“5. Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor.”

Obra: A Bíblia de Jerusalém. Primeira Epístola aos Coríntios. Capítulo 13, versículo 5. Paulus, 2000, São Paulo. Imprimatur 01/11/1980.

Sábado à noite costumava caminhar no Parque da Jaqueira com o professor ZW. Em dezembro de 1995, quando perguntei ao sexagenário, com 10 anos de viuvez, se não pensava em se casar novamente, respondeu:

– É uma questão filosófica a possibilidade de amar mais de uma pessoa, da Vinci – respondeu.

– Amar?

– Isso, você percebeu o verbo no presente. Amar a esposa que se foi pode soar estranho por não utilizar o verbo no pretérito, mas faz sentido se entender que ela morreu apenas corporalmente, porque em espírito continua, aqui, comigo.

– Como o senhor resume o amor que tem por ela? – perguntei já me adaptando ao tempo verbal.

– Uma experiência conjunta de ágape, eros e philia – respondeu.

– Na igreja se costuma fala sobre esses tipos de amor… – comentei e ele pediu a palavra:

– Escute, na verdade não significa que só podem ser experimentados separadamente em relação ao que sentimos por alguém – ponderou.

– Certo. Então, o senhor está afirmando que experimentou com sua esposa esses tipos de amor ao mesmo tempo?

– Sim. De altruísta, de amante e de amiga. Da Vinci, eros sem ágape e sem philia sempre termina no vazio. Já parou para pensar na sensação desse vazio na relação sexual?

– Como assim?

– Com a juventude naquela potente e resplandecente energia, há ou não um vazio após o ato? – notou meu semblante constrangido com a pergunta.

– É… parece ser uma queixa comum, professor – respondi.

– Eu também passei por isso. Quando tinha a sua idade, estava em uma república em Paris e depois, sentia uma coisa sem graça. Um vazio – falou batendo em minhas costas.

– Como superou isso?

– Quando consegui entender que eros só faz bem ao espírito se estiver acompanhado do ágape.

Ágape? Refere-se a I Coríntios 13? mas o contexto não seria outro?

– Ágape é a representação perfeita de um modelo de excelência para ser seguido, mesmo dentro da imperfeição humana, de altruísmo, de amar como ato de desejar e fazer o bem, de bem servir, de ser uma bênção na vida do semelhante sem esperar nada em troca, certo?

– Certo. É por isso que em algumas traduções se usa o termo “caridade”. Fica melhor – completei.

– No entanto – prosseguiu o professor – não nos impede de transferir esse conceito para servir de referência a um relacionamento afetivo entre duas pessoas – falou, e comecei a entender onde queria chegar.

– Então, para haver sentido ao eros, para o senhor tem que haver obrigatoriamente a presença do ágape nessa perspectiva? – perguntei.

– Sim porque, caso contrário, todo relacionamento afetivo se torna dependente de um fenômeno físico-hedonista e emocional, de paixão e prazer, ou, em uma forma vulgar, da experimentação do “erótico”. Falo de eros e ao mesmo tempo de um fenômeno altruísta, e de amizade, tudo isso combinado em uma experiência afetiva com uma pessoa: ágape, philia e eros. É o ágape que faz o relacionamento transcender.

– Como percebeu que a relação que tinha com ela envolvia essas três instâncias?

– A conhecia desde o ginásio, adolescente. Éramos muito amigos. Porém, quando voltei da França, me apaixonei por ela, mas o problema é que ela tinha acabado de noivar. Como você sabe, tive que assumir negócios da família porque meu pai revelou a leucemia e eu envelheci uns 10 anos com isso. Durante o tempo em que ela noivou, conservei a proximidade, pois a philia por ela era mais forte; havia um respeito muito grande entre nós e fui me conformando. Chegávamos a sair juntos, eu, minha namorada, na ocasião, ela e o noivo. A experiência do sofrimento com o câncer e a morte de meu pai aconteceu em paralelo e acredito que esse processo me ajudou a aceitar a verdade de que a vida impõe situações que estão fora do nosso controle e temos que amadurecer para aceitá-las.

– O senhor não tinha mais desejo por ela?

– Tinha, mas havia respeito mútuo. Não era fácil, mas ela, uma amiga desde a adolescência, meiga, fomos criados juntos, como irmãos, e o futuro marido dela, a princípio, também me ajudou a aceitar o fato de saber que ela ficaria bem e, neste ponto, eu me enganei e ela também. Essa philia fez com que eu, acredito, não desenvolvesse compulsão por ela e então se casaram.

– Ela casada e o senhor conformado curtindo um amor altruísta e de amizade. O que aconteceu? – estava muito curioso.

– Quando papai morreu, passei a viajar muito em função dos negócios e tive dificuldade de manter relacionamento. Quando se casou, ela foi morar em Porto Alegre. Ficou natural a perda do contato. Dois anos depois, eu resolvi tirar 15 dias de férias. Na fila do check-in do mesmo voo lá estava ela, mas não vi o marido. Falei com ela com a alegria de quem não vê uma amiga há muito tempo e ela soltou a bomba: acabei de me divorciar.

– Como foi parar naquela mesma fila? – a minha pergunta foi retórica.

– Assim que se divorciou, ela voltou para São Paulo e foi me procurar, mas como eu vivia viajando muito, nos desencontrávamos, porém as famílias eram muito próximas, e então ela descobriu para onde eu estava indo de férias, o voo, todos os detalhes. Era a única forma certa de me encontrar naquele tempo.

– E aí?

– Ela me disse que somente uma pessoa poderia lhe fazer companhia naqueles dias: o “melhor amigo”. Disse logo em seguida que descobriu, da pior maneira possível, durante o casamento, que não podia continuar distante do “melhor amigo”. Nos casamos três meses depois. Foi fulminante. Com ela comecei a entender que o eros só faz sentido com o agape e a philia.

– Como o senhor notou a diferença do eros antes e depois dela? – a pergunta parecia muito pessoal, mas ele entendeu a necessidade de fazê-la.

– Escute, não se trata apenas do sexo propriamente dito. Uma vez ela me confessou que o primeiro marido era ciumento e mecânico demais na relação sexual. Quando há apenas eros na relação, haverá ciúme e o ato sexual não transcende. Mas quando há o ágape, não se procura o próprio interesse (verso 5), não faz sentido ver o outro como posse. O ciúme é um sintoma de uma relação puramente carnal. Quem sente ciúme não ama, tão-somente experimenta uma relação de posse do outro e quando não pode exercer essa posse, torna-se compulsivo, agressivo e até letal. O ciúme é o primeiro sinal de que não existe amor na relação no sentido ágape. Não sentíamos ciúme um do outro. conversávamos muito sobre isso. Claro que todo casal tem desentendimentos. Pense assim. Um casal forma uma unidade, certo?

– Certo.

– Você é um unidade, certo?, estou me referindo à sua pessoa.

– Certo.

– Muitas vezes, você não passa por um conflito interior?, com uma parte de você querendo tomar uma decisão, enquanto outra resiste?

– Sim, acontece, com frequência.

– Da mesma forma é um casamento. Uma unidade que, de vez em quando, enfrenta conflito interno. Isso é natural e pode ser até benéfico se os componentes dessa unidade compreenderem o significado do conflito: para superar alguma dificuldade. Então, o que se chama de “briga de casal” pode fazer parte do crescimento da relação.

– Certo, sendo o ciúme um sintoma de falta de amor, no caso do ágape, o que fazer?

– Não há o que fazer a não ser cultivar o ágape em nós. Não é possível haver unidade espiritual sem o ágape. O amor ágape jamais passará. É soberano, ultrapassa as barreiras do tempo e da morte. O que sinto por ela permanece; a única coisa que mudou é que não disponho mais dela corporalmente, mas em espírito ela está aqui dentro de mim. Para experimentar o ágape, é preciso entender a natureza, como funciona, como buscá-la; ela é soberana, tem suas leis, e podemos experimentá-la, mas com humildade. Não temos o poder de inventá-la conforme nossos próprios interesses e sim de cultivá-la como uma planta que precisa crescer, ser regada na dose certa respeitando a lei natural que vem de Deus. Sem ágape, toda relação fica vulnerável ao que é inconveniente, ao rancor, à irritação, à mentira; torna-se resistente ao perdão e avessa à paciência, e claro, o sexo se torna apenas sexo e não a apoteose de um encontro de almas. Então, imagino que agora entenderá que aquele vazio que eu sentia no ato sexual, com ela também deixou de existir.

– Então, professor, voltando à pergunta inicial da nossa conversa, agora entendo, que por isso, não encontra espaço para outra pessoa ocupar da forma em que ela se encontra representada.

– Isso, talvez uma companheira para a philia, uma fraterna relação, mas não acredito que seja possível, em termos afetivos, ter mais de duma experiência na vida nesse nível de combinação. Não confunda com o que Paulo falou aos Coríntios como modelo que deve ser a base de toda comunidade cristã, onde a expressão humana maior desse amor incondicional de Deus converge a Cristo.

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