Uma leitura ao dia é singular como um raio contemplado na brevidade do cotidiano, diante da infinitude de minha ignorância, regado a Allegretto na Sétima Sinfonia de Ludwig van Beethoven (Sacro Império Romano-Germânico, hoje Alemanha/Bonn, 1770-1827), pela Royal Concertgebouw Orchestra em Amsterdã, sob a regência de Bernard Haitink.

31/07/2023 23h02

Imagem: DW

Karl Marx

“Aplicar direitos protecionistas aos cereais estrangeiros, é infame, é especular com a fome dos povos.”

Obra: Miséria da Filosofia. III – Discurso sobre a questão do livre-câmbio. Mandacaru, 1990, São Paulo. Tradução de Luís M. Santos. De Karl Marx (Reino da Prússia/Renânia-Palatinado/Tréveris, 1818-1883).

Fazia tempo que não revisitava um dos heróis de minha adolescência. Veio-me esta leitura de 1996.

E até o Karl Marx, até então com 30 primaveras a completar, reconhece o protecionismo como “infame” neste discurso (anexo da edição que disponho) pronunciado na sessão pública da Associação Democrática de Bruxelas, em 07/01/1848 (p. 213). Estaria o jovem revolucionário do “socialismo científico” em um momento insólito a defender a liberdade econômica? Alarme falso; aficionados vão respirar aliviados se lerem esse discurso na íntegra onde Marx analisa os efeitos do livre-câmbio diante do que entendia sobre o trabalho como “mercadoria”, no estado atual da sociedade, diante da concorrência de produtores externos sem as barreiras tributárias a serviço dos produtores nacionais.

Marx conclui que o livre-câmbio nada mais é do que a “liberdade do capital” (p. 228) e que esse capital tornado livre não torna o operário “menos escravo que o capital humilhado pelas alfândegas”, pois tal “liberdade” não é de um indivíduo ao outro e sim “liberdade que o capital tem que esmagar o trabalhador” (p. 229). Ao criticar a liberdade comercial, Marx deixa bem claro que não tem a intenção de defender o sistema protecionista e no último parágrafo deixa uma pista da dialética que utilizou ao afirmar que “o sistema de liberdade comercial apressa a revolução social” e confessa que “é apenas no sentido revolucionário” que vota a favor do livre câmbio (p. 231); em outras palavras, acreditava que a livre concorrência nas transações comerciais via câmbio colocaria fogo no parquinho para ter sua sonhada revolução.

30/07/2023 14h30

Imagem: Famiglia Cristiana

Santa Caterina da Siena

“Non pare che si possa saziare: avendo uno beneficio, ne cerca due; avendone due, egli ne cerca tre: e così non si può saziare.”

Obra: Le Lettere di Santa Caterina da Siena. Libro Primo. II – A Prete Andrea de’ Vitroni. Edição online. ilpalio.siena.it. De Caterina di Jacopo di Benincasa (Italia/Siena, 1347-1380).

Desafiadora tarefa literária deste domingo: ler um texto de Santa Catarina de Siena, ícone da religiosidade ocidental do século XIV, sem me deixar levar pelo meu preconceituoso olhar parametrizado pelo tempo presente. Policiar-me-ei então dos mitos em torno do período medieval que me foram ensinados na faculdade, tais como o de “idade das trevas”, por exemplo ou que a Igreja era apenas uma entidade perversa e insaciável pelo poder, outra meia verdade que muitos docentes me “ensinaram” (e o perigo de uma meia verdade, a lembrar Millôr Fernandes, é quando se diz a metade que é mentira).

E eis que vejo o tema da insaciabilidade humana em um trecho de uma carta de Santa Catarina de Siena: “Não parece que se possa saciar; tendo um benefício, busca dois; tendo dois, busca três: e assim não se pode saciar”, dirigida ao clérigo Andrea de’ Vitroni.

A jovem “serva e escrava de Jesus Cristo” (assim se auto refere) deseja ver o destinatário “iluminado por uma luz verdadeira e perfeitíssima” para que reconheça a dignidade em que Deus o colocou. Sem a verdadeira e perfeitíssima luz, o sacerdote não poderá conhecer (aqui percebo o tema do conhecimento verdadeiro que vem pela revelação divina) e assim não conseguirá louvar a Suprema Bondade, não poderá reconhecer a piedade; sem essa luz, “ficará seca sua alma com ignorância e ingratidão”, adverte.

Catarina de Siena contrasta essa iluminação divina na cognição com a sua ausência quando afirma que “o que não se vê não se pode conhecer: não o conhecendo, não se ama; não amá-lo, não pode ser grato ou consciente de seu Criador”. Aqui penso no tema caríssimo (a católicos e protestantes) do esvaziamento de si mesmo para que as virtudes ocorram na vida através das ações do Espírito.

Em seguida fala sobre o “amor-próprio” como um problema que pode nos afastar da experiência com a luz tão graciosa e reveladora. Mas, qual seria o sentido desse “amor-próprio” a que se refere a jovem analfabeta que ditava textos com a sabedoria e o carisma de influenciar papas e reis? Aponta que se dá pela soberba “que surge o amor-próprio, e do amor-próprio, o orgulho; porque assim que o homem se ama com tal amor, assume de si mesmo ,e todos seus frutos geram a morte, tirando a vida da Graça na alma que os possui”. A “morte”, penso, seria uma vida afastada de Deus, entregue a um plano tão-somente material. E nesse culto de si mesmo o ser humano se “priva do autoconhecimento, do qual adquiriria a virtude da humildade”, eis a chave para aprender com Deus, que “planta o amor e o afeto na alma”, explica.

Na medida em que vai desprezando a luz divina e buscando as coisas por si mesmo, o ser humano, enquanto pautado pelo orgulho, passa a viver em função da ostentação, eis o sentido que vejo quando afirma o problema entre os que vivem “como um senhor, em status, em delícias com grandes adornos, com muitos pratos (aqui vejo um traço de uma crítica que faz ao que chamo hoje de consumismo), com orgulho inflado, presumindo de si mesmo”, questão que se liga ao problema da insaciabilidade do trecho que abre esta Leitura, e assim esse ser humano que se considera tão auto suficiente pelas suas atitudes e por seus pensamentos cada vez mais inclinados à auto celebração, distante da luz divina, não poderá ministrar o conhecimento que vem de Deus, penso que seria esse o sentido principal do alerta dado ao clérigo destinatário da carta.

29/07/2023 21h50

Imagem: L’Opinione della Libertà

Ayn Rand

“Gosto de me dar ao luxo de comentar apenas assuntos interessantes. Não considero a mim mesmo um deles.”

Obra: A Nascente. Volume I. Parte II. Ellswoth M. Toohey. 3. Arqueiro, 2013, São Paulo. Tradução de Andrea Holcberg e David Holcberg. De Ayn Rand (pseudônimo) adotado por Alisa Zinov’yevna Rozenbaum (Império Russo/ São Petersburgo, 1905-1982).

Não faz muito tempo fui convidado para apreciar uma explanação sobre “conservadorismo” e acabei como mais um ouvinte enfadado por um expert, com selo internacional, que falava mais sobre si mesmo do que qualquer outra coisa. Então, cheguei a, ironicamente, lembrar-me desta quase irresistível retórica de Ellswoth Monkton Toohey em A Nascente, romance em que Ayn Rand trabalha a sua filosofia objetivista em uma subliminar dialética, diria assim, com personagens.

O romance externa um estilo em Ayn Rand, penso, muito interessante para abordagem de ideias filosóficas, políticas e econômicas. O contexto histórico da obra, com produção inicial em 1935 e primeira publicação em 1943, é de um período em que desastres coletivistas ficaram mais evidentes, tais como o nazismo alemão, o fascismo italiano e o socialismo versão Stalin. Ao considerar as origens da autora se pode compreender melhor como o tema do coletivismo foi caríssimo em sua produção intelectual, por ter sentido na pele a tirania do regime soviético. O poder das massas, o espírito da multidão, é então trabalhado de forma muito sofisticada em um mundo alternativo metafórico que insere o individualismo triunfante. A obra tem um peso de inovação na complexidade de personagens mediante a filosofia da autora, o que me parece curioso como sintoma o fato de ter sido rejeitada por doze editoras. Tornar-se-ia um estrondoso caso de sucesso de vendas, com seis milhões de exemplares.

A autora utiliza, no caso de Toohey, um tipo que hoje poderia ser visto como “influenciador”. É um progressista, por tabela, coletivista, obviamente um doutrinador que opera no cargo de professor e crítico de artes. Sendo um escritor aclamado e requisitadíssimo como palestrante, em um mundo de mentes colonizadas passa a ser visto como “guia espiritual” (3), é o tipo carismático enquanto mestre do oportunismo de dissimular altruísmo e no saber aproveitar sentimentos da massa por causas nobres e dramas comuns para estabelecer um sistema de manipulação; faz do fascínio de si um ingrediente secreto para aprisionar mentes em torno de seus interesses de poder.

O tipo Toohey, em suma, tão comum em arraias progressistas, contrasta com o esforço intelectual da autora para trabalhar o objetivismo filosoficamente como busca da autenticidade do indivíduo na leitura da realidade mediante entronização da razão.

28/07/2023 21h56

Imagem: Brené Brown Site

Brené Brown

“A escassez, portanto, é o problema de nunca ser ou ter o bastante. Ela triunfa em uma sociedade onde todos estão hiperconscientes da falta.”

Obra: A coragem de ser imperfeito. Como aceitar a própria vulnerabilidade, vencer a vergonha e ousar ser quem você é. 1. Escassez: Por dentro da cultura de não ser bom o bastante. Sextante, 2016, Rio de Janeiro. De Casandra Brené Brown (EUA/Texas/San Antonio, 1965).

Em 1994 a primeira lição que tive como calouro de economia foi sobre a escassez e o problema da insaciabilidade. Eis o que me lembrou este capítulo da obra da professora Brené Brown.

A escassez, penso, é o principal objeto da economia como ciência (e não como política, onde é ignorada e se transforma em instrumento de manipulação). Em 1994, pensava a escassez de forma simplória, como objeto racional para a função de demanda e nada mais, uma parte do problema; não tinha o outro lado, dos aspectos comportamentais, algo que somente viria a ter significado quando comecei a ler Hayek em 2007.

A fronteira entre o que de fato é necessário e o que é tão-somente um desejo incontido, movido por insaciabilidade, tem uma linha tênue, muito difícil de ser identificada, mas não por isso devo menosprezá-la, caso contrário, serei algo de fácil manipulação de recursos midiáticos que servem ao consumismo, à mon avis, uma epidemia no tempo presente.

O que é o consumismo? O desejo de consumo não por fatores de necessidades elementares, mas por influência de outros elementos que envolvem busca por auto afirmação, ostentação, bem como aceitação em um grupo social, neste último ponto sempre lembro da história, contada por Ariano Suassuna, de uma mulher da alta sociedade que dividia a humanidade entre os que foram e os que não foram a Disney… Torno à obra de Brené Brown quando ela afirma que a avaliação sobre a escassez se torna “desoladora” quando se compara o que se tem ou o que se é com a visão de “perfeição inatingível propagada pela mídia” ou quando a comparação se dá por uma “visão ficcional” acerca do quanto alguém próximo já conquistou. Neste ponto, penso na pressão midiática exercida em indivíduos no sentido de fazer valer a crença de que o bem estar depende sempre de algo mais, nos apelos de publicidade, na necessidade interminável de se consumir, de mostrar poder de ter ou estar em determinadas situações de sucesso pessoal. O consumismo destrói vidas na medida em que remove as coisas que não podem ser compradas por um conceito de que a bem aventurança depende do quanto alguém pode adquirir ou ostentar. Assim, relacionamentos se esvaziam e o ser humano é transformado em mero objeto de caprichos, assim penso.

A escassez, pelo sentimento de falta, na visão da autora, “floresce em sociedades com tendência à vergonha e à humilhação e que estejam profundamente enraizadas na comparação e despedaçadas pela desmotivação”. É neste ambiente que a escassez encontra “terreno fértil”, aponta (pp 23-24).

A autora também insere o problema da nostalgia de um passado imaginado, quando se compara o momento com o “que nunca existiu de verdade”; penso aqui quando se super estimam memórias em pensamentos disfuncionais sobre a própria realidade; o que se tinha é super valorizado em relação ao que se possui no presente ou o saudosismo super dimensionado.

Torno então ao meu jovem eu de 1994, que via a escassez de forma tão simplista, e penso na questão sob o prisma da professora Brené Brown ao inserir as variáveis vergonha, comparação e desmotivação; penso que o sentido de superação para o problema assume um caráter de auto conhecimento para lidar melhor com as prioridades, avaliar com maturidade o que realmente é necessário e vencer a barreira do consumismo que induz à crença disfuncional de que “felicidade” depende de se mostrar ou de ser algo sempre em comparação com os outros considerados bem sucedidos. Por fim, torno à autora sobre o que define como “plenitude” (pp. 25-26) e penso no tema da “superação”, diante de uma sociedade que se pauta no poder de consumo, no vazio do ter como definição até mesmo do caráter de uma pessoa, e volto à busca da maturidade como fruto do que pontua a autora, do enfrentamento da incerteza, da exposição e dos riscos emocionais, para que se alcance a paz consigo mesmo ou, como afirma a professora, “sabendo que eu sou o bastante” (p. 26) o que, penso, sendo resultado dessa maturidade, se torna uma proteção contra a manipulação que o poder midiático tenta realizar a todo momento para induzir as pessoas ao consumo desnecessário e disfuncional como crença de “realização pessoal”.

27/07/2023 22h36

Imagem: Skoob

Simone de Beauvoir

“[…] no outono de 1929, partilhávamos a euforia da esquerda francesa. A paz parecia definitivamente assegurada. […]”

Obra: A Força da Idade. Primeira Parte. Capítulo I. Nova Fronteira, 2022, Rio de Janeiro. Tradução de Sérgio Milliet. De Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir (France/Paris, 1908-1986).

Tenho um particular interesse em saber o que intelectuais europeus pensavam pouco antes de estourar os horrores do fascismo e do nazismo na Europa.

O que me despertou maior atenção neste primeiro capítulo da obra foi que no outono europeu de 1929, Beauvoir, uma jovem vibrante de 21 anos, (como toda esquerdista sonhadora no desejo de transformar o mundo), à semelhança de outras visões ideológicas do mundo onde fazia antagonismo, tais como as de liberais e conservadores, não tinha percebido (ainda) o abismo para onde caminhava o ocidente europeu em termos políticos, apesar de reconhecer a expansão do Partido Nazista na Alemanha, pois definia o fato como “epifenômeno sem gravidade”. Ela estava animada com Gandhi na Índia e a “agitação comunista na Indochina”. A jovem Beauvoir testemunharia então o janeiro de 1933, a chegada de Hitler ao poder; em 1929 ela tinha a referência de Mussolini, na Itália, que já estava consolidado, mas isso parece que não lhe foi suficiente para sentir o caminho tenebroso naquele momento, entendo.

Uma das coisas que a atividade da leitura me ajudou é apreciar a produção intelectual de um pensador enquanto posso discordar de suas ideias. Na crença de que o homem deveria ser recriado e que tal empreitada a envolvia, Beauvoir olhou para o final da década de 1920 diante de uma crise econômica profunda e entendeu que o capitalismo não se manteria por muito tempo, junto com o colonialismo. A própria Beauvoir reconhece sua “cegueira política” naquele ano; confessa que ela e Sartre, penso, a formar um belo casal nada convencional que amava livros, (torno à autora) ignoravam “o peso da realidade” sob um deslumbramento com a visão que tinham sobre a liberdade.

Beauvoir e Sartre, detalhes do relacionamento desse casal são discorridos neste capítulo de forma que me prendeu à leitura pelo estilo sofisticado, inteligente, da escrita de Beauvoir.

26/07/2023 22h58

Imagem: BBC

Benito Mussolini

“[…] il fascismo è totalitario, e lo stato fascista, sintese e unità di ogni valore, interpreta, sviluppa e potenzia tutta la vita del popolo.”

Obra: Dottrina del Fascismo. Idee Fondamentali. VII. Blurb, 2021, eBook Kindle. De Benito Amilcare Andrea Mussolini (Italia/Predappio, 1883-1945) e Giovanni Gentille (Italia/Castelvetrano, 1875-1944).

O fascismo é “totalitário”, diz a doutrina dos pais da matéria, no sentido de que “tudo está no Estado e nada de humano existe, nada tem valor fora do Estado” (p. 7). O termo “totalitário” foi forjado na Itália, em contraste com a democracia, brutta parola à época, e tinha um sentido de que no Estado corporativo tudo tem que está alinhado, subordinado, controlado; o judiciário, a imprensa, as empresas, as entidades não governamentais, tudo sob a batuta do governo “fascistizado” ou seja, nas rédeas do supremo líder que não admite pensamento diverso. Assim, o liberalismo e a democracia são totalmente incompatíveis com a doutrina fascista raiz e o meio privado de produção, enquanto tolerado, só pode ser conservado em função de que seus detentores se sujeitem aos interesses do governante. O partido (fascista) aparelha e se torna, na prática, o Estado.

As ideias fundamentais do fascismo, na primeira parte desta obra, foram escritas pelo filósofo Giovanni Gentile (34/467), que foi ministro da educação na fase inicial do governo Mussolini, e fez uma reforma que na época foi considerada um avanço. A gestão Mussolini estava até então sob uma frente ampla no parlamento, inclusive suportada por liberais, que depois retiraram o apoio após perceberem que o fascismo mergulhava o país em uma ditadura. Liberais tinham adotado o pragmatismo de melhor apoiar o fascismo do que ver a Itália bolchevique, com medo do que ocorrera na Rússia, o que também iludiu a cúpula da Igreja Católica a começar do papa Pio XI que, após o deslumbre inicial, classificou o regime de Mussolini de “estadolatria”.

O fascismo original morreu com Mussolini e o que ficou, penso, carrega traços, sombras, reformulações, releituras em tons e intensidades diversas; em alguns casos ficou mais “soft”, quase imperceptível, camuflado em regimes democráticos, em outros casos assumiu formas explicitamente violentas, em uma linha totalitária análoga ao antigo, implacável com os que resistem, por completo adversa ao contraditório no plano democrático. O que atualmente mais se aproxima de um regime fascista original, à mon avis, ocorre na Coreia do Norte, na Venezuela, na Rússia e na China, este último de forma mais sofisticada, diria politicamente tolerada no Ocidente, certamente, em grande parte, por razões econômicas em função da adoção de métodos de economia de mercado que satisfazem grandes players do mercado financeiro global. Se os atuais governos da Venezuela e da Coréia do Norte, por exemplo, decidissem fazer o mesmo, ou seja, manter a ditadura na política e abrir a economia dando relativa margem de liberdade a investidores, a imprensa e os magnatas “esqueceriam” o regime em modo de partido único comunista que trucida quem ousa fazer oposição, enquanto os maiores líderes europeus iriam na mesma linha e até visitariam tais países como se fossem legítimas democracias onde são respeitados os direitos humanos.

25/07/2023 19h15

Imagem: Clarín

Max Weber

“Na atualidade, a relação entre o Estado e a violência é particularmente íntima.”

Obra: Ciência e Política. Duas Vocações. Capítulo II. A política como vocação. Martin Claret, 2003, São Paulo. Tradução de Jean Melville. De Maximilian Karl Emil Weber (Alemanha/Erfurt, 1864-1920).

Contexto desta afirmação se dá em um pós-Guerra, de uma conferência em janeiro de 1919 a estudantes em Munique. e penso, mais uma vez, que naquele mesmo ano nascia o fascismo em Milão.

Leitura primeira: 29/07/2005. Passados 18 anos, soa a uma Anatomia do Estado, antes de Murray Rothbard (1926-1995) e penso: Em algum momento essa íntima relação inexistiu?

Weber adverte os ouvintes que os decepcionará pelo que tem a dizer face ao problema da “vocação” relacionada à política, termo último que tem vários significados, no entanto o professor se restringe a “tão somente a direção do agrupamento político hoje denominado ‘Estado’ ou a influência que se exerce nesse sentido” (p. 59). O Estado, cujo peculiar meio, se dá por “uso da coação física”, e cita Trotsky para associar sua definição; “Todo Estado se fundamenta na força” (p. 60) e se houvesse apenas estruturas sociais sem uso da violência, desaparecia o conceito de Estado e restaria apenas a “anarquia”, contudo é a violência que funciona no agrupamento do Estado como instrumento específico, até chegar no trecho desta Leitura, para em seguida apontar o monopólio territorial como um dos elementos essenciais do Estado, que detêm a exclusividade como forma legal de uso da violência e quando se insere o significado do poder nessa estrutura, então, aponta que “assim como todos os agrupamentos políticos que o precederam no tempo, o Estado consiste em uma relação de dominação do homem pelo homem, com base no instrumento da violência legítima” (p. 61).

A partir da relação de violência legitimada mediante coação e monopólio, Weber desenvolve o tema da “vocação” neste interessantíssimo capítulo cujo autor parecia pressentir o que viria nas décadas seguintes como hipérbole do senso estatal: fascismo na Itália, nazismo na Alemanha e a consolidação do stalinismo na União Soviética.

24/07/2023 21h42

Imagem: post-italy

Dante Alighieri

“Per cui t’ha così distrutto questo Amore?”, ed io sorridendo li guardava, e nulla dicea loro.”

Obra: Vita nuova. IV. A cura di Michele Barbi (1941). De Dante Alighieri (Repubblica di Firenze/Firenze, 1265-1321).

Um texto dos tempos de Firenze (1291 e 1293), antes do exílio e da Divina Comédia.

O amor não realizado na vida do jovem Dante. “Muitos a chamavam de Beatriz” (II. [I]), afirma, neste ponto, um traço da dificuldade de se ter detalhes da musa tantas vezes citada em versos do maior poeta italiano, cuja personagem na Commedia tem clara referência e o final de Vida nova parece ensaiar um tom solene.

Beatriz apareceu a Dante aos nove anos (Nove fiate già appresso lo mio nascimento , II. [I]), com um vestido vermelho, afirma o poeta, sendo as únicas referências dadas pelo poeta sobre quem fora seu amor à primeira vista; teria sido filha do banqueiro Folco Portinari, da aristocracia de Florença, segundo informa Boccaccio (1313-1375). Platônico amor, marginal às tradições medievais de casamentos pactuados entre chefes das famílias, onde a razão fria de negócios familiares determinava os casamentos e assim as circunstâncias tornaram a jovem distante para Dante; Beatriz casou na idade comum à época (15/16 anos) e Dante também se casou enquanto seguia uma carreira política que terminou em tragédia. A morte da amada em 1290 e a crise com a derrota política de seu grupo, que culminou em sua pena de exílio, culpado por corrupção, deram o tom de terra arrasada na vida do “sumo poeta” que se tornaria latente mais adiante na obra prima de sua maturidade.

23/07/2023 13h40

Imagem: Sábado

João Pereira Coutinho

“O conservadorismo não existe. Existem conservadorismos, no plural, porque plurais foram as diferentes expressões da ideologia no tempo e no espaço.”

Obra: As idéias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários. Quattordici: um a introdução. Três Estrelas, 2014, São Paulo. De José João de Freitas Barbosa Pereira Coutinho (Portugal/Porto, 1976).

Texto sob o acordo ortográfico de 1990 (“idéias”).

Na primeira frase da obra, uma bela lição, seguida de uma sintética explicação. Quando o li foi em paralelo com o capítulo 10 de Democracia, um deus que falhou, de Hans-Hermann Hoppe (1949), e acabou como proveitosíssimo, bem como mais adiante a ter combinado com a obra Como ser um conservador, de Roger Scruton (1944-2020).

O que logo me despertou um agrado, com este trabalho de João Pereira Coutinho, foi o estilo textual de adotar citações em outras línguas entre argumentos, a começar pelo título introdutório. E eis que faz menção de, entre outros, por traços de conservadorismo, Peter Viereck (1916-2006), Anthony Quinton (1925-2010), Tomás de Aquino (1225-1274), Cícero (106 – 43 a.C.), Aristóteles (384 – 322 a.C.) e Edmund Burke (p. 10, 1729-1797), este último que estaria situado, explica, sensivelmente no meio de uma tradição que começa com Richard Hooker (1554-1600) e vai até Michael Oakeshott (1901-1990). Burke se associa a “emancipação” de ideias no contexto da reação ao que ocorria na revolucionária França de 1789. Também menciona Roger Scruton e John Kekes (1936), entre outros.

O mais importante nessa introdução, à mon avis, é o contraste que o autor pondera entre o conservadorismo britânico e alguns que não teriam a peculiar “higiênica distância” para “violentas condenações do pensamento revolucionário e utópico” (p. 14), o que poderia ajudar a explicar como o conservadorismo dessa linha consegue se relacionar melhor, penso aqui a sintetizar argumentos do autor, com um mundo encharcado de ideias progressistas em comparação com outras formas, umas um tanto estilo “brucutu” (“tá ok?”), no entanto, torno a Coutinho, lembra que até mesmo em camadas desse conservadorismo burkeano ocorreram manifestações que se afastaram da moderação e cita Margaret Thatcher (p. 16) como exemplo.

22/07/2023 15h04

Imagem: Ex-isto

Gilles Deleuze

“São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedade disciplinares. ‘Controle’ é o nome que Borroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo.”

Obra: Conversações. V. Política. Post-scriptum sobre as sociedade de controle. Editora 34, 1992, São Paulo. Tradução de Peter Pál Pelbart. De Gilles Deleuze (France/Paris, 1925-1995).

Parece que o Olavo não gostava muito dele, então sigo meu espírito dialético e vou deixá-los juntinhos…

Texto de maio de 1990 em L’Autre Journal, no. 1.

Nas modernas sociedades de controle, a (mentalidade de) empresa substitui a indústria, com “a rivalidade inexpiável como sã emulação” que atinge os indivíduos e atravessa cada um o dividindo em si mesmo. Na sociedade da disciplina havia o recomeço, porém na de controle “nunca se termina nada” (p. 221). O homem da disciplina produzia energia descontinua, o da sociedade de controle é ondulatório, penso, frenético, bem mais inquieto, impulsivo. O capitalismo na sociedade da disciplina seguia um roteiro da matéria-prima a produção de acabados, tinha uma lógica da fábrica a se pautar pela demanda, penso, com papéis mais determinados, no entanto o capitalismo da sociedade de controle não se regra a roteiro a não ser pela “sobre-produção”, indica (p. 224), e neste aspecto penso, para o consumismo, termo não usado pelo autor. Seria uma sociedade, entendo, onde o consumidor se torna alvo de uma alienação contínua quanto ao entendimento de suas reais necessidades a criar demanda por manipulação.

O marketing, à mon avis, na sociedade de controle, passa a ser um importantíssimo instrumento de produção de conteúdo para imbecis para que essa manipulação por alavancagem de demanda prospere (busco sintetizar argumentos do autor em uma linguagem econômica); eis o que penso quando o autor pontua que o homem confinado da sociedade da disciplinada dá lugar ao cidadão endividado. Nessa suposta nova ordem social, a considerar um texto de 1990 mais dois problemas aponta o filósofo: a dissipação das fronteiras e a explosão de guetos e favelas (p. 224). Também menciona o controle associado a “máquinas de informática e computadores” pelo perigo passivo da “interferência”, e ativo pela “pirataria” e os “vírus” (p. 223), em uma época em que não havia o microcomputador tão popularizado na Europa e a internet (como a conhecemos). Quando li esta abordagem de Deleuze, pensei hoje, quando se passaram 33 anos e as redes sociais se consolidaram como mecanismos alienantes e de controles sociais, de policiamento, inclusive do (cada vez mais incisivo) estatal (que se retroalimenta dos problemas em torno da liberdade de expressão) e vejo formas sofisticadas de controles entre os influenciadores (principalmente quando se pautam pelos sentimentos do politicamente correto entre seus influenciados e uma espécie de “eterno retorno social”) e dos seguidores, tão somente os consumidores de conteúdo que são idiotizados, colonizados em termos intelectuais. Influenciadores e influenciados estão sujeitos a uma ordem de políticos progressistas e neocons (cada um em seus currais) além de bilionários que portam economicamente as redes sob motivos para estarem alinhados com os que controlam os estados modernos (e muitos estão camuflados nos mercados financeiros), pautados por formas subliminares de controles sociais e outras diversas ferramentas de intervencionismo.

“Estamos no início de alguma coisa”, aponta (p. 225). Deleuze adverte no final que nessa sociedade de controle, jovens pedem estranhamente para serem “motivados” e assim se dá o conceito de “formação permanente” que afeta a escola pela mentalidade empresarial, penso aqui na incessante demanda por atualizações, contudo, “cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir”, afirma (p. 226).

21/07/2023 22h52

Imagem: flickr oficial

Olavo de Carvalho

“O conceito gramsciano de intelectual funda-se exclusivamente na sociologia das profissões e, por isso, é bem elástico.”

Obra: A Nova Era e a Revolução Cultural. II Sto. Antonio Gramsci e a Salvação do Brasil. Vide Editorial, 4a. edição, 2014. De Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (Brasil/São Paulo/Campinas, 1947-2022).

Quando tomei esta aula de Olavo de Carvalho, algum tempo depois fui a eventos dedicados a contadores e pude ver como a “ocupação”, interpretada pelo filósofo brasileiro sobre o termo no filósofo italiano, opera sob o “elástico” conceito dada a intelectual.

O adestramento à subserviência ao Big Brother Fiscal, a confusão do moral com o legalismo coercitivo estatal, a visão anticapitalista que amaldiçoa empresários que enriquecem, a criminalização de quem sonega impostos para tentar sobreviver no manicômio tributário, tudo isso e muito mais dão o tom para um público infantilizado que não consegue pensar o país além do curral tributário, intoxicado por influenciadores mequetrefes que são avatares das linhas auxiliares de um corporativismo consagrado na psicologia coletiva.

Na interpretação da ocupação gramsciana dada por Olavo de Carvalho, são intelectuais no sentido elástico “os contadores, os meirinhos, os funcionários dos correios, os locutores esportivos e o pessoal do show business”, com lugar reservado como instrumentos da difusão da ideologia de classe, a única tarefa que existe, em uma luta pela hegemonia que rompe a barreira do confronto das ideologias e chega até o “senso comum”, do simples mortal que segue no cotidiano de frases feitas, clichês, “gestos automáticos”, que não “apreende” a realidade, “mas opera nela ao mesmo tempo uma filtragem e uma montagem , segundo padrões que, herdados de culturas ancestrais, permanecem ocultos e inconscientes” (pp. 59-60).

A exploração do fundo inconsciente, dos sentimentos canalizados em desejos comuns direcionados a um propósitos ocultos que colonizam mentes se traduziu em contadores que defendem violações de privacidade, controles sociais cada vez mais meticulosos, que se juntam ao aparato do fisco para aterrorizar empresários e não conseguem perceber que estão a degenerar a própria profissão enquanto servem a interesses que passam camuflados pela bestialidade.

20/07/2023 22h10

Imagem: Casa Fernando Pessoa

Fernando Pessoa

“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: Navegar é preciso, viver não é preciso.

Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar.

Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade: ainda que para isso tenha de a perder como minha.

Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tornou o misticismo da nossa Raça.”

Obra: Mensagem. Palavras de pórtico [3]. Martin Claret, 2005, São Paulo. De Fernando António Nogueira Pessoa (Portugal/Lisboa, 1888-1935).

3. Nota do editor: Nota solta, e não assinada, foi publicada, pela primeira vez, na primeira edição deste volume (Rio de Janeiro, GB, 23.03.1960).

Passos heterônimos – por pastor Abdoral

Na rua dos Sapateiros, no Café A Brasileira, na Praça do Comércio, na Bertrand do Chiado, no Terreiro do Paço, azulejos e trilhos, subidas, descidas, um fado, no último dezembro a caminhar por Lisboa fechava os olhos, porque sentia melhor assim cantos pode onde passou um espírito literário desbravador que me impulsiona ao sublime silêncio da leitura, como se estivesse em cada esquina a alma multifacetada de seus heterônimos a dialogar com minha vontade de potência a experimentar mais um eterno retorno, como se cada lugar ele ainda ali estivesse a esperar por um poema ecoado de suas obras.

Caminhava com Pessoa por seus versos amalgamados em cada passo, onde o tangível se revela na leveza de uma força irresistível de um ser que foi pleno, e que não precisou estar no centro das atenções, pois o que estava a construir no além do viver se bastou por um fogo que se eternizou na sua própria finitude.

19/07/2023 23h04

Imagem: Terra Bellum

Aristóteles

§ 7. É notório, por fim, que a tirania reúne, aos vícios da democracia, os da oligarquia. […]”

Obra: Política. Livro Oitavo. Capítulo VIII. Martin Claret, 2003, São Paulo. Tradução de Torrieri Guimarães. Aristóteles, filho de Nicômaco de Estagira (Grécia antiga/Estagira/Calcídica, 384 a. C. – 322 a. C).

Da oligarquia a tirania traz a riqueza, onde o tirano assegura a fidelidade dos “satélites” (diria, dos privilegiados), onde se alimentam as desconfianças com o povo e procuram “tirar-lhe as armas” (p. 255); desarmar o povo seria então coisa oligarca que instrumentalizou a democracia.

Da democracia a tirania reúne o combate incessante aos ricos ; o eis o melhor caminho para o socialismo na degeneração pela instrumentalização do democrático, penso, de maneira que os prejudique de todas as formas ocultas ou patentes os condenando ao exílio como inimigos do poder, enquanto perseguidos tramam conspirações (pp 255-256).

Aristóteles identificou quatro tipos de governo democrático (ouvi algumas explanações com cinco, o que variou pela interpretação). A base da igualdade entre cidadãos ricos e pobres é relativa, com exceção do último, onde o estado democrático assume forma radical. No primeiro tipo a ênfase é econômica, entendo, pois a magistratura é formada em função dos que pagam mais tributos, o que se aproxima de uma oligarquia. No segundo a magistratura se compõe por cidadãos que não dependem economicamente da ocupação pública e atuam em função da honra. O terceiro seria a magistratura acessível a todos os cidadãos. O quarto tipo dispõe acesso a todos na magistratura, mas substitui a soberania da lei, fator preponderante nos anteriores, pela supremacia do povo, o que me faz pensar, por analogia, nos conselhos populares em modelos socialistas da atualidade.

18/07/2023 22h52

Imagem: RAI Cultura

Indro Montanelli

Imagem: Il Giornale

Mario Cervi

“Due mesi erano trascorsi dall’assassinio di Lima: dopo altri due, il 19 luglio un’autobomba collocata a Palermo in via Mariano d’Amelio esplose uccidendo il giudice Paolo Borsellino, che di Falcone era considerato l’erede spirituale, e in qualche mod o anche l’erede operativo, e cinque uomini di scorta.”

Obra: Storia d’Italia. Vol XI. 1965-1993. L’Italia degli Anni di Fango (1978-1993). Capitolo Sedicesimo Veleni e Tritolo a Palermo. Edizione per Oggi, 2006, Milano. De Indro Montanelli (Italia/Fuccechio, 1909-2001) e Mario Cervi (Italia/Crema, 1921-2015).

Em alusão ao subtítulo, “os anos de lama” da Itália com a máfia.

Foi a marca da máfia neste período “golpear os homens que com maior fervor, inteligência e coragem que a tinham combatido”, apontam os dois ícones do jornalismo italiano (p. 472) nesta obra que considero importantíssima quando penso em me integrar à sociedade italiana.

O magistrado Paolo Borsellino, siciliano de nascença, assim penso bem conhecedor do terreno minado onde estava a trilhar, tornara-se um dos símbolos da luta que se travava entre a justiça e a máfia em uma guerra declarada que a Cosa Nostra tinha deflagrado, em meio a uma crise de credibilidade de instituições do Estado mediante uma estrutura mafiosa em uma “vasta rede de conivências” (p. 473).

O juiz Borsellino foi visitar a mãe no dia 19 de julho de 1992, o que estava sob sigilo mas, afirmam os autores. “o Palácio da Justiça em Palermo foi (esperamos que não seja mais) o Palácio dos venenos: lotado de corvos, espiões, cúmplices da máfia disfarçados de seus intrépidos adversários”. E assim Borsellino foi morto por uma explosão na rua da residência materna, fato que chocou o país e se tornou um marco todo ano lembrado. O terrorismo da máfia se deu quando tinham se passado dois meses das mortes do juiz Giovanni Falcone, que também vitimou a esposa e três agentes, também por explosivos (1000 kg de TNT) colocados em um canal de escoamento no asfalto.

17/07/2023 00h02

Imagem: Mises Brasil

Ludwig von Mises

“Os anticomunistas – os conservadores ingleses e a “direita” francesa – viam em Hitler o Siegfried que haveria de destruir o dragão comunista. Consequentemente, tinham uma certa simpatia pelo nazismo. Diziam tratar-se de uma mentira propalada pelos judeus a afirmativa de que Hitler estava planejando aniquilar a França e o Império Britânico e que pretendia dominar completamente a Europa.”

Obra: Intervencionismo, uma Análise Econômica. Capítulo 6 – Economia de Guerra. 3 A Economia de Mercado e a Defesa Nacional. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, São Paulo. Tradução de Donald Stewart Jr. De Ludwig Heinrich Edler von Mises (Áustria-Hungria/Leópolis, 1881-1973).

Obra escrita durante a Segunda Guerra, 1940 (p. 7).

Aponta Mises que antes da eclosão do segundo conflito mundial, a Europa estava dividida entre partidos anticomunistas e antifascistas (p. 96). Os antifascistas na Inglaterra tentavam a simpatia de Stalin, por outro lado, anticomunistas buscavam a do nazismo. Enquanto Hitler estruturava as forças armadas alemãs, pressões internas na Inglaterra e na França associavam investimentos em defesa militar ao fascismo, e ainda havia a disseminação da crença anticapitalista de que “a indústria de armamento foi a grande responsável pelo ressurgimento do espírito bélico” (pp. 96-97), fatores que teriam surtido efeito com o despreparo de ingleses e franceses quando iniciou a guerra, e mesmo quando estourou o confronto, “autoridades francesas ainda consideravam que seria mais importante impedir a existência de
lucros decorrentes da guerra do que ganhar a guerra”, sendo o mesmo pensamento ocorrido na Inglaterra (p. 97).

Além da exploração da crença de que nada é pior do que o comunismo, Hitler deve ter tomado também enorme proveito da situação de narrativas anticapitalistas em torno dos lucros da indústria privada bélica, descrita por Mises. O sábio austríaco defende que diante de uma agressão externa a uma nação pacífica, deve se buscar as melhores armas para equipar os soldados, onde a aquisição só é possível quando a economia de mercado não está obstruída e os produtores de armas realizam grandes lucros e encerra assim o parágrafo:

“Só a inveja e o ressentimento irracional podem levar as pessoas a condenar o lucro dos empresários cuja eficiência possibilitou a vitória na guerra” (p. 98).

Sobre o apoio de liberais a movimentos de extrema direita, por força do comunismo, visto como pior, ainda em nossos dias, penso como um dilema no tablado da política que lembra até o “eterno retorno” de Nietzsche.

16/07/2023 14h34

Imagem: DW

Theodor Adorno

“Would it not be possible to construct a scale that would approach more directly these deeper, often unconscious forces?”

Obra: The Authoritarian Personality. Chapter III. THE MEASUREMENT OF IMPLICIT ANTIDEMOCRATIC TRENDS. A. Introduction. THE AMERICAN JEWISH COMMITTEE. SOCIAL STUDIES SERIES: PUBLICATION NO. III. Edited by Max Horkheimer and Samel H. Flowerman. Form 78 (January to May, 1945). De Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno (Alemanha/Frankfurt am Main 1903-1969), Else Frenkel-Brunsvwik (Ucrânia, Lviv, 1908-1958), Daniel J. Levinson (EUA/Nova York/Nova Iorque, 1920-1994) e Nevitt Sanford (EUA/Virgínia/Chatham, 1909-1996).

Obra de quatro autores onde Adorno é mais citado e assim fora nos tempos ingênuos de graduação.

As primeiras definições sobre “fascismo” que recebi foram baseadas na interpretação atribuída a Adorno, onde muita coisa de desenvolveu a partir da modelagem para identificação de traços autoritários na famosa “Escala F”, publicada nesta obra (pp 224-242).

A partir de 2007 passei a ter contato com interpretações da Escola Austríaca de Economia, mas não me dei por satisfeito. Quando li o Fascismo Eterno, de Umberto Eco, ainda em português, parte de meu interesse pela língua italiana foi impulsionado na necessidade de leituras de textos importantíssimos como Sur Fascismo, de Antonio Gramsci (época em que atuou como deputado e debatia com Mussolini na mesma condição) e Dottrina del Fascismo, de Benito Mussolini e Giovanni Gentille, ambas em italiano.

Uma coisa é o entendimento sobre fascismo a partir da Escola de Frankfurt, onde Adorno foi o maior expoente, outra coisa é a interpretação dos austríacos, outra se dá na leitura de pensadores italianos como Gramsci, à época prisioneiro político e Umberto Eco, que também viveu a experiência sob outra perspectiva, e outra coisa é ler o próprio Mussolini. Todas as leituras são importantes para formar um rico leque sobre um tema tão complexo. Neste aspecto, penso ser prejudicial definir “fascismo” somente a partir do que desenvolveram os pensadores da Escola de Frankfurt , sem um mergulho em textos raízes de um fenômeno, cuja melhor compreensão, à mon avis, passa também pelo entendimento do contexto do marxismo como elemento influenciador no que tange às ideias (em releitura) do planejamento central, do partido aparelhador e condutor do Estado, do culto à personalidade do líder e do ponto central da obra desta Leitura: o autoritarismo.

Sobre a “Escala F”, é interessante para auxiliar na identificação de determinados indivíduos com traços autoritários, sobretudo na explicação da sedução que ocorre com movimentos que podem ser chamados de “neofascistas” ou de extrema direita. Ajuda a compreender melhor como se conduz um fanático em crenças que são canalizadas por movimentos políticos. É algo muito mais envolvente que uma mera identificação partidária; na obra se consideram fatores psicológicos que passam por valores que operam no inconsciente, quando, por exemplo, alguém defende ideias autoritárias sem perceber o forte elemento violador des liberdades e muitas vezes as associa com “virtudes”, “boas intenções”, onde se notam as manifestações alienantes em prol de “coerção do bem” e controles sociais.

Já o fascismo original, penso, deve ser colocado em análise própria, separada. Foi uma colcha de retalhos de um socialismo frustrado com a ortodoxia marxista, envolto a pinceladas de um saudosismo do corporativismo romano imperial, onde a tolerância a propriedade privada está fortemente arraigada a uma total dependência do aparato estatal. Foi um movimento que conquistou a massa por sentimentos coletivistas em torno do medo, sobretudo do comunismo, para evoluir no seu caminho natural de autoritarismo (inclusive como afirmação de orgulho), cujo combustível da tirania se esgotou na medida em que seus danos profundos passaram a ser mais evidentes e que em seguida agonizou com seu maior líder, Mussolini, na Repubblica di Saló, vindo a ser fuzilado em Dongo. O fascismo à Mussolini morreu junto com seu idealizador e foi exposto na piazalle Loreto em Milano. O que sucedeu pode até ser chamado de “neofascismo”, contudo, penso, é uma matriz que difere sobretudo na vestimenta bem mais discreta e na subliminar forma pela qual se conserva no mundo da política.

15/07/2023 15h04

Imagem: La Brochure 

Albert Mathiez

“Les fusillades et les miitraillades suppléent Ia guillotine jugée trop lente. Le 14 frimaire (4 décembre), 60 jeunes gens condainnés sont esposés au canon dans Ia plaine des Brotteaux.”

Obra: La Revolution Française. Tome III. La Justice Révolutionaire. Libraire Armand Colin, 1927, Paris. De Albert Mathiez (France/La Bruyère, 1873-1932).

Mathiez foi marxista e tem uma interpretação baseada no conflito de classes sobre a Revolução Francesa nesta obra que considero de grande importância. Acredito que é possível aprender bastante com quem tem visões distintas em termos de viés ideológico. Na obra, que é fluvial, Mathiez deixa os fatos falarem.

Arrogando-se sob espírito “republicano”, firmados na legitimação democrática da maioria na Assembleia, os que comandavam a revolução foram se aprofundando em um radicalismo que lembra a advertência de Aristóteles sobre a tão idolatrada forma de governo ser um caminho para a tirania , e assim, a fim de erradicar tudo o que estivesse ligado à velha ordem, sob pretensões de fazer uma ruptura com diversos elementos da cultura ocidental monárquica e cristã, o viés predominante na Assembleia fez do terror um regime de Estado.

O autor cita como época de “grande terror”, as prisões em massa, onde apenas em processos entre junho e julho de 1793 (cita os meses de nomes alterados pelos revolucionários), o tribunal da Revolução sentenciou 1.285 à morte a absolveu 287. Em outro período imediatamente posterior, de 45 dias, foram mais 577 executados e 182 absolvidos (p. 208).

A guilhotina surgiu como uma “inovação” da mentalidade revolucionária , um instrumento de execução “científica” com morte rápida e indolor na perspectiva que soava como um melhor tratamento ao sentenciado, normalmente um prisioneiro político, que poderia ser um deputado, um membro do clero, um especulador, um empresário no entanto, para o regime infame que se instalou na França, a enorme quantidade de condenados fez do artefato sob lâmina um problema.

Aos olhos da comissão revolucionária, o braço operacional do sistema de “justiça” a serviço do Tribunal Revolucionário, mediante o volume de condenados que aumentava, em meio a disputas políticas, para executar as penas capitais, a necessidade de matar em escala tornava o fuzilamento como substituto da (novidade) guilhotina, considerada rápida para o apenado e muito lenta em termos quantitativos, e eis que o historiador francês conta um caso onde 60 jovens morreram por tiros de canhão (p. 87) em 4 de dezembro (1793). Assim se deram muitos fuzilamentos onde me chamou a atenção um caso de 1.667 condenados (p. 87); um banho de sangue sob balas para preservar a revolução como produto do “progresso” da humanidade.

14/07/2023 22h20

Imagem: Diário de Pernambuco

Moniz Bandeira

“Em sua primeira mensagem ao Congresso, Goulart revelou que a elevação geral de preços, registrada em 1961, fora de 45%, a maior do decênio em virtude de emissões destinadas a atender as crescentes necessidades de crédito das empresas privadas e à cobertura do déficit do Tesouro Nacional.”

Obra: O governo João Goulart 1961-1964. As lutas sociais no Brasil. III – Goulart e o parlamentarismo. Fatores da inflação. Início da conspirata. A questão da Hanna e a política externa independente. O caso da ITT. Civilização Brasileira, 1983, Rio de Janeiro. De Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira (Brasil/Bahia/Salvador, 1935-2017).

Nesta leitura de setembro de 1996, ao revisitá-la penso como é curioso ver um político considerado de “esquerda”, que fora o último presidente antes do golpe de 1964, ter uma leitura sobre “inflação” bem próxima do conceito técnico de expansão monetária e distante da desonestidade intelectual que culpa ou induz carga de responsabilidade sobre agentes econômicos por um fenômeno provocado pelo governo, algo que pode ser verificado em argumentos de políticos de esquerda da atualidade, e até mesmo entre aqueles considerados de direita.

Seguindo o trecho, a gestão anterior, do primeiro-ministro Tancredo Neves, não conseguiu conter a inflação, o que impulsionou conflitos sociais e inquietação política (p. 45). Neste ponto, mais uma vez, penso no contraste com políticos de esquerda da atualidade que aparentam subestimar a inflação, quando este problema forçado provocado pelo governo é um dos mais crônicos e cruéis por penalizar severamente os mais pobres. Contudo, o contexto da crise política no pós renúncia de Jânio Quadros (25 de agosto de 1961) é de um cenário de contas estatais em grandes dificuldades com o problema inflacionário e de um vice que assume a presidência e, segundo o autor, está envolto a “forças de direita derrotadas na tentativa de golpe de Estado” (p. 45, neste ponto entendo que se refere a articulações para minar até mesmo o regime parlamentarista, que travou Goulart na presidência, como “solução” adotada até o plebiscito de 1963), mediante suposta promoção de um cenário econômico de caos para tomar proveito político, certamente no sentido de justificar uma intervenção que, indica o autor, de “tendência conservadora das forças dominantes no Congresso” (p. 46), o que de fato ocorreria três anos depois, não apenas pela crise econômica, mas, penso, sobretudo, pela narrativa ds “ameaça comunista”.

13/07/2023 20h34

Imagem: Jacobin Brasil

Edmund Burke

“Se bem me recordo, Aristóteles observava que a democracia apresenta, em muitos aspectos, uma grande semelhança com a tirania”.

Obra: Reflexões sobre a Revolução em França. A Religião e a Sociedade Civil. O Confisco dos Bens Eclesiásticos e a Destruição das Ordens Religiosas. Sobre a Democracia e se Ela Convêm a um Grande País. Seus Efeitos sobre a Liberdade dos Cidadãos. Editora Universidade de Brasília, 1982, Brasília. Tradução de Renato de Assumpção Faria, Denis Fontes de Souza Pinto e Carmem Lidia Richter Ribeiro Moura. De Edmund Burke (Irlanda/Dublin, 1929-1797).

Sobre Aristóteles, Edmund Burke faz referência em nota (p. 140) a Política, Livro IV, Capítulo IV.

Obra escrita em 1790, antes do banho de sangue nos fuzilamentos de inimigos da Revolução. A guilhotina seria adotada dois anos depois.

Sobre o trecho, argumenta que na democracia a maioria é capaz de exercer tirania sobre a minoria (p. 139) e que essa dominação, a se estender sobre um número maior de indivíduos, “será conduzida com muito mais severidade do que, de modo geral, poderia ser esperado da dominação de uma coroa” (p. 140). Quando li essa parte das reflexões de Burke sobre a Revolução Francesa pela primeira vez, há 28 anos, não havia o menor sentido, algo típico de um rapaz universitário bem adestrado em ideias progressistas, o que hoje percebo com humor quando me deparo com certas anotações à época. O máximo que ouvia de docentes sobre Burke se limitava a breves citações de suas obras e comentários que não raramente rompiam uma tênue linha divisória entre explicar o que um pensador produziu e a (irrelevante) opinião de um militante no cargo de professor.

Burke cita Boligbroke (1678-1751), o qual considera, como escritor, “superficial e pretensioso”, porém reconhece que o político, de uma geração anterior à sua, “tem toda razão” quanto à preferência pela monarquia porque nela é mais fácil imprimir aspectos republicanos do que “qualquer coisa monárquica em formas republicanas” (p. 140).

Do século XVIII ao presente, a democracia se espalhou como marca da predominância progressista e em seu nome muitas liberdades entraram em discussão, quando não em privação, sobretudo em termos de expressão em meio a dilemas sobre censura e a responsabilidade (coisa legítima, extremamente importante) na sua manifestação.

12/07/2023 22h58

Imagem: Literary Hub

Milan Kundera

“Se a Revolução Francesa devesse se repetir eternamente, a historiografia francesa se mostraria menos orgulhosa de Robespierre.”

Obra: A Insustentável Leveza do Ser. Primeira Parte: A leveza e o peso. Companhia das Letras, 2019, São Paulo. Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. De Milan Kundera (República Tcheca/Brun, 1929-2023).

Faleceu ontem em Paris. Milan Kundera está na lista dos 10 romancistas mais importantes em minha vida de leitor, por ser extraordinário na construção de romance com reflexões filosóficas.

A abertura deste romance vem com uma abordagem sobre o eterno retorno, de Nietzsche, que me deixou fascinado pela inteligência de Kundera, cujo exemplo da citação ilustra uma das melhores aulas de filosofia que tive. Sem o eterno retorno, meu olhar para o passado é seco ou, no que cita, “morto”, uma ‘sombra”, ‘sem sentido” (p. 9). Penso também que apesar de ter a imaginação do quanto algo possa ter sido traumático, em uma perspectiva, se posso ler e estudar bastante sobre os campos de concentração nazistas e pensar o quanto devem ter sido terríveis, o vazio de minha compreensão se evidencia quando imagino se pudesse viver repetidas vezes a trágica experiência.

O eterno retorno, penso, é um sinal da pobreza de minha capacidade de compreensão ao mesmo tempo em que, olhando para outra perspectiva, tonando a possibilidade de reviver cada segundo de certas situações, entre erros, acertos, dissabores e prazeres, alegrias e tristezas, nessa complexa teia de intuições, sentimentos e razões disso ou daquilo, coisas intempestivas, bobagens de feitos, em suma, seria mesmo um fardo psicológico imensurável, sobretudo se decidisse rever escolhas, neste ponto penso em relação a forma como Kundera interpreta esse intrigante conceito de Nietzsche (p. 10), enquanto também seria, sem dúvida, como aponta o autor, que este fardo seria uma aproximação de minha vida com a terra; ficaria mais real e verdadeira.

11/07/2023 22h40

Imagem: Tribuna Alentejo

Florbela Espanca

“A rapariga entrou na cozinha, donde voltou, passados instantes, com um grande púcaro de barro cheio de água fresca e, enquanto o pai bebia, sôfrego, a água límpida, ficou-se a olhar para ele, interdita e inquieta.

– Mas vossemecê não foi às Chãs?… – perguntou-lhe a medo.

– Não – disse o velho numa voz mais doce. – Não tive ânimos. Faltou-me a coragem. Ainda cheguei ao Caminho Velho. Depois, assim que de lá avistei a casa, voltei para trás. Quem quiser que lho diga!”

Obra: O Regresso do Filho. Domínio público. PopStories, 2022, Rio de Janeiro. De Flor Bela Lobo (Reino de Portugal/Alentejo/Vila Viçosa, 1894-1930).

Dos contos da grande poetisa portuguesa, contemporânea de Fernando Pessoa.

Quando a experiência de leitura proporciona um encontro com raízes da madre língua… E ao visitar Portugal, um dos prazeres que tenho é simplesmente ouvir. Então leio o feminino de rapaz que vem do fundo do baú, dos idos do século XIII, e que se tornou pejorativo no Brasil, muitas vezes requisitado em anedotas, bem como fico “a apreciar” (e não “apreciando”) o “donde”, pois me lembrei de um professor bem “das antigas” e dos colegas de sala que riam quando falava assim; achavam-no “antiquado”. Passo à mais conhecida tradição da aversão ao gerúndio em “ficou-se a olhar” (e não “ficou olhando”), e como notei que lá na terra de Camões ainda é levada a sério, apesar do sucesso das novelas tupiniquins.

A língua é um organismo vivo social, e se o seu uso ao longo do tempo fosse como o passar de gerações de uma grande família, “vossemercê”, penso, seria filho de “Vossa Mercê“, pai de “vosmecê” e de “vosmicê”, irmãozinhos dos mais simples, gente da melhor qualidade, da roça, assim como seria avô de “você”, que deu cria ao “vc”, um menino travesso, apressado, do mundo digital.

Por fim, penso nos pronomes “lhe” e “o” combinados a gerar o raro “lho” na atualidade seca e sem graça de textos somente para vender, coisa comercial a um público massa e não para fazer arte, pelo menos no português à brasileira.

10/07/2023 00h14

Imagem: DW

Nietzsche

“[…] É verdade que o talento de Sócrates, talento eminentemente dialético se inclinou num principio para a razão. Também é verdade que durante toda sua vida riu da inépcia e da incapacidade dos nobres atenienses, homens instintivos como todos os aristocratas, que nunca podiam encontrar o motivo de suas ações. […]”

Obra: Além do Bem e do Mal ou Prelúdio de uma Filosofia do Futuro. Quinta Parte – Pela História Natural da Moral. 191. Hemus, 2001,Curitiba. Tradução de Márcio Pugliesi. De Friedrich Wilhelm Nietzsche (Reino da Prússia/Röcken, 1844-1900).

Memórias de um seminarista na biblioteca em 2005.

Neste ponto (191), o subversivo filósofo que aprendi a apreciar, pesadelo dos “homens sérios” niilistas segundo sua releitura, diria uns sujeitos com algumas dificuldades com a natureza mãe da vida, plenos de receitas para salvar o homem e que gostam de jogar a própria sujeira moral para debaixo do tapete enquanto caminham com suas muletas metafísicas, cujo tipo fundamentalista é a melhor ilustração, aborda o problema teológico da “fé” e da “ciência” (p. 104). Volta-se a Sócrates, que desde ontem está em minhas revisitações literárias, e então faz um paralelo de fé e ciência, com instinto e razão em Sócrates, e aponta que o filósofo grego abordou o problema “muito tempo antes que o cristianismo dividisse os espíritos”. Neste ponto, faz-me pensar o que percebi em suas provocações de ver o cristianismo, assim interpreto, como uma espécie de “doença que degenera o pensar” a definhar definhar a inteligência, e no paralelo que traça em Sócrates me pareceu muito peculiar à sua crítica à mentalidade religiosa que tanto provocou. E prossegue o prussiano marrento a afirmar que Sócrates, não somente riu dos nobres atenienses, mas também de si mesmo em relação à mesma torpeza e à mesma impotência.

Não renunciar aos instintos foi o grande problema de Sócrates, segundo Nietzsche, que assim o define como “grande e misterioso irônico” que “reduziu sua consciência a contentar-se com uma espécie de engano voluntário” (p. 105). Se Sócrates foi um conformista em relação aos próprios enganos, Platão, seu mais notável discípulo, teria tentado persuadir a si mesmo, quando entendeu que razão e instinto se destinam a um mesmo fim: “Deus”, “bem”, o que me lembra da curiosa a definição que faz no prefácio (de 1885) sobre o cristianismo ser um “platonismo para o povo” (p. 9). Tornando ao bloco, Nietzsche cita Descartes como exceção, enquanto “superficial” ao dar à razão (a vê como instrumento) o monopólio da autoridade.

Nietzsche vê “instinto” e “razão” como integrantes da “vontade de potência” para liberdade de ação à sua ao potencial humano na natureza; sua filosofia expurga tudo o que for abstrato ou metafísico para determinar juízos, para que o humano sonde suas potencialidades, em vez de se submeter intelectualmente à sua interpretação do niilismo, onde destroça a fé pela forma de controle e determinação de valores que minam a vontade de potência.

09/07/2023 14h06

Imagem: ex-isto

Sócrates

“[…] eu, como não sei nada, também estou certo de não saber. Parece pois, que seu seja mais sábio do que ele, nisso – ainda que seja pouca coisa: não acredito saber aquilo que não sei.”

Obra: Apologia de Sócrates. Primeira parte. VI. Martin Claret, 2003, São Paulo. Tradução de Jean Melville. Evocada pelo discípulo Platão (Atenas, 428/427 – 348/347 a.C).

No contexto, sobre “eu, como não sei nada, também estou certo de não saber“, acerca do que seja “de belo e de bom” se dá em relação a um dialogo que teve com um homem considerado detentor da sabedoria, “um dos políticos”, assim o define, conforme parágrafo anterior, onde Sócrates demonstrou que o sujeito “parecia sábio sem o ser” (p. 62) e é neste contexto que Sócrates afirma que é mais sábio que o tal homem (políticos são assim mesmo, penso, caso contrário não seriam exploradores da estupidez coletiva) pois enquanto o sujeito estava certo de saber alguma coisa, sem sabê-la, o filósofo reconhece que nada sabe.

Ao apontar tal constatação, Sócrates despertou o ódio do tal político e de muitos presentes no tribunal de Atenas, o que está no contexto de o terem levado a um processo que culminou em pena de morte, por acusações de perturbar a ordem pública, questionar a crença nos deuses e corromper a juventude através do método dialético que expunha contrassensos, até de forma um tanto hilária, de quem o questionava.

A famosa frase “só sei que nada sei”, atribuída a Sócrates (que nada deixou de escrito), não tem registro nos textos até então conhecidos de seu discípulo Platão, bem como de outros pensadores mencionados nas narrativas disponíveis. A frase se relaciona com uma suposta reação de Sócrates ao dito por Querefonte na saída do Oráculo de Delfos, sobre a resposta dada pela sacerdotisa (pítia) acerca da questão de quem seria o homem mais sábio da Grécia. Apesar da fase não ter sido encontrada da forma como é propagada na cultura universal, entendo que o trecho desta Leitura aponta a um pensamento análogo do filósofo.

Comporta-se mais do que realmente sabe; algo, diria, epidêmico, a começar deste que comenta e se flagrou algumas vezes enganado sobre saber algumas coisas além do que ficou evidenciado pelos fatos, sendo ainda mais complexo quando penso que há situações em que não foi possível sequer perceber o meu engano e que morrerei sem saber. No entanto, reconhecer que posso cair nesse paradoxo socrático já me parece algo inspirador para o auto policiamento nas reflexões que envido. No mais, é sempre mais desafiador ter que lidar com a própria ignorância diante de indivíduos tão plenos de certezas e que se recusam a investigar, com a honestidade do espírito crítico, as próprias ideias enquanto almejam catequisar os outros, e isso se revela ainda mais tóxico quando não aceitam que suas opiniões ou conclusões sejam questionadas.

08/07/2023 14h40

Imagem: ABL

Olavo Bilac

“Última flor do Lácio, inculta e bela,
Éas, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela…”

Obra: Tarde. In: Antologia : Poesias. Língua portuguesa. Martin Claret, 2002, São Paulo. De Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac (Brasil/Rio de Janeiro/Rio de Janeiro, 1865-1918).

Madre língua – por pastor Abdoral (de Aforismos e Poesias)

Este pastor carece de tuas escusas, oh Madre Língua; cá estou sem estar à altura de em logos expressar todo o teu esplendor.

“Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!”

Amo-te da infância quando os primeiros símbolos vieram-me em deleite, acompanhados pelo teu código de ternura e de tua sonoridade no alto clangor das sílabas que me envolviam; no seio materno estava a ouvir tua lira singela.

“Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,”

Um mundo desconhecido à tua semelhança sentia, assim em fraldas nos primeiros passos, como se tivesse a refletir teu viço agreste, crescia, aprendia, era eu bambino a me alimentar de cada significado novo, no teu oceano largo das palavras.

“Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”,
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!”

Cresci na graciosidade do Verbo e em versos que me fazem chorar e sorrir, pela memória salva dos antepassados que do povo falante espelha a alma.

07/07/2023 23h24

Imagem: Mises Brasil

Ludwig von Mises

“Em um Estado Socialista, cada mudança econômica se torna uma tarefa cujo sucesso não pode nem ser estimado antecipadamente e nem ser determinado retroativamente. Há apenas apalpadelas às cegas. O socialismo é a abolição da racionalidade econômica.”

Obra: O Cálculo Econômico em uma Comunidade Socialista. Edição do Instituto Ludwig von Mises. Brasil, São Paulo, 2017. Tradução de Leandro Augusto Gomes Roque. De Ludwig Heinrich Edler von Mises (Áustria-Hungria/Leópolis, 1881-1973).

Segunda edição cujo título da primeira fora O Cálculo Econômico sob o Socialismo, de 2012.

Gosto de revisitar o sábio Mises, o lorde Keynes e o Nobel 74 Hayek, bem como vê-los literariamente juntos, pois acredito que em minha mente formam um trio muito especial cuja dialética se torna frenética e fica melhor ainda quando vira um quarteto, diria fantástico, com Marx.

Mises e Keynes produziram reflexões na década de 1920 quando a experiência bolchevique na Rússia era uma das grandes novidades no contexto histórico. Se Keynes não viu nada de contributivo no “comunismo” para problemas econômicos, Mises foi bem mais direto em relação ao fato “socialismo” e percebeu que uma sociedade que deixa de ter como referência o mercado com sua realidade, mediante apreciação de dados na compreensão de fenômenos de oferta e demanda, perde a capacidade de realizar o “cálculo econômico” ou seja, afasta-se da racionalidade econômica no trato da escassez e da alocação de recursos. Pontual, cirúrgico, o sábio austríaco lá pelos idos de 1920 profetizou, no texto original desta obra, a inviabilidade econômica de uma sociedade desprovida de dados que só podem ser disponibilizados no mercado, o que, à mon avis, tecnicamente define “socialismo” não como problema de economia e sim uma concepção “política” estritamente no âmbito de planejamento central que substitui a liberdade de produção; “socialismo” então não passa de uma forma de “deseconomia”, penso, pois neutraliza o organismo cooperativo no tecido social, composto por decisões espontâneas de agentes humanos em interação por suas faculdades de juízo e materiais em tomadas decisões realizadas em subjetividade e/ou objetividade.

O socialismo parte de uma premissa de coletivização como se a multidão humana pudesse confluir de inúmeros interesses para a unicidade de juízo de burocratas governamentais que supostamente a representa. Se o comunismo depende do fim da luta de classes no tablado do progressismo, sua viabilidade reside no impossível: indivíduos dotados de livre arbítrio no infinito universo de vontades que estariam em plena harmonia de interesses, mas como isso não se mostra realizável no mundo real, então, pela insistência ocorre a consequência inevitável de toda tentativa de implantar o modo socialista: a conversão política para um regime autoritário, a restar ditadura, servidão; desumanidade.

O sentido de “socialismo” e “comunismo” que adoto neste comentário se baseia totalmente no ponto comum da ausência da propriedade privada de meios de produção, onde os recursos produtivos são geridos por um planejador central, no caso, agentes ditos “públicos” ou governamentais a atuarem em um aparato de “compulsão e coerção” (aqui tomo por empréstimo uma expressão usada por Mises).

É evidente que “comunismo” não se define apenas por isso, pois é um conceito de consolidação da abolição do modo capitalista na sociedade, quando “Estado” é substituído pelo conceito de “comuna”, onde não haveria mais os possuidores individuais de meios econômicos, pois todos foram coletivizados, sendo o “socialismo” uma espécie de estágio inferior ou transitório onde o Estado é instrumentalizado ou “ocupado” para fazer a sociedade, passo a passo, ir do capitalismo ou da liberdade de mercado ao comunismo, envolto a destruir a posse desses meios até então privados na aplicação da luta de classes onde a burguesia seria erradicada pela supremacia do proletariado e, neste ponto, adoto a interpretação leninista de Marx reconhecida por Florestan Fernandes no prefácio e no próprio texto de Lenin de O Estado e a Revolução.

06/07/2023 22h56

Imagem: The Economist

John Maynard Keynes

“Like other new religions, Leninism derives its power not from the multitude but from a smaH minority of enthusiastic converts, whose zeal and intolerance make each one the equal in strength of a hundred indifferentists.”

Obra: A Short View of Russia. Nation and Athenaeum. London, 1925. De John Maynard Keynes (Reino Unido/Cambridge, 1883-1946).

Casado com a bailarina russa Lydia Lopokova, o lorde foi a União Soviética, na ocasião do bicentenário da Academia de Ciências a representar a Universidade de Cambridge (p. 253).

Fez algumas anotações publicadas neste artigo de 1925, inicialmente no jornal britânico The Nation, posteriormente republicadas em uma edição da Hogarth Press e, nesta breve passagem in loco, parece-me muito interessante apreciar um texto acerca da primeira grande experiência socialista da modernidade sob os olhos daquele que seria o economista heterodoxo mais bem quisto de todos os tempos, pelo menos entre os chegados ao lado canhoto das ideias.

Keynes não ficou nem um pouco empolgado com o sistema marxista à moda leninista, embora tenha evitado condenar o modelo ao fracasso, afirma que não vê o comunismo russo tendo qualquer contribuição para problemas econômicos, seja de interesse intelectual ou valor científico; “eu não acho que isso contém, ou é provável que contenha, qualquer elemento econômico de útil técnica que não poderíamos aplicar, se quiséssemos, com igual ou maior sucesso em uma sociedade que manteve todos os marcos, Não direi do capitalismo individualista do século XIX, mas de ideais burgueses britânicos.” (p. 267).

Se pela apreciação econômica o lorde pareceu pessimista, na questão política foi ainda mais crítico em apontar o leninismo como um sistema de religiosos que perseguem quem o resiste, enquanto “cheio de ardor missionário e ambições ecumênicas” (p. 257), e fico a pensar que o lorde fez essa visita dois anos antes da consolidada ascensão de Stalin, tirano que alguns “acadêmicos” um tanto enviesados “esquecem” de colocar na mesma categoria de tipos extremamente patológicos como Hitler e Mussolini. Keynes em 1925 ainda não tinha visto o monstro bolchevique que assumiria por completo o sistema de planificação central, em um processo desde a morte de Lênin, para instituir a sua versão de terror político, promover massacres e organizar campos de concentração (Gulag) para quem sonhasse em fazer oposição ao regime.

05/07/2023 22h52

Imagem: Nobel Prize

Friedrich August von Hayek

“O dinheiro privado dependeria de um tipo de confiança não muito diferente daquele que hoje em dia sustenta toda a atividade bancária (ou que, nos Estados Unidos, sustentava essa atividade antes do esquema de garantia governamental dos depósitos!).”

Obra: Desestatização do Dinheiro. Capítulo 8 – Pondo em Circulação Moedas Fiduciárias Privadas. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2011, São Paulo. Tradução de Heloísa Gonçalves Barbosa. De De Friedrich August von Hayek (Áustria/Viena, 1899-1992).

Meu primeiro contato com essa ousada visão de Hayek foi ainda com resquícios do “setup” que tinha na crença de que papel-moeda é coisa restrita ao Estado. Então, pensar acerca de algo argumentado lá pelos idos de 1976 sob proposição de moeda “desestatizada”, naturalmente foi um pouco chocante no começo de minhas leituras da Escola Austríaca (EA).

Não é raro vê associações meio que “proféticas” do visionário texto de Hayek sobre papel-moeda emitido em meio privado com o surgimento do sistema peer-to-peer que derivou o bitcoin, meio de pagamento eletrônico totalmente fora do âmbito estatal, e que se deu a partir do paper de Satoshi Nakamoto após 32 anos do texto de Hayek, no entanto, se há alguma visão deslumbrada sobre o bitcoin como uma criptomoeda global a conquistar o mundo, como alguns adoradores parecem apaixonadamente defender (lembram-me o comportamento de membros de seita), à mon avis, o que o mais conhecido economista da EA propõe em Desestatização do Dinheiro não é bem isso e sim forte competição de moedas mediante livre emissão por instituições privadas (p. 55 e p. 62), o que uma cartela variada de criptomoedas competitivas estaria mais próxima.

Um ponto que me chamou a atenção na obra é que Hayek lembra que Adam Smith, certamente o mais conhecido pensador em termos liberais, para muitos considerado o “pai” do liberalismo, não incluiu o controle da emissão de moeda entre as “três únicas funções [às quais] de acordo com o sistema da liberdade natural, o soberano deve dedicar-se” (p. 37). Quanto a esse aspecto, a obra tem argumentos que merecem reflexão quanto ao que pode estar por trás de o Estado ter o monopólio do controle de emissão do papel-moeda, face a interesses políticos governamentais baseados em déficits orçamentários e na mais cruel das violações sobre os indivíduos, sobretudo os mais pobres: a expansão monetária (inflação) que corrói o poder de compra da moeda e transfere riqueza para privilegiados que se ancoram nessa perversidade travestida de “estímulos” à economia:

“Tomando-se como verdadeiro que a regulação do estoque de moeda pela competição entre moedas particulares asseguraria não somente um valor estável para o dinheiro, mas também condições estáveis para as transações comerciais, o argumento de que os déficits orçamentários do governo são necessários para diminuir o desemprego fica reduzido à afirmação de que deve haver o controle governamental do dinheiro para curar aquilo que ele mesmo está causando” (p. 137).

04/07/2023 22h18

Imagem: Vogue

Martin Luther King Jr.

“Desde que a ação pacífica entrou em cena, o homem branco embasbacou-se ante um fenômeno novo.”

Obra: Luther King: O Redentor Negro – Preces e Mensagens. Coleção Mensagens Espirituais. A espada que cicatriza. Martin Claret, 2001, São Paulo. Preces e mensagens de Martin Luther King Jr. (EUA/Geórgia, 1929-1968).

Leitura lá dos idos de fevereiro/2004.

Acredito que a filosofia da não-violência que marcou a luta contra o racismo nos EUA, ainda que atribuída a uma inspiração em Gandhi, cuja menção sinaliza (p. 50), tem profundas raízes nos Evangelhos canônicos no tocante à forma como Cristo interpretou a justiça e o amor, bem como se entregou ao calvário sem resistência. Ao promovê-la, doutor King inseriu um novo e desconcertante parâmetro no mundo segregacionista em que viveu, onde a perseguição e a crueldade sofridas por causa do racismo institucionalizado, foram combinadas com um espírito de resistência pacífica a rejeitar categoricamente a linguagem bruta e os instrumentos de violência, acabou por tornar todo o sofrimento não mais em mais uma vergonha ou afronta que retroalimenta o ódio e sim em uma prática de virtude para um “título de honra” (p. 43). Foi em 1963 que um povo reprimido se deu a marchar sob a bandeira da não-violência; em Birminghan, “a resistência não-violenta paralisou e confundiu as estruturas do poder contra as quais se lançava” (p. 53), a promover “uma enorme importância psicológica para o negro”, no sentido de conquista e resguardo da dignidade, do mérito e da valorização do amor-próprio, aponta (p. 54).

Neste texto, uma crítica sobre o tokenismo, técnica para “substituir os velhos métodos de abafar os sonhos e as aspirações dos negros”(p. 43), uma nova forma de manipulação, baseada em concessões pontuais nas políticas públicas americanas (p. 44), para iludir enquanto travava o potencial de organização dos negros e assim se deu a gerar uma acomodação diante do segregacionismo e dos demais problemas causados pelo racismo.

03/07/2023 00h10

Imagem: BBC

Philip K Dick

“But,” Rick interrupted, “for you to have two horses and me none, that violates the whole basic theological and moral structure of Mercerism.”

Obra: Do Androids Dream of Electric Sheep? ONE. SF Masterworks. 1968. De Philip Kindred Dick (EUA/Califórnia/ Santa Ana, 1918-1982).

A religião do mercerismo é um dos vários elementos constantes em Do Androids Dream of Electric Sheep? que não foram trabalhados em Blade Runner, filme um tanto distante do romance, sendo “inspirado”, cuja versão do diretor é uma das melhores obras cinematográficas que apreciei sobre a temática da ficção científica.

No trecho, um aspecto da teologia moral de Mercer, explicada pelo personagem Rick Deckard (no filme é interpretado por Harrison Ford) com restrições em tom legalista que me lembra certa visão política que problematiza e “amaldiçoa” quem acumula riquezas mediante os que nada ou pouco possuem, o que também revela um traço de Philip K Dick como romancista de estilo a combinar elementos políticos e teológicos com criticas sociais em torno da futurologia que desenvolve.

Tornando à curiosa religião ou “filosofia” do mercerismo, notei sua ligação com ideias de políticas sociais que se harmonizam no contexto do mundo polarizado em que o autor escreveu (em plena Guerra Fria) entre visões americanas e soviéticas onde se insere Mercer a retratar um código moral como política pública que visa moldar comportamentos e tornar cidadãos mais socialmente altruístas ou “preocupados com seus vizinhos” (p. 54). O sombrio cenário futurista imaginado pelo autor em 1968 se desenrola no que pensara acerca do início dos anos 1990 (disponho da primeira edição) enquanto o filme (lançado em 1982) adiantou esse tempo previsto para novembro de 2019.

No livro são os androides na mira de Deckard, onde o romancista não faz cerimônia quanto à sua análoga condição, e no filme são os “replicantes”. O cineasta Ridley Scott (diretor) deixa sutilmente a condição artificial (de replicante) de Deckard. Tornando ao livro, androides fazem parte de uma espécie de “programa social”, diria assim, como bens de consumo distribuídos por governos mediante uma “lei da ONU” (p. 13), o que mostra uma perspectiva do autor de sociedades regidas sob governança com forte influência de arranjo supranacional. Outro aspecto curioso na imaginação do autor está na Nova América (EUA) em Marte, ficando a Terra a ser o que sobrou para os “piores” da sociedade ou os que não conseguiram emigrar. Como algo peculiar na futurologia de Philip K Dick, imaginou-se muito do que não, nem de relance, se realizou, no entanto, o romance suscita questões éticas interessantes sobre implicações do uso tecnologias em meio ao que penso ser uma sombra da transmutação de valores a perturbar o senso existencial na humanidade.

02/07/2023 12h46

Imagem: University of Notre Dame

Friedrich Schleiermacher

“Como assenhorar-se do significado? Isto é, como se chega originariamente a um dado emprego, e então a outro. Como se aprende originariamente a compreender? É a operação mais difícil e o fundamento de todas as outras, e nós a realizamos na infância.”

Obra: Hermenêutica. Arte e Técnica da Interpretação. Vozes, 2000, Petrópolis. Tradução de Celso Reni Braida. De Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (Polônia/Breslávia, 1768-1834).

Leitura de 2005 sobre Schleiermacher, referência em hermenêutica, não apenas na teologia. Pode ter sido um precursor da pós-modernidade e, sem dúvida, seu pensar foi muito próximo ao de Kant (1724-1804) no sentido de ver a experiência como fenômeno psicológico a combinar a faculdade de raciocínio e os sentimentos.

Em relação ao trecho (p. 76), argumenta que para a criança o nome parece indeterminado ao que se refere no objeto e que após composição e comparações de particulares se chega à unidade interna. Vê como um infinito a tarefa da “completude do particular”, entendo, na busca do significado de uma determinada coisa que pode se aprimorar (ou se deteriorar) ao longo dessa tarefa intelectual e, torno ao autor, esse infinito mesmo que fosse plenamente restituído, “qual garantia para a justeza da concepção da unidade interna?”, indaga no mesmo parágrafo. A fiança não poderia ser outra vez por regra metódica e sim pelo “sentimento” que torna a restituir a completude (processo) e, talvez aqui, penso, tenha sido um ponto que fortemente o torna próximo de Kant, certamente se for usado “sentido” em vez de “sentimento”.

A segurança que há nesse “sentimento” diante da compreensão se resolve na apropriação dada pelo caráter da língua,, o que se confirma por analogia com outras unidades (de palavras); no homem simples pela inteira dissolução do pensamento na língua, e nos outros mediante comparação com outras línguas. Se para cada indivíduo o processo de aceder à unidade das palavras é difícil, entende o autor que deve também o ser para cada povo e então discorre sobre períodos onde, no seio coletivo, popular, não há ainda consciência clara nas unidades das palavras e então discorre questões muito interessantes sobre aplicação de dicionários neste contexto (pp 77-78).

01/07/2023 18h00

Imagem: Pantocrator (História com gosto)

יֵשׁוּעַ

“Não julgueis para não serdes julgados. Pois com o julgamento com que julgas sereis julgados, e com a medida com que medis, sereis medidos.”

Obra: Evangelho Segundo São Mateus. Ditos de Jesus Cristo. Não julgar. Capítulo 7, versos 1 e 2.  A Bíblia de Jerusalém. Edição da Paulus, 2000, São Paulo.

Não julgueispor pastor Abdoral

Na nota da Bíblia de Jerusalém (i, p. 1850), “Não julgueis os outros para não serdes julgados por Deus”, em relação ao primeiro verso, de mesmo modo se entenda o v. seguinte (cf. Tg 4,12). Tasker entende que o presente do imperativo no verso primeiro “deixa claro que é o hábito de fazer crítica ferina e dura que Jesus está condenando, não o exercício da faculdade crítica” [171]. Para Davidson se trata de não apontar responsabilidades nem discriminar os outros e sim a atitude do perfeito amor, mas “existe um julgamento que é legítimo” a indicar I. Cor. 5 [172].

Papa Francesco aponta que “o Senhor ‘algumas vezes para nos fazer compreender, conta uma parábola, aqui é: direto, porque o julgamento é algo que só ele pode fazer” e que “todos nós queremos, no dia do julgamento, que o Senhor olhe para nós com benevolência, que o Senhor se esqueça de muitas coisas ruins que fizemos na vida”, e “isto é justo, porque somos filhos, e um filho espera isto do pai, sempre”, mas “se julgares constantemente os outros, com a mesma medida serás julgados: isto é claro” [173].

Do terceiro ao quinto verso são destacados o problema do ato hipócrita de se enfatizar as falhas alheias enquanto não se cuida das próprias, como se pode ver de forma mais direta no verso quarto:

“Ou como poderás dizer ao teu irmão: ‘Deixa-me tirar o cisco do teu olho1, quando tu mesmo tens uma trave no teu?”

O exagero da “trave” associada a quem julga, em contraste com o “cisco” aplicado em quem foi julgado, serve para enfatizar o comportamento hipócrita em uma inversão que eleva a advertência pelo que essa hipocrisia pode provocar no senso de proporcionalidade na medida em que se dará o juízo divino, descrito no segundo verso.

O dito de Jesus “não julgueis” é um grande alerta sobre a precipitação e o prejulgamento que se relaciona com o problema da hipocrisia, que se deriva da falta de auto crítica, algo tão facilmente observável em nosso tempo de auto afirmações e julgamentos sumários na rapidez que a internet proporciona, diante de ocorrências na dispersão de conhecimentos onde emitir juízo sobre alguém tende ao equívoco pela ilusão de que se sabe o suficiente, diante da vasta rede de informações confundidas com “conhecimento” e então muitos se sentem aptos para analisar comportamentos e decisões, quando muitas vezes o que se evidencia é o contrário, além da crescente tendência de se submeter intelectualmente a influenciadores em abdicação do espírito crítico para satisfazer necessidades imediatas de “esclarecimentos” que só podem ser obtidos por decurso de tempo e muito esforço intelectual e tais carências potencializam a precipitação em emitir conclusões cujo passo seguinte é o preconceito.

Quantas opiniões foram dadas e decisões tomadas que afetaram seriamente pessoas que não tiveram como se defender à altura das coisas pelas quais foram acusadas, sobretudo com base em informações que depois se revelaram incompletas, imprecisas ou até mesmo incorretas, falsas?

171. Mateus, introdução e comentário. Edição da Vida Nova, 1999, São Paulo. De Randolph Vincent Greenwood Tasker (Reino Unido/Inglaterra, 1895-1976), p. 63.

172 O Novo Comentário da Bíblia. Edição Vida Nova, 1997, São Paulo. De F. Davidson, MA, DD., p. 957.

173. Diante do espelho. MEDITAÇÕES MATUTINAS NA SANTA MISSA CELEBRADA. NA CAPELA DA CASA SANTA MARTA. Segunda-feira, 20 de junho de 2016.

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