Para abrir o ano penser à paris, Hymne a l’amour de Édith Piaf e Marguerite Monnot, na interpretação do violoncelista francês Gautier Capuçon.

31/01/2023 23h20

Imagem: Casa Fernando Pessoa

Ricardo Reis
por Fernando Pessoa

“Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.”

Obra: Outras odes. Mensagem. Odes do Livro Primeiro. Edição da Martin Claret, 2005, São Paulo, formato físico. De Ricardo Reis, heterônimo de Fernando António Nogueira Pessoa (Portugal/Lisboa, 1888-1935).

Una goccia

Dentro di me c’è.
E nulla impedisce che sia
di chi l’ha creato.

Cammino nella sua dispersione.
Finchè so … ho la dimensione
di quello che posso vedere

E quello che vedo è come una goccia
nell’oceano insondabile
del mio essere.

Pastor Abdoral, 06/03/2021 18h14.

Imagem: Luciana Amorim

Leonardo da Vinci

30/01/2023 22h42

“Sì come il ferro s’arruginisce sanza esercizio e l’acqua si putrefà o nel freddo s’addiaccia, così lo ‘ngegno sanza esercizio si guasta.”

Obra: Codice Atlantico. Biblioteca Ambrosiana, 1478-1518, Milano. De Leonardo di Ser Piero da Vinci (Italia/Anchiano, 1452-1519).

Selezione Aforismario, um grão do Códice Atlântico com suas 1.119 páginas digitalizadas. A consulta foi disponibilizada pela Biblioteca Ambrosiana de Milão (link da citação da Obra).

Falha a inteligência sem exercício, assim como o ferro enferruja e a água apodrece ou congela; este aforismo retrata o que tento imaginar acerca da imensidão da inquietude que marcou a vida de Leonardo, uma síntese do espírito humano cuja lição do significado da inteligência consiste em concebê-la como recurso que carece de ser cultivado, desenvolvido, provocado, disseminado, regado, da mesma forma que se exercita o corpo para mantê-lo saudável ou “em forma”, a inteligência deve ser exercitada para manter o intelecto saudável.

Vi reproduções deste códice, anotações e desenhos de outros códices em uma exposição em Florença (2019) e pude perceber o quanto Leonardo viveu por superar o que parecia muito além do seu tempo. Ao ver trechos desse material e algumas reproduções de projetos, restou-me o silêncio diante enigmática complexidade deste gênio que parecia ter uma janela para o futuro em seus pensamentos traduzidos em rascunhos, notas, pinturas e desenhos que desafiam eruditos.

29/01/2023 11h28

“La pittura è una poesia muta, e la poesia è una pittura cieca, e l’ una e l’ altra vanno imitando la natura quanto è possibile alle loro potenze, e per l’una e per l’altra si può dimostrare molti morali costumi, come fece Apelle con la sua Calunnia. “

Obra: Trattato della pittura. PARTE PRIMA. CONDOTTO SUL COD. VATICANO URBINATE 1270. Unione Cooperativa Editrice, MDCCXC, Roma. De Leonardo di Ser Piero da Vinci (Italia/Anchiano, 1452-1519).

Leonardo sobre pintura e poesia:

A pintura é uma poesia muda, a poesia é uma pintura cega” (p.12).

Na harmonia do belo e das proporções, a pintura está para dar sentido mais nobre aos olhos, enquanto a poesia faz o mesmo com a audição.

A pintura representa o sentido do prazer que o pintor demonstra sobre a beleza que imita da natureza; o poeta retrata para a audição (nossa geração muito mais alfabetizada diria, pela leitura) o prazer pelo recontar. O pintor faz poesia imediatamente vista na sua totalidade pelo apreciador (embora possa deixá-lo a meditar por tempo até mesmo indeterminado sobre seu significado, como sugerem as obras do próprio Leonardo) enquanto o poeta constrói de forma mais confusa, com mais atraso ao entendimento imediato ou elabora o que tende a ser compreendido mais em partes por quem o aprecia (p. 13).

O prazer de se apreciar um poema se esvai no tempo, pela imaginação dos sentidos, enquanto se alonga o prazer de se apreciar a imitação da beleza mediante a pintura (p. 14). A poesia não tem casa, sede, o poeta é como um sujeito que finge se passar por algo ou alguém (aqui não sei se Fernando Pessoa se inspirou nele).

“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Obra: Autopsicografia. Poema. Em Mensagem. Edição da Martin Claret, 2005, São Paulo, formato físico. De Fernando António Nogueira Pessoa (Portugal/Lisboa, 1888-1935).

Os limites não estão precisos para um poeta enquanto a ciência da pintura considera as obras, humanas como divinas, terminadas por suas superfícies, ou seja, em linhas de termos do corpo (p. 15). Se os poetas inflamam as pessoas ao amor, o pintor coloca diante do amante sua própria efígie da coisa amada, cuja representação pode beijar e até “conversar” (quando a saudade bate e alguns conversam com quadros e retratos…), o que não se vê normalmente com representações da poética escrita (p. 16).

28/01/2023 13h02

Imagem: Hultgren Funeral Home and Cremation Services

Earle E. Cairns

“A Igreja primitiva não tinha uma organização de benemerência para ajudar aos pobres e doentes. Cada igreja tomava sobre si esta responsabilidade. O dinheiro coletado, daqueles que podiam dar, na oferta que seguia à celebração da Ceia era dedicado para a satisfação destas necessidades. Paulo também mencionou a prática da coleta de doações dos crentes todos os domingos (I Co 16:1-2). Os diáconos deveriam então cuidar daqueles que passavam por necessidades. As mulheres das igrejas também ajudavam esta obra de caridade ao fazer roupas para aqueles que necessitassem (At. 9:36-41).”

Obra: O cristianismo através dos séculos. Capítulo 6 – Com os bispos e os diáconos. Tradução de Israel Belo de Azevedo. Vida Nova, 1995, São Paulo. De Earle E. Cairns (Canada/Oak Lake/Manitoba, 1910-2008).

O cristianismo atual está anos-luz do raiz não apenas pelos quase 20 séculos de história mas, sobretudo, em valores e práticas. Se as ofertas coletadas eram destinadas às obras sociais, hoje sugiro conferir o que é gasto com salários e regalias de pastores e demais líderes nos orçamentos das igrejas.

Em 2007, uma roda de pastores na porta de um congresso me fez refletir sobre o assunto quando se estava a discutir a competição entre igrejas para atrair ministros com salários e benefícios. O que mais me impressionou foi a empolgação dos interlocutores onde parecia que a última coisa a ser considerada é o sentido da caridade social profunda da entidade chamada “Igreja” no contexto do Evangelho.

Pastor ou qualquer líder remunerado que enriquece com salários de “dízimos” e ofertas é uma antítese do Evangelho de Cristo Jesus ou uma manifestação do Anticristo de Nietzsche, entendo.

27/01/2023 23h36

Imagem: Centro Celso Furtado

Celso Furtado

“Os países que se especializaram na exportação de produtos primários, no quadro do sistema de divisão internacional do trabalho surgido no século passado, criaram estruturas econômicas de forte vocação inflacionista.”

Obra: Formação Econômica da América Latina. Capítulo XII – Os Desequilíbrios Provocados pela Industrialização Substitutiva de Importações: a Inflação Estrutural. O desenvolvimento como sequência de mudanças estruturais. Lia Editor, 1969, Rio de Janeiro. De Celso Monteiro Furtado (Brasil/Paraíba/Pombal, 1920-2004).

Furtado talvez tenha sido o economista que mais influenciou a visão intervencionista que, de certa forma, predomina até hoje entre políticos e economistas brasileiros. O paraibano criador da SUDENE foi o principal economista brasileiro influenciador da primeira parte de minha formação.

No modelo clássico de desenvolvimento da América Latina, a oferta de produtos primários não interagia com a demanda interna e havia pouca inovação ou “escassa aptidão para a mudança”, aponta (p. 147).

A inelasticidade da oferta de produtos agrícolas é o primeiro fator na análise de Furtado, onde “a agricultura de mercado interno teria que abrir caminho elevando seu nível tecnológico” (p. 149). A inadequação da infraestrutura, do fator humano disponível, das estruturas fiscais e o aumento dos encargos financeiros são os demais pontos críticos (pp 149-153). Entre a escassez de recursos humanos, indica Furtado o problema da “inexistência de tradição empresarial. À exceção dos países que se haviam beneficiado de imigração europeia recente, era escassa a experiência empresarial no setor industrial” (p. 150), o que é curioso do ponto de vista de ser um ícone do desenvolvimentismo nacional enquanto hoje, há o inquilino do Palácio, cercado por essa influência, como símbolo maior do desprezo à relevância do empreendedor.

A perda do dinamismo do setor exportador, a forma do financiamento do déficit do setor público, as políticas de crédito e câmbio, foram canais propagadores do processo inflacionista (p. 155) em um ambiente com dificuldades para inovar e se modernizar com capital humano pobre, sob planejamentos de substituição que encareciam bens de consumo pela escassez de produtividade insuficiente para atender ao mercado interno, na medida em que recursos eram destinados a aquisição de bens para a exportação encarecidos pelo câmbio e pelos déficits que retroalimentavam a base monetária causadora dos efeitos inflacionários. Com exceção do México e da Venezuela (este último em tempos áureos sem o socialismo vigente), entre 1956 e 1967, Furtado aponta alto ciclo inflacionário na América Latina em taxas anuais de dois dígitos na Argentina, no Brasil (com picos de até 93%), na Bolívia, na Colômbia ,no Chile, no Peru e no Uruguai (p. 159).

A considerar os fatores e os dados trabalhados por Furtado, pode se chegar a algumas reflexões sobre causas do atraso da América Latina e da interpretação de intelectuais em economia na atualidade que parecem repetir ideias de planejamento e controles que sugerem ser contraproducentes.

26/01/2023 22h52

Imagem: Jucativa

Merval Rosa

“A imagem do homem mudou profundamente em nosso século. Como indicamos no primeiro capítulo deste livro, não existe mais uma concepção de natureza humana como algo fixo, universal e eterno. O homem contemporâneo é um projeto e não um produto terminado. Neste particular, o homem de hoje reflete o pensamento de Nietzsche e de Sartre.”

Obra: Antropologia Filosófica. Uma perspectiva cristã. Capítulo 5 – Imagens contemporâneas do homem. JUERP, 2004, Rio de Janeiro. De Merval de Sousa Rosa (Brasil/Piauí/Altos, 1926-2014).

Foi reitor em minha época de seminarista. Pastor, doutor (Ph.D.) em Psicologia Educacional pela Kansas State University, USA (1978) e Bacharel em Psicologia pela Universidade de Louisville, Kentucky, USA.

Merval Rosa foi o que posso chamar de Intelectual, além da imensa envergadura moral, culto, respeitadíssimo não apenas pelo vasto currículo, mas também pelas obras de psicologia e por preleções, algumas das quais pude ouvir em ocasiões especiais do seminário; não tive a honra de ter sido seu aluno. Também foi Pró-Reitor Para Assuntos Acadêmicos da UFRPE (1972-1974) e Diretor Geral efetivo do Colégio Americano Batista (1986-1991).

Professor Merval Rosa aponta as “revoluções científicas” como uma das causas para a mudança da imagem contemporânea do homem. que se encontra em uma “transição apavorante” (p. 307) em um vazio existencial, onde cita Victor Frankl (p. 308). Como toda obra peculiar a um erudito, neste capítulo que considero especial, além dos dois filósofos que abrem o texto e o  neuropsiquiatra Frankl, Merval Rosa versa o complexo tema sobre pensadores como Dennis Fry, John Cohen, Ralf Dahrendorf, Dietrich Bonhoeffer, Harvey Cox, Reinhold Nierbuhr, Soren Kierkegaard, Paul Tillich, Erich Fromm, Sigmund Freud, George Orwell, Huxley, Jacques Ellul, Roland Cobisier, Michel Bergamann, Erik Erikson, José Comblin, Ralf Dahrendorf, em vasta e provocante bibliografia.

Lembro-me deste capítulo em discussão em um grupo de assíduos frequentadores da biblioteca. Curiosamente livros foram se amontoando mediante a busca consequente com a riqueza bibliográfica do texto. Hoje percebo melhor o estilo de Merval Rosa como excepcional observador de fenômenos do pensamento, regido por uma exemplar imparcialidade, o que pode incomodar os mais ansiosos por “posicionamentos” enquanto fascina amantes do saber.

25/01/2023 18h46

Imagem: Washington Post Photo by Jeremey Tripp/Peterson

Institute of International Economics

John Williamson

“O desenvolvimento econômico pode ser definido como o processo através do qual uma sociedade tradicional que empregue técnicas primitivas e que, portanto, só pode manter um nível de renda per capita modesto transforma-se numa economia moderna, de alta tecnologia, e de elevada renda. O processo envolve a substituição da produção intensiva de mão-de-obra por técnicas que empregam capital, mão-de-obra, qualificada e conhecimentos científicos, para produzirem a grande variedade de produtos consumidos numa sociedade rica.”

Obra: Economia aberta e a economia mundial. Um texto de economia internacional. Tradução de José Ricardo Brandão Azevedo. Capítulo 11 – Comércio Exterior e Desenvolvimento. Editora Campus, 1989, Rio de Janeiro. De John Williamson (UK/Hereford, 1937-2021).

Neste capítulo, o economista que inspirou o “Consenso de Washington” explica como se dá o desenvolvimento econômico em uma combinação de acúmulo de fatores de produção que, em um sentido mais amplo podem ser vistos como formas de capitais físico, humano e intangível (p. 239). Investimentos (capacidade de atração), pessoas qualificadas (educação) e acesso a tecnologias por conhecimentos científicos significativos. No Quadro 11.1 (p. 249), Williamson aborda o contraste no crescimento comparativo entre países “voltados para fora”, que conseguiram acumular fatores e se pautaram em uma política de exportações, com países “voltados para dentro”. Enfatiza que o desenvolvimento requer a definição de setores voltados a promoção do crescimento (p. 255), com a proposta de modelo intertemporal (p. 254). Dá destaque à “taxa de câmbio oculta” (p. 253) pelo conceito de preço oculto para recursos escasso, cujo exemplo cita o multiplicador de Lagrange.

No imaginário popular brasileiro de empolgados com o nióbio e coisas do gênero às de teses lacradoras nos arraias progressistas, não é difícil encontrar quem pense ser riqueza sinônimo de posse de recursos naturais. Nesta visão, o Brasil seria um país “rico”, e o Japão, “pobre”. Se “o petróleo é nosso” e nos orgulhamos de rios e mares a perderem de vista, fato é que o Japão tão “pobre” de recursos naturais tem uma renda per capita 5,23 maior que a riquíssima Pindorama [155].

O drama do Brasil reside justamente na dificuldade de acumular ou atrair fatores de produção para que os recursos possam ser agregados às melhores tecnologias, os recursos humanos mais capacitados e acesso a mercador para comporem o processo de geração de riqueza, contudo o que há é um ambiente hostil ao investimento estrangeiro, com muita insegurança jurídica, legislações protecionistas, tudo encharcado por uma pesada burocracia estatal voltada para preservar regalias de políticos e de quem atua em carreira no funcionalismo dito “público”, problema que se agrava quando o inquilino do Palácio despreza o papel do empresário e reforça na população teses do protagonismo do Estado na economia, a considerar um povo há muito tempo educado com ideias rudimentares de desenvolvimento a confundir estoque bruto de recursos naturais com riqueza.

155. Ver base de dados do Banco Mundial em https://datatopics.worldbank.org/world-development-indicators/

24/01/2023 21h20

Imagem: Companhia das Letras

Hilda Hilst

“As mães não querem mais filhos
poetas.

A esterilidade dos poemas.
A vida velha que vivemos.
Os homens que nos esperam
sem versos.
o amor que não chega.
As horas que não dormimos.
A ilusão que temos.

As mães não querem mais filhos
poetas.

Deram o grito
desesperado
das mães do mundo.”

Obra: Presságio. Poemas primeiros (1950). XIX. Da poesia. Companhia das Letras, 2017, São Paulo, eBook Kindle. De Hilda de Almeida Prado Hilst (Brasil/São Paulo, 1930-2004).

Um mundo sem poetas…

É sexo sem amor
de quem segurança
encontrou para dar ilusão…
Por um fé que não ousa
se olhar pelo coração.
Que se veste de mitos
e desfila a um deus
sem poesia, morto
em seus ritos.

É de conveniente amizade
que subsiste
enquanto só há vaidade
onde narcisam elogios
ao que se é útil,
que nos ofendem
quando palavras cessam
por um orgulho fútil
de ações que nos renegam.

Poetas mortos
em rodas abastadas
ao que não se pode contar,
cuja riqueza acumula
e se esvai quando
aquela hora chegar.

Vida sem poesia…
de sobrevida…
brinda os que construíram
uma história tão bem sucedida…
que caminha a uma velhice
certamente opulenta,
cercada na sandice
da ansiolítica herança
de quem por isso o assiste.

Pastor Abdoral 23/01/2023 23h56.

23/01/2023 06h24

Imagem: Città Nuova

Marco Aurélio

“Tua inteligência será idêntica àquilo que pensares frequentemente, em uma paridade entre as ideias que alimentas habitualmente e tua inteligência; com efeito, a alma se tinge das ideias.”

Obra: Meditações. 1a. edição da Edipro, 2019, São Paulo. Tradução de Edson Bini. De Marco Aurélio Antonino (121 d.C.-180 d.C.).

Torno a TΩN EIΣ EAYTON – Meditações do Imperador considerado filósofo.

“[…] tinge tua alma alimentando assiduamente ideias como: onde se pode viver, também se pode viver bem; se é possível viver em uma casa, também é possível viver bem em uma casa. E, por outro lado, cada coisa é conduzida em função daquilo de que foi formada, estando seu fim naquilo em função do que foi conduzida […]”

A inteligência se atrela ao exercício do pensamento, pelo hábito de desenvolver ideias, aqui antecipando um pouco aqui sínteses de Tomás de Aquino sobre a virtude que vem pelo hábito.

O pensar deve se recorrer à inteligência que tudo envolve [Livro XIII, 54] e nada mais trágico que a corrupção da inteligência, “uma peste muito maior que as intempéries e a contaminação do ar que nos circunda” [Livro IX, 2].

O ser humano é um corpo precário, um sopro de vida e uma inteligência; as duas primeiras composições são posses na medida em que se ocupa e se empenha em cuidar delas, enquanto só a inteligência é uma propriedade pessoal legítima; se alguém for arrastado pelo tumulto, a matéria, a carne, tais coisas podem ser levadas, assim como o “sopro vital”, qualquer coisa inerente, enquanto a inteligência não pode ser arrastada [Livro XII, 14].

22/01/2023 10h22

Imagem: Acervo Paulo Freire

Carlos Rodrigues Brandão

“Não houve tempo para passar das primeiras experiências para os trabalhos de amplo fôlego com a alfabetização de adultos. Em fevereiro de 1964, o governo do Estado da Guanabara apreendeu na gráfica milhares de exemplares da cartilha do Movimento de Educação de Base: Viver é Lutar. Logo nos primeiros dias de abril, a Campanha Nacional de Alfabetização, idealizada sob direção de Paulo Freire, pelo governo deposto, foi denunciada publicamente como ‘perigosamente subversiva’. Em tempo de baioneta, a cartilha que se cale.”

Obra: O que é o Método Paulo Freire. Um dia, perto de Angicos. Editora Brasiliense, 1990, São Paulo. De Carlos Rodrigues Brandão (Brasil/Rio de Janeiro/Rio de Janeiro, 1940).

Rodrigues Brandão cita uma “pequena experiência” com cinco pessoas no Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP) no início dos anos 1960. O método passou a ser aplicado em Angicos e Mossoró (Rio Grande do Norte), depois em João Pessoa (Paraíba) e se notabilizou entre pessoas da roça. Totalizou “300 trabalhadores alfabetizados em 45 dias” (p. 18). Então, ganhou abrangência nacional com a adoção do governo federal (João Goulart) que foi derrubado pelo golpe militar de 31 de março de 1964.

Não vi evidência, em termos científicos, quanto à sua eficácia; relatos, testemunhos, não me são suficientes.

O método de Paulo Freire, segundo ABC do Método, envolve a identificação de um universo vocabular baseado em um conceito que se pauta por visão crítica da realidade social dos alfabetizandos a formar palavras geradoras em um ato criativo que deve conter todos os fonemas da Língua Portuguesa. Ao inserir estímulos para uma subjetividade em torno do que percebem como “realidade social”, entre alunos no processo de alfabetização, para que se voltem a uma concepção crítica, o método se torna mais uma ferramenta de engajamento político do que qualquer outra coisa. Por sinal, indicação comum entre seus críticos.

Sobre “em tempo de baioneta, a cartilha que se cale”, a truculência de quem prefere armas aos versos, os que veneram Paulo Freire costumam se lamentar a depender do alinhamento ideológico, ou será que os regimes da Venezuela e da Coreia do Norte, na atualidade, e os de Cuba e da (extinta) União Soviética, à época da produção do método, onde o pensamento de Freire se alinha, todos baseados no medo da “ponta do fuzil”, tornaram-se legítimos nessa questão?

21/01/2023 18h20

Imagem: David Rubens – bíblico teológico

Roland de Vaux

“[…] do ponto de vista social e jurídico, a situação da mulher em Israel é inferior à que tinha nos grandes países vizinhos. No Egito, a mulher aparece frequentemente com todos os direitos de um chefe de família. Em Babilônia, ela pode adquirir posses, agir judicialmente, ser parte contratante e ter certa parte na herança de seu marido.”

Obra: Instituições de Israel no Antigo Testamento. Segunda Parte. Capítulo III. A situação da mulher. As viúvas. Teológica/Paulos, 2003, São Paulo. Tradução de Daniel de Oliveira. De Roland Guérin de Vaux (France, 1903-1971).

Dos tempos de seminário, entre vários significados, esta obra simboliza a vida do padre de Vaux, dedicada ao saber bíblico-arqueológico.

A ideia de uma situação uniforme, generalizada, absolutamente de amplo domínio patriarcal na antiguidade, onde a mulher era mero objeto e dava ao marido os títulos que um escravo dava a seu amo (p. 62), carece de melhores considerações quanto aos casos da Babilônia e do Egito, citados pelo grande arqueólogo, biblista e historiador francês que também menciona, no parágrafo seguinte, a colônia de Elefantina, sob influências estrangeiras, onde a judia tinha direitos civis de se divorciar e ser proprietária, sujeitando-se aos impostos (p. 63).

Embora a esposa se referisse ao marido com termos habituais de um escravo, sua situação na sociedade era bem diferente da que se verificava em um escravo, pois não era permitido ao marido vendê-la legalmente , e sim repudiá-la, dando-lhe carta de divórcio, um dispositivo que assegurava a liberdade da mulher em comparação com os efeitos de uma transação entre senhores acerca de um servo.

A concepção de uma sociedade judaica tão-somente “patriarcal”, precisa também ser analisada à luz do Decálogo onde se coloca pai e mãe na mesma condição de honra perante os filhos (Ex. 20,12). Lembra de Vaux que as obras sapienciais enfatizam o respeito devido à mãe (Pv 19.26; 20.20; 23.22; 30;17) e que, excepcionalmente, a mulher tomava parte em assuntos públicos; Débora e Jael foram celebradas como “heroínas” (Jz 4-5), Atália reinou em Judá (2 Rs 11), Hulda foi consultora de ministros da monarquia (2 Rs 22.14s), além de Judite e Ester que contam a salvação do povo por meio de uma mulher.

20/01/2023 12h56

Imagem: Revista Bula

Cecília Meireles

“ADORMEÇO EM TI minha vida
– flor de sombra e de solidão –
da terra aos céus oferecida
para alguma constelação.

Não pergunto mais o motivo,
não pergunto mais a razão
de viver no mundo em que vivo,
pelas coisas que morrerão.

Adormeço em ti minha vida,
imóvel, na noite, e sem voz.
A lua, em meu peito perdida,
vê que tudo em mim somos nós

Nós! – E no entanto eu sei que estão
brotando pela noite lisa
as lágrimas de uma canção
pelo que não se realiza.”

Obra: Embalo. Cecília Meireles. Obra poética, Editora Nova Aguilar, 1983, Rio de Janeiro, p. 187. De Cecília Benevides de Carvalho Meireles (Brasil/Rio de Janeiro/Rio de Janeiro, 1901-1964).

Travessia (a Luciana Amorim)

Nosso caminho nos transcende
do Princípio ao fim,
em tua comunhão
realizo toda plenitude
que há em mim.

Seguimos em nosso Éden
na travessia fascinante
de superações e histórias bem vividas,
na ternura de destinos amalgamados
em um só espírito, uma só carne,
pelos corações contemplados.

Leonardo Amorim 20/01/2023 12h48.

19/01/2023 06h26

Imagem: The Economist

John Maynard Keynes

“[…] Se um homem acredita em alguma coisa, por uma razão absurda ou sem qualquer razão, e aquilo em que acredita passa a ser verdade por alguma razão que desconhece, não é possível dizer que acredita racionalmente, embora acredite nela e ela seja, de fato, verdadeira. Por outro lado, um homem pode crer racionalmente que uma proposição é provável, quando de fato é falsa. Portanto, a distinção entre a crença racional e a simples crença não é a mesma que a distinção entre crenças verdadeiras e falsas.[…]”

Obra: A probabilidade em relação à teoria do conhecimento (1921). Keynes. Coletânea. Tradução de Miriam Moreira Leite. Editora Ática, 1978, São Paulo. De John Maynard Keynes (Reino Unido/Cambridge, 1883-1946).

Pensei neste texto do lorde após conversar com um colega que parecia pleno de soluções para salvar o Brasil do que entende acerca “dos quatro anos do atraso bolsonarista nas questões sociais”. Sobraram proposições de que “o novo governo vai fazer isso, aquilo etc e tal”…

Certo de que estava a debater comigo, quando minha intenção era apenas ouvi-lo para compreender melhor seu jeito de pensar, notei desapontamento em seu olhar sobre a ilusão quanto ao que dissera de minha condição de “pessoa culta” por “ler demais”, então precisei alertá-lo que minha atividade de leitor é o contrário do que pensa, pois se rege pelo sentido de tentar, prioritariamente, conhecer melhor a própria ignorância; estou milhões de ano-luz de ser alguém “culto”. A frustração aumentou ao informá-lo de que não tenho a menor ideia de como politicamente tratar sobre problemas sociais do Brasil por meio de planejamento central.

Sinto-me alien em ambiente de indivíduos politizados, sejam lulistas, bolsonaristas ou quaisquer outros “istas” empolgados com certezas ou “convicções” de maneira que se torna impossível questionar as próprias crenças, sejam racionais ou não. Torna-se mais grave o problema quando ocorre o que Keynes cita como algo que se crê com base em argumentos no uso da razão, mas que é falso, e neste aspecto entendo que se trata do ponto crítico onde se situa a ilusão do conhecimento.

Assim, prefiro me policiar na busca da leitura para amenizar meu amplo desconhecimento; ao pensar que sei sobre um determinado objeto, tento depurar meu pensamento para não cair na fantasia de acreditar que conheço o que efetivamente não sei. Tal fenômeno pode ser observado desde este mortal leitor, passando por botequins a rodas de acadêmicos apoiados por políticos.

O que sei por fé tento contrapor à prudência de pesar fatos, para não me consumir em pensamento automático a considerar limitações de dados disponíveis (outro fator sujeito a possíveis ilusões de conhecimento) para tentar não tropeçar em arrogância (missão quase impossível, pois muitas vezes não consigo, sobretudo quando me envieso ideologicamente sem perceber de imediato), e quanto ao que sei que não sei, a questão me remete ao plano da infinitude de minha ignorância, condição que sempre me sinaliza a bem considerar mais a leitura, a reflexão e o silêncio.

O colega lulista saiu deveras decepcionado com este ignorante confesso que a vós escreve terapeuticamente. Espero que me perdoe.

18/01/2023 21h08

Imagem: Mises Brasil

Ludwig von Mises

“Nunca e em lugar algum do universo existe estabilidade e imobilidade. Mudança e transformação são características essenciais da vida. Cada estado de coisas é passageiro; cada época é uma época de transição. Na vida humana nunca há calma e repouso. A vida é um processo e não a permanência no status quo. Ainda assim, a mente humana tem sempre a ilusão de uma existência imutável. O objetivo declarado de todos os movimentos utópicos é o de dar fim à história e de estabelecer uma calma final e permanente.”

Obra: A Mentalidade Anticapitalista. 5. Anticomunismo versus Capitalismo. Edição do Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, São Paulo. De Ludwig Heinrich Edler von Mises (Áustria-Hungria/Leópolis, 1881-1973).

E completa o sábio austríaco que mudança força indivíduos ao ajuste, o que atrapalha os “intelectualmente inertes” que acalentam o “conservadorismo”, fenômeno que seria “contrário à própria natureza da ação humana”.

Então Mises chega ao termo “reacionário”, onde “quase sempre faz-se referência apenas aos aristocratas e sacerdotes que chamavam seus partidos de conservadores”, contudo, na visão do maior ícone da Escola Austríaca, “os melhores exemplos do espírito reacionário foram dados por outros grupos: pelas corporações de artesãos que impediam o acesso à sua especialidade aos recém-chegados; pelos fazendeiros que exigiam proteção tarifária, subsídios e ‘equiparação de preços’; pelos assalariados hostis ao progresso tecnológico e que instigavam o sindicato a forçar o empregador a contratar mais operários do que o necessário para um determinado serviço, e outras práticas similares” (p. 77).

Ao conversar com um taxista simpático a ideia de “combate” a “concorrência desleal” dos motoristas de aplicativos como o Uber, um dos símbolos de mudança no mercado de serviços de transporte, perguntei sobre como se sentiria como consumidor tendo que pagar mais caro por um serviço por conta da concessão de privilégios de monopólio a determinados grupos avessos à livre concorrência. A resposta foi: “concorrência é bom, mas o capitalismo para ser justo tem que proteger os que (taxistas) pagam por licença que os ‘clandestinos’ (do Uber) não pagam”, ou seja, a “concorrência” na visão do taxista é algo restrito em favor de quem adota regulação com taxação protecionista que, na prática legalista, encarece o serviço enquanto inibe a entrada de novos concorrentes, fortalecendo uma reserva de mercado entre “licenciados” coercitivamente que compõem uma elite, sendo notório caso de mentalidade anticapitalista apontada por Mises.

17/01/2023 21h50

Imagem: escritas.org

José Saramago

“Cada segundo que passa é como uma porta que se abre para deixar entrar o que ainda não sucedeu, isso a que damos o nome de futuro, porém, desafiando a contradição com o que acabou de ser dito, talvez a ideia correcta seja a de que o futuro é somente um imenso vazio, a de que o futuro não é mais que o tempo de que o eterno presente se alimenta”

Obra: O homem duplicado. Editorial Caminho, Lisboa, 2002. De José de Sousa Saramago (Portugal/Azinhaga, 1922-2010).

Penso em paralelo ao trecho o que dissera Santo Agostinho de Hipona: “o presente não tem duração alguma” [155].

O que chamo de “futuro” é o que tão-somente estimo; não tenho como garantir que existirá, tampouco mensurar como faço com o ocorrido, o passado na forma do tempo consumido. O futuro é o “saldo misterioso” que resta para zerar a conta na medida que o “Krónos” vai passando, além de minha capacidade de projeção e controle.

Como o “futuro” é uma grandeza inacessível, permanece o desafio de aproveitá-lo como se fosse o último ao longo do “Krónos”, para que os acontecimentos da vida posam refletir em oportunidades. Aproveitar bem o Krónos para que se tenha o Kαιρός (Kairós), um “tempo oportuno” que, para a fé cristã é o “tempo de Deus”, o tempo certo (maduro) para as coisas acontecerem.

O futuro é um tempo da conta de minhas decisões na forma de consequências.

155. Confissões. Capítulo XXVII.

16/01/2023 22h30

Imagem: BRAZILIAN POETRY

Cora Coralina

“Grande poeta.
Teu corpo gélido vai se desintegrando
molécula após molécula
na terra fria de Temuco,
e vai se integrando de novo
no grande todo universal.
E eu o vejo comandando
no etéreo todos os potros
indomados da Terra.”

Obra: Pablo Neruda (poema/trecho). Cora Coralina, Melhores Poemas. Direção de Edla van Steen, 2a. edição digital, 2020, eBook Kindle. De Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (Brasil/Goiás, 1889-1985), pseudônimo Cora Coralina.

Transcendência

Poesia é oração
ao desnudo
da alma, lapidado,
sem rebuscar.

O poeta evangeliza
o que a religião
não consegue anunciar.

A palavra ao poeta
deixa de ser o
símbolo da ausência
para se tornar
signo da presença
em transcendência.

Pastor Abdoral 16/01/2023 19h54

15/01/2023 17h50

Imagem: Massi Lo Sà

Saint Bernard Tolomei

“Que est alors le facteur determinant la ‘conversion’ que va conduire ce jeune chevalier impéueux à quitter sa ville chérie, son milieu confortable, pous suivre le Christ au désert?”

Obra: Saint Bernard Tolomei. Fondateur de la Congregation bénédictine de Saint-Marie de Mont-Olivet. Éditions du Signe, 2009, France. De Dom Bernard-Marie Buchoud.

Foi a pergunta que me veio no Roma-Milano: o que fez um jovem rico, impetuoso, cavaleiro, da elite intelectual, a deixar sua cidade, o conforto de uma família poderosa de Siena, de banqueiros (campsores domini Papæ) e comerciantes, para seguir uma vida de dedicação a Cristo?

A história de Bernardo Tolomei (1272-1348), filho de Mino Tolomei e de Fulvia Tancredi, à semelhança do que fizera Francesco d’Assisi (?-1226) está no contexto da fé medieval da abdicação de uma vida normal para um esvaziamento de si mesmo, tudo em busca de uma experiência espiritual em busca da penitência e que assim se recusa aos prazeres, ao desprovimento de bens e de tudo que uma vida normal de quem estava na abastança poderia oferecer.

Quão poderosa é a fé para inspirar pessoas a abrirem mão de tudo o que for cômodo nas conveniências do tempo? Bernardo Tolomei decide deixar sua cidade em contexto de crise política e guerra na Península Itálica para ir a uma terra não cultivada que recebera por herança, Acona, não muito distante de Siena (30 km), eis o seu “deserto” para se dedicar com mais dois amigos a penitência e a oração em um estilo eremítico; organizaram capela, chamavam padres para celebrar a missa e assim não demorou muito para despertar o interesse de muitos que assim os seguiram a gerar um processo que os institucionalizou na tradição beneditina sobre o que começara como uma singela experiência.

A história de Bernardo Tolomei foi marcada por um grande crescimento de sua ordem e da morte na epidemia de peste que varreu a Europa (1348-1349) quando decidiu voltar a Siena para servir em caridade e acabou falecendo entre as vítimas que, segundo se estima, dizimou 1/3 da população europeia.

14/01/2023 16h26

Imagem: FEA USP

Laura Carvalho

“Há vasta evidência empírica de que os investimentos púbicos têm grande capacidade de induzir investimentos privados, pois dinamizam o mercado interno e recuperam as expectativs das empresas sobre a demanda futura.”

Obra: Valsa brasileira. Do boom ao caos econômico. Editora Todavia, 2018, São Paulo, eBook Kindle. De Laura Barbosa de Carvalho (Brasil/Rio de Janeiro/Rio de Janeiro, 1984).

Leitura foi muito importante para se entender ideias desenvolvimentistas na amplitude do debate econômico. Laura Carvalho na obra aborda o Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) e o “milagrinho”.

A considerar o “efeito multiplicador” derivado do pensamento keynesiano, a economista da USP e diretora da Open Society Foundations (fundada por George Soros) cita o estudo econométrico de Manoel Pires onde se aponta que para cada real gasto em investimento público, ganha-se 1,4 em variação do PIB.

Com a volta da administração petista ao federal, o intervencionismo governamental para fins de investimentos deve tornar a evidência, a contrastar com os quatro anos da visão “liberal” de Paulo Guedes e equipe.

Não penso que exista na sociedade brasileira atual um sentido para um debate real, entre as pessoas comuns – diga-se de passagem que votam e elegem quem formula políticas econômicas – acerca do intervencionismo versus liberalismo. A obviedade de que investimentos por meio do Estado atraem investimentos, ajuda a consolidar a ideia de que a visão liberal não atende às expectativas do cidadão comum. À mon avis, o intervencionismo há muito tempo superou o liberalismo na preferência do mundo político, das mesas acadêmicas onde Laura Carvalho leciona ao imaginário popular, pelo menos, desde a predominância das teorias de John Maynard Keynes (UK/Cambridge, 1883-1946) que promoveram um movimento que rompeu em definitivo a política estatal dita “pública” com a economia clássica, o laissez-faire, e toda proposta baseada em alocações livres no mercado.

O intervencionismo está para a política estatal, pois só assim o político encontrará forma “científica” de se promover como promotor da economia. Então, normalmente, toda “polêmica” sobre o papel do Estado no debate econômico está em uma cortina de fumaça em relação ao laissez-faire que morreu politicamente, faz tempo; então, defende-se essencialmente a mesma coisa com formas diferentes de intervencionismo e ares de maiores divergências que caracterizariam um grande debate, mas que não passa de coisa rasa. Neste ambiente onde o fingimento é uma arte muito apreciada, resta a nichos do que se apresentam como portadores do “pensamento liberal” questionar, sem que o homem comum (e eleitor) consiga minimamente entender, o problema da alocação indevida de meios econômicos, visto que todo investimento estatal se baseia na tomada de recursos, através do sistema tributário, para alocação de acordo com a política definida pela administração, o que tecnicamente indica uma forma de execução por planejamento central.

Obviamente, nenhum economista de pensamento intervencionista dará ênfase a casos como os investimentos nas “campeãs nacionais”, nas refinarias de Pasadena e Pernambuco, nos estádios da Copa 2014, onde os problemas da alocação indevida de recursos ficaram expostos. A grande questão, à mon avis, consiste no fato de que um investimento privado, quando fracassa tem prejuízos limitados a quem investiu livremente, enquanto um investimento estatal os socializa de forma implacável pela carga tributária.

13/01/2023 23h22

Imagem: France 3

Cécile Coulon

“il n’y a pas de plus grand
malheur sur terre
que celui qui n’a pas de poème écrit
pour l’étreindre, le consoler, le contenir”

Obra: Les Ronces. Le monde insupportable. Le Castor Astral, 2018, Paris. De Cécile Coulon (France/Saint-Saturnin/Puy-de-Dôme, 1990).

Se libérer de soi

Infortúnio maior de vicissitudes
passam em um cotidiano
de um ego relutante
a se debater,
escondido em comodidades
que se podem comprar.

Sem poema a brindar
vida além da razão,
com sensibilidade
que permanece oculta
na própria revelação.

É tempo de se libertar,
não do mundo,
mas de si mesmo,
de ilusões de conquistas
que se degradam no tempo
com desejos a esmo.

Pastor Abdoral, Paris, 08/01/2023 23h48.

12/01/2023 23h40

Imagem: Museu da Língua Portuguesa

Gilberto Freyre

“Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro.”

Obra: Casa-Grande & Senzala. Capítulo IV. Global Editora, 2019, no Kindle. De Gilberto de Mello Freyre (Brasil/Pernambuco/Recife, 1900-1987).

Recife

Do meio-dia tranquilíssimo e suavemente frio no Terminal 2 do Madrid-Barajas à noite quente no desembarque do Gilberto Freyre, retorno de releituras no Kindle e eis que no final do voo me veio o capítulo IV de Casa-Grande & Senzala enquanto pela janela via as primeiras luzes da cidade que nasci, cresci e tenho forte ligação de memórias literárias como as que meditei do Freyre Gilberto e do Freire Paulo, da poesia sofisticada de João Cabral de Melo Neto – influenciado bastante na Espanha – da literatura teatral, popular e armorial de Ariano Suassuna, do modernismo intrigante de Manuel Bandeira, do romancismo provocante da mais pernambucana das ucranianas, Clarice Lispector; era o Recife que levo no meu coração bem adiante no mapa do cockpit compartilhado no monitor da poltrona do A330 Neo.

Nesta viagem foram vários momentos em que parei para observar a forte presença afro na Europa, sobretudo na França, e o quanto a carrego em mim como brasileiro, o que me fez sentir orgulho. Então pude perceber o quanto viajar é um investimento espiritual, pois o tempo passa, o dinheiro é efêmero, as experiências, as lições e as lembranças ficam eternizadas em sentimentos e na alma, herança que não pode ser consumida pelo tempo.

O contato com culturas e línguas diversas me fazem lembrar o quanto estou inserido em uma ordem espontânea e rica de dispersões de conhecimentos, a sinalizar que o apego ao saber é um ato de reconhecimento sobre o tamanho do desconhecimento deste mundo que há em mim.

11/01/2023 23h50

Imagem: Luciana Amorim

Ortega y Gasset

“Atiéndase a la vida íntima de cualquier partido actual. En todos, incluso en los de la derecha, presenciamos el lamentable espectáculo de que, en vez de seguir al jefe del partido, es la masa de éste quien gravita sobre su jefe. Existe en la muchedumbre un plebeyo resentimiento contra toda posible excelencia y luego de haber negado a los hombres mejores todo fervor y social consagración, se vuelve a ellos y les dice: «No hay hombres.”

Obra: Espanã Invertebrada. Revista de Occidente en Alianza Editorial, Junio 1934, Madrid. De José Ortega y Gasset (España/Madrid, 1883-1955).

Neste trecho de Espanha Invertebrada, Ortega y Gasset me fez lembrar Ruy Barbosa em Oração aos Moços quanto ao desprezo aos melhores e o temor aos que sabem, o que costuma ocorrer no mundo real dos afazeres políticos que exploram o sentimento da massa ignara a ditar as preferências no jogo das manobras e decisões. Pensei também em Hayek quanto aos piores que chegam ao poder no décimo capítulo de O Caminho da Servidão.

Calle de Alfonso XII, 4

Imagem: Luciana Amorim

Enquanto incrementava passos pela Calle de Alfonso XII em direção ao número quatro, e vislumbrava o imponente e belíssimo Parque de el Retiro no lado oposto da avenida, senti algo parecido quando me aproximei da casa de Gilberto Freyre em Apipucos; memórias de textos na alegria de simplesmente estar em um lugar de profundo significado intelectual.

Consegui realizar o desejo de conhecer o local onde nasceu o filósofo espanhol que faz parte dos pensadores que exercem forte influência em meu jeito de pensar, sobretudo em A Rebelião das Massas.

“A obra intelectual visa, muitas vezes em vão, esclarecer um pouco as coisas, ao passo que a do político normalmente consiste, ao contrário, em confundi-las mais do que já estavam. Ser de esquerda, como ser de direita, é uma das infinitas maneiras que o homem pode eleger para ser um imbecil: ambas são, de fato, formas de hemiplegia moral.” [154]

O retrato que descreve da Europa nesta obra é uma poderosa síntese do que os herdeiros homens-massa, que eu diria o tipo brutta figura, sem classe, sem pedigree, moralmente débeis, avessos à intelectualidade, que glamourizam a estupidez iludidos com a “prosperidade econômica”, no gozo de contar dinheiro, ostentar patrimônio ou no hedonismo que transforma pessoas em objetos, sentados nas comodidades do mundo moderno, estão a fazer com o legado civilizatório de seus antepassados.

154. Vide Editorial, 2016, Campinas, página 61;

10/01/2023 22h36

“En el silencio de la noche, cuando
ocupa el dulce sueño a los mortales,
la pobre cuenta de mis ricos males
estoy al cielo y a mi Clori dando.
Y, al tiempo cuando el sol se va mostrando
por las rosadas puertas orientales,
con suspiros y acentos desiguales,
voy la antigua querella renovando.
Y cuando el sol, de su estrellado asiento,
derechos rayos a la tierra envía,
el llanto crece y doblo los gemidos.
Vuelve la noche, y vuelvo al triste cuento,
y siempre hallo, en mi mortal porfía,
al cielo, sordo; a Clori, sin oídos.”

Obra: Don Quijote de la Mancha. Soneto. Jul 1997, Madrid. De Miguel de Cervantes Saavedra (Espanha/Acalá de Henares, 1547-1616).

De meia idade, um sujeito decidiu dar uma de andante pelo mundo após ler romances. Enquanto vejo pela janela do trem as primeiras visões de Madrid, fico a pensar em Dom Quixote, na poética genial de Cervantes que versa entre o real e o imaginário.

Madrid a anoitecer

Atualizado em 14/01/2023 14h28

De Puerta de Atocha, da saída do enorme, confortável e pontual comboio da SNCF Barcelona-Madrid, a passar pela Uber bilíngue que parecia iniciante a me lembrar a de Lisboa quanto à determinação de prestar um bom serviço, do check-in até um primeiro passeio no quilômetro zero no símbolo da capital (também a padecer da pandemia de pichação) a passos da hospedagem em Puerta del Sol, marcamos registro no Oso y el Madroño de Antonio Navarro Santafe (1906-1983).

Imagem: Luciana Amorim

Uma bela caminhada pelo centro e Madrid já anoitecia; um café, um livro, o inseparável Kindle, e de volta à Porta do Sol, obras ao redor, muitas lojas em rebajadas, enquanto o romantismo de praças sugeriu um registro de uma jornada a completar 25 anos.

Imagem: Luciana Amorim

A belíssima arquitetura de palácios e museus em meio à modernidade de telões de publicidade imensos me sinalizam que, pelo menos em seu centro, Madrid é um tanto diferente de Barcelona quanto ao ritmo frenético de uma intensidade de passantes e turistas, à semelhança de Paris, sob imenso fluxo nas entradas do metrô, das paradas de ônibus cheias mas não abarrotadas, em meio a um trânsito pesado, porém não amedrontador, pois não notei aquele congestionamento que se poder ver no Recife, a capital do caos da mobilidade urbana no Brasil.

Lembrei-me do que me parece ser apenas um estereótipo quanto ao espanhol médio a falar alto em público; na caricatura da lenda urbana nossos hermanos europeus seriam espalhafatosos e um tento rudes no trato social (ouvi certas vezes), e então pensei a partir de um grupo de uma conversa sonoramente notável nas mesas, dispostas ao centro da rua, em um restaurante concorrido; estávamos no final da viagem e adentramos ao recinto onde apreciei um delicioso prato que tinha o curioso nome de “Real Madrid”. Seguindo o menu, o “Atlético de Madrid” e o “Barcelona” também foram apreciados, pelas meninas, que notaram o jeito, digamos, um tanto “pragmático” do garçom do tom de voz à forma como se movimentava entre as mesas e respondia às nossas dúvidas (acho que elas ficaram com um certo medinho dele), até o momento do sono reparador da janela do quarto do segundo andar, quando um grupo, na saída de um bar, discutia sobre fútbol, cujo barulho adentrava pela porta da romântica varanda e assim competia com minha vontade de seguir na leitura de cabeceira, em meio a anotações para o blog, enquanto aumentava a saudade de minhas plantas e dos meus pets.

09/01/2023 23h52

Atualizado em 14/01/2023 10h40

Para el barcelonés ajeno a la profesión arquitectónica, la Sagrada Familia es una entrañable parte de la ciudad que con ella crece y se desarrolla; pero para el profesional, para el constructor, para el homo faber, es un libro abierto del que se puede aprender, no sólo cómo continuar el Templo, sino cómo resolver problemas constructivos y estéticos dentro de un modo de hacer que, inexorablemente, dará como fruto una auténtica escuela de arquitectura.”

Obra: Un templo del siglo XIX para el siglo XXI. En portada La última lección de Gaudí. 06 – Nuestro Tiempo julio&agosto 2010. De Juan Bassegoda Nonell.

Sagrada Família

Na saída da Barcelona Sants, agradável conversa com um taxista angolano amante do saber acerca de línguas; português brasileiro, português europeu, catalão, galego português, castelhano e espanhol.

Bem ao lado da hospedagem, pela janela, chamou-me a atenção uma escola com crianças impecavelmente fardadas em uma organizada aula de educação física, onde notei até um protocolo para início e término em uma quadra que reflete o espírito da cidade: limpa e muito bem sinalizada.

Imagem: Luciana Amorim

A Sagrada Família em Barcelona “reúne todos os ideais que formaram a existência de Gaudí”, abre o autor do interessante artigo desta Leitura, texto vinculado ao evento de consagração do Templo pelo então papa Benedicto XVI (novembro/2010), enquanto da janela da nossa agradabilíssima hospedagem (a melhor do recesso) contemplávamos uma parcial visão da magnífica obra, que se entrelaça com a uma cidade agradável a começar pelo trânsito, com uma sinalização que parece beirar o impecável.

Imagem: Luciana Amorim

Barcelona é convidativa, acolhedora e funcional. Após duas esquinas de uma caminhada se abre a visão da grandiosa mensagem arquitetônica do modernismo catalão de Antonio Gaudí (1852-1926) cuja primeira pedra foi colocada em 18 de dezembro de 1882. Profundo conhecedor da arquitetura gótica, Gaudí assumiu a direção da obra no ano seguinte e a partir de 1915 ficou dedicado exclusivamente a ela até o trágico acidente (atropelado por um trem) que ceifou sua vida em 1926.

“Condensación de la historia cristiana – . El templo está cargado de simbología religiosa. Todo él es una representación cincelada de la vida de Jesucristo y de la historia de la Iglesia Católica” (p.19).

08/01/2023 20h16

“Sans doute, c’est encore aujourd’hui un majestueux et sublime édifice que l’église de Notre-Dame de Paris. Mais, si belle qu’elle se soit conservée en vieillissant, il est difficile de ne pas soupirer, de ne pas s’indigner devant les dégradations, les mutilations sans nombre que simultanément le temps et les hommes ont fait subir au vénérable monument, sans respect pour Charlemagne qui en avait posé la première pierre, pour Philippe-Auguste qui en avait posé la dernière”

Obra: Notre-Dame de Paris. Tomo I. Livre troisième. Bibebook eBook livre. De Victor Hugo (France/Besançon, 1802-1885).

Como é dito no primeiro tomo da novela de Victor Hugo, “não é difícil não suspirar, não se indignar com a degradação, com as incontáveis ​​mutilações que o tempo e os homens simultaneamente submeteram ao venerável monumento” da Catedral de Nossa Senhora de Paris, outrora ao relento a cair aos poucos, agora entre tapumes de uma lenta e complexa restauração após o incêndio de 15 de abril de 2019.

Apesar de inacessível, nesta tarde de domingo estávamos a contemplá-la.

Imagem: Leonardo Amorim

Onde estão?

A Notre-Dame de Paris soa como uma hipérbole diante de outras mutilações socialmente desapercebidas, pelo menos na retórica da grande mídia que pude ver, onde se finge que tais coisas inexistem para serem noticiadas ao mundo, enquanto no Brasil, sob síndrome de vira-lata, leva-se a fama. No icônico país progressista, berço publicitário do Contrato Social de Rousseau, talvez o maior do mundo nesse sentido, onde o partido socialista é sempre destaque na grande mídia por suas propostas de “políticas públicas” na pauta contra as desigualdades sociais- a levar pouco mais de 230 anos – e eis que em uma caminhada ao longo de uma das avenidas mais famosas e caras do mundo, a Champs-Élysées, madames de Prado passam diante de mendigos, alguns ajoelhados por uma oferta, outros em cadeiras de rodas. Enquanto afrodescendentes de Rolex exibem máquinas Ferrari em uma das paralelas próximas ao Arc de Triomphe, outro grupo de nossos irmãos da África estão na disputa de pedaços de um hambúrguer do McDonald’s.

Andei a procura de um buraco nas ruas e não encontrei; procurei no lugar errado, pois buracos na Europa são facilmente encontrados em orçamentos de governos que gastam mais do que arrecadam no resultado primário, para a festa dos financiadores do mercado financeiro que apoiam políticos progressistas para que continuem com suas “políticas públicas”, e assim mais dívidas se acumulam a serem financiadas por pagadores de impostos que disputam um pedaço de lanche, para que muitos beneficiários dos juros desfilem na Champs-Élysées enquanto bestiais aplaudem algum discurso do Emmanuel Macron.

Imagem: Leonardo Amorim

Na saída da visão panorâmica do sexto andar do hotel, ainda não tinha notado o surgimento do que parece ser o início de uma favela bem ao lado de um prédio em torno de um campo de futebol society.

07/01/2023 23h54

Atualizado em 10/01/2023 06h28

Est-ce une chose possible que (le créer de la richesse ?

Oui, puisqu’il suffit pour cela de créer de la valeur, ou d’augmenter la valeur qui se trouve déjà dans les choses que l’on possède.

Comment donne-t-on de la valeur à un objet?

En lui donnant une utilité qu’il n’avait pas.

Comment augmente-t-on la valeur que les choses ont déjà ?

En augmentant le degré d’utilité qui s’y trouvait quand on les a; acquises.

Obra: Oeuvres de Jean-Baptiste Say. 4, Oeuvres diverses de J. -B. Say : contenant Catéchisme d’économie politique, fragments. CATÉCHISME D’ÉCONOMIE POLITIQUE. 9. Gallica. De Jean-Baptiste Say (France/Lyon, 1767-1832).

Para o economista clássico francês, o valor de uma coisa em economia se relaciona diretamente com utilidade que se dá a ela e é possível aumentar o valor dando-lhe uma utilidade que até então não tinha.

A visão de Say pode ser complementada pela visão austríaca onde o peso da subjetividade ou da espontaneidade na tomada de decisões econômicas compõe o processo de valorização, algo que se origina do comportamento do consumidor manifestado mediante o mercado gerando o que se chama de “demanda”. Nessa concepção, o que faz uma coisa valer x é o resultado que considera a disposição do consumidor em pagar por ela.

Valor pelo desejo

Imagem: Luciana Amorim

O que explica os preços de cosméticos em uma farmácia de Paris, de Milão ou de Vitória de Santo Antão? Não se trata apenas de uma mensuração de margem a partir do custo contábil de produção . Se foi verificado que há demanda capaz não somente de cobrir o preço lançado pelo ofertante com a margem de lucro inicial, mas também um preço maior se o demandante perceber que o giro do produto não se reduz, então o processo de valorização desse bem está em curso. O ofertante lança o sinal do preço majorado aos demandantes que se manifestarão, e confirmando o consumo, atesta-se que o sentido o valor foi aumentando tendo como via o desejo do consumidor.

O desejo está para o consumo como um fator de subjetividade do ser humano explorado por quem atua no mercado no lado da oferta. Esta é a questão essencial que socialistas relutam em aceitar: a vontade do ser humano que se expressa no mercado.

Imagem: Luciana Amorim

O deslumbramento com as grifes, o impulso por um “banho de loja”, o alto consumo de cosméticos, a expressão humana do desejo, sendo manipulada ou não, é o sinal para quem produz e atua no ambiente comum onde as ações humanas acontecem: o mercado.

Na loja da Louis Vuitton próxima ao Louvre, pude observar o deslumbramento das pessoas diante da vitrine com a robô da artista japonesa Yayoi Kusama, e imaginar o quanto essa visão pode pesar na decisão de adquirir um produto da loja, bem mais caro mesmo se houver outro produto de qualidade similar por um preço menor em lojas de marcas menos conhecidas ou valorizadas. Ostentar a etiqueta da Louis Vuitton então se torna sinônimo de status, e talvez por isso, alguns esperem ser mais referenciados na sociedade baseada em consumo como forma de poder, ostentação e prestígio.

06/01/2023 23h18

“La piété, l’histoire et la science se donnent ici la main pour faire de Montmartre un lieu de pèlerinage où l’esprit et le cœur trouvent abondament à se satisfaire.”

Obra: Histoire de Montmartre: état physique de la butte, ses chroniques, son abbaye, sa chapelle du martyre, sa paroisse, son église et son calvaire. Gallica. Clignancourt / par D. J. F. Chéronnet ; revue et publiée par M. l’abbé Ottin. De Chéronnet, Dominique-Jacques-François (France, 1793-1863).

Montmartre

Para se chegar no bairro que desde a era dos gauleses se notabilizou pela dedicação ao culto “pagão” a divindades como Marte e Mercúrio (p. 19), posteriormente no século III foi local de martírio cristão, o que se associa com o surgimento de movimento de devoção no século XI (p. 30) e hoje é visto como “boêmio” reduto de artistas com vislumbre a memórias de Van Gogh, Renoir e outros que hoje são grandes nomes que gostavam de frequentá-lo, foram seis minutos da hospedagem a estação Porte de Choisy, tomando-se o metrô no sentido Le Courneuve 08/05/1945, até saltar em Le Peletier e então se passaram 17 paradas que levaram aproximadamente 26 minutos.

A caminhada de Le Peletier ao topo da Basilique du Sacré Cœur levou cerca de 20 minutos, pela Rue des Martyrs até as escadarias íngremes. As da Rue du Chevalier de la Barre até parecia alguma penitência, pelo menos foi o que senti no final ao lado de um senhor britânico, assim como no semblante dos passantes que se avolumavam na subida, até se chegar na Rue du Mont-Cenis com artistas e pinturas de retratos e paisagens que formam em uma pequena feira diante de mesas de restaurantes entra a calçada e um pouco da rua, onde pelo menos um está aberto e ativo desde o século XIX.

Imagem: Leonardo Amorim

Circundando até o lado oposto da Basílica começaram a surgir os famosos cadeados deixados por apaixonados, fixados em telas que culminam na parte frontal onde se situa a belíssima visão panorâmica de Paris que se contempla em escadarias lotadas por turistas e animadas por cantores de rua ao violão, além de uma fila um tanto longa para ingressar na Sacré Cœur, tudo em meio a uma segurança de militares com fuzis.

Da descida da Sacré Cœur a visão da Basílica é de encher os olhos pela imponência na colina do ponto mais alto de Paris, por isso em alguns momentos foi local de defesa militar.

Imagem: Luciana Amorim

No final há um intenso comércio de souvenirs e seguindo a descida até a Rue des Martyrs, onde todo santo ajuda, assim o tempo de caminhada foi bem mais breve para se chegar de volta a Le Peletier, cerca de oito minutos, na hora do rush a fazer o trajeto de volta a Porte de Choisy.

05/01/2023 23h50

“L’essentiel est invisible pour les yeux… On ne voit bien qu’ avec le couer.”

Obra: Le Petit Prince. XIII. Edição da DN Pubhishers, em francês eBook Kindle. De Antoine-Marie-Roger de Saint-Exupéry (France/Lyon, 1900-1944).

Quando se passa quase ou toda a vida como se tudo fosse resumido a afazeres terrenos e ao acúmulo material (não que tais coisas não sejam importantes), onde o tangível se entrelaça na auto afirmação, nessa corrida de prioridade maior em busca de coisas que se veem e degradam no tempo – pelo custo de oportunidade – inevitável é o desprezo do que se poderia experimentar e ecoa na eternidade, de modo que a única coisa que se tem para falar é sobre algo que não contará quando o inevitável no destino chegar.

Quando rios de dinheiro passam por um auto endeusamento, onde vale a forma que anula o conteúdo, não raramente se remodela o corpo de maneira que tudo se resume ao próprio ego ou a transformação em mero objeto de desejo tomado ao narcisismo, e assim se esvai uma vida a se esconder do tempo e de si mesma.

O que realmente mais importa na passagem terrena? A brilhante síntese (citação original) de Antoine-Marie-Roger de Saint-Exupéry em O Pequeno Príncipe me inspira a um sentido que aprecio à questão:

“O essencial é invisível aos olhos… Só se vê bem com o coração”.

Tradução livre.

Andar por Paris

Atualizado em 10/01/2023 06h26

Imagem: Luciana Amorim

A forma de nos locomovermos por uma cidade pode definir se vamos ou não nos conectar melhor com a sua realidade, a nos aproximar do modo de vida do morador comum, para ver as facilidades e as dificuldades do cotidiano e assim aprender melhor sobre o lugar e observar a cultura fora dos holofotes voltados às aparências. Andar por Paris de taxi, Uber, pagar pacotes de city tour ou contratar um orientador turístico pessoal para nos levar pela mão, entregando tudo de “mão beijada”, pode ser cômodo (e bem mais caro), mas não proporciona a conexão a qual me refiro, pois aprendemos quando enfrentamos as dificuldades com a língua e os trejeitos locais, e tudo isso fica mais prático quando há um sistema de transporte coletivo com uma grande malha de metrô, trens, ônibus e os moderníssimos bondes T3b.

Imagem: Luciana Amorim

Da hospedagem com 6 minutos de caminhada adentramos na estação da M7 Porte de Choisy e descemos na Place d’Italie, fizemos baldeação para M6 no sentido Charles de Gaulle-Etoile para descermos na estação Trocadéro em modo rápido e econômico para três pessoas a totalizar 6 EURO. Nos corredores das estações parisienses não vi pessoas a morar nos corredores (como se deu em Milão); artistas de rua a tocar baladas e ritmos afro, muito interessante.

O Trocadéro possibilita uma das melhores vistas da Tour Eiffel; na imagem da mãe fotógrafa oficial, eu e nossa bambina, que mais uma vez (segunda vez em Paris) se emocionou com o passeio em torno da Torre.

Imagem: Luciana Amorim

04/01/2023 22h40

Atualizado em 07/01/2023 11h30

“Ce n’est pas parce que les hommes ont édicté des Lois que la Personnalité, la Liberté et la Propriété existent. Au contraire, c’est parce que la Personnalité, la Liberté et la Propriété préexistent que les hommes font des Lois.”

Obra: La Loi. Edição digital do Institut Coppet. Paris, janvier 2011. De Claude Frédéric Bastiat (France/Baiona, 1801-1850).

Bienvenue a Paris

Com um angolano que vive há 11 anos em Paris e nos atendeu no Uber converso sobre minha percepção de que há muitos falantes de cultura árabe, talvez mais do que africanos e sul-americanos, desde minhas observações em Lisboa, Roma, Milão e Turim e a resposta foi imediata: em Paris há mais árabes que africanos e latino americanos, opinou o angolano. Em uma área de uma lanchonete em Milão, percebi que tinha mais gente conversando em árabe enquanto ouvia pouquíssimo italiano. O mesmo percebi em alguns momentos de estações ferroviárias e de metrô, além no sotaque do inglês e do francês de atendentes de hotel, como o rapaz que fez o nosso check-in em Paris.

No metrô parisiense em um vagão antigo viajamos e eis que na parte externa do trajeto, que lembra o modelo adotado em Recife, uma bela visão da “Dama de Ferro”.

Imagem: Luciana Amorim

A França me parece um paraíso para quem deseja se inspirar em ideais progressistas, intervencionistas e integracionistas, onde legislar é sinônimo ilusório de produzir valores que se originam das relações naturais entre seres humanos. Penso então na visão de Bastiat, onde a pré-existência da personalidade, da liberdade e da propriedade é que faz a lei e não o contrário, como se é comum encontrar na retórica de quem faz política para gastar o dinheiro dos outros dito “público”. Curioso em meados do século XIX, sob efeitos da explosão progressista da Revolução de sessenta anos atrás de sua geração, ter saído um pensador tão refinado em termos liberais.

Fato é que voltei para o berço do socialismo moderno, entenda-se “terceira via democrática”, sob um rebuscado rótulo de Estado de bem estar social, muito poderoso, ideário talvez maior do que no Brasil, e tudo que soa como de “direita” neste universo é taxado como “extremista”. Não é de se admirar então que Lula por aqui seja retratado como um grande democrata, moderado em favor da paz e do amor, enquanto Bolsonaro é caricatura neofascista, do ódio, da mesma forma que a Marine Le Pen, principal líder da direta francesa é associada ao bolsonarismo e ao trumpismo. Políticos e jornalistas franceses, do predominante progressismo, têm um fascínio tão grande por Lula que seria interessante se dessem asilo eterno a ele por aqui…

Tornando à chegada em Paris, a pensar sobre a mentalidade socialista francesa, quando se findou o TGV SNCF Torino Porta Susa-Paris, na saída da Gare de Lyon um anúncio da Solidarité Gratuité, programa de transporte público “gratuito”. Enquanto monto o equipamento para testar o Zoom que será realizado com os clientes, escuto na tevê um debate: turistas lotam museus e ruas sob efeitos da inflação a impactarem severamente restaurantes que seguem vazios no pós-pandemia (a considerar o peso da gastronomia para os franceses) com muitos parisienses e passantes a preferirem fazer compras em supermercados para se alimentar mais em casa ou nas hospedagens, quando não irem a fast foods com seus preços atraentes, e então se levantou a defesa de alguma política pública para “proteger negócios” da inflação (evidentemente induzida como culpa dos empresários) e em nenhum momento se cogitou considerar a própria ideia de “política pública” como causa durante a pandemia quando se impediu muitas pessoas de produzirem enquanto se distribuíam benefícios sociais que expandiram a base monetária (causa da inflação).

Em outro debate, apaixonante defesa de teto para o gás como se fosse possível tabelar preços sem os efeitos devastadores do desabastecimento e da explosão dos índices de preços após o estouro da bolha provocada pela retenção que bagunça o sistema de preços na cadeia de produção; o cinismo de políticos e especialistas é tão ou mais abjeto em comparação com o que ocorre no Brasil.

Outro tema muito debatido em franceinfo é a reforme das retraites (reforma da previdência), vista como “inevitável” em um sistema repleto de benefícios a consumir perigosamente o equilíbrio das contas “públicas” em meio a ameaças de greves de diversas categorias massificadas na ideia de que o Estado “gera riqueza” e o que gasta é “gratuito”.

03/01/2023 20h42

Atualizado em 06/01/2023 09h00

“Turrita e murata anche prime de’ Romani esser dovea la città capitale de’ popoli Taurini, poichè vietò il passo ad Annibale l’anno 221 avante l’era volgare.

Divenuta sotto Cesare colonia Romana, si addonò di tutti què monumenti, di cui si vestivano, ad admirazione di Roma, i municipii e le colonie.”

Obra: Storia di Torino. Capo primo. Libro I. Volume Secondo. Torino per Alessandro Fontana. De Giovanni Antonio Luigi Cibrario (Italia/Usseglio, 1802-1870).

Imagem: Luciana Amorim

Os jardins reais de Turim

Antes mesmo dos romanos se tornarem dominantes na península, Torino foi organizada como capital dos Taurini. Tornar-se-ia colônia da província itálica do Império assim a replicar os padrões urbanos provincianos.

Caminho a olhar para uma cultura, uma vastidão de história cuja deliciosa pizza na Via Giuseppe Garibaldi, na saída da icônica Piazza Castello, faz parte de uma metáfora e eis que contemplamos a fachada do Palazzo Madama, que se encontra em restauração.

Adentramos nos jardins dos Musei Reali Torino cuja primeira planta remonta ao ducado de Emanuele Filiberto di Savoia (1553-1580). Lugar de um silêncio e de uma paz incomuns onde se tornou oportuno meditar, refletir e reavaliar muitas coisas.

Imagem: Leonardo Amorim

A caminhada pelo centro histórico do Monumento al Cavalieri d´Italia ao Palazzo Reale di Torino ratificou a primeira visão de uma cidade cuja importância histórica como primeira sede de uma Itália reunificada, pareceu entrelaçada com um ambiente tranquilo, sereno, um tanto bucólico.

Entre a opulência histórica e a herança de um padrão civilizatório que aos poucos vai se deteriorando a me lembrar Ortega y Gasset, mais uma vez no final da caminhada, outra placa de um pedinte me chamou a atenção com duas palavras a formar uma comum tragédia de nossa espécie: ho fame.

Imagem: Luciana Amorim

02/01/2023 21h56

“San Simon, decenni dopo, dice la rovina dela Francia è cominciata com la catastrofe di Torino, quando siamo stati buttati fuori dall Italia”.

Obra: La bancarotta dello stato: le cause della rivoluzione francese. Quando l’economia cambia la storia. Intesa Sanpaolo, 2019. Palestra 21/11/2019. Torino. De Alessandro Barbero (Italia/Torino, 1959).

Chamou-me a atenção o bom atendimento da estatal Treinitalia e eis que em um vagão com amantes do esqui rumo aos Alpes, falantes da língua inglesa, passavam empolgados pelo corredor com equipamentos, findou-se em pouco mais de 60 minutos o trajeto Milano Centrale-Torino Porta Nuova.

Ao chegar a Torino, lembrei-me de uma lição do professor Alessandro Barbero sobre a expulsão de franceses no início do século XVIII cujo fato, ao mencionar a visão de Sant Simon, marcou o início da grave crise financeira da monarquia francesa em um longo processo de degradação das finanças que culminou em insolvência fiscal e potencializou a Revolução (1789).

Turim… da sede da Fabbrica Italiana Automobili Torino, mais conhecida por FIAT e de seu pomposo centro histórico, forte ligação com a unificação da Itália, sóbria, silenciosa, de transito bem mais tranquilo que a fashion Milano e a estressada Roma, em vários momentos, por uma percepção de um dia útil, lembrou-me uma bucólica cidade interiorana…

Imagem: Luciana Amorim

Torino

Uma caminhada da hospedagem em Porta Susa até a Basilica Santa Maria Ausiliatrice, uma cena que se tornou comum nesta andança de pós-recente-pandemia (quando será a próxima onda?): um senhor com ar sereno, aparentando 70 anos, aproxima-se de onde estávamos diante da estátua de Don Bosco, defronte à Basílica, onde minha bambina fez um registro, e inicia uma conversa a me contar que o valor mensal do fundo de pensão se tornou insuficiente e o pagamento está atrasado, por isso está na rua a pedir ajuda para ter o que comer. Perguntei-lhe se achava que o problema tem alguma relação com a devastação econômica da Covid e ele foi direto: bastante e em seguida perguntou de qual região eu vinha e ficou um pouco surpreso quando falei que estava a turismo sendo brasileiro, então encerrou a dizer que sentiu muito por Pelé.

Adentramos à destra e notamos uma escola, sem porteiro para nos interpelar, com alunos com idade de ensino fundamental indo e vindo. Um grupo batia um calcio no pátio no estilo rodinha de bobo com um italianinho habilidoso fazendo firulas comuns aos brasiliani.

01/01/2023 23h18

Imagem: Luciana Amorim

Milano

“Cioè nell’anno 1499, dopo che il Moro perdette la signoria di Milano. Leonardo ritornò a Firenze col matematico Fra Luca Paciolo, e fece i disegni del suo trattato De divina proportione. Fra Luca aveva dimorato con Leonardo in Milano negli ultimi tre anni ; poi, anche a Firenze.”

Nota do comentarista: Vedi Gaye, nel Kunstblatt, anno 1836, pag. 287.

Obra: Trattato della pittura di Leonardo da Vinci. CONDOTTO SUL COD. VATICANO URBINATE 1270. Unione Cooperativa Editrice, MDCCXC, Roma. Note e commentario de Gaetano Milanesi.

Na stazione Milano Centrale se finda Roma-Milano com a Italo Treno. Conexão imediata com o metrô com baldeação em Zara, no caminho até Ca Granda.

Logo se percebe a marca de Milão, um dos principais centros internacionais da moda, na região mais rica da Itália, o que contrasta com pedintes de rua e moradores dos túneis do moderno sistema de metrô.

Converso com um dono de um “mini-market” e o sotaque de seu italiano direciona o diálogo para me contar que chegou à Itália aos oito anos de idade, com sua família cansada da perseguição religiosa em Bangladesh. As liberdades de culto e de expressão podem ser coisas quase imperceptíveis (e não raramente pouco valorizadas) para muitos, seja na Itália ou no Brasil, mas são preciosidades para quem viveu sob opressão em um ambiente de uma maioria que se torna elite política ao se apossar do monopólio estatal para impor ideologia, não necessariamente religiosa.

A Piazza Duomo di Milano como era de se esperar, lotada, e na repleta de grifes e tradicionalíssima Galleria Vittorio Emanuele II a caminhada se dá com calor humano, uma babel a compensar uma tarde de frio, se bem que incomum com 8 graus quando nessa época normalmente fica próxima do zero.

Imagem: Luciana Amorim

A Catedral é a apoteose do belo arquitetônico, cuja maior riqueza fica no subsolo no sítio arqueológico da antiga igreja do Bispo Ambrosio, onde Santo Agostinho foi batizado.

Ao lado da galeria, na Piazza della Scala, o monumento a Leonardo da Vinci lembra a profunda ligação do gênio renascentista com a cidade, que o acolheu e lhe deu proteção política por três anos até 1499, bem como o seu amigo, matemático e frade franciscano Luca Bartolomeo de Pacioli, apontado como o pai da contabilidade moderna, cujos desenhos em o Tratado da Divina Proporção são de Leonardo que deixou sua maior marca em Milão na pintura da Ultima Cena no Cenacolo Vinciano.

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