no grupo e ficou mais aterrador quando surgiu com aquele famoso pó branco. Fiquei atônito. Ela tinha acabado de romper uma linha demarcatória que não tinha volta. Decidi me retirar. Senti nojo:
– Esta roda não dá pra mim, prefiro a de poesia, lembra-se de Lord Byron, quando nos conhecemos?
Voltei. Tentei tira-la, mas sua revolta com a ameaça que tinha recebido da mãe foi maior. Resistiu. Insisti para que saísse. Não adiantou. Então caminhei sozinho até sentir a água do mar tocar meus pés. Ali terminou o relacionamento. O cheiro do mar, o barulho das ondas, a escuridão no horizonte, o violão horroroso e aquela turma da pesada entoando o que considerava “hino” quando comecei a pensar… Passou um flashback. Chorava como uma criança. Estava consciente da gravidade do momento. Na medida em que o tempo passava e ela sinalizava preferir ficar na roda dos “amigos” do tal “olhar noturno” (entre as metáforas sem sentido), passei a uma profunda solidão, seguida de uma tristeza que nunca tinha experimentado. Pensei na vergonha que meu pai sentiria ao me ver naquela roda, em minha mãe e em minha filha, que iria completar quatro anos. Pensei no trabalho de desenvolvimento de sistemas que estava começando a crescer e na faculdade que precisava concluir. Tinha muita coisa em jogo naquela noite e se tivesse cedido para participar daquele ritual, colocaria tudo a perder.
Do choro e do isolamento auto infligido, passei para uma forte indignação. Esmurrei a areia e dei um grito de raiva. Levantei e fui em direção àquela roda de espiral autodestrutiva e fiz um discurso que, de tão irado, a deixou perplexa, paralisada, e trouxe pânico a um dos “amigos” que pensou que eu fosse um policial e estivesse armado. Eu estava meio que “possesso”, naquela hora encarnei o papel do jovem pobre, com muitas responsabilidades, da zona norte do Recife, mas com uma base moral suficiente para enquadrar filhinhos-de-papai daquela ilusória zona sul regada a bebidas e drogas. Pararam de tocar o violão. Em termos sucintos, perguntei como uma jovem tão vigorosa, bonita, com 21 anos, estava se perdendo daquela forma estúpida. Como uma pessoa inteligente, que entendia de poesia, matemática, e até de programação, estudando engenharia, que me ensinou coisas da cultura italiana, de uma família bem estruturada economicamente, falando fluentemente inglês, bem articulada, se permitia a preferir maconheiros e cheiradores de pó? Queria ter apenas um pouco das oportunidades que ela tinha.
O discurso foi se tornando cada vez mais intenso, inflamado, e a roda foi desfeita. Ficaram com medo da atenção que estava gerando por alguns poucos passantes no calçadão, mesmo distantes. Ela começou a chorar descontroladamente, pediu que não contasse à “mama”. Subiu para o apartamento e eu fui embora. Fui duro, talvez demais. No dia seguinte, fiquei muito abatido e o burburinho da praia chegou aos ouvidos da mãe. Antes que eu terminasse de me preparar para ligar, ela ligou: contei-lhe tudo. “Não tenho como voltar”, concluí. A mãe decidiu fazer o que tinha advertido e era urgente; para salvar a vida da filha, de imediato a retirou daquele ambiente tóxico da orla e a enviou para a casa da avó na Itália. Disse que seria internada em uma clínica. Fim.
Segui minha vida. No mês seguinte conheci quem seria minha esposa, em uma implantação de sistema, mas fiquei com uma sequela emocional: não podia ver mais alguém fumando ou bebendo que me isolava do ambiente. Virou um gatilho. Recebi então ajuda de um professor e psicólogo, o “amigo” no ambiente universitário, que notou o problema quando palestrei em um evento da faculdade de economia e me isolei no coquetel ao perceber pessoas fumando e bebendo.
O amigo ateu e comunista fazia doutorado à época e se ofereceu para aplicar uma técnica que me livraria desse gatilho. Por isso, em 2008, quando o procurei para conversar sobre os problemas que enfrentava com a morte de meu pai no ano anterior, para testar se ainda havia algum resquício, ele acendeu um charuto, me ofereceu um e deu uma baforada. Minha reação foi tranquila, e então fomos caminhar [486].
485. 10/11/2025 22h47
486. 08/11/2025 12h51