01/10/2025 21h17
Imagem: Portal da Literatura

“Certa manhã, ao despertar de sonhos agitados, Gregor Samsa deu consigo na cama transformado num inseto monstruoso.”
Obra: A metamorfose. Principis, 2020, Jandira. Tradução de Luiz A. de Araújo. De Franz Kafka (Tchéquia/Praga, 1883-1924).
A experiência de leitura me fez pensar no que certa vez escutei de um colega que trabalhava em uma grife de TI e, mediante o elevado estresse em que estava submetido, confessou ter uma constante sensação de estar se transformando em outra coisa; na medida em que se concentrou mais no trabalho e abandonou outras atividades, tornou-se não raramente estranho a si mesmo, com picos de melancolia, frieza, que se revelava em uma estranha indiferença com coisas que lhe causavam desejo ou grande indignação, enquanto seguia devotado à agenda da equipe de trabalho.
A semelhança com Gregor Samsa de A metamorfose se deu porque o colega mesmo diante de um distanciamento de coisas que até então sinalizavam seu sentido existencial, o que aparentemente modificou substancial parte seu comportamento e a sua visão de mundo, ele continuava firme, crendo que no fundo continuava a mesma pessoa, porém aceitando o destino que trazia alguma deformação por remetê-lo a uma estafante carga de metas e prazos.
Os efeitos da entrega a um trabalho que o estava reduzindo a aparência de “outra coisa”, acabaram não sendo bem compreendidos e assim mal recebidos por familiares e pessoas mais próximas, o que também o tornou um tanto similar quando, para dar um exemplo, a irmã de Gregor Samsa se dirigiu aos pais com o propósito de que a família deveria se livrar dele, por conta do “monstro” que tinha se transformado (pos. 735/904).
A genialidade de Kafka me possibilitou experimentar uma ficção sobre algo tão extravagante como se fosse apreciável como um tipo de realismo, embora, concomitantemente, pela minha posição intuitiva de leitor, estava a ingênua ideia de uma metáfora em modo geral, enquanto fui tomando consciência da naturalidade com que Kafka aprofunda e discorre na narrativa como um fenômeno do ser humano deformado por não viver sob propósitos mais inspiradores, preso a um corre-corre de coisas banais que dá importância demais, de uma forma que o autor as elabora no contexto de uma constatação que me fez até “esquecer” do seu teor surreal, do ponto de vista do efeito horripilante da metamorfose. É de um talento estratosférico.