Agosto de O mio babbino caro de Giacomo Puccini (Italia/Luca, 1858-1924) por Maria Callas (EUA/NovaYork, 1923-1977), La Divina.

31/08/2023 23h02

Imagem: ACAMFE

Eça de Queirós

“[…] nele há um pouco de tudo quanto um romancista lhe não deveria pôr e quase tudo quanto um crítico lhe deveria tirar.”

Obra: O mistério da estrada de Sintra. Prefácio. Carta ao editor do “mistério da estrada de Sintra”. Projecto Adamastor., 2013, eBook. De José Maria de Eça de Queirós (Portugal/Póvoa de Varzim, 1845-1900) e José Duarte Ramalho Ortigão (Portugal/Santo Ildefonso, 1836-1915).

Muito do que estou a escrever tem forte influência de Eça de Queirós. Minha primeira experiência de leitura de Eça de Queirós foi com O crime do padre Amaro, e desde então me apeguei com o que chamo de “realismo irreverente” do escritor.

Prefácio de 14 de Dezembro de 1884 com uma crítica, que entendi irônica, dos autores sobre o romance que escreveram 14 anos atrás: “execrável; e nenhum de nós, quer como romancista, quer como crítico, deseja, nem ao seu pior inimigo, um livro igual”, afirmam.

O mistério da estrada de Sintra é um romance fora do eixo, entendo, na perspectiva dos autores diante do que estava em evidência “pela arte de análise e de certeza objectiva”. Consentiram com a republicação porque “nenhum trabalhador deve parecer envergonhar-se do seu trabalho”, bem como tinham uma concepção de um trabalho como “lição de independência”, diante do que predominava na literatura produzida à época, que não seria “inventiva, audaz, revolucionária, destruidora de ídolos”, “servil, imitadora, copista, curvada de mais diante dos mestres”, argumentam. Os autores reforçam a visão da arte como “indisciplina dos novos”, “rebelde força de resistência às correntes da tradição”.

Eça de Queirós e Ramalho Ortigão celebram uma “confraternidade de dois antigos homens de letras” em “uma sociedade que por todos os lados se dissolve”, encerram assim o prefácio.

30/08/2023 22h36

Imagem: France 3

Cécile Coulon

“le temps n’est pas un mouchoir sale
je ne veux pas le jeter”

Obra: Les Ronces. Une lionne rouillée. Le Castor Astral, 2018, Paris. De Cécile Coulon (France/Saint-Saturnin/Puy-de-Dôme, 1990).

Eterno retorno – por pastor Abdoral

No jardim da infância caminhava
e da juventude saudava
a velhice que não chegava.

A memória do passado não havia
no presente nada acontecia
e o futuro não se previa.

O eterno retorno amanhecia
como da noite o dia
era o tempo que desaparecia.

29/08/2023 22h20

Imagem: Izquierda Revolucionaria

Leon Trotsky

“[…] The regime had become “totalitarian” in character several years before this word arrived from Germany.”

Obra: Revolution Betrayed. What is the Soviet Union and where is it going? 2. The Degeneration of the Bolshevik Party. Courier Dover Publications, 1937. Translated by Max Eastman. De Leon Trotsky (Ucrânia/Bereslavka, 1879-1940)

A degeneração do partido bolchevique tornou-se ao mesmo tempo causa e consequência da burocratização do Estado soviético, assim aponta o revolucionário que acabaria exilado e assassinado por sicários a serviço de seu rival maior dentro do partido, que assumiria o controle em uma visceral disputa política após a morte de Lenin (1870-1924).

O partido teria ido de um “centralismo democrático” a um “totalitarismo”, assim Trotsky desenvolve a explicação do que aponta como “degeneração do partido” desde a tomada do poder. Segundo Trotsky, cinco anos após o marco inicial da revolução, Lênin teria ficado “horrorizado com o crescimento ameaçador do burocratismo e preparava um luta contra a facção de Stalin”, mas a saúde debilitada o impediu. A morte de Lênin foi então sucedida pela prevalência de Stalin, com prisões e banimentos de opositores e a consolidação do que passaria à história como “stalinismo”.

Quanto ao trecho desta Leitura, afirma Trotsky que “da democracia partidária restaram apenas lembranças na memória da geração mais velha. E junto com ela desapareceu a democracia dos sovietes, dos sindicatos, das cooperativas, dos organizações culturais e atléticas. Acima de cada um deles reina uma hierarquia ilimitada dos secretários do partido. O regime se tornou de caráter “totalitário” vários anos antes desta palavra chegar da Alemanha”. Quanto ao termo “totalitário”, forjado na Itália fascista nos anos 1920, Trotsky o aplica ao regime de seu ex-camarada em um nível similar ao dos nazistas a considerar o ano em que foi produzida esta obra (1936), período em que a ascensão do Nacional Socialismo alemão era fato consumado havia três anos.

Lembro-me de uma defesa apaixonada do comunismo bolchevique feita por um professor nos anos 1990, tendo ao fundo um vídeo com imagens de Moscou tomada por filas de famintos e o último premiê, com referência a essa obra, enquanto tentava demonstrar que a União Soviética foi uma ‘deturpação” do “verdadeiro marxismo” (como se Marx tivesse sistematizado ou deixado um manual de instruções bem detalhado do comunismo que apregoou), mesmo assim, a apologia à época me consolou, enquanto não fazia ideia do fato de que todas as experiências de socialismo mais intenso, em paralelo com a soviética, refiro-me ao que se atêm como transição ao comunismo, resultaram em regimes totalitários, dada a natureza coletivista coercitiva que caracteriza arranjos com o propósito de erradicar a propriedade privada dos meios produtivos junto com a aniquilação de todos os fatores antropológicos, sociológicos e culturais, em instância mais abrangente, que a sustêm.

Quem sabe um dia, anjos desçam e ensinem como fazer socialismo sem uma quimera autoritária.

28/08/2023 00h01

Imagem: flickr oficial

Olavo de Carvalho

“A história política do Ocidente pode ser, sem erro, facilmente resumida como a história das lutas pelo direito de sucessão do Império Romano.”

Obra: O Jardim das aflições. De Epicuro à ressureição de César: ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. §27 Translatio imperii. Breve história da idéia imperial. Vide Editorial, 2015, Campinas. De Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (Brasil/São Paulo, 1947-2022).

Na minha primeira visita ao Vaticano (2018), a guia italiana falou que a Igreja Católica Romana é a sucessora do Império Romano e me fez lembrar desta passagem de O jardim das aflições. Evidente que o contexto é bem distinto, pois a guia se referiu à estrutura hierárquica da Igreja e ao patrimônio cultural herdado que pode ser observado no museu do Vaticano, e Olavo de Carvalho se refere ao desejo de poder político global que fora alcançado pelos romanos, de unificar povos sob um mesmo governo central, uma mesma legislação, tudo voltado “para a riqueza e grandeza do Império” (p. 266), contudo, penso, o Império Romano cresceu tanto e os problemas se avolumaram de maneira que se chegou ao entendimento que seria melhor dividi-lo em dois, surgindo assim o Império do Oriente em 395 d.C.

Torno à obra de Olavo de Carvalho que afirma, “O Império não é uma teoria: é uma realidade”, até mesmo em relação ao romano que não deixou de existir; continuou ou se transferiu, como aponta Olavo, para Bizâncio, enquanto permaneceu o espírito de reavivá-lo no saudosismo sobre o auge de Roma, o que tem ocorrido de forma “problemática”, com propósitos políticos “sempre sonhando com a estabilidade do poder”, coordenando a “metamorfose das guerras, das revoluções”, em uma produção de conceitos diversos em meio às ações políticas (p. 267) por essa finalidade imperialista que é perseguida ao longo dos séculos, uma constante em meio a variedade de processos e mutações (p. 268). Então, durante um século (penso no XX) dois grandes impérios destruíram os demais e ficaram em evidência, um sucumbiu (aqui vejo uma referência a EUA x URSS), ficando o vencedor a impor “suas leis, seus costumes, seus valores, sua língua” (p. 268), tendo como “único opositor” o “povo islâmico” (p. 269).

Nessa busca pelo Império há um problema em relação à forma como o romano foi consolidado, em torno de uma unidade moral e religiosa, por força de uma “religião do Estado”, e como se encontra o mundo, onde há ojeriza a ideia de culto estatal, então a história política ocidental se resume “na sucessão de tentativas para encontrar uma resposta prática a um problema prático: como restaurar o Império romano sem a religião estatal romana?” (p. 270). Olavo então discorre (pp 270-297) como a Igreja tentou resolver o problema e se deram as crises políticas entre nobres e o Papado que evidenciaram o fracasso em meio a guerras, revoluções, o nascimento do estado moderno e como se deu a única ressureição possível de César “sob forma capitalista, republicana, maçônica e protestante” (p. 297), os EUA.

À mon avis, §27 Translatio imperii. Breve história da idéia imperial é a melhor parte desta grandiosa obra de Olavo de Carvalho.

27/08/2023 15h18

Imagem: Torino Today

Dario Fabbri

“Una ‘fatica imperiale’ che è di tutti gli imperi della storia. I primi a sperimentarla questo senso furono i romani, quando esattamente come gli Stati Uniti assursero a superpotenza globale dopo la terza guerra punica del 146. a C. quando sconfissero il loro principale avversario nel Mediterraneo, i cartaginesi.”

Obra: Grandi Leader e comunità. Donald Trump. eBook Kindle, 2023, Page Flip. De Dario Fabbri (Italia, 1980).

Analogia entre o Império Romano e os Estados Unidos é uma questão que muito me interessa desde quando me deparei com o texto do §27 Translatio imperii. Breve história da idéia imperial, que pode ser apreciado em O Jardim das aflições, de Olavo de Carvalho [174].

Em Grandi Leader e comunità, o analista geopolítico Dario Fabbri aborda a questão em um tópico sobre o fenômeno Donald Trump (1946), se o controvertido líder republicano conduziu os EUA para onde se encontram hoje ou se foi o contrário, se Trump é simplesmente fruto de um específico momento histórico vivenciado pelos EUA.

Na implosão da União Soviética, os EUA ficaram no centro de um sistema global de controle dos mares e oceanos por sua marinha que controla as linhas de navegação, como parte da estrutura que se impõe mediante políticas comerciais, enquanto beneficiados pelo financiamento do déficit comercial (e também fiscal, penso) por meio do dólar usado como reserva nas economias que transacionam bens e serviços nos mercados globais.

Fabbri aborda então esse poderio americano sob o que indica com “elementos clássicos” de “fadiga imperial” (tradução livre) que evidenciam pontos em comum entre os problemas ocorridos no Império Romano e os que hoje se dão nos EUA: 1. Beligerância permanente; 2. Negócios antieconômicos e 3. Necessidade de importar seres humanos para manter jovem e disposta a população apta a combater as guerras espalhadas pelo mundo, conduzidas por meio de suas colônias militares.

Quanto aos “negócios antieconômicos”, que se relacionam com o financiamento via reservas em dólar, residem arranjos políticos às matrizes econômicas voltadas aos interesses do comando que deve saber identificar e realizar as “escolhas pontualmente antieconômicas” para atender a seus interesses de “potência absoluta”. Em meio a luta para se manter na hegemonia global, os EUA carecem de importar recursos humanos que sejam jovens e úteis às fileiras militares, à beligerância permanente que impõe ao mundo, exatamente como ocorreu no Império Romano, todavia, o perfil mais latino dessa importação, sem raízes com os antepassados, despertou o temor em cidadãos nativos americanos de que essa massa de importados militarizados se alie a suas raízes externas e se rebele internamente contra os EUA, de forma análoga como se deu na queda do Império Romano do Ocidente. Então, Fabbri traça uma linha de comparação de Tiberio Sempronio Gracco (169-164 a.C.–133 a.C). com Donald Trump em função do primeiro ter externado um temor do risco de se ter cada vez mais recursos, entre os quais se situavam combatentes militares, que não possuem ligações com antepassados romanos, tampouco em face das raízes econômicas, processo que se deu ao longo do Império Romano, cuja proposta disseminada com o seu irmão, Caio Sempronio (154 a.C. – Roma, 121 a.C), consistia em uma reforma agrária que inserisse os romanos no centro da República, indagação que lembra o que apregoa Trump em nossos dias em relação ao isolacionismo dos EUA mediante apologia a um nacionalismo econômico, propondo a Make America Great Again (expressão que me veio nesta Leitura), de um país imperialista e mais importador para um que esteja entre os demais, economicamente poderoso, mais exportador e com mais gerações de empreendedores locais, enraizados economicamente no país enquanto o mesmo discurso político promove aversão aos imigrantes, no entanto, saiu derrotado nas últimas eleições majoritárias, “não por incapacidade de Trump”, aponta Fabbri; o presidente dos EUA está a frente de um império mas não é imperador e a figura antropológica americana, que definiu o pleito, foi em outro sentido, mas isso não anula o fato de que Trump percebeu a síndrome da fadiga imperial que acomete os EUA.

Ao ponderar o texto, entendo que Fabbri sugere que Trump é um sintoma de um momento específico que vive o imperialismo americano que, parece, seguir um roteiro similar à bancarrota do Império Romano do Ocidente, em um lentíssimo processo que se findou no quinto século da era cristã.

174. O Jardim das aflições. De Epicuro à ressureição de César: ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. Vide Editorial, 2015, Campinas. De Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (Brasil/São Paulo, 1947-2022).

26/08/2023 15h22

Imagem: JOED VENTURINI

J. Reis Pereira

“Se o Integralismo triunfasse, a Igreja Romana estaria bem; o Estado Novo era também um regime totalitário, com indisfarçáveis toques de fascismo, um dos quais era a grande propaganda nacionalista, com a idéia de que, para melhor salvaguarda da pátria, era necessária a defesa da religião nacional.”

Obra: História dos Batistas no Brasil: 1882 a 2001. 14. Na década dos trinta. JUERP, 2001, Rio de Janeiro. De José dos Reis Pereira (Brasil/Rio de Janeiro/Piraí, 1916-1991), Clóvis M. Pereira e Othon A. Amaral.

A edição que disponho contêm o período dos primeiros 100 anos (1882 a 1982), contados na obra esgotada em 1993, do respeitadíssimo professor e pastor Reis Pereira, com os acréscimos de Clóvis M. Pereira (1982-2001) e Othon A. Amaral (Apêndice).

O trecho que li em 2004 me veio à memória quando escutei Olavo de Carvalho cerca de 10 anos depois, em uma de suas aulas, quando comentou que o período do Estado Novo foi o que ocorreu de mais próximo do fascismo no Brasil.

Em meus estudos sobre o fascismo, identifiquei um padrão neste tipo de regime autoritário (o termo “autoritário” se deriva dos anos 1920, na Itália) que consiste em canalizar tudo o que for útil ao corporativismo em torno do Estado, de empresários, passando por sindicatos, órgãos de classe, escolas, universidades, meios de imprensa até se chegar em instituições religiosas. Então, não combinará com um regime de molde fascista qualquer instituição que tenha como referência algum notório valor em prol da liberdade, no caso a de cunho religioso, no contexto à época de um país de maioria católica romana avessa ao meio cristão não católico, onde se inserem os batistas, estes últimos que a elevaram a um princípio universal. Porém, se do lado católico romano, liberdade religiosa não interessa e há disposição para uma aliança com um governo autoritário que perseguirá os “protestantes”, então… Em outras palavras, a perseguição de um governo de viés fascista a qualquer forma de liberdade que se situe fora dos seus controles sociais é a regra, dada a natureza do regime que representa. Neste aspecto, destaco o que o professor Reis Pereira discorre quanto à imposição de restrições à entrada de missionários evangélicos no Brasil, além censura à imprensa, onde “nem os jornais religiosos escaparam” (p. 189), com a curiosa exigência de um “brasileiro nato” para se responsabilizar por publicações que eram submetidas a um departamento de censura, a Delegacia de Ordem Política e Social (p. 190).

Vejo com curiosidade políticos e até jornalistas externarem alguma simpatia ou adotarem eufemismo a Getúlio Vargas, o dito “pai dos pobres” que foi um ditador que fechou até o Congresso, perseguiu inimigos políticos, sobretudo comunistas e impôs censura à imprensa. Seria ignorância com a história ou desonestidade intelectual a serviço de algum propósito político nefasto?

Sobre a obra em geral, leitura é imprescindível para quem deseja saber as verdadeiras origens dos batistas brasileiros.

25/08/2023 22h36

Imagem: BBC

George Orwell

For once Benjamin consented to break his rule, and he read out to her what was written on the wall. There was nothing there now except a single Commandment. It ran:

ALL ANIMALS ARE EQUAL BUT SOME ANIMALS ARE MORE EQUAL THAN OTHERS

Obra: Animal Farm. CHAPTER 10. University of Adelaide, 2014, Adelaide. De George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair (Índia/Motihari, 1903-1950).

Em um grupo de jovens aparentemente dispostos a melhorar a humanidade, mais através de fórmulas políticas “públicas”, do que qualquer outra coisa, entenda-se, um termo suave para rotular sistemas de coerção do “bem”, havia um veterano que achei por bem chamá-lo de “Benjamin”; sujeito “moderado”, de fala mansa, com razoável erudição para citar dezenas de autores em suas explanações, sendo 99% pensadores comunistas, em meio a quem, por deslumbre, achava-se apto a encontrar “solução” para diversos dilemas comuns, “Benjamin” fazia um papel de “conciliador” capaz de agradar a todos.

– Por que você me chama de Benjamin? – perguntou com um sorriso meio amistoso… meio desconfiado.

– É que tenho por brincadeira dar um nome alternativo às pessoas, é só coisa lúdica mesmo – respondi.

“Benjamin”, sendo da velha guarda, acabou por testemunhar o processo de entronização da hipocrisia socialmente aceita em um grupo de jovens idealistas de esquerda, devidamente transformados, pelo poder embriagante de se gastar o dinheiro dos outros, em membros de uma casta de privilegiados, com regalias dignas do tupiniquim funcionalismo dito “público”, em uma ONG criada para dar assistência aos “mais carentes” que se moldou a um mundo de animais políticos em que “todos são iguais, mas sempre há quem se ache mais igual dos que os outros”.

24/08/2023 22h30

Imagem: IHU

Bruno Forte

“Que significado tem o sofrimento no ciclo do eterno retorno?”

Obra: À escuta do Outro. Capítulo VIII. Tempo e Revelação. Friedrich Nietzsche. Tradução de Mário José Zambiasi. Paulinas, 2003, São Paulo. De Bruno Forte (Italia/Napoli, 1949).

Não seria provavelmente um erro considerar que, no eterno retorno, o sofrimento é “exorcizado”, na “normalidade” da dor mediante seu retorno cíclico, argumenta Bruno Forte, na ‘impermanência do tempo”, no olhar para trás a repetir um arquétipo, e na medida em que se medita nessa visão cíclica, neste ponto penso, redime-se o sofrimento (p. 119). Um ponto que pensei ser o mais interessante da interpretação do que, certamente, foi o mais notório na filosofia de Nietzsche, mediante análise do bispo católico italiano que admiro bastante pela forma serena como aborda temas complexos e desconfortantes, inclusive à própria fé.

Bruno Forte entende que “a busca por uma ‘redenção do tempo’ caracteriza a filosofia de Nietzsche”, com o “advento do niilismo”, cuja aporia de Zaratustra o torna, ao mesmo tempo, afastadíssimo e extremamente próximo do Evangelho (p. 117). Próximo, “profundamente cristão” afirma, na busca do “poder do instante, que não fora do tempo, mas o constitui” (p. 130), penso, também, quando aponta que Nietzsche “se interessa, como poucos, pela questão da redenção e do futuro” (p. 127) e afastadíssimo, entendo, quando Bruno Forte argumenta que Nietzsche proclama o conceito para “desmascarar a ‘mentira bimilenar’ que induz a acreditar em uma história progressiva procedente de um princípio absoluto para um fim absoluto” (p. 122).

Quanto a ideia de Nietzsche sobre subversão de valores, Bruno Forte afirma que o filósofo não era capaz de tal subversão, como o cristianismo fez com o paganismo e que permaneceu “tão cristão e moderno que só uma questão o preocupava: o pensamento do futuro e a vontade de acreditar nele” (p. 127). Mais adiante, aponta que “estava condenado desde o começo ao fracasso” o esforço de Nietzsche para “retraduzir” o homem, cujo maior relevo consiste na “essência criativa” pelo ato da vontade (p. 128).

23/08/2023 20h58

Imagem: Literary Hub

Milan Kundera

“Em sua reflexão sobre o cômico, Hegel disse que o verdadeiro humor é impensável sem o infinito bom humor,”

Obra: A festa da insignificância. Lamento de Ramon sobre o fim das gozações. Companhia das Letras, 2013, São Paulo. Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. De Milan Kundera (República Tcheca/Brun, 1929-2023).

Ramon sente falta do bom humor, das alturas do unendliche Wohlgemutheit (p. 78) para observar as tolices humanas, do alto a contemplar o deslumbramento no vazio existencial, a desconexão do passado que acomete os novos, então, no meio da insignificância consegue ficar distante o suficiente para não mais haver ruídos das banalidades, tão celebradas, tratadas como relevantes, para serenamente sorrir do besteirol mais por dentro e quase imperceptível por fora. Neste ponto, identifiquei-me bastante com o personagem.

Enquanto finge ser feliz com o que satisfaz apenas a expectativa alheia, prevalece o caminhar em um mundo onde sentidos de autenticidade se perderam ironicamente pelo desejo do imediato redundante e hedonista que glamouriza o vulgar e a pobreza intelectual.

Este romance derradeiro de Kundera, além da quebra de um silêncio de 14 anos do autor, a ambientação parisiense, nas andanças dos quatro personagens, trouxe-me boas e recentes recordações em uma releitura do estilo de suscitar dilemas existenciais em debate filosófico a combinar realidade e ficção.

22/08/2023 23h02

Imagem: HEARTLAND

Murray Rothbard

“Se o governo deseja que uma depressão termine o quanto antes, e que a economia retorne à prosperidade normal, o que deveria fazer? A primeira injunção, e a mais clara é: não interferir no processo de ajuste do mercado.”

Obra: A Grande Depressão Americana. A política governamental para a depressão: laissez-faire. Mises Brasil, 2012, São Paulo. Tradução de Pedro Sette-Câmara. De Murray Newton Rothbard (EUA/Nova Iorque/Nova Iorque, 1926-1995).

Em 1995 escutei algo parecido; este que aqui registra algumas de suas memórias de leitor, era um estudante cuja formação intervencionista combinava com o fato de que não fazia a menor ideia do que era a Escola Austríaca, muito menos Rothbard, ícone da ala libertária, embora tinha a língua afiada para refutar o liberalismo e tudo que contrariasse minhas crenças, até então, socialistas.

Após 15 anos revivi aquele tempo em um jovem eleitor de Ciro Gomes que me perguntou sobre o que eu pensava da crise do sub-prime em 2008 e citei laissez-faire; o rapaz disse que seria melhor que eu voltasse à faculdade para aprender economia de verdade em vez de me apegar a ideias obsoletas do século XIX. Na ocasião me senti ofendido, mas hoje compreendo que a resposta daquele jovem militante foi um dia a mesma que eu tinha em 1995 como resultado de um sistema de educação que vai dos primeiros anos ao “superior” onde a intervenção do Estado na economia faz parte das coisas que são sagradas ou inquestionáveis e tudo o que soe na direção contrária se torna objeto do ridículo.

Fiquei tão-somente no laissez-faire para evitar um ataque de nervos àquele jovem apaixonado pela foice e o martelo; foi o que pensei caso tivesse apontado as seis formas pontuadas por Rothbard (pp. 61-62) que prejudicam o processo de ajuste do mercado, normalmente carimbadas como “políticas anticíclicas”. Entendo que a formação intervencionista é tão forte que até mesmo muitos “liberais”, quando ocupantes do poder, apelam para ela e isso foi observado durante os programas inflacionistas no “enfrentamento” da pandemia. Então, reservo-me a registrar neste diário de leitor apenas algumas concepções.

21/08/2023 00h01

Imagem: IEA USP

Daniel Martins de Barros

“[…] O choro é de fato uma forma de nos mobilizar para a ação [17].”

17. Nota do autor: PLUTCHIK, Robert. The Psychology and Biology of Emotion. Nova York: HarperCollins, 1994, p. 203.

Obra: O lado bom do lado ruim. Tristeza. Atenção aos sinais. Sextante, 2020, Rio de Janeiro. De Daniel Martins de Barros.

Sempre que visito o armário de minha esposa, dedicado à psicologia, sou agraciado e eis que apreciei o livro do professor Daniel Barros, do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e médico do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da FMUSP.

Qual a utilidade do choro? Servir de “alarme” para que o sofrimento seja notado; é um dispositivo do nosso instinto de sobrevivência, tem a função de “incomodar quem está perto”, despertar o interesse sobre o que está ocorrendo, cujo exemplo mais notório se observa quando um bebê faz uso desse recurso fundamental e surge uma sensação de que algo precisa ser feito, o que denota uma característica evolutiva “muito vantajosa”. Neste ponto, o professor argumenta que “se um dia existiram povos que não se incomodaram nem um pouco com o choro de seus filhos, eles foram extintos” (p. 40).

Adultos também acionam esse dispositivo natural de sobrevivência como “forma de modular as atitudes dos outros por meio da empatia”, aponta o professor, pois a mensagem do choro que se origina da tristeza, relaciona-se com a característica de nossa espécie em não ficar parada diante da dor alheia, sendo a ação de cuidar uma forma de “aliviar a dor que sentimos por causa da empatia” (p. 41); em suma, é um meio básico de comunicação e, neste aspecto, cita Charles Darwin (1809-1882) que suspeitou das emoções como recurso dessa natureza em A expressão das emoções nos homens e nos animais (p. 41).

Sobre o comportamento tóxico nas redes sociais e a importância da percepção do estado emocional nas relações humanas

Expressar sentimentos é um importante sinalizador nas relações humanas e considerei interessantíssima a abordagem sobre as ofensas disseminadas nas redes sociais, feita pelo professor, quando aponta que “a violência tende a aumentar quando não se visualiza a testa franzir, os olhos lacrimejarem, os ombros caírem” e assim é possível entender melhor porque as brigas nas redes sociais se tornam “viscerais”, pois não se vê a reação de quem sofreu a ofensa (p. 41). Sobre a importância da percepção do estado emocional, cotidianamente a utilizo em meu trabalho de suporte em TI para que flua melhor, e assim aplico a vídeo conferência para identificar sinais de tensão ou de preocupação pela tonalidade da voz ou no semblante, e assim posso direcionar melhor a intensidade e a forma das orientações que transmito, o que não é possível quando se tem apenas o recurso textual do chat.

20/08/2023 14h48

Imagem: DW

Nietzsche

“Ah! como terminou tão facilmente o Evangelho! O sacrifício expiatório, e na sua forma mais repugnante, mais bárbara, o sacrifício dos inocentes pelas faltas dos pecadores! Que espantoso paganismo!”

Obra: O Anticristo. VLI. Martin Claret, 2003, São Paulo. Tradução de Pietro Nassetti. De Friedrich Wilhelm Nietzsche (Reino da Prússia/Röcken, 1844-1900).

Irmão Nietzsche – por pastor Abdoral

Irmão Nietzsche,

Do alto da montanha, neste perene domingo chuvoso, leio XLI de escritos que saíram pela primeira vez aos pobres homens comuns lá pelos idos de 1895, por meio de teu entusiasta Fritz Koegel (1860-1904), o que fora um dia chamado de Livro da Transmutação de Todos os Valores, depois de O Fim do Cristianismo e em seguida de Maldição sobre o Cristianismo, e fico a imaginar tais provocações a denotar questão fatal neste trecho que virou “tópico” (perdoe-me este último termo, a saber que não és dado a certas regras).

Minha caverna da solitudine me permite a pensar, quiçá, neste peculiar eterno retorno, que poderias acusar o delírio desse pastorzinho por ti carente de muletas metafísicas ao te chamar de “irmão” e que poderias também incrementar uma resposta que a mim atribuiria típica de espíritos que, à tua vista, aprisionados diriam para que não seja dada “pérolas aos porcos” e não passas de um “anátema”. Nada disso me impede de te chamar de irmão.

Ofensas se traduzem em oportunidades de darmos à prova, como autêntica demonstração do que cremos ou como dizes no parágrafo anterior (XL), “com a sua morte, Jesus não podia querer outra coisa senão dar publicamente a prova mais firme, a demonstração da sua doutrina”, e na Cruz, reservada aos piores, “à canalha”, como apontas, evidenciou-se a suprema mensagem do quanto Deus se dispõe a demonstrar o amor que o aproxima dos pecadores para além das palavras por Cristo crucificado, o inocente sob a mais cruel execução de pena de morte para despertar a verdade do que o ser humano é capaz de fazer contra o que consagraste como “natureza” e, diante desse fato, a mensagem de amor entregue por Cristo permaneceu intacta e assim está, imune a ressentimentos, ódios, vinganças e todo tipo de pensamento e ato que a desmonte como pura, íntegra.

O olhar para Cristo crucificado é uma “vontade de potência”, não do ser humano em si, mas do que vai além da matéria que define sua tangibilidade; reside no espírito que se vê mediante uma “perturbação” que pode realizar autocrítica. Se Jesus Cristo, inocente, foi até a morte de Cruz por seu amor, diante de um mundo degenerado, carregado de violências e desprezo pela vida, o que significa este ato tão poderoso em relação ao que o ser humano, a pensar sobre si mesmo, tem feito na própria existência, sobretudo em relação ao que no íntimo pode apontar como “repugnante”? A terminologia do sacrifício é uma ponte da concepção judaica familiar aos primeiros discípulos da “pequena comunidade”, até a reinterpretação dessa morte como sacrifício da Palavra da Cruz para introspecção, refinamento de juízo e valores; em suma, é o caminho da transcendência que o Evangelho se firmou. Então, quando afirmas, meu caro irmão, que é “um absurdo” Deus ter dado seu filho em sacrifício para remissão dos pecados, certamente se dá pelo que se vê na formalidade do rito, quando esvaziada do profundo significado do que Agostinho sintetizou como “verdade que ensina interiormente”.

Sei que a mãe terra é o teu lugar de coração e a fé na ressureição, junto com a “imortalidade pessoal”, estão além do teu curioso amor fati, mas nem por isso vou me permitir a pensar em um juízo sobre teu desprezo, o qual, talvez, se o fizesse, chamarias de “vingança”, pois a Palavra da Cruz está posta e é irrefutável, inviolável.

19/08/2023 16h44

Imagem: Biblioteca de São Paulo

Graciliano Ramos

“Sinto-me incapaz de escrever. Queres crer que a última coisa que me saiu da cabeça foi aquele pobre Estrelas?”

Obra: Cartas. 11. A J. Pinto da Mota Lima Filho. Palmeira, 13 de abril de 1914. Record, 2013, Rio de Janeiro. De Graciliano Ramos de Oliveira (Brasil/Alagoas, 1892-1953).

Fico a imaginar Graciliano Ramos com crise de criatividade e preguiça, esta última a confessar no parágrafo anterior, e no seguinte, a provocação que revela ao destinatário quando afirma que mente “toda essa corja de sujeitos que fazem versos”, questão que sempre despertou meu interesse do poeta ser o que Pessoa em verso apontou: “um fingidor”.

Outro ponto na carta é o teor ofensivo quando fala da religiosidade local durante a semana santa, no entanto, o que me chamou mais a atenção consiste ao que externa por não se zangar mediante o que afirma, e percebi a mera retórica, de ter respeito às ideias dos outros em relação às ofensas recebidas (“canalha, miserável”, “infame”, “patife”, “pulha”, “bandido” e até “assassino”) de uma “velha senhorita” da cidade de Palmeira do Índios, episódio que chama de “pândega” e, consoante este aspecto, parece-me construtivo em relação à agressividade que externa quando se refere com truculência às senhoras que iam à missa da semana santa, pois me soa como salutar o incentivo para se ir mais ao dicionário, em vez de se dedicar tempo à procura de um advogado para satisfazer sentimentalismos em síndrome de perseguição.

Em outra carta, de 1935, escrita em Maceió, externa a Heloísa de Medeiros Ramos como entende Jesus Cristo: um judeu que “meteu os pés pelas mãos e esbagaçou tudo” e assim, na visão de Graciliano, o mundo estava melhor antes de Cristo Jesus e do que chama de “meeting na beira do lago”, o que até me lembra Nietzsche.

Na carta de 1o. de maio de 1952 (112), sete anos após se filiar ao Partido Comunista Brasileiro, chama a capital do regime soviético, Moscou (donde escrevera), de “Terra Santa”; termo bem apropriado dada à sua religiosidade comunista. Na mesma carta menciona passagens por cidades europeias, andanças em que encontrou Jorge Amado (1912-2001), entre outros, e que até jantou em Montmartre (bairro parisiense que pude visitar em duas ocasiões e tenho enorme afeto pelo significado histórico).

Graciliano Ramos apresenta, nestas cartas, quando opina sobre a religiosidade cristã de pessoas simples, um sintoma típico de crítica ácida não somente por conta de problemas de desagrado com as estruturas de poder temporal do meio religioso, questão que pode servir de pano de fundo para esconder o que entendo como a motivação maior: a incompatibilidade da mensagem de Jesus Cristo, baseada no amor, de cunho essencialmente voluntarista, não coercitivo, diante de crenças comunistas que dependem do viés marxista, ancorado na luta de classes, na ruptura violenta com o que discorda, no caráter coercitivo do coletivo sobre o indivíduo e, sobretudo, na canalização de sua força através do ódio.

18/08/2023 23h52

Imagem: ENGEPLUS

Eduardo Bueno

“(no beija-mão, ele a estendia a adultos, mas, se uma criança se aproximava, ele a socava no queixo).”

Obra: Brasil: uma história: cinco séculos de um país em construção. Capítulo 16. O Brasil independente. Leya, 2013, eBook Kindle. De Eduardo Bueno (Brasil/Rio Grande do Sul/Porto Alegre, 1958).

Informou Bueno, em seu canal no YouTube, que haverá uma nova edição desta obra, que tenho por excelente.

O trecho desta Leitura é sobre o príncipe Pedro (1798-1834), português de nascença criado bem à brasileira, não tanto porque não era de muitas formalidades nas cerimônias oficiais mas, certamente, pela “brasilidade” dos primeiros anos de uma infância e de uma adolescência “traquina” (termo que me veio à mente quando apreciei os detalhes contados pelo autor) à moda Pindorama. Fora “criado solto na Quinta da Boa Vista ou na Fazenda Santa Cruz”, costumava tomar banho pelado na praia do Flamengo e fazer graça com os súditos (p. 309), cujo estilo, imaginei, até lembra um pouco o gênero adolescente filhinho de papai “curtindo a vida adoidado”.

E de uma infância de brincadeiras um tanto pesadas, penso, sobre o trecho de “a pau e soco com outras crianças” (p. 308) que se estendiam nas cerimônias reais, o herdeiro do trono sofria de epilepsia congênita, assediava (bolinava) as escravas e andava por lugares “mal-afamados” da capital, onde aprendeu algumas artes musicais a tocar instrumentos (p. 309), mesmos lugares onde, provavelmente, nessa malandragem meio carioca, iniciou sua vida sexual (p.310), que seria bem intensa antes e depois do primeiro casamento.

Acabou mais lembrado pela Independência que, politicamente, teve o maior protagonismo da primeira esposa Maria Leopoldina (1797-1826), personalidade um tanto esquecida nas narrativas comuns, talvez por não vê-las como símbolo de um feminismo que odeia tudo o que soe como “conservador” e assim, a primeira mulher a governar o Brasil viveu por demais sofrida mediante as aventuras extraconjugais do marido que se tornaria imperador pintado como um homem de vigor e bravura pela “independência” mas, diante de crises políticas que se tornariam o padrão do país de bananas que ganhou, sucumbiu e assim preferiu tornar à pátria mãe lusitana, onde caiu em outras tramas dos arranjos familiares de poder.

17/08/2023 22h54

Imagem: BBC Radio 4

Napoleão Bonaparte

“O melhor e único modo é reprimir a todos, aplicando o terror máximo: oprimidos não se revoltarão, nem ousarão respirar.”

Obra: O Príncipe. Comentado por Napoleão Bonaparte (Córsega/Ajaccio, 1769-1821). Martin Claret, 2002, São Paulo. Tradução de Pietro Nassetti.

Muito interessante a edição de O Príncipe, de Niccolò di Bernardo dei Machiavelli (1469-1527), com comentários de Napoleão Bonaparte.

Esta publicação marcou minha primeira leitura integral da obra, há 20 anos. Trecho é de um dos comentários do capítulo X, sobre como um príncipe bem sucedido, mediante dificuldades com ameaças que coloquem em risco a segurança percebida pelos súditos, porta-se como um governante poderoso e corajoso, capaz de animar os governados, incutir o medo dos inimigos e se garantir contra os que parecerem ousados demais (p. 74).

Napoleão se contrapõe, enaltece, revela desejos políticos, apresenta soluções que considera mais apropriadas ao seu contexto e se notabiliza por uma contundência imperialista, por sinal, termo forjado a partir dos desdobramentos da Revolução Francesa (muito da terminologia política atualmente em uso se deu dessa revolução), como, por exemplo, no capítulo seguinte, sob o tema dos Estados Eclesiásticos, quando comenta: “Ah! se eu pudesse me tornar, na França, o augusto e supremo pontífice da religião!” (p. 76)., ou quando Maquiavel cita como papa Júlio recebeu uma Igreja poderosa, com barões romanos aniquilados e as facções destruídas por Alexandre e externa que “gostaria de fazer o mesmo na França” (p. 77).

Figura considerada controvertida para alguns, ditador para muitos, “estadista” em uma forma convencional de se concebê-lo, penso como um arquétipo do líder sedutor de mentes inclinadas a ter fetiche com homens de farda que cultuam a tirania e a violência natural do universo político, tudo como se fora algo voltado a um bem comum.

16/08/2023 21h06

Imagem: Alchetron

Hans-Hermann Hoppe

“[…] o conservadorismo é a resposta anti-igualitária e reacionária às mudanças dinâmicas que são desencadeadas por uma sociedade liberalizada; é antiliberal e, em vez de reconhecer as conquistas do liberalismo, tende a idealizar e glorificar o antigo sistema feudal como ordeiro e estável [73]. […]”

Nota do editor:

73. Apesar de sua atitude geralmente progressista, a esquerda socialista também não está inteiramente livre dessas glorificações conservadoras do passado feudal. Em seu desprezo pela “alienação” do produtor em relação ao seu produto, que é, obviamente, a consequência normal de qualquer sistema de mercado baseado na divisão do trabalho, a esquerda socialista apresenta frequentemente uma casa senhorial feudal economicamente autossuficiente como se fosse um modelo social benéfico e acolhedor. Cf., por exemplo, Karl Polanyi, A Grande Transformação – As Origens de Nossa Época, Rio de Janeiro: Editora Campus, 1980.

Obra: Uma teoria do capitalismo e do socialismo. Capítulo 5 – O socialismo do conservadorismo. Mises Brasil, 2013, São Paulo. Tradução de Bruno Gaschagen. De Hans-Hermann Hoppe (Alemanha/Baixa Saxônia, 1949).

Se Marx marcou minha adolescência (naturalmente boba, ingênua) a imaginar o socialismo como resposta, Hoppe foi o filósofo austrolibertário que me deu os maiores subsídios em releituras de Mises e da Escola Austríaca, para conceber um contraponto ao pensamento hayekiano.

Para Hoppe, o conservadorismo é “uma forma especial de socialismo” (p. 92), que gera empobrecimento “e tanto mais quanto mais decididamente for aplicado” (p. 71) relacionando-se com o que aponta como “as duas versões de socialismo originadas no marxismo”, que são “respostas ideológicas ao desafio proposto pelo avanço do liberalismo”, este último que contribuiu para a destruição do feudalismo (p. 75). Conservadorismo e socialismo então possuem certos alinhamentos contra o liberalismo, promotor do capitalismo moderno (este último termo se dá por minha concepção). O conservadorismo labuta contra esse capitalismo, o qual defini, porque o liberalismo que o promoveu se revelou como uma ruptura com o regime da velha ordem feudal onde se permitiu “a aquisição e a manutenção da propriedade e da riqueza mediante o uso da força”, e eis que, não por acaso, penso, e torno ao autor, o conservadorismo “também ignora se as pessoas adquiriram ou não, se conservaram ou não, suas posições no que se referem à renda – e à riqueza – através da apropriação original ou por contrato” (p. 77).

Se o liberalismo foi marcado por sua pujança no século XIX, o socialismo foi avançando e “cada vez mais o suplantou como força ideológica dominante, revertendo dessa forma o processo de liberalização”, com conquista de apoio da opinião pública, enquanto o conservadorismo seguiu e encontrou formas para moldar a estrutura social mediante determinadas políticas, assim como se deu com a social democracia, a outra versão “light” do legado socialista, diria, onde ambos suportam a propriedade privada (pp. 78-79), contudo essa conservadorismo, “um herdeiro ideológico do feudalismo” (p. 78, e a considerar a perspectiva da teoria natural da propriedade, as relações de seus adeptos com o antigo regime dos “amigos do rei”, aponta em “agressão contra os direitos dos proprietários naturais” (p. 80).

Ao ler e considerar Hoppe em suas críticas nada convencionais ao conservadorismo, que também não trazem qualquer satisfação aos defensores de formas de socialismo, das mais leves às radicais, percebo o quanto seria hilário, para não dizer outra coisa, se algum adepto da direita, sobretudo a de um certo movimento brasileiro, fosse até o distinto pensador alemão e se apresentasse como “liberal na economia e conservador nos costumes”.

O formato atual da obra foi definido entre 1985-1986 (Agradecimento, p. 13) e percebo que essa contundente crítica de Hoppe ao conservadorismo foi, de certa maneira, reavaliada ao categorizar concepções que se apresentam como conservadoras e aos valores no conservadorismo que se afastam das relações com o Estado e se alinham com o libertarianismo, o que pode ser observado no capítulo X de Democracy: The God That Failed (2001).

15/08/2023 22h23

Imagem: Poetry Foundation

Edmund Wilson

“Naturalmente não temos ideia, a não ser por evidências intrínsecas, da época em que as obras copiadas foram escritas, mas parece claro que as cópias são anteriores à chegada dos romanos, quando os pergaminhos foram escondidos em cavernas do mais difícil acesso possível — como aquela que De Vaux arriscou o pescoço para alcançar.[…]”

Obra: Os manuscritos do mar Morto. 4. O mestre da retidão. Companhia das Letras, 2009, São Paulo. Tradução de Hildegard Feist. De Edmund Wilson Jr. (EUA/New Jersey, 1895-1972).

E as tais “evidências intrínsecas” indicam que se enfraqueceu a crítica moderna sobre dúvidas acerca da autenticidade de textos bíblicos, diante do maior achado da arqueologia no século XX: os manuscritos das cavernas de Qumran em 1947. Os rolos contendo textos bíblicos que foram escondidos pelos essênios, massacrados pelos romanos e que atestam o ofício dos escribas como seríssimo em termos de autenticidade, quando foram comparados com os textos mais antigos até então (cerca de 1.000 anos à frente).

Por evidências paleográficas de Albright,, o rolo do profeta Isaías foi situado por volta de 100 a.C.; especialistas apontaram as cerâmicas dos jarros como pré-herodianas, estimadas para fins do último século anterior a Cristo. Testes de carbono 14 situaram entre 168 a.C. e 233 d.C.

Outro ponto está no papel desempenhado pelo padre Roland de Vaux (1903-1971), que , entre diversas coisas, dirigiu os trabalhos no museu de Rockefeller no exame dos manuscritos e estimou a construção do mosteiro do sítio arqueológico durante o reinado de João Hircano (134-104 a.C.), pertencente a uma comunidade cuja caverna foi, segundo o padre francês, um “baluarte da resistência judaica” (3. o mosteiro).

14/08/2023 00h02

Imagem: Mises Brasil

Ludwig von Mises

“A ficção tem a liberdade de retratar eventos que nunca ocorreram. O escritor cria, como as pessoas dizem, uma história imaginária. Ele é livre para se afastar da realidade. Os critérios de verdade que se aplicam à obra do historiador não se aplicam à sua. […]”

Obra: Teoria e História. Uma interpretação de evolução social e econômica. Capítulo 12. Psicologia e Timologia, 4. História e ficção. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014, São Paulo. Tradução de Rafael de Sales Azevedo. De Ludwig Heinrich Edler von Mises (Áustria-Hungria/Leópolis, 1881-1973).

Teoria e História é de 1957, considerada por Rothbard como integrante das quatro grandes obras de Mises (p. 11). Na abertura deste capítulo, Mises explica o porquê de evitar o uso do termo “psicologia”, ao preferir o “naturalista”, aplicado como de interesse da economia. Apresenta então o termo “timologia” como “conhecimento das volições e avaliações humanas” (p. 192). Contudo, adverte que o termo “não tem qualquer relação especial com a praxeologia e a economia. A crença popular de que a economia subjetiva moderna, a escola da utilidade marginal, se baseou na “psicologia” ou tem uma ligação íntima como ela, é equivocada” (p. 195)

O encontro da economia com a psicologia é válido, à mon avis, contudo, Mises tem uma criteriosa demarcação (uma característica de seu pensamento), talvez para não tornar sua teoria econômica sujeita a uma confluência de conceitos que, pode ter pensado, causaria mais confusão do que qualquer outra coisa e assim a “timologia” (ou de uma forma vulgar, a “psicologia”) não foi objeto de interesse de sua visão acerca da praxeologia, cujo parágrafo a seguir esclarece:

“O próprio ato de avaliar é um fenômeno timológico. A praxeologia e a economia, no entanto, não lidam com os aspectos timológicos da avaliação. Seu objeto é a ação, de acordo com as escolhas feitas por quem está agindo. A escolha concreta é uma consequência da avaliação. A praxeologia, no entanto, não está preocupada com os eventos que produzem, a partir do interior da alma, da mente ou do cérebro de um homem, uma decisão específica entre A ou B. Ela parte do pressuposto que a natureza do universo impõe ao homem a escolha entre fins incompatíveis. Seu tema de estudo não é o conteúdo destes atos de escolha, mas sim o que resulta deles: a ação. Ela não se preocupa com o que um homem escolhe, mas com o fato de que ele escolhe e age de acordo com uma escolha que foi feita. Sua posição a respeito dos fatores que determinam a escolha é neutra, e ela não se arroga a competência de examinar, revisar ou corrigir julgamentos de valor. Ela é wertfrei” (p. 195).

Ainda sobre “timologia”, em nota [1, p. 192]:

1 Alguns autores, como, por exemplo, Santayana, utilizaram o termo “psicologia literária”; ver o seu livro Ceticismo e a Fé Animal, cap. 24. No entanto, o uso deste termo parece ser desaconselhável, não só porque ele foi utilizado de maneira pejorativa por Santayana, assim como por muitos representantes da psicologia naturalista, mas porque é impossível formar um adjetivo correspondente. “Timologia” deriva do grego θυμός, que Homero e outros autores se referiram como sendo o centro das emoções e a faculdade mental do corpo vivo, através do qual seriam conduzidos o pensamento, a vontade e o sentimento. Ver Wilhelm von Volkmann, Lehrbuch der Psychologie (Cothen, 1884), I, 57-9; Erwin Rohde, Psyche, trad. de W. B. Hillis (Londres, 1925), p. 50; Richard B. Onians, The Origins of European Thought about the Body, the Mind, the Soul, the World, Time, and Fate (Cambridge, 1951), p. 49-56. Recentemente o professor Hermann Friedmann utilizou o termo Thymologie com uma conotação um tanto diferente; ver o seu livro Das Gemut, Gedanken zu einer Thymologie (Munique, C. H. Beck, 1956), p. 2-16.

Torno ao trecho desta Leitura onde Mises denota a ficção que, sendo narrativa de coisas que não aconteceram e não necessariamente vão ocorrer, frutos da imaginação, mesmo com “ídolos pagãos, fadas, animais que agem como se fossem humanos, fantasmas e outras entidades sobrenaturais”, não está livre para desconsiderar os ensinamentos da experiência timológica, pois as personagens devem agir de uma forma “timologicamente inteligível” em termos humanos, em função de que, aponta, “os conceitos de verdadeiro ou falso, tais como são aplicados em obras épicas e dramáticas, referem-se à plausibilidade timológica” (p. 199).

Após fazer uma crítica a Émile Zola (1840-1902) quanto à ideia do romance se enveredar por “uma espécie de psicologia social e economia”, Mises demarca o gênero ficcional tendo como tema “o homem individual, como ele vive, sente e age, e não entidades coletivas anônimas” (p. 200), enquanto o indivíduo único se torna tema ao historiador “primordialmente do ponto de vista da influência que as suas ações exerceram sobre uma multidão de pessoas ou um típico espécime que representa grupos inteiros de indivíduos’ (p. 199). Vê o romance ou a ficção como “uma confissão do autor, e fala tanto sobre ele quanto sobre as personagens da história; revela o mais íntimo de sua alma” e, neste aspecto, seria uma revelação de sua mente e assim encerra a afirmar que o poeta “sempre escreve sobre ele próprio, sempre analisa sua própria alma” (p. 201).

13/08/2023 14h02

Imagem: ADAA 

Robert L. Leahy

“Quando você está em um estado de ansiedade, toma decisões sobre o que é perigoso automaticamente.”

Obra: Livre de ansiedade. Capítulo 3 – O “livro” de regras da ansiedade. Artmed, 2011, Porto Alegre. Tradução de Vinicius Figueira. De Robert L. Leahy (EUA/Virgínia/Alexandria, 1946).

E segue o PhD Leahy, psicólogo americano de referência internacional em problemas de ansiedade, a explicar que se presume simplesmente que uma situação é perigosa de forma conclusiva mediante qualquer sinal de perigo, até mesmo insignificante. Recomenda então um processo de avaliação de risco para que se tome vantagem desse pensamento mecânico com quatro questões a envolver (1) se há uso de informações disponíveis ou apenas seus aspectos negativos, (2) se há previsões baseadas em fatos ou apenas por emoções, (3) se a imaginação que se tem faz uso do que há de melhor e (4) se foi avaliada a probabilidade do resultado temido (pp. 37-38). Em suma, é preciso um esforço para ver as coisas de maneira realista, regra que sugere em contraponto com o automatismo de se detectar o perigo.

Em duas situações, durante a pandemia, pensei sobre Robert L. Leahy e pude notar a importância do processo sugerido no combate à ansiedade.

CASO 1: A ânsia que provocou um desastre financeiro em um home broker

No primeiro, em um grupo de investidores um jovem lançou questões a afirmar que precisava vender, com certa urgência, lotes de ações de uma mineradora e mesmo sendo alertado por um dos participantes de que o pior horário para lançar ordem de venda, neste caso, é o de início do pregão (onde há um grande foco de ansiosos que caem na rede das baleias especuladoras), não resistiu, e diante da pressão de ter que se desfazer com brevidade e de notícias de um famoso portal de investimentos (muito cuidado com esse tipo de mídia pois vive de captar visualizações de indivíduos dominados por emoções) aparentemente ruins da companhia a qual detinha os papéis; ao ver o derretimento das ações, acionou o botão de pânico e deu a ordem na abertura para em logo seguida amargar um prejuízo que ainda não conseguiu superar ao saber que às 11h30 (horário que lhe fora sugerido) tinha passado por alta volatilidade e naquela altura poderia ter negociado com um retorno dentro do que desejava receber. Fixou-se tão-somente nos aspectos negativos das notícias em torno de especulações (1) e as confundiu com fatos (2); desses pensamentos automáticos alimentou uma imaginação pelas cotações em viés de queda, onde sobravam presunções (3) e de forma super estimada, sem avaliar a alta probabilidade de ser um movimento típico de abertura de pregão, rendeu-se ao pânico com a desvalorização dos ativos acionários (4).

CASO 2: O usuário ansioso que derrubou um sistema de transmissões por não aguentar um breve tempo de espera pelo suporte.

Na atividade de desenvolvimento e suporte em TI, um usuário relatou um problema de envio de eventos ao fisco de uma empresa. Recebeu então um comunicado de que seria atendido às 14h30 do mesmo dia; eram 09h14, mas não se conteve, apesar do breve tempo de espera e, fixado apenas no problema de não transmissão de uma empresa, diante de uma base com mais 150, não considerou que o suporte tinha dado estimativa de atendimento no mesmo dia (1), então foi a grandes centros de ansiosos em busca de respostas rápidas e fáceis como varinha de condão, mais conhecidos por “grupos de WhatsApp”, e recebeu algumas “dicas”, certamente de não versados na tecnologia que envolve a mensageria, que lhe sugeriram fazer a instalação do aplicativo no seu próprio terminal, pois se tratava de um “problema no servidor”, e assim confundiu uma opinião com um fato (2); o resultado é que ao imaginá-la (3) como “solução”, a mensageria no terminal paralisou todos os envios de todas as demais 150 empresas de todos os módulos envolvidos por um conflito na rede; sem perceber a causa da paralisação, viu-se em um quadro grave ao sair de 1 para 151 empresas sem transmissão; a ânsia não o fez pensar que se tratava de um problema isolado e que tinha uma folga de dias para vencer o prazo (4). Ao iniciar o atendimento, gastei um precioso tempo na apuração da sequência de procedimentos inadequados tomados pelo usuário, cuja ansiedade gerou uma cadeia de tarefas para desfazer efeitos de ações que provocaram um estresse maior que o necessário.

O ansioso acaba refém de tratar um futuro (algo sempre hipotético, estimado) como “realidade”, regido por expectativas centradas no temor, e assim queima etapas de compreensão de problemas, passa a atuar sem análise acurada, serena, realista, dos fatos; é neste sentido que entendo a chave que Robert L. Leahy aponta: desligar-se do estado de pânico a tempo de fazer uma análise da situação (p. 38).

Parte significativa de meu cotidiano consiste em monitorar e anular ansiedade que possa me acometer, bem como não me deixar levar por alguma “pilha” nervosa de cliente, pois nos ramos em que trabalho, aprendi que nada mais é desastroso do que um profissional dominado por ansiedade, seja mediante um home broker, em consultoria tributária ou em intervenções sobre sistemas de TI.

12/08/2023 17h00

Imagem: David Rubens – bíblico teológico

Roland de Vaux

“A lei de Dt. 20.10-18 se refere à conquista das cidades. Se a cidade se encontra no território atribuído por Deus a Israel, é entregada ao anátema e nada vivo deve subsistir nela.”

Obra: Instituições de Israel no Antigo Testamento. Terceira Parte. Capítulo III. Os Escravos. 1. O fato da escravidão em Israel. Teológica/Paulos, 2003, São Paulo. Tradução de Daniel de Oliveira. De Roland Guérin de Vaux (France, 1903-1971).

Nesta concepção de conquista, anátema a todos do local conquistado; mulheres, idosos, crianças… Se a cidade está fora da Terra Santa, propõe-se a rendição, sendo aceita, resulta-se na “corvéia e ao trabalho”, havendo resistência e sendo vencida, “todos os homens são mortos, e as mulheres e as crianças são consideradas como saque” (p. 106). Lembro-me do termo “genocídio” ,aplicado em nome de Deus, incomodou bastante um seminarista; a mente religiosa pode ser uma porta de entrada para que atrocidades sejam cometidas e justificadas em nome do sagrado.

O padre de Vaux abre o capítulo a mencionar que alguns autores negam que houve verdadeira escravidão em Israel, cuja opinião “pode ter uma justificação aparente”; compara e afirma que “a situação do escravo em Israel nunca foi tão desprezível como na Roma republicana”, onde se usava a expressão instrumenti genus vocale, “uma espécie de instrumento que fala”, para designá-lo (p. 105).

Pensei também em termos bíblicos com a questão do desprezo à mulher (na visão hodierna), além da escravidão ou “servidão” do Decálogo até entre os primeiros cristãos. Pensei ainda quando Deus “manda” matar, como nesta Leitura (p. 106), bem como lembrei-me da narrativa do cerco e chacina em Jericó. Seria a Bíblia então uma obra que de apologia ao “racismo”, à “escravidão”, à “misoginia” e ao “genocídio”, bem como a teologia e o divino devem ser assim associados, e em leituras ainda mais comuns relacionadas à homofobia, uma obra de “ódio”? Precisaria então ser repensada ou até mesmo banida? Não se tratam de concepções de um contexto de crenças discorridas em testemunhos da fé, sob determinada visão religiosa por narrativas à época? Estaria a Bíblia a falar do pensar do homem de um tempo, hoje associado com apologia a certas crenças vistas como ofensivas em meio ao que fora narrado?

Noto que o fundamentalismo vai além do que se tem por religiosos intolerantes e atinge também os que fazem leituras “políticas” da Bíblia, independente do lado.

11/08/2023 20h35

Imagem: Companhia das Letras

Hilda Hilst

“[…] a mãe chamou um homem para que fizesse rezas sobre mim […]”

Obra: Tu não te moves de ti. Matamoros (da fantasia). Companhia das Letras, 2022, eBook Kindle. De Hilda de Almeida Prado Hilst (Brasil/São Paulo, 1930-2004).

Maria Matamoros é apenas citada no primeiro conto, Tadeu (da razão), de Tu não te moves de ti. As interconexões entre os três contos revelam o estilo peculiar de Hilda Hilst; aprofundar-se na psiquê das personagens para fazer arte literária, cuja linha tênue na sensibilidade que pode haver no leitor, não raramente é confundido com apologia da autora ao que desnuda dos traços que discorre tão intensamente nos protagonistas.

E eis que Matamoros é um tipo que provoca radicalmente tal experiência de leitura, personagem que tem oito anos de idade, cujo auto relato parece sugerir alguém que rememora uma perturbadora situação de infância, versado em uma linguagem peculiar um tanto filosófica para atravessar dimensões como se estivesse em releitura pessoal ou perturbado sob um instinto que provoca o lado racional em determinados contextos existenciais, assim vejo o auto relato de prostituição de Matamoros, como se apresenta, “criança” com tendências precoces à intensa experimentação física do toque nas coisas, problema que faz a mãe chamar um “homem de rezas” que, em vez de entregá-la às orações, aproveita-se de sua vulnerabilidade e comete pedofilia.

O conto de Matamoros me soa como uma proposta literária que combina sagacidade existencialista com provocante (e velada) psicanálise freudiana; chamá-lo pura e simplesmente de “pedofilia” (como observei em algumas reações ao texto) pode ser cômodo a uma manifestação de sensibilidade moral que não suporta determinadas perturbações de uma arte desconhecida e as confunde com o que (supostamente) pensou a autora sobre valores ao produzir o texto.

Contudo, o relato suscita a questão sobre limites de expressão da arte. Antes de pensar em uma resposta, medito se seria intelectualmente honesto rotular de “propaganda nazista” um romance com personagem central simpatizante do genocida socialista bigodudo que um dia foi capa da Time (a revista seria “nazista” também). Seria de “propaganda racista” um romance com personagem de falas um tanto vistas hoje como ofensivas em termos raciais (Lobato manda lembranças)? Ou estariam as hipotéticas obras a ficcionar acerca de tipos de personas em tempos e condições sociais determinadas? Um romance com personagens “subversivos”, depravados ou politicamente desajustados deve ser condenado por distintos patrulheiros de plantão, censurado ou “cancelado” conforme o gosto de zelosos guardiões dos controles sociais de cada dia? Personagem psicopata, do tipo desalmada, fará do romance que se revela algo assim, sendo o autor automaticamente chancelado de simpatizante de tal patologia? Um conto com um cleptomaníaco sedutor é suficiente para encerrá-lo como evocação de valores que apetecem ao romancista?

Ainda há algum lugar para a arte impensada neste mundo tão politicamente regrado, certinho demais a ponto de confundir (ou não querer?) arte como se fora propaganda ideológica?

10/08/2023 23h10

Imagem: Jornal da USP

Oneida Alvarenga

“Gosto das coisas mansas,
Das coisas tristes que sabem sorrir.
Dos gestos irremediáveis
Que teem a serenidade de folhas mortas que caem.
Das vozes que perderam a memória dos soluços
E são como água de fonte
Que ninguém saberá se chora ou ri…”

Obra: A Menina Exaustha. IX. Antologia da moderna poesia brasileira. Revista Acadêmica, 1939. De Oneyda Paoliello de Alvarenga (Brasil/Minas Gerais/Varginha, 1911-1984).

Imprevisível… – por pastor Abdoral

Imprevisível…. desconectado… distante…
ato terceiro, Andrea Chénier…
ária soprano, Maria Callas.

O insondável em si… minha vocação…
mudo e sem melancolia,
não sou de auto flagelo.

Sem dramas no semblante,
sorriso discreto, passa tristeza
a disfarçar vida pulsante.

Maravilhosamente desprezível,
visível e indecifrável…
em paz sem ser notado.

Avesso à ilusória aparência
de normalidade e sem dilemas
das conveniências desse mundo.

De vez em quando atravesso
o irrelevante por vontade de ser
o que apenas guardo dentro de mim.

09/08/2023 22h26

Imagem: Estrategistas

Viktor Frankl

“Não devemos esquecer nunca que também podemos encontrar sentido na vida quando nos confrontamos com uma situação sem esperança, quando enfrentamos uma fatalidade que não pode ser mudada.”

Obra: Em busca de sentido. II. Conceitos Fundamentais da Logoterapia. O sentido do sofrimento. Vozes, 2018,Petrópolis. Tradução de Walter O. Schulupp e Carlos C. Aveline. De Viktor Emil Frankl (Áustria/Viena, 1905-1997).

Frankl foi a primeira grande referência que tive em leituras de psicologia.

Um dos princípios fundamentais da logoterapia consiste em dar suporte às pessoas para que encontrem um sentido para a vida. e isso envolve o problema do sofrimento diante do que não pôde ser evitado.

Mesmo diante de situações trágicas, importa dar testemunho do potencial humano de mais elevado em transformar um desastre pessoal em um triunfo; diante do imutável que nos aflige, “somos desafiados a mudar a nós próprios” (pp. 136-137), indica Frankl. No tópico, conta um caso de um clínico geral com depressão muito profunda após a perda de sua esposa, cuja terapia confrontou dialeticamente o paciente diante de questões que o ajudaram a refletir e a mudar de atitude diante do destino inalterável (p. 137).

O sofrimento não deve ser visto como necessário para que se busque sentido, e sim que é possível obter sentido na vida mesmo diante de tribulações inevitáveis; mediante o evitável, o que deve ser feito é eliminar a sua causa, enfatiza (p. 138).

08/08/2023 22h35

Imagem: ABC Cultura

Antonio Piñero

“Na evolução e garantia do dogma, os evangelhos apócrifos desempenharam um papel considerável, como apontam entre outros L. Moraldi [3] e A de Santos [4].”

Notas do autor:

3. Apocrifi, 26-27.

4. Evangelhos Apócrifos, 8-9.

Obra: O outro Jesus segundo os evangelhos apócrifos. Epílogo. Mercuryo, São Paulo, 2002. Tradução de Silvia Rojo Santamaria. De Antonio Piñero Sáenz (Espanha/Cádiz/Chipiona, 1941).

Torno a Leitura desta obra do filólogo espanhol sobre os evangelhos apócrifos, feita em 2003, onde medito acerca de textos que não foram aceitos para o cânon do Novo Testamento, tidos como não “inspirados”, assim classificados como “apócrifos”, acabaram por desempenhar um “papel considerável”(p. 180) em relação aos dogmas, na visão do autor.

Do Epílogo vou ao Prólogo e penso no que o autor aponta como textos muito antigos (remontando ao início do século II) com uso de tradições que competiam com os canônicos (p. 11). Talvez, como parece indicar Piñero, sirva para reflexão acerca do suspeito encobrimento dessas fontes não aceitas para compor o que chamamos de “Novo Testamento”, quem sabe porque também revelam um Jesus um tanto diferente do que se encontra nos relatos canônicos e, penso, o que poderia perturbar bastante uma fé alinhada com os canônicos.

Ironicamente, penso, evangelhos que foram desclassificados pela Igreja, rotulados de “apócrifos”, muitas vezes, são “o único testemunho de uma fé popular que se transformou em dogma com o correr do tempo” (p. 179), como afirma o autor. São citados os Evangelhos da Natividade, em relação à virgindade de Maria; o Evangelho de Nicodemus sobre a descida de Cristo aos infernos, após a sua morte; o Evangelho de S. João Evangelista e o Evangelho de José de Arimatéia, sobre a assunção de Virgem. Piñero também lembra, entre outras curiosidades, que os nomes dos pais da virgem Maria (Joaquim e Ana), o nascimento de Jesus em uma gruta, os nomes dos três reis magos, Melchor, Gaspar e Baltazar, os nomes dois dois ladrões crucificados ao lado de Jesus, Dimas e Gestas, o nome do soldado romano, Longinos, que atravessou o lado de Jesus com uma lança, a história de Verônica, “não repousam sobre outro fundamento histórico que o das narrações dos (evangelhos) apócrifos” (p. 180).

São apócrifos para algumas coisas, enquanto servem de referência para dogmas, em outras…

07/08/2023 21h02

Imagem: Vida Nova

D. A. Carson

“5. À medida que transmitiu as declarações e histórias de Jesus, a comunidade cristã primitiva não somente colocou esse material em certas formas, mas também o modificou sob pressão de suas próprias necessidades e situações.”

Obra: Introdução ao Novo Testamento. 1. Os Evangelhos Sinóticos. A Etapa de Tradições Orais. A Crítica da Forma. Vida Nova, 2004, São Paulo. Tradução de Márcio Loureiro Redondo. De Donald Arthur Carson ( Canadá/Quebec, 1946), Douglas J. Moo (EUA/Indiana, 1950) e Leon Morris (Austrália/Lithgow, 1914-2006).

Ao pensar em questões sobre autenticidade, autoria e origens textuais nesses dias, enquanto na leitura permanente de cabeceira, a Bíblia Sagrada, voltei-me a uma leitura de 2005, dos tempos de seminário.

Obra possibilita uma boa visão introdutória de questões que naturalmente tomarão conta de quem se envereda por estudos teológicos sobre o Novo Testamento.

No trecho (p. 24), o tópico que considerei mais importante à época tocante à investigação sobre as origens dos evangelhos: a abordagem sobre a Crítica da Forma, “que concentra a atenção no período de transmissão oral”, anterior a relatos escritos, é a etapa mais remota do processo de formação dos textos, (p. 21). Se Marcos for o mais antigo dos evangelhos (meados dos anos 50 do primeiro século), a etapa da transmissão oral pode ter durado, pelo menos, 20 anos (p. 22).

Antes do texto escrito houve um conjunto de textos falados, onde teria ocorrido um processo oral de transmissão de dados. Evidentemente, a crítica da forma vai desagradar bastante quem lê o Novo Testamento sob a crença de que se está diante de um relato de testemunhas oculares que anotavam tudo que estavam presenciando, como se fossem jornalistas. Pressupostos (pp. 22-25): 1. Vida e declarações de Jesus circularam em pequenas unidades; 2. O processo de transmissão de dados dos evangelhos pode ser comparado com outras tradições populares e religiosas; 3. Relatos e declarações de Jesus assumem determinadas formas padronizadas; 4. A forma de um relato ou declaração possibilita determinação do contexto na vida da igreja primitiva relacionada a necessidades existenciais; 5. Comunidades moldaram as histórias que vieram por tradições orais às suas próprias necessidades; 6. O processo de transmissão se regeu por “leis” onde os ouvintes tendem a aumentar os relatos (é aquela histórica de fulano falou e beltrano aumentou ou modificou um “pouco”), acrescentar detalhes, adaptá-los ao seu linguajar e conservar e criar apenas o que se harmonizar com suas necessidades e crenças.

A crítica da forma ganhou a (má) fama de colocar em questão a historicidade dos evangelhos e Rudolf Bultmann (1884-1976) talvez seja o maior colecionador de haters no medonho ambiente fundamentalista, à mon avis. Enquanto lembro que fui chamado de “Bultmann”, por alguns “zelosos” apologetas que confundiam o seminário com a EBD, os autores apontam que, pelo “critério de dessemelhança” (p. 24), críticos da forma buscam declarações e atividades “criticamente asseguradas”, o que indica uma “compreensão supostamente histórica de Jesus” (p. 25). Também consideram que “muitas das pressuposições em que se baseia a crítica da forma parecem ser válidas” (p. 25).

06/08/2023 20h20

Imagem: Casa Fernando Pessoa

Alberto Caeiro

“Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade.

[…]”

Obra: Mensagem. XLVIII. Alberto Caeiro. De O Guardados de Rebanhos (1911-1912). Martin Claret, 2005, São Paulo. De Alberto Caeiro (1889-1915) heterônimo por Fernando António Nogueira Pessoa (Portugal/Lisboa, 1888-1935).

XLVIII – Da mais alta janela da minha casa de O Guardador de Rebanhos, consta na edição de Mensagem que disponho em formato físico.

No tempo em que tinha conta pessoal em rede social, lá pelos idos de 2017, chamou-me a atenção:

Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo.

Fernando Pessoa

Atribuído por um docente. Pensei imediatamente na vasta produção do poeta, mas o estilo do verso, apesar da riqueza dos heterônimos, soava-me um tanto estranho.

Quando leio uma citação, procuro a referência bibliográfica e quando não mencionada, não dou credibilidade. Parece radical, contudo nos tempos do seminário (2003-2007) quando comecei a estudar o problema dos apócrifos, dei-me conta do fenômeno da falsa atribuição, comum e tão antigo não apenas quando as ideias começaram a ser registradas em forma escrita, mas, sobretudo, por tradições auriculares. Não se trata, portanto, de uma novidade das redes sociais do século presente que, tão-somente, potencializam a prática.

Consultei então a Obra poética e não o encontrei. Li os comentários à época e não consegui identificar qualquer questionamento sobre a veracidade da autoria atribuída. Em 2018, ao visitar o sítio da Casa Fernando Pessoa, lembrei-me do verso e após uma breve pesquisa, deparei-me com a publicação O que Fernando Pessoa não escreveu, e lá estava a referência ao verso como falsa atribuição. Recentemente voltei a identificar esse problema através de uma publicação (também motivacional) em um ambiente corporativo no WhatsApp. Foi triste, mais uma vez a fonte veio de quem possui razoável histórico universitário.

Entendo que ao citar uma frase ou verso, apontar a fonte bibliográfica é regra elementar. Se em um texto falado ou em uma palestra há o entendimento de que citar livros, artigos e textos afins tornaria a apresentação engessada, penso que não se justifica omitir referências bibliográficas mediante anexo. O que importa é a ética de se pautar pela legitimidade da leitura para não cair na moléstia do compartilhamento indiscriminado, do copiar e colar sem discernimento, do repasse de falsas atribuições, epidemia que não se restringe apenas aos seus maiores vetores: os famosos e desavisados “tios do Zap”.

E torno à Leitura do dia:

E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide, de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

E os teus versos por aqui chegaram, Pessoa, por teu outro eu Caeiro, graciosamente passaram por mim, fluíram no meu ser, enriqueceram-me na certeza de uma autenticidade por labor daqueles que verdadeiramente amam a Leitura.

05/08/2023 14h00

Imagem: CNBB

Padre Leo Pessini

“A dor exige medicamento e analgésico. O sofrimento clama por sentido.”

Obra: Vida, morte e luto. Atualidades brasileiras. 2. Espiritualidade, finitude humana, medicina e cuidados paliativos. Summus Editorial, 2018, São Paulo. Organizado por Karina Okajima Fukumitsu.

A visita à biblioteca da esposa e psicóloga sempre resulta em um tesouro.

Nesta obra, organizada pela psicóloga Karina Okajima Fukumitsu, referência em prevenção ao suicídio, muitos artigos interessantes, por diversos autores, e em um deles do padre Léo, Leocir Passini (Brasil/Santa Catarina/Ibicaré, 1955-2019), referência em Bioética, que fala sobre espiritualidade em relação aos cuidados médicos. O autor aponta a relevância da dimensão espiritual do ser humano como um elemento importante para ser trabalhado no âmbito da saúde, incluindo a importância dos cuidados paliativos.

No trecho selecionado, uma síntese a explicar a diferença entre dor e sofrimento. Dor é perturbação, sensação no corpo; sofrimento é algo mais complexo, abrangente, por atingir a pessoa como um todo (p. 54). Cita o psicólogo Eric Cassel (1928-2021), cuja passagem que trata sobre sentido e transcendência , quando quem sofre e entende o significado da dor acaba ganhando um redutor ou até mesmo um neutralizador do sofrimento associado, o que me fez lembrar do tema da busca do sentido para a vida, o que me foi apresentado inicialmente pela maior referência que tenho em psicologia: Viktor Frankl (1905-1997).

Então, ao ler este artigo do padre Léo, penso, a ausência de sentido para vida, a incluir o entendimento sobre algo que nos provoca dor, profundo desconforto, é um potencializador do sofrimento, uma porta escancarada para a revolta e o vazio que vai nos destruindo por dentro.

Torno ao autor, padre Léo também cita a interpretação dada pelo rabino Harold Kushner (1935-2023) ao sofrimento do personagem bíblico Jó que, segundo o rabino, não queria de seus amigos uma explicação sobre Deus; Jó não precisava de esclarecimentos teológicos, de explanações sobre o divino; carecia de “simpatia”, diria , uma presença de amigos que lhe desse conforto diante do trágico e injusto acometidos sobre um bom homem (pp 54-55). Padre Léo também lembra a questão da mentalidade católica que dá muita ênfase ao sofrimento e aponta que é preciso se voltar à “fonte primeira”, o amor, e então cita a Salvifici Doloris do papa João Paulo II (1920-1978-2005):

“o amor ainda é a fonte mais plena para a resposta dada à pergunta acerca do sentido do sofrimento. Essa resposta foi dada por Deus ao homem, na Cruz de Cristo Jesus” (p. 55).

A ilusão do que se tem por “sentido da vida” – por pastor Abdoral

A perda do sentido ou a desilusão com o que se tinha por “sentido para a vida”, diante de um contexto de dor e sofrimento, tema caríssimo que sempre me vem para reflexão. De certa forma, penso na ilusão do que se tem por “sentido da vida” na sociedade presente, consumista, materialista, regida pelas aparências que costumam enganar, quando há busca por tal conforto na negação do que pode significar um sofrimento quando um choque de realidade ocorre, e então se tenta evitar a realidade por meio de recursos usados para alienar as pessoas de valores imateriais que não podem ser obtidos por meio de posses materiais; não se compra fé, esperança, serenidade, auto controle, compaixão, solidariedade, consolo, em suma, toda forma de amor, e então tenta se comprar atenuantes ou meios para tratar sintomas e não causas (penso no tal medicamento citado pelo padre Léo para driblar o que o peso da idade representa na ânsia por prazer); e nessa busca frenética pelo sentido puramente material, do hedonismo, do glamour físico e aparente, nega-se a espiritualidade, colocada em segundo plano ou até mesmo anulada, o que tem a ver um pouco com o que o autor menciona sobre “uma sociedade em que o sofrer não tem mais sentido, e por isso nos tornamos incapazes de encontrar algum significado numa vida marcada pelo sofrimento” (p. 53).

Certa vez pensei em um triste relato de um suicídio cometido por um jovem logo após descobrir a traição da esposa; recém-casado, teria sido criado em berço de ouro, aprendido com os pais tão somente uma versão glamourosa da vida (caso comum de pais que confundiam o dar segurança com alienar o próprio filho diante das ocorrências imponderáveis que vão surgindo ao longo da existência) e assim não existiam dilemas que não pudessem ser resolvidos, com o que o dinheiro poderia cobrir e tudo funcionava a um alcance onde não havia espaço para dar à espiritualidade o protagonismo na vida ou era insignificante a busca por transcendência mediante o cultivo de certos valores imateriais. Ora, em uma sociedade regada pelo apreço que se volta a uma celebração da vida apenas baseada no tangível que se pode ter, enquanto o materialismo consumista percorre a pujança financeira, tudo parecia dar pleno sentido à vida para um jovem abastado; tudo (enganosamente) estaria “garantido” por esse poder material (incluindo a esposa, que acabou por traí-lo). Ao descobrir a dura verdade que a imensa segurança material de sua família não poderia protegê-lo de certos percalços, cuja tragédia se evidenciou pelo imponderável de uma infidelidade conjugal, entre tantas que podem acontecer com qualquer pessoa, infelizmente, no vazio do ter e na carência do que não se pode comprar, o jovem surtou, a ilusão de uma vida plena, segura pelo poder econômico, veio à tona, seu mundo, até então maravilhoso, desabou.

Em outra situação, a tragédia final de quem passou a vida inteira vivendo no estresse para ficar rico e quando conseguiu, enfrentou uma enfermidade que nenhum dinheiro poderia resolver. A questão da ilusão do sentido para a vida ficou mais latente quando vi um imenso sofrimento com a pandemia, diante de perdas que afetaram quem, aparentemente, tinha enorme segurança com o poder econômico ostentado, bem como o drama da descoberta do quanto somos vulneráveis.

04/08/2023 22h58

Imagem: romanoimpero

Gaius Iulius Caesar

“[…] the story of the Alexandria War is also but a single chapter in the larger story of Ceasar’s civil war with the senatorial faction of the Roman Republic. […]”

Obra: Julius Caesar in Egypt. Cleopatra and the War in Alexandria. Introduction. eBook Kindle. Pen & Sword Books, 2023, Yorkshire. De Philip Matyszak (UK/England)

Obra recente do britânico doutor em história romana, publicada este ano na Inglaterra e nos EUA.

Disponível eBook Kindle na Amazon.

Na introdução, o professor aponta uma questão chave para se entender melhor quem foi Caio Júlio César (Roma, 100 a.C – 44. a. C) política e militarmente. Inúmeras vezes escutei em sala de aula ser mencionado como “imperador”, no entanto, tecnicamente o topo de seu poder se deu no exercício do cargo de ditador na República Romana, solução em que sistemas políticos da antiguidade chegavam mediante grave crise política, como se deu em 49.a C em Roma, outrora monarquia, quando república acelerou sua expansão na península itálica a chegar ao oriente, e na medida em que realizava operações militares de conquista territorial, o poder político, naturalmente corrupto, foi agigantando e se transformando em uma brutal arena de facções e alianças (como se deu no primeiro triunvirato com Crasso e Pompeu em 60. a. C.).

Júlio César no Egito (tradução livre) tem como maior destaque a guerra civil de Alexandria, a aliança de César com Cleópatra VII, jovem (dizem, sedutora) que se tornaria sua amante (enquanto selava em Alexandria uma aliança política e militar) e contrariava o irmão Ptolemeu XIII que cercava a cidade com sua tropa.

Júlio César foi o ícone maior da figura militar afamada por grandes conquistas e que assim aproveitou tal prestígio para chegar ao topo da carreira política. Talvez, ditadores da atualidade possam se sentir mais inteligentes e bem sucedidos por se manterem longevos e protegidos quando pensam em César assassinado, cinco anos depois de assumir como supremo líder.

Como afirma introdutoriamente o autor, o embate em Alexandria foi um capítulo na história maior da guerra civil do general e político Júlio César contra a facção senatorial que lhe fazia oposição na República Romana.

03/08/2023 20h45

Imagem: Sétimo Selo

Santo Agostinho de Hipona

“Com certeza, ainda estão cheio do erro do velho homem os que nos dizem: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?” […]”

Obra: Confissões. Livro Décimo-Primeiro. CAPÍTULO X. Martin Claret, 2002, São Paulo. Tradução de Alex Marins. De Aurelius Augustinus Hipponensis (Aurélio Agostinho de Hipona), Santo Agostinho de Hipona (Norte da África/Tagaste, 354-430).

O que fazia Deus antes de criar o céu e a terra? Agostinho afirma não querer respondê-la “jocosamente” e prefere dizer “Não sei”. (XII, 266). A questão se relaciona intimamente com o problema da origem do tempo.

Torno ao Capítulo X do Livro XI e vejo um destaque de um jovem seminarista em 2003 para o que afirma Santo Agostinho sobre a vontade como algo que pertence à própria substância de Deus, sendo anterior a toda criatura. Em seguida, vejo que o jovem seminarista, amigo de infância, destacou que Agostinho entende que a eternidade está além dos limites do tempo, pois nela tudo é presente, enquanto o tempo é uma sequência de instantes, que não podem ser simultâneos (XI, p. 265), e também “não podem ser de todo presente” (p. 265).

O seminarista compreende que, aos olhos do bispo de Hipona, minha maior referência em teologia, não se pode tratar de questões sobre a eternidade com os parâmetros da finitude do tempo; a eternidade está em outra dimensão ou os anos de Deus “não vão nem vêm”, existem simultaneamente, não existe o passado nem o futuro da perspectiva temporal que há em toda criação.

O hoje de Deus é a eternidade. (XIII, pp. 266-267). O tempo foi criado, passou a existir e, por dedução, é obra de Deus e assim não é coeterno, pois se também o fosse, não seria tempo (XIV, p. 267). Entre meditações filosóficas e orações, Agostinho conclui que há três tempos na mente, o presente do passado, que vem pela memória, o presente do presente, que ocorre pela percepção direta (entendi como “imediata”), e o presente do futuro que se dá pela esperança (XX, p273) e aqui penso que, neste ponto, o “futuro” é visto como uma abstração em torno das expectativas que são criadas. Penso quão importante é entender esse conceito para não se confundir o que se estima sobre o futuro com a realidade, tampouco como certeza do que vai ocorrer. Por fim, em termos de mensuração, o jovem seminarista destacou que Santo Agostinho entendera que passado e futuro não existem, enquanto o presente é o mensurável enquanto passa ( XXI, p. 273), e o futuro está na imaginação ou, em uma linguagem atual, na especulação.

02/08/2023 20h16

Imagem: paul-tillich.com

Paul Tillich

“Não tem sentido perguntar-se pelo tempo antes da criação. O tempo foi criado juntamente com o mundo; é a forma do mundo.”

Obra: História do Pensamento Cristão. Capítulo II – Desenvolvimento Teológico na Igreja Antiga. I. Vida e pensamento de Agostinho. 3. Ideia de Deus. ASTE, 2000, São Paulo. Tradução de Jaci Maraschin. De Paul Johannes Oskar Tillich (Alemanha/Starzeddel, 1886-1965).

Leitura de um seminarista, amigo de infância em 2004 sobre Paul Tillich a abordar a doutrina agostiniana do tempo com menção a Confissões.

Explica, um dos mais importante teólogos do século XX, que o tempo, na visão de Santo Agostinho, não se aplica adequadamente a Deus; “não é uma realidade objetiva no sentido em que as coisas são objetivas”. O tempo é forma das finitudes das coisas no mundo, à semelhança do espaço. Apenas a eternidade transcende o começo e o fim do mundo, neste aspecto, o eterno supera o que se compreende nas finitas dimensões do tempo e do espaço, penso. O relógio mede apenas o tempo físico e o significado do tempo é o kairos, “a característica qualitativa do tempo” (p. 130), e o que Tillich sintetiza como “momento histórico”, muitas vezes ouvi “tempo oportuno”.

01/08/2023 23h08

Imagem: commons.wikimedia

Frida Kahlo

“A vida insiste em ser minha amiga e o destino meu inimigo.”

Obra: Frida Kahlo, uma biografia. L&PM, 2020, Porto Alegre. Tradução de Alexandre Boide. De María Hesse (Espanha/Huelva, 1982).

Frida livre e enclausurada – por pastor Abdoral

A imagem que envolve a jovem Frida Kahlo (México/Cidade do México, 1907-1954), na cama do hospital, paralisada, irresistivelmente destemida, determinada a pintar uma dor profunda, foi de uma revolução feita por quem assim se definia e sem palavras, “poesia muda” a lembrar o que definiu Leonardo da Vinci.

A constante do sofrimento e da força por superá-lo lembra a vontade de potência em Nietzsche, um drama inexplicável em meio aos mistérios dos sentidos. Assim passou Frida como um raio ou um Übermensch a experimentar a vida nos extremos.

Por um lado tão determinada diante de uma tragédia, líquida nos valores morais, controversa como regra enquanto enclausurada em suas crenças ideológicas, Frida permaneceu fiel ao comunismo, mesmo nas evidências de perversidade e destruição que estava a provocar, assim não sendo o bastante para fazer acontecer aquela vontade de potência que se revela na coragem de ser a herege de si mesma.

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