09/11/2025 08h34
Imagem: Cultura Animi

“The behavior of individuals is much less influenced by the external forces pressing upon them than by an invisible director who determines their actions from within.”
Obra: ON POWER: The Natural History of Its Growth. Book IV. The State as Permanent Revolution. XI Power and Biliefs. Liberty Fund, 2020, Indianapolis. Traduzida para o inglês por J. F. Huntington. De Bertrand de Jouvenel des Ursins (France/Paris, 1903-1987).
Por que indivíduos se digladiam por político de estimação? Esse fenômeno se explica apenas com base em seus interesses econômicos? Por que um indivíduo muitas vezes gentil em boa parte do tempo, se transforma em um militante agressivo e irracional quando passa a falar sobre política? Por que determinado político desperta ódio e, ao mesmo tempo, veneração? Como foi possível um Stalin, um Hitler e um Mussolini? Como foi possível o surgimento dos primeiros monarcas?
Nesta obra extraordinária de Bertrand de Jouvenel, encontrei essencialmente uma resposta: Pelo poder prioritário que as crenças exercem sobre o uso da razão.
Para Bertrand de Jouvenel, o comportamento dos indivíduos é muito menos influenciado por forças externas que provocam pressão sobre eles do que por um “diretor invisível” a determinar suas ações internamente. Quem governa, de certa forma, espelha uma crença coletiva que foi direcionada a um propósito político. O trecho (p. 214) me remeteu a uma palestra de Dario Fabbri. O italiano analista de geopolítica – a qual acrescenta “humana” – na ocasião afirmou que “não foi Putin quem criou a Rússia, mas foi a Rússia que criou Putin” [484], e assim resumi o argumento:
“Não foi Putin quem criou a Rússia, mas foi a Rússia que criou Putin” (4:08); a guerra da Ucrânia “não é a guerra de Putin” (9:00) , e sim de uma coletividade russa forjada pela cultura, pelos costumes, por uma visão peculiar de si mesma, em uma questão de psicologia coletiva; “é uma guerra profundamente russa” (11:10), “é a Rússia que invade a Ucrânia” (11:11), mesmo que Putin seja um ditador, é preciso haver um consenso que vem pela visão coletiva em concepções que motivam o conflito.
Lula seria então um produto de uma determinada psicologia coletiva brasileira (“O Filho do Brasil”), assim como Bolsonaro, a representar outra coletividade psicológica regida por crenças que amaldiçoam as crenças gravitando em torno do que representa Lula. Trump seria um produto do ressentimento neocon americano que impõe a conservação de seu imperialismo, não que os democratas pensem diferente quanto a essa primazia. O ódio a Trump se concentra – em parte – nos que resistem a esse imperialismo, e a veneração reside em vassalos que buscam manter seus privilégios no tabuleiro geopolítico.
Um sujeito bem sucedido no poder, nessa concepção, seria um expert em tomar proveito de crenças que predominam na população. Penso aqui no que Bertrand de Jouvenel considera a regularidade no seio social que é produzida por um código de crenças e valores morais profundamente enraizado na natureza humana em sociedade (p. 214). Na antiguidade, esse código tinha um peso considerável para sinalizar ao monarca seus limites; “quanto menos avançada for uma sociedade, mais sagrados serão seus costumes”, sintetiza o autor (p. 217). De certa forma, no primitivo sistema de leis divinas, para conquistar o poder político, o pretendente precisa se libertar do “medo subjacente de pôr em movimento forças invisíveis que estão por toda parte” (p. 218).
Para o poder se expandir é preciso haver uma conexão sustentável com “costumes populares” e nesse contexto se desenvolvem pequenos arranjos ou governantes locais, necessários à regulação de ações . No entanto, o poder desde os tempos remotos vai sempre se expandindo pelo egoísmo que o impele, de maneira que se estrutura em formas que os costumes e as crenças sofrem rebaixamento e podem se tornar ruínas sob a força política que se expandiu (p. 215).
Sobre o que resumo no parágrafo anterior, pensei em quanto o estado moderno democrático de direito bem minando o indivíduo em favor de uma ideia de coletividade. Contudo, o fenômeno mais traumático se deu em regimes autoritários que começaram com grande apoio popular e recorreram à violência repressiva. Pensei no amplo apoio que os nazistas obtiveram na Alemanha nos anos 1930, assim como os fascistas gozaram na Itália dos anos 1920 até meados dos anos 1930, bem como o apoio significativo de eleitores por regimes socialistas mais avançados, em termos de controles, ao longos dos últimos 100 anos, e como os valores que predominavam nas massas que foram conquistadas, vão se perdendo. Suas crenças foram direcionadas, diria, conduzidas ardilosamente, para o que se apresentou como projeto de realização que se mostra adiante, falso, enganoso, em um estágio avançado. Depois que caem nessa armadilha, tornam-se mais vulneráveis à repressão porque perderam boa parte do vigor original que moldavam suas crenças e seus valores.
ZW me dizia, “em matéria de política, primeiro se crê, só depois é que se racionaliza e não raramente é tarde demais”. Nessa relação, a idolatria política se estabelece pelo parâmetro da fé priorizada sobre a razão. Então, um petista e um bolsonarista representam dois credos em conflito no estilo de “jihad” e, nesse sentido, da mesma forma que um comunista e um nazifascista são dois tipos de “crentes fundamentalistas” em “guerra santa”, ambos nutridos pela intolerância radical que não admite o outro que pensa diferente, por isso, muitas vezes são tão perigosos quanto religiosos fanáticos que condenam ao inferno quem não acredita em suas crenças.
Pensei o quanto Hitler, Stalin, Mussolini, Maduro, Chávez, Fidel Castro, Putin, Trump, antigos, medievais e modernos, entre tantos outros líderes autoritários, conforme seus graus variados de tirania, chegaram mais ao poder entendendo o que Bertrand de Jouvenel chama de “diretor invisível” que, penso, predomina a formar uma “psicologia coletiva”. Tiranos de sucesso entenderam que não adianta tentar apenas influenciar a massa apenas externamente. Não se forma uma nação de comunistas e nazifascistas alienados somente por simples vontade de quem pretende comanda-la politicamente. É preciso entender crenças e valores em evidência para canalizar sentimentos e desejos mais profundos, de maneira que se tornem úteis às intenções de quem almeja possuir o poder.
484. 12/11/2022 23h32
08/11/2025 12h51
Imagem: Mark Baker Oficial Site

“[…] Ele era confiante sem ser arrogante, acreditava em valores absolutos sem ser rígido e tinha clareza sobre sua própria identidade sem julgar os outros.”
Obra: Jesus, o maior psicólogo que já existiu: Como os ensinamentos de Cristo podem melhorar nossa saúde emocional e nos ajudar a lidar com os desafios da vida. Capítulo 1. Sextante, 2005, São Paulo. Tradução de Cláudia Gerpe Duarte. De Mark W. Baker (1965).
“Não julgueis”
O dia em que recebi a maior lição sobre esta sabedoria de Jesus, dada por um ateu… e comunista
Amigo, gostei da referência a Sartre e Kiekegaard. Assim vamos nos manter então secretos na própria revelação…
Seis anos se passaram desde nossa primeira conversa, e a semente germinou. Estava decidido àquela dor extrema por mais autoconhecimento, após quatro anos de seminário teológico e mais dois anos consumindo Freud e Jung.
A muralha de livros no gabinete estava ainda mais imponente e o cheio forte, que eu pensava ser de cigarro, também. Então você acendeu um charuto e me ofereceu um por pura provocação, o qual se orgulhava de dizer “é um cubano legítimo” (em alusão à sua crença comunista). Eu nunca apreciei, tampouco consumi cigarro, charuto e destilado; ali mais uma vez testou se havia ainda algum resquício de um gatilho que era acionado quando eu via alguém fumando (e também consumindo bebida alcoólica) em relação a um trauma (1996).
Eu, cristão, formação protestante, “pequeno burguês” (como você costuma definir meu tipo periférico no capitalismo) e caminhando para o austrolibertarismo. Você, professor, doutor, ateu e comunista; uma bela dupla dialética.
Amigo: E aí?, já abriu a sua igreja, irmão? – A pergunta com o velho sorriso sarcástico.
Leonardo: Você sabe perfeitamente que eu nunca quis ser pastor, e já estou livre do seminário – o meu sorriso foi interrompido por outra provocação:
Amigo: Livre? – deu uma baforada e seguiu – hum… pelo jeito deve ter sido profundamente reveladora a experiência lá com os teólogos. Estou a fim de caminhar pelo campus e pelas redondezas, vamos?
Leonardo: Vamos!
Era final de tarde, às portas da primavera no Recife, estava aprazível para uma caminhada. A perda de meu pai em 2007 trouxe um novo ingrediente traumático em relação aos dilemas que versei ao amigo em 2002. Então, após atualizarmos os assuntos, meu amigo me surpreendeu citando Mateus 7:1 e mudou a perspectiva que eu tinha sobre os problemas que enfrentava.
Leonardo: Curiosa citação vinda de um ateu, mas qual seria o sentido aqui?
Amigo: Há seis anos você veio com tantas certezas sobre si mesmo, lembra-se?, você me procurou querendo respostas sobre os anos de Ferris Bueller que viveu em poucos meses de 1996, sobre a decisão drástica que tomou no final do ano seguinte, no dia do aniversário, só para dar um toque a mais de dramaticidade. Entre tantos dilemas, queria saber por que tem tanta fobia de injeção, médico, pessoas consumindo bebida alcoólica, insetos, animais e de escuridão, se eu não esqueci de alguma… Chegou convicto de que sofria de transtorno obsessivo compulsivo, pelo menos desde o final de 2000. Você estava carregado de juízos enviesados e preconceitos sobre si mesmo. Verificamos que a definição que deu para o suposto “TOC” se baseava em uma crença distorcida em seu achismo imaturo, confiante demais em suas leituras autodidatas, sem tecnicidade e na falta de um mergulho profundo em si mesmo para reconhecer o que não é patológico.
Leonardo: Sim, e daí?
Amigo: Desatamos parte desse nó, mas há um ponto final a ser vencido.
Leonardo: Qual?
Amigo: Pare de julgar a si mesmo! Não julgueis! Pare de ainda se culpar pelas fobias que está superando, pare de se incriminar pelas decisões erradas que tomou porque subestimou sua psique, pare de considerar um TOC que não existe e pare de se julgar se poderia ter feito algo para evitar a perda de seu pai! Para de se culpar! Não julgue a si mesmo para não ser julgado! Escute, você não tem culpa!
(fitou em meus olhos e com as duas mãos em meus ombros)
Amigo: Esta sabedoria de Jesus normalmente é aplicada quando julgamos os outros e não fazemos autocrítica, não é isso?, é a questão de olhar o cisco no olho do outro e ignorar a trave que tem no próprio, não é mesmo?
Leonardo: Isso – sentamos em um banco porque eu estava chorando.
Amigo: Chorar agora vai lhe fazer bem… Mas o “outro” pode ser um outro que está no inconsciente, você sabe muito bem que há um Leonardo da infância que está aí dentro de você, subestimado, que age na surdina, imperceptível, o “eu reprimido” que pode te induzir a erros, e que você não conhece como deveria. Esse outro te induz ao julgar a você mesmo de forma deliberada e impiedosa.
(alguns minutos de silêncio quando eu finalizava o “choro que faz bem”)
Amigo: Sabe, Leonardo, a maioria das pessoas passa a vida inteira fugindo de si mesmas, em subterfúgios, evitando saber de certas coisas na intimidade mais profunda da psique, porque o processo de autoconhecimento, você sabe muito bem, é doloroso, muito constrangedor. Você não é desse tipo. Você quer saber! Isso é belo! Aqui releio esta passagem do Evangelho e o “Não julgueis” começa pelo outro que há em você no inconsciente, não é apenas “outra pessoa”, entendeu agora? Se você não se conhece como deveria, como ousa julgar a si mesmo?
Leonardo: Entendi! Pai do Céu! Em quatro anos de seminário, não consegui ler essa passagem dessa forma!
Amigo: Você deve ter lido, fez muito sucesso entre crentes, mas apesar de não ser a minha praia, vou dar crédito ao autor de Jesus, o maior psicólogo que já existiu. Mark Baker menciona a clareza que Jesus tinha sobre sua própria identidade para não cair nesse erro automático sobre o juízo dos outros, pois quase tudo o que fazemos na vida baseia-se simplesmente na fé.
Leonardo: Sim, logo no início do livro (capítulo 1). Mais uma coisa curiosa vinda de um ateu.
Amigo: É verdade, é preciso ter fé, pelo menos na vida. Alguns a estendem ao que consideram Deus, outros não, o meu caso, mas todos carecem de alguma fé para tocar a vida. Vamos nos ater agora apenas ao conceito de “eu reprimido”.
Leonardo: Jung, certo.
Amigo: Sim. Pense agora no conceito e considere o Leonardo oculto que precisa ser melhor conhecido, ainda. Você avançou bem no autoconhecimento, mas está longe de ser o bastante, precisa pelo menos ser dobrado. Precisa conhecer melhor sua identidade, saber com mais detalhes quem você realmente é, qual foi o processo de vida que culminou do seu eu reprimido ao seu eu de hoje, os danos do passado, de onde veio e para onde pode estar indo. Então, com esse conhecimento depurado, deixará de se ocupar com o que os outros pensam sobre você e o julgamento que possa ter dos outros, e entenderá que esse “outro” começa de seu outro eu reprimido, aí escondido dentro de você.
Leonardo: E se não há bom conhecimento sobre si, julgar a si mesmo é um ato de injustiça autoinfligida, e o ato de julgar os outros se torna ainda pior, porque o julgador que não se conhece como deveria, reproduz o erro de si para uma escala ainda maior, no outro exterior, e mesmo que eu me conhecesse bem, julgar o outro exterior sempre será uma tarefa muito complexa e certamente errante porque envolve um campo que não me pertence, a psique do outro.
Amigo: Exatamente!
07/11/2025 22h15
Imagem: Planeta de Livros

“[…] é, acima de tudo, o resultado do que achamos de nós mesmas.”
Obra: Síndrome da Impostora. Despindo-se do disfarce. Basta. Planeta, 2020, São Paulo. De Rafaella Sanchotene Brites Andreoli (Brasil/Rio Grande do Sul/Porto Alegre, 1986).
A influenciadora que fez especialização em Programação Neurolinguística, lembra que pesquisas recentes apontam que a “Síndrome da Impostora” não se restringe a pessoas bem-sucedidas, nem apenas a mulheres (p. 74). Em face ao trecho (p. 82) desta Leitura, aponta que a síndrome caracterizada pelo sentimento de insuficiência e incapacidade quando se adota uma máscara para se achar capaz (p. 86) não se relaciona com o que os outros pensam sobre nós.
Para começar a lidar com o problema, inicialmente é preciso saber quem realmente somos, ou seja, é necessário trilhar o caminho do autoconhecimento para oferecermos ao mundo nossa melhor versão (p. 82), e aqui meu amigo, penso lá nos idos de 2002 em que lhe procurei no seu “gabinete” universitário com aquela muralha de livros e o cheiro forte de cigarro ou sei lá o que… Eu estava munido dos meus dilemas existenciais, e então me levaste a um espelho de corpo inteiro e fizeste com que eu pegasse o meu indicador e o apontasse ao meu peito acompanhado da pergunta:
– Quem sou eu? – e então, em meu silêncio constrangedor:
– Vai doer bastante caso você decida se livrar da ignorância e do preconceito sobre si mesmo – foi tua resposta.
E ganhou a noite a conversa sobre o que Carl Jung escreveu sobre Freud [483] acerca do problema do conhecimento da própria psique envolver um objeto tão “repugnante”. Quem vai se sentir à vontade esmiuçando os próprios traumas, sobretudo os de infância?, indagaste, assim como quem poderia ter prazer em sondar as próprias ambiguidades… Torna-se ainda mais dramático quando não conseguimos passar das crenças distorcidas sobre quem somos, de onde viemos, para onde vamos e o que representamos. Quase me enveredei pela graduação em psicologia por causa daquela aula particular que me deste, mas segui para o seminário teológico, contudo, foi plantada uma semente que levou seis anos para germinar, um ano após ter perdido o meu pai.
Segue Rafa Brites a argumentar que é preciso se reconectar com a própria história, os próprios talentos, para resgatar o próprio valor (p. 83). Veja aqui meu amigo se não lembra um tanto aquele meu eu de 2002 que se autodepreciava de forma sutil, apesar de ter superado o medo do futuro, depois do que fizera em dezembro de 1997, do mal adiado 1996. Ah o futuro… uma assombração que se agiganta quando ficamos estáticos em nossas certezas tão mal definidas sobre nós mesmos.
483. 14/10/2025 22h48
06/11/2025 22h14
Imagem: Luciana Amorim

Stephen Hanselman
“Nenhum grau de prosperidade, nenhum grau de dificuldade, é certo ou para sempre.”
Obra: Diário Estoico. 366 lições sobre sabedoria, perseverança e a arte de viver. 06 de novembro. Outra pessoa está fiando a linha. Intrínseca, 2022, Rio de Janeiro. Tradução de Maria Luiza X de A. Borges. De Ryan Holiday e Stephen Hanselman.
Nesta reflexão estoica, lembrei-me de uma cena marcante no filme Gladiador (2000), de Ridley Scott, quando, após ouvir do imperador como a esposa fora violada pelos soldados e em seguida assassinada junto com o filho, o general que se tornou escravo e depois gladiador, Maximus, responde: “O tempo de honra-lo está próximo do fim… Alteza!”.
Eis uma ilustração sobre a serenidade, o autocontrole, a resignação em meio à consciência de que há algo superior nas mudanças que se dão na vida mediante as coisas que não podem ser controladas, e dizem respeito aos deuses, que mudam a sorte, isso na mentalidade antiga, e assim se encontra o sentido de que “um triunfo torna-se uma provação, uma provação torna-se um triunfo” (p. 391).
Penso então na parte final (p. 391) da citação de Tiestes, de Sêneca:
“Ninguém teve tanto favor divino
Que pudesse garantir a si mesmo o dia de amanhã
Deus mantêm nossa vida agitada.
Girando num turbilhão.”
À mercê do destino, eis a natureza do mundo da vida que pode mudar num instante (p. 392), e o que se chama de “realidade” flui para desafiar a crença na estabilidade e no fatalismo. Curiosamente, a abrupta mudança na sorte do escritor Cormac McCarthy (1933-2023), contada pelos autores, me fez lembrar na mudança de sorte que me veio no difícil dia 10 de dezembro de 1997, quando dei um reset em minha vida.
No dia em que completei 23 anos, decidi deixar a casa de meus pais, munido de uma mochila e um computador com os programas que desenvolvi; era tudo que eu tinha, além de muitas dívidas e um carro financiado que logo seria devolvido. Não sabia, mas naquela tempestade perfeita, começava a exorcizar o medo que eu tinha do futuro e de mim mesmo, coisas que me perseguiam desde a infância. Esse medo mal resolvido tinha me impedido de tomar decisões mais ousadas no ano anterior, que repercutem até os dias atuais.
Foi enfrentando um cenário onde só havia desvantagens, incertezas e reprovações por todos os lados, especialmente em termos de família, que decidi caminhar a um novo desconhecido, e fui então percebendo uma profunda mudança em minha visão da existência e na própria sorte. Foi quando percebi que nas dificuldades extremas daqueles dias, o tão temido futuro não passava de um espantalho e assim encontrei a graça de jamais abandonar a fé em Deus e na vida.
05/11/2025 22h12
Imagem: Yale University,

“A harmonia da alma e do corpo – quanto isso significa! Nós, em nossa loucura, separamos os dois e inventamos um realismo que é vulgar, uma idealidade que é vazia.”
Obra: O retrato de Dorian Gray. Capítulo 1. L&PM Editores, 2001, São Paulo. Tradução de José Eduardo Ribeiro Moretzsohn. De Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde (Irlanda/Dublin, 1854-1900).
Curiosamente imaginei uma personagem neste romance a escutar o artista Basil Hallward e então perguntá-lo: Mas como se pode harmonizar em uma pintura, em termos estéticos, duas categorias tão distintas?, mediante ouvir seu deslumbramento pelo que afirma sobre Dorian Gray logo em seguida (L 498/3800).
Como se define em pintura a estética de uma alma? A genialidade de Oscar Wilde encontrou uma resposta.
A pintura que vai se alterando na medida em que Dorian Gray manifesta seus valores, revela essa estética. Quando a atriz Sibyl Vane, apaixonada por Dorian, abandonou a carreira e foi rejeitada justamente por ter deixado de ser o que para o galã era o que a deixava bela, depois que ela se suicidou (capítulo 8), a crueldade que reflete sua rápida e fria “superação”, surge com um sorriso com um toque macabro na pintura que ilustra essa harmonia e desnuda a falsidade tão comum na sociedade de equiparar beleza física com qualidades intangíveis de um indivíduo que, no caso de Dorian, reside em uma alma depravada. Assim é superado o problema das aparências que enganam em uma inversão de sentidos que converge objetivamente à pintura e não a abstrações em torno de uma péssima índole.
A harmonia de corpo e alma em Dorian Gray se relaciona com o hedonismo que o próprio afirma sobre felicidade e prazer quando flerta com a duquesa; a primeira não lhe interessa, a segunda é o que lhe importa (L 3269-3800).
Dorian celebra sua eterna juventude sem se importar com a própria devassidão que vai transformando a pintura em um horror, enquanto seus atos são irreparáveis, sendo o ápice, o assassinato do pintor que a produziu, uma espécie de metáfora para refletir seu profundo desespero de narcisista.
04/11/2025 22h14
Imagem: France 3

“[…] Entre les basses collines, il n’y a rien que le Fond du Puits.
Il se demande s’il s’en sortira vivant.”
Obra: La Langue des choses cachées. L’Iconoclaste, 2024, Paris. De Cécile Coulon (France/Saint-Saturnin/Puy-de-Dôme, 1990).
Cécile Coulon faz arte e não entretenimento, e isso, à mon avis, significa produzir sem se moldar pela expectativa que se possa ter da reação do público.
La Langue des choses cachées conta, em um estilo de fábula, coisas indecorosas de segredos da natureza humana em uma profundidade onde as palavras não conseguem alcançar. À francesa, sutilmente breve e ao mesmo tempo sem pressa em um encontro além da obviedade em uma junção de almas (eis a melhor forma de se experimentar…) Coulon navega no que me apraz, então chega a águas um tanto desconhecidas para muitos leitores e aborda uma forma de expressão que se encontra em omissões que se dão em conversas, em lugares e em corpos. Falam marcas, cicatrizes, sinais, sussurros, tudo o que está oculto, em um silêncio de temor, em uma omissão ardilosa, em um olhar com segundas intenções ou tentando esconder algo, em gestos emblemáticos – e por que não pensar? – em tudo que há auto acusação que apenas quem tem sensibilidade para perceber pode “ver”, “ouvir” e contar.
Esta obra me fez pensar em um velho amigo que vem diariamente aqui conferir o que ando escrevendo (ou revelando subliminarmente?) e costuma dar risadas com o que chama de “arte de permanecer oculto na própria revelação”, como Sartre certa vez se referiu a Kierkegaard ou no que seu velho provocador doutor Freud costumava pensar. Quantas vezes esse velho amigo me disse que considerava mais tudo aquilo que eu não lhe falei, contudo, neste romance, quanto a esta arte de escutar o não dito e ver o não visto, Cécile Coulon faz uma espécie de hipérbole com toques de misticismo e requintes de crueldade a traduzir uma linguagem perturbadora que há dentro de nós, diante de ambiguidades que lutamos para esconder. Não é por acaso que vi alguns comentários entre franceses que revelam certo temor diante da leitura e, neste ponto, penso, a autora alcançou o que entendo ser o ápice da arte da literatura que penetra em nossos segredos mais “difíceis”, para usar um eufemismo.
Meu amigo, aí está um romance que recomendo a ti, que tanto gostas de tocar fogo no parquinho…
Como a escritora francesa que admiro conseguiu narrar tudo isso? A partir do drama de um jovem que herda da mãe o ofício de curandeiro, e então vai a um leito de uma criança em uma aldeia de Fond du Puits, distante, afastada, para reeditar o que sua mentora deste misterioso e suposto poder fizera, quando então se inicia uma experiência intrigante que não poupará ele e os habitantes do remoto lugar (p. 16).
Estou começando a entender porque Cécile Coulon prefere experiências de isolamento com os pés na terra, correndo, andando por aí, por vales e montanhas…
03/11/2025 22h18
Imagem: Jacobina

“Fui morar na floresta porque desejava viver deliberadamente, enfrentar apenas os fatos essenciais da vida, e ver se conseguia aprender o que ela tinha a ensinar, em vez de descobrir só na hora da morte que não tinha vivido.”
Obra: Walden, ou A vida nos bosques. Onde vivi, e para que vivi. Edipro, 2020, São Paulo. Tradução de Alexandre Barbosa de Souza. De Henry David Thoreau (EUA/Massachusetts/Concord, 1817-1862).
Thoreau, o homem que deixou a civilização e foi viver sozinho na floresta.
Esta autobiografia me fez repensar o conceito de solidão, quando li o poeta e naturalista norte-americano afirmar que na experiência radical a que se submeteu, face ao isolamento de seus semelhantes, encontrou benéfica companhia na própria natureza, no “tamborilar das gotas” e de cada som e visão ao redor da casa que construiu no meio do mato com visão para um lago (p. 145).
Outra definição curiosa do autor é que encontrou na solidão (aqui em relação aos humanos) uma “boa companheira” e, logo em seguida, argumenta que “ficamos quase sempre mais sozinhos quando estamos entre os homens” (p. 148). Neste ponto, penso o quanto muitas vezes é possível se sentir só quando se está bastante acompanhado. Quando eu trabalhava como seminarista, um pastor confessou o quanto se sentia muitas vezes solitário, embora cercado por tanta gente no seu concorrido gabinete. Lembrei-me também do sermão “A solidão de um pai”, do saudoso pastor Guimarães, da Capunga, que me deixou bastante reflexivo sobre o quanto um chefe de família, e aqui eu faço uma releitura para “o pai” que pode ser “a mãe”, “o irmão mais velho”, ou seja, o líder da família que acaba isolado quando cai em seus ombros a função de tomar decisões difíceis e muitas vezes não é reconhecido.
Outro caso que recordei nesta experiência de leitura se deu por um amigo o qual seu terapeuta o chamava carinhosamente de “124”: ele confessou sua solidão até mesmo entre familiares mais próximos quando era comum escutar que as pessoas tinham desinteresse e até medo de conversar com ele, pois supostamente as fazia sentir ridículas, no entanto, junto com seu terapeuta, descobriu que o problema tinha relação direta com a afirmação de Thoreau quanto a sociedade ser “banal demais” e que os encontros ou interações enquanto breves, costumam não acrescentar valor (p. 149), e aqui, penso, sobretudo a quem não está disposto a isso e prefere se limitar, enquanto despreza quem busca o amadurecimento intelectual.
Logo adiante Thoreau afirmar que a solidão “não se mede em milhas como o espaço entre um homem e seus semelhantes” . A ocupação do trabalho faz com que alguém sozinho não se sinta solitário (p. 149). Faz sentido, pensei, pelo menos em minha experiência de trabalhar sozinho, mas não me sentir solitário. Quando estou escrevendo ou programando, sinto-me de alguma forma “acompanhado” por ideias, sentimentos e reflexões. Neste ponto, penso na solidão como um vazio existencial, na ausência do cultivo de pensamentos que desenvolvam o espírito.
É evidente que a interação social é importante para o desenvolvimento humano, no entanto, a questão é o quanto essa interação cumpre esse propósito em uma sociedade que celebra o besteirol e o desprezo pelo conhecimento e e pela sabedoria.
Por fim, penso em um conceito ainda mais provocante do homem que decidiu viver isolado dos semelhantes em um estilo o qual definiu como integrado à natureza: a medida em que o ser humano se desprende das banalidades, deixa de estar apegado às coisas vãs que enchem a agenda do dito mundo civilizado, tornando assim sua vida mais simples, “as leis do universo lhe parecerão menos complexas, e a solidão não será solidão, nem a pobreza pobreza, nem a fraqueza fraqueza” (p. 344).
02/11/2025 09h27
Imagem: ADAA

“Uma das crenças ocultas mais poderosas que está por trás da preocupação é o poder de controlar tudo em sua vida.”
Obra: Livre de ansiedade. Capítulo 7 – “Sim, mas e se…?”. Transtorno de ansiedade generalizada. Artmed, 2011, Porto Alegre. Tradução de Vinicius Figueira. De Robert L. Leahy (EUA/Virgínia/Alexandria, 1946).
Como um sistema tóxico de atendimento terminou em Mateus 6.25-34
(e em uma confissão de mudança de fé)
por Leonardo Amorim
Nesta segunda abordagem com cliente contábil (C1) sobre o tema da ansiedade, recebi dois convidados no Zoom: um seminarista e uma diaconisa da igreja onde meu interlocutor atua como parte da liderança.
Desconfio que tudo começou no final de um atendimento quando eu disse que um novo sistema de para seu escritório contábil parece ser um perigoso impulsionador de ansiedade generalizada entre clientes, colaboradores e a direção.
O problema é que o aplicativo na nuvem, supostamente dotado com “Inteligência Artificial (IA)”, após tentar responder a demanda no WhatsApp com material da “árvore de conhecimento”, caso o cliente informe que não teve sua necessidade resolvida, sua suposta “IA” então aciona em cadeia os contatos humanos disponibilizados em regime de revezamento (é preciso ter um plantonista nesse modelo), até conseguir concretizar, por diversos canais (SMS, WhatsApp, telefones, e-mails e até redes sociais), colaboradores e o próprio mandatário do escritório, independente do expediente estar aberto, porque, segundo crê, é um “diferencial”, mas na prática o sistema está trazendo muito desconforto para colaboradores enquanto incentiva mais ansiedade não adaptativa em clientes por dispor atendimento contínuo sempre de urgência desmedida.
Dada sua intensa vida religiosa na confissão batista tradicional, ao ser consultado sobre o que penso do modelo, usei um termo com viés teológico para tentar traduzir o potencial transtorno nos recursos humanos e assim fiz uso de uma linguagem familiar: “reflete a mentalidade do dono do escritório de estar sempre disponível a tudo e a todos, acometido da ‘síndrome da onipresença'”, afirmei. Junto com as referências que fiz de psicólogos e psiquiatras, com destaque ao capítulo 7 desta obra do PhD Leahy, passei a passagens dos Evangelhos e depois à obra Jesus, o maior psicólogo que já existiu, de Mark W. Baker.
A conversa parece ter despertado nele algum interesse maior, além de um sermão que ele dera na igreja baseado nela, motivando o incomum agendamento que foi realizado em uma manhã de sábado e levou cerca de duas horas.
09h00 – Agendamento (C1)
Abertura
Para evitar mal entendido [481], fiz uma breve apresentação contando minha passagem pela denominação batista, a começar do final da adolescência (1990) até me tornar seminarista (2003-2007), enquanto cooperei com outras confissões (episcopal anglicana e presbiteriana) em encontros de jovens e de casais (2000-2007), quando então finalizei que, após deixar a denominação (2007 [482]), em termos teológicos e espirituais, atualmente estou mais próximo da fé católica romana do que de qualquer outra confissão.
Evidentemente, precisei enxugar bastante uma conversa tão longa salva na descrição do Zoom e aqui destaco o que considerei como pontos de maior reflexão:
Leonardo: Bom dia! Prezados, eu quase pedi ao pastor Abdoral para me representar nesse encontro.
Diaconisa: Quem é o pastor Abdoral?
Cliente: É outra pessoa que ele diz que há dentro dele, uma longa história, irmã…
Diaconisa: Como assim? Uma incorporação? Baixa um santo nele é? (risos)
Cliente: Não, irmã, é um negócio aí de “heterônimo”, não é nada espírita, viu?, depois te conto…
(risos)
Cliente: Léo, então, desde quando você falou que meu novo sistema de atendimento lá no escritório é “tóxico’ e eu sofro de “síndrome da onipresença”, fiquei muito pensativo. O que mais me incomodou não foi isso. Foi a palavra que você me entregou naquele dia sobre Mateus 6.25-34, quando disse que os que mais idolatram a ansiedade hoje são os crentes chamados de “evangélicos”, no sentido de desejarem sempre mais e mais progresso material, ansiosos para que Deus resolva suas picuinhas e necessidades mais vãs como se o universo girasse em torno disso, e quando disse no final que os maiores ateus então dentro das igrejas apenas pelo interesse de obter prosperidade econômica, zombando de Deus, olha, meu filho, e quando achei que tinha acabado a sessão de carapuça, você disse que Jesus seria novamente crucificado, e não por comunistas ou tiranos, mas desta vez por “crentes-ateus-praticantes”. O que foi isso?, na hora fiquei muito chateado com você, senti-me profundamente ofendido e entendi que você não passa de um desigrejado frustrado com algum trauma de igreja. Confesso que foi uma batida muito forte que você me deu, mas depois aquilo ficou trabalhando por dentro de mim, e tudo mudou. Então, mês passado fui escalado para pregar e o que falei?
Seminarista: Mateus 6.25-34
Cliente: Mencionei no púlpito tudo o que você me falou. Criei coragem…
(eles não perceberam, mas eu estava lacrimejando)
Diaconisa: Foi o Espírito Santo.
Cliente: Creio. Léo, estamos entrevistando candidatos a pastor-presidente, e quando mencionei durante o sermão, as coisas que você me falou, notei que atingiu duramente a ala de diáconos da igreja que procura alguém com perfil da teologia da prosperidade.
Seminarista: Que normalmente se enrola todo para pregar sobre Mateus 6.25-34…
Cliente: Isso, então, esses dois aqui queriam conhecer o autor do sermão por procuração que eu entreguei mês passado. E por isso estamos aqui.
Leonardo: “Sermão por procuração”, essa foi boa, anotado.
(risos, eu estava tentando disfarçar a voz embargada)
Seminarista: Você poderia passar as referências bibliográficas que usou sobre transtorno de ansiedade?
Leonardo: Vou te passar links de uma terapia de leitura que realizo chamada Uma leitura ao dia. Lá você encontrará diversas referências bibliográficas sobre esse tipo de transtorno. Especificamente sobre minha conversa inicial que provocou esse curioso processo, tomei como base o capítulo 7 da obra Livre de ansiedade, do PhD Leahy. Conhece?
Seminarista: Não.
Leonardo: Creio que na biblioteca do STBNB ou da Unicap você irá encontrá-la.
Seminarista: Como você chegou a conclusão que o sistema lá do escritório é “tóxico” e que o nosso irmão (nome) sofre do que chama mesmo… cadê… sim… “síndrome da onipresença”?
Leonardo: Já ouviu falar do filósofo italiano Umberto Galimberti?
Seminarista: Não.
Leonardo: Pude escutá-lo in loco. Galimberti se ocupa bastante sobre problemas da modernidade, e a ansiedade está intrínseca quando, por exemplo, ele argumentou que os meios modernos de comunicação criam a ilusão da presença geral e imediata das pessoas. O sujeito aciona o WhatsApp , o telefone ou uma rede social de alguém sob a ilusão de que pode estar instantaneamente com a pessoa, mas isso não passa de uma ilusão, não apenas porque a pessoa está distante fisicamente, mas sobretudo porque certamente está direcionada em outra atividade ou indisposta para o contato no momento. Toda forma de comunicação que ignora isso, acaba estimulando ansiedade patológica tanto em quem procura, quanto em quem é acionado.
Seminarista: Faz sentido, e o pior que agimos assim e nem percebemos.
Leonardo: Sim, porque o sistema de comunicação é moldado por TIs que exploram transtornos de ansiedade para obter mais lucro. No capítulo 7, da obra do Leahy, ao pensar sobre o problema da preocupação contínua, sem avaliar o que é prioritário, onde nenhum risco é tolerado (p. 121), quando na verdade há ocorrências que podem ser organizadas para tratamento a posteriori, em horários específicos, de forma sequenciada. Você trabalha lá e deve ter notado que os seus colegas estão apreensivos com o novo sistema porque falta ordenamento com o turbilhão de coisas que chegam no automatismo do robô.
Seminarista: Inclusive conversei com a empresa desenvolvedora para rever isso.
Leonardo: Sem um refinamento do que realmente é urgente e o que pode ser ordenado para depois, o sistema retroalimenta a ilusão dessa presença contínua, geral, sem limites, com um robô supostamente dotado de IA passando a ideia de um imediatismo bizarro que acaba satisfazendo todo tipo de ansiedade em clientes e atinge os seres humanos que trabalham na organização e, dada a falta de avaliação desses níveis de prioridade para cada demanda, isso vai provocar mais e mais sobrecarga de tarefas, o que, por sinal, foi constatado recentemente entre os colaboradores. Em termos sucintos, a ideia inicial do robô é interessante, mas falta inteligência para um sequenciamento lógico por níveis de prioridade, e isso torna o uso do sistema novo uma coisa tóxica em termos de incentivar mais ansiedade patológica de clientes até alcançar empregados, sem diferenciar da ansiedade boa.
Diaconisa: Ansiedade boa?
Leonardo: Isso, existe a ansiedade adaptativa, que é benéfica por nos colocar em situação de alerta por conta de uma ameaça real. O problema é que o sistema de IA do escritório não sabe diferenciar o que é adaptativo (prioridade máxima), do que não é adaptativo e pode ser sequenciado em uma programação de atendimento a posteriori. Notei que no sistema há até uma seção que tenta resolver esse problema, mas é muito rudimentar.
Seminarista: Então, há uma ansiedade que não faz mal. E como ficaria Mateus 6.25-34 nesta leitura?
Leonardo: Ler esse dito de Jesus de forma literal “não andeis ansiosos por coisa alguma”, também não ajuda. No contexto, vejo que Jesus nos alerta sobre duas ilusões: a primeira, a de que temos o controle das coisas no sentido de determinar o andamento dos fatos quando a natureza tem sua própria dinâmica (as aves do céu não semeiam e encontram alimento) e, segunda ilusão, de que podemos lidar com o futuro, quando nos adverte que “o dia de amanhã se preocupará consigo mesmo”. É uma sabedoria oriental muito profunda que foi mal concebida em nossa mente ocidental tão imediatista, que ignora nossa condição humana e vende um produto falso e, na perspectiva da fé em Cristo, até mesmo pecaminoso: de estarmos em todos os lugares, conhecermos todos os problemas e podermos resolvê-los sem ressalvas.
Cliente: Eita, mais um sermão por procuração…
(risos)
Diaconisa: Deixa eu ver se entendi, você está dizendo que a ansiedade ruim pode nos colocar no pecado de nos passarmos por Deus?
Leonardo: Exatamente isso.
Cliente: e que eu estou neste pecado ao estimular os clientes a pensarem que tudo é urgente, sem limites e que eu posso, quer dizer, meu escritório, pela ideia que o novo sistema passa, estar em todos os lugares, saber e resolver tudo a qualquer hora, sem distinção. É realmente uma coisa muito arrogante.
Leonardo: De certa forma, quando usei a expressão “síndrome da onipresença”, suavizei, porque a ideia da TI é vender a ilusão total, os três atributos divinos, de um poder que não existe em termos de uma organização humana. A TI vive de vender essa ilusão e, infelizmente, cristãos caíram nessa armadilha. Não pensam mais em termos humanos e estão se tornando refém de robôs e métodos de interação nada humanos. Aqui penso em um livro do C. S. Lewis: A abolição do homem.
Seminarista: Este eu conheço, lembra mesmo.
Diaconisa: Isso está gravado?
Leonardo: A transcrição, sim
Seminarista: E quando poderemos ter acesso?
Leonardo: Vou publicar os pontos principais em meu blog, sem mencionar os nomes.
Cliente: Uma última pergunta: Por que você se sente mais católico romano hoje?
Leonardo: Isso daria outro encontro, mas vou sintetizar, e perdoem-me a franqueza: não é possível estar em Cristo sem ser católico, no entanto, o sentido que uso aqui para “católico” está em Orígenes. Muitos evangélicos que não aceitam a igreja romana, precisam compreender isso. Posso falar que minha aproximação com o catolicismo romano se deu após quase 10 anos de meditação. Também por conta de minhas viagens à Itália, principalmente em Assis, e ao Vaticano, lugares que me tocaram profundamente. Não sei o que vai acontecer comigo nos próximos anos. Só Deus sabe.
(voz embargada na parte final)
Fim da reunião
481. Por se tratar de um encontro com líderes de uma igreja à procura de um pastor para presidi-la, achei por bem deixar bem claro minha posição no final do parágrafo.
482. Apesar de ter enviado em 2007 uma carta solicitando minha exclusão, meu nome ainda consta no rol de membros de uma grande igreja batista em Recife.
01/11/2025 14h47
Imagem: Site oficial

“Quanto mais evitamos ou afastamos nossas emoções, mais ansiosos ficamos.”
Obra: Calma. Técnicas comprovadas para acabar com a ansiedade agora. Capitulo Dois. Suas emoções. Você está sufocando suas emoções? Latitude, 2021, Cotia. Tradução de Luciane Gomide. De Jill P. Weber.
Anxiété, a rainha do drama – por Leonardo Amorim
Os versos de Anxiété foram dispostos de acordo com a sequência da descrição no Zoom.
08h00 – Primeiro atendimento (C1)
Cliente: Bom dia, Léo, um momento, estou em uma ligação.
Leonardo: Bom dia…
Quatro minutos depois…
Cliente: Você acredita que concluímos hoje?
Leonardo: Depende, precisamos que você se livre do telefone e do zap.
Cliente: Você sabe que não posso. Sou dona de um escritório…
Leonardo: Pode sim, entregue para alguém, solicite que anotem recado, já perdemos cinco minutos com esse aliado aí da “rainha do drama”. Se eu vivo sem ele, qualquer um pode viver.
Cliente: Rainha do drama (risos). O quê? Eu?! Ah, você adivinhou com quem eu estava falando…
Je suis la reine des drames
Eu sou a rainha do drama
Leonardo: Não é você, nem quem estava falando contigo, mas a força que deseja te dominar. Depois explico.
Cliente: Tá, desligo se você me explicar em dois minutos como faz para viver sem atender ligação.
Leonardo: Hum, isso não é nada bom, viu?, estamos perdendo tempo… Vamos lá. Tive que aprender a, em vez vez de evitar a emoção, conhecê-la melhor para não cair no problema da preocupação aleatória sem considerar se a ansiedade que sinto é saudável (adaptativa) ou patológica (pp. 1-2). A primeira ansiedade é apropriada, diria necessária diante de situações de percepção de ameaça ou perigo com o acionamento de uma resposta fisiológica momentânea (p. 1), por exemplo, uma mensagem de que algo grave ocorreu com alguém importante em sua vida ou que o prédio do escritório está pegando fogo. Já a segunda ansiedade é uma resposta imprópria desencadeada por sinais que não são ameaçadores ou urgentes (p. 2), por exemplo, um cliente com uma demanda que pode ser urgente ou comum, e para definir bem isso, é necessário um filtro ou seja, colocar alguém ou algo para fazer a primeira abordagem ou a triagem.
Je suis celle qu’on ne voit pas
Eu sou aquela que ninguém vê
Je suis celle qu’on entend pas
Eu sou aquela que ninguém ouve
Leonardo: A ansiedade patológica é um inimigo que ninguém vê nem escuta, enquanto ganha espaço quando não separamos o que realmente importa, é urgente, tem prioridade, e o que pode ser sequenciado em tarefas posteriores. O problema é que, ao não sabermos diferenciar uma ansiedade da outra, não resistimos, quebramos nosso foco, tudo é urgente, e então cedemos imediatamente no telefone, no WhatsApp e coisas do gênero. Satisfeita? (acenou positivamente). Então, perdemos 15 minutos já com essa conversa, agora, faça o favor de se livrar do telefone, feche o WhatsApp do seu Windows, creia em mim, e vamos terminar isso hoje.
Quarenta minutos depois…
Leonardo: Pronto, parte A resolvida, no agendamento das 15h00 resolveremos a parte B.
Cliente: Combinado, mas, quem é a rainha do drama?
Leonardo: Creio que no final do dia, você mesma descobrirá.
15h00 – Segundo atendimento (agendamento)
Leonardo: Boa tarde! E então, como foi seu primeiro dia logo após ser liberta da escravidão do telefone e do WhatsApp?
Cliente: (risos) LALUR e o LACS (parte B) estão prontos.
Leonardo: Olha aí. Então vamos conferir as demonstrações na ECF e fazer a transmissão.
Cerca de 30 minutos depois…
Cliente: Passei umas 3 noites sem dormir quando esse CNPJ foi inativado. Essa cliente liga todos os dias achando que é simples consertar essa m**** que o outro escritório fez com a empresa dela.
Leonardo: É… a rainha do drama não perdoa…
Cliente: Já sei quem é a rainha do drama viu seu Leonardo, é a minha ANSIEDADE!
Leonardo: Bingo! A rainha do drama… e não somente a sua. É como se diz em uma canção da Pomme, uma poetisa francesa, essa rainha manipuladora vive escondida quando resistimos a um choro saudável e ficamos presos à preocupação sem discernimento da real situação:
Je suis cachée au bord des larmes
Eu estou escondida à beira de lágrimas
Cliente: Lindo isso! E assustador também.
Leonardo: A rainha do drama nos envolve impedindo nosso melhor conhecimento das próprias emoções, subvertendo tudo em um medo antecipado e exagerado. A ansiedade patológica vem de mansinho, parecendo que deseja cuidar bem de nossos pensamentos no final do dia, mas que impede o sono reparador por nos manter fixos na preocupação como se estivesse nos fazendo um bem, sendo tóxica por ignorar a natureza das emoções e nos manter em estado de alerta sem necessidade. A Pomme (a jovem poetisa que parece ter vindo de outro planeta) descreve isso de forma profunda e até com um tom de erotismo para ilustrar o poder de sedução da ansiedade:
Quand tu veux dormir je viens pour t’embrasser
Quando você quer dormir, eu vou para te beijar
Si tu veux courir je rampe à tes côtés
Se você quer fugir, eu rastejo ao seu lado
Cliente: É mesmo, a sensação é de que estou sendo sufocada, um nó na garganta…
Leonardo: Exato. A doutora JP Weber aponta que o conhecimento melhor das emoções possibilita o maior controle sobre elas (p. 19), e quando nos afastamos de nossas emoções, ou seja, sentimos, mas não queremos compreendê-las melhor ou até mesmo fingimos ser outra coisa, normalmente algo pior do que realmente é, quando sofremos uma queda emocional diante de um estresse muito elevado, fatalmente haverá o aumento desproporcional da preocupação, onde a ansiedade se fortalece e nos sufoca. Não se deve acreditar em tudo que sentimos, pois isso pode ter origem em uma crença que distorce a realidade.
[…]
Leonardo: Para terminar, sobre o poder imenso da rainha do drama, quando saio, gosto de observar as pessoas de cabeça baixa olhando para o celular, e são muitas não é? A ansiedade está sempre operacional, nos chamando para lhe darmos mais atenção do que merece ou, como em um verso da Pomme:
Je t’attends, je t’attendrai toujours, derrière
Eu estou te esperando, eu sempre vou te esperar, atrás de você
15h58 Fim do atendimento
No videoclipe oficial de Anxiété (na abertura desta edição mensal), Pomme supera os próprios limites da inteligência de sua poesia ao materializar a ansiedade, expressando o sufocamento que ela provoca.