Imagem: Jacobina

“[…] se nego a autoridade do Estado quando ele me apresenta a conta dos impostos, logo ele irá se apossar de meu patrimônio e dissipá-lo, molestando-me, assim, interminavelmente, bem como aos meus filhos. Isso é injusto. Isso torna impossível a um homem viver honestamente […]”
Obra: A Desobediência Civil. L&PM, 2009, Porto Alegre. Tradução de Sérgio Karam. De Henry David Thoreau (EUA/Massachusetts/Concord, 1817-1862).
A primeira vez que ouvi falar deste clássico foi no início de 1994, por um colega da graduação que se apresentou como “anarquista”. Ele se dizia “libertário de esquerda”, expressão que me pareceu incompreensível à época para o meu eu tão ingênuo das ideologias aos 19 anos de idade.
Trouxe-me trechos desta obra em inglês e assim conversamos bastante sobre os principais pontos do que me pareceu também não fazer sentido na ocasião, dado meu viés socialista “moderado” naquele tempo, mesmo que na fase final: a crítica aos impostos. Apesar da “socialdemocracia” em 1998 ter substituído o socialismo de vez em minhas crenças políticas, eu ainda discordei da divisa usada na abertura desta obra publicada no Brasil:
“O melhor governo é o que governa menos” (p. 5).
Antes de produzir sua obra mais importante, Walden, ou A vida nos bosques [489], onde decidiu viver na floresta, no meio dos matos e isolado dos semelhantes, o intrigante Thoreau fez da própria vida uma pequena experiência deste ensaio de recusa à submissão ao Estado e assim acabou preso (p. 29) por não pagar o imposto individual.
Daquela conversa em 1994 saí certo de que imposto NÃO é roubo, sem concordar com o empolgado interlocutor libertário. Eu começaria a considerar o imposto como violação apenas 14 anos depois assim como passaria a ver com bons olhos a divisa de abertura da obra, não pelo “libertarianismo de esquerda”, tampouco pelo deslumbramento com Thoreau, mas por uma ala da Escola Austríaca de Economia, que em 1994 eu sequer tinha noção da existência.
Depois passei a considerar que o termo “anarquismo” é impróprio em termos gerais. Quando “anarquia” é aplicada ao “mercado”, faz apelo à crença na autorregulação, o que abre outro ponto imenso de reflexão. Falo-me em “crença” da mesma forma que penso sobre o intervencionismo. Um lado pensa que não fazer nada é melhor enquanto o outro, indo no sentido contrário, é igualmente movido por uma convicção apaixonada. Pensei depois em “autogoverno”, ou “governo privado”, não apenas em termos individuais, mas comunitários para normatização dos espaços comuns, da lei e da ordem, o que me parece mais adequado.
Mas o que tudo isso significa? Apenas uma visão de mundo pessoal. Em outras palavras, é um valor subjetivo, restrito ao que almejo para a minha existência: uma comunidade autônoma onde cada membro se estabeleceu por livre adesão às normas previamente conhecidas e que somente devem ser alteradas se todos concordarem. Não há parlamento ou câmara disso ou daquilo para mudar “leis” em favor de um grupo em detrimento do outro. Não há investimento estatal em meios de produção e sim bens comunitários sem finalidade lucrativa em formato de um condomínio. Há empresas privadas, tão somente privadas, associações, cooperativas, entidades não estatais, o que me mantêm distante do desenvolvimentismo neste ponto.
Se por um lado sou incompatível com grupos progressistas ou socialistas, por outro, também sou excluído de qualquer grupo austrolibertário quando penso em educação. Embora seja um arranjo local, entendo ser necessária a exclusividade de escolas e universidades comunitárias mantidas por orçamento deste “condomínio”, ente de livre adesão para prover o ensino de todos os moradores, em todos os níveis, e aqui reconheço a única herança “socialista” ativa em meu pensamento. No meu mundo, o filho de uma empregada doméstica estudaria na mesma escola do patrão; assistiriam às mesmas aulas, utilizariam o mesmo transporte escolar, receberiam o mesmo material didático, o mesmo fardamento e a mesma alimentação. Repito, é o mundo do “absurdo” que passa pelos meus valores íntimos.
Olhando para as mudanças que ocorreram em minha vida, imagino o quanto o meu eu de 19 anos ficaria decepcionado se soubesse o que o futuro lhe reservaria.
Torno ao senhor Thoreau que vê o governo como “uma conveniência pela qual os homens conseguem, de bom grado, deixar-se em paz uns aos outros” e “quanto mais conveniente ele for, tanto mais deixará em paz seus governados” (p. 7), contudo o filósofo e transcendentalista, à mon avis, deixou um legado nesta obra quando afirma que “todos os homens reconhecem o direito de revolução, isto é, o direito de recusar lealdade ao governo, e opor-lhe resistência, quando sua tirania ou sua ineficiência tornam-se insuportáveis” (p. 11).
É o básico da dignidade humana que hoje parece esquecido no culto ao estado moderno dito “democrático de direito”. O direito de se libertar de um Estado opressor.
489. 03/11/2025 22h18