31/08/2024 18h20
Imagem: Unicap
“Temos sintoma ainda mais alarmante: o escândalo antievangélico e profundamente constrangedor de ser cristã, ao menos de origem, a minoria de menos de 20% da humanidade que retêm, egoisticamente, nas mãos, mais de 80% dos recursos da Terra. Aí sim: como teremos força moral para abrir a boca, a não ser para um sincero ato de contrição, com medidas concretas de profunda e rápida conversão?…”
Obra: Dom Helder: o Artesão da Paz. Minorias abraâmicas e estruturas da Igreja. Senado Federal, Conselho Editorial, 2000, Brasília. Organizado por Raimundo Caramuru Barros e Lauro de Oliveira.
Em meados de 2004 passei a me interessar pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEB). Escutei e li bispos, padres, leigos consagrados, sindicalistas, militantes de partidos de esquerda, muitos inclusive declaradamente comunistas, professores universitários agnósticos e alguns protestantes entre pastores e seminaristas entusiastas da imitação chamada “Igreja Integral”.
Naturalmente me deparei diversas vezes com o nome de Hélder Pessoa Câmara (Brasil/Ceará/Fortaleza, 1909-1999), sempre com muita reverência, o que me remeteu às primeiras imagens que tive dele na infância por recordações do que falava minha avó materna; Dom Helder foi um homem nobre dedicado aos pobres e mais necessitados. Contudo, percebi que, embora o discurso predominante, no âmbito das CEBs pós Dom Helder, girasse em torno de uma reflexão evangélica pelos mais vulneráveis da sociedade, havia uma frequente e controvertida associação entre pautas de partidos socialistas e comunistas, com a doutrina social da Igreja, como se fossem a mesma coisa e pertencessem ao mesmo crivo ético, o que é um grave engano.
Percebi em leituras que Dom Helder se enveredou para diferenciar as coisas. Acreditava no “socialismo humano”, que as potências comunistas faziam a “pior contrapropaganda de um socialismo que respeite, efetivamente, a pessoa humana” e que a acusação de comunismo era “explorada, cinicamente, pela extrema direita” (p. 176). No tempo da última ditadura militar alertou sobre os perigos dos dois lados; pelegos e comunistas (p. 115). Não sofreu do “esquecimento” tão comum entre influenciadores progressistas do tempo presente na América Latina, sobre os problemas do autoritarismo e do ateísmo imposto por regimes comunistas, bem como os “de perene suspeição, de delações sem fim, e de imposição de um partido que tudo sabe, tudo faz, tudo cria, sem jamais errar, nem por omissão!” (pp. 277-278). Ao lidar com questões sociais em um país com tantos desajustes e vícios políticos, Dom Helder se pautou para que não se acusasse de comunista quem tivesse “fome e sede de justiça social” (p. 92), um problema comum que afetou o discernimento de bispos católicos (p. 100), mas também a vida de grandes pensadores cristãos fora do catolicismo, que sofreram com o rótulo; talvez o caso mais notável tenha sido o do pastor Martin Luther King Jr. (1929-1968), que foi alvo de atentados e acabou assassinado no contexto desse tipo de distorção cognitiva binária.
Sobre a crença no “socialismo humano”, padre Helder, como gostava de ser chamado (Prólogo, p. 11), talvez ainda seja muito incompreendido por críticos de “direita” que se consideram “conservadores”, por não conhecerem bem a doutrina social da Igreja, tampouco as tradições comunitárias nos tempos apostólicos, um tipo de comuna “aos pés dos apóstolos” baseada no voluntarismo, algo bem distinto do aparato violento, autoritário, coercitivo ateísta que pauta os regimes comunistas a partir do pensamento de Karl Marx (1818-1883). No tempo em que estudei as CEBs, notei o quanto muito de seus entusiastas não sabiam diferenciar as duas visões de socialismo e demonstravam acreditar na perigosíssima ilusão de que militantes de partidos comunistas e cristãos que se devotam aos mais pobres, estão todos no mesmo barco.
Sobre o trecho (pp. 144-145) desta Leitura, trata-se de uma palestra proferida na reunião dos Colaboradores da Freckenhoster Kreises, em Munique/Alemanha), em 22/06/1972. Na base da fé cristã, entre tantos princípios, estão a caridade, a partilha não coercitiva e o amor ao próximo, e o que Dom Helder enfatiza é a indiferença dos que se dizem cristãos diante de uma realidade de pobreza que os cerca enquanto vivem como concentradores de riqueza. Dom Helder pontua essa realidade no mundo moderno com uma reflexão acerca das estruturas da Igreja para todos, voltada para o serviço, o acolhimento, mediante a importância da Comunidade de Base como “dimensão humana, o que permite que todos conheçam a todos. Os problemas não são casos de moral, extraídos de livros, mas acontecimentos reais, que saltam da vida” (p. 145), onde todos se movimentam como “povo de Deus”, párocos, bispos, leigos, em fé, no serviço social e no diálogo, quando “o bispo se acostuma a ouvir a Palavra do Senhor, não somente nas Escrituras, mas nos acontecimentos de cada dia, ele está preparado para assumir, em nome do Cristo, as injustiças que esmagam mais de 2/3 dos homens nos dias de hoje” (p. 147).
Por fim, penso que confundir essa eclesiologia com o comunismo moderno pode ser caso de gravíssima distorção cognitiva ou de desonestidade intelectual em nível de transtorno dos mais extremos. No entanto, essa diferenciação em nada anula a gravidade do problema da ocupação de partidos socialistas e comunistas nas CEBs, tão-somente evidencia o altamente lucrativo negócio da confusão, e aqui lembro, essencialmente, quanto ao que Ortega y Gasset (1883-1955) afirmava sobre a diferença entre a obra do intelectual e a do político; o primeiro visa esclarecer um pouco as coisas, ao passo que o segundo normalmente consiste, ao contrário, em confundi-las mais do que já estavam [256].
256. 25/01/2022 22h46
30/08/2024 20h25
Imagem: DW
“If the state thinks it can regulate human instincts or divert them along other channels by the force of laws that seems to me so amateurish and inappropriate that it does not surprise me to find that to lawmakers of this state are also the defenders of the social order. […]”
Obra: The Memoirs of the Ernst Röhm. Chapter Sixteen. Stadelheim. Frontline Books, eBook kindle, 2012, London. Traduzido para o inglês por Geoffrey Brooks. De Ernst Julius Günther Röhm (Império Alemão/Reino da Baviera/Munique, 1887-1934).
O livro de memórias de Ernst Röhm é reticente sobre um aspecto de sua vida enquanto comandante nazista e o trecho (local 3099/4417) desta Leitura soa nas entrelinhas como uma crítica em favor dos direitos dos homossexuais, dita no contexto da prisão em Stadelheim, um anacronismo para um meio onde o racismo fazia parte dos crimes contra a humanidade que cometiam no legalismo estatal.
Há quem acredite que os gays estavam na lista de Hitler sobre coisas que odiava, mas em se tratando de um líder populista, tudo pode ser instrumentalizado. A moral é apenas uma narrativa para controlar a massa imbecilizada e tomar proveito de preconceitos, então a homossexualidade de um dos seus mais importantes aliados, o comandante da Sturmabteilung (SA) e amigo Ernst Röhm, parecia não incomodá-lo. Eram tempos de uma Alemanha um tanto liberal, antes do nazismo conseguir se elevar nas cadeiras do parlamento, antes de ocupar o Estado, antes da grande crise financeira global que fez a bolha do endividamento germânico estourar, catástrofe econômica que derivou uma devastação social que abriu o caminho para uma aliança que possibilitou a chegada de Hitler ao poder em 30 de janeiro de 1933.
Os anos 1920 foram também do destacamento de Röhm, que se tornou aliado importantíssimo de Hitler no comando da SA, segmento paramilitar do partido, cujo departamento formado por recalcados de todos os tipos era destinado a serviços especializados em “tropa de choque”, entenda-se intimidar, aterrorizar e espancar adversários políticos, judeus e qualquer grupo que incomodasse Hitler.
Röhm começou a se chocar com os interesses do seu então soberano e amigo dos velhos tempos quando o poder de chanceler confrontava uma questão de Estado, a partir do momento em que ficou claro que a SA representava uma concorrência com a estrutura militar alemã oficial, que ameaçou Hitler de golpe de Estado. Então Röhm foi de líder estratégico, no círculo de confiança de Hitler, a uma peça a ser exterminada; logo foi criada uma narrativa para ser classificado como traidor, visto na obviedade de que comandava um grupo paramilitar e, como ocorre em regime totalitário, sobrou-lhe a prisão, seguida de uma proposta de suicídio, a qual recusou para então ser sumariamente executado.
29/08/2024 22h12
Imagem: IHU
“A disputa acerca da veracidade ou falsidade de determinadas crenças é sempre simultaneamente o debate acerca do direito de alguns de falar com a autoridade que alguns outros deveriam obedecer […]”
Obra: O Mal-Estar da Pós-Modernidade. IX. Sobre a verdade, a ficção e a incerteza. Jorge Zahar Ed., 1998, Rio de Janeiro. Tradução de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. De Zygmunt Bauman (Polônia/Poznań, 1925-2017).
A minha experiência religiosa foi determinante para compreender o que Bauman aborda neste capítulo. A verdade enquanto noção está na esfera da retórica do poder (p. 143), argumenta o filósofo, e isso, penso, evidentemente, vai além do âmbito religioso; é tênue a linha que separa determinada verdade sobre um objeto, da crença celebrada sobre o que se tem por veracidade e, nesse território tão perturbado, diz respeito a tudo que se arroga como conhecedor de determinada verdade enquanto se manifesta para fins de ostentação, dominação, submissão ou exercício de poder sobre outrem. Essa segunda parte não raramente fica camuflada por trás do auto glamour que se cultiva na primeira. Em igrejas e partidos políticos esse glamour disfarça a submissão do pensamento em torno da liderança.
Para o Cristo do Evangelho a verdade liberta, e essa fascinante afirmação joanina sempre me provoca a uma reflexão sobre o que significa saber alguma verdade em um mundo em que conhecimento é instrumental para poder sobre outros; para influenciar, comandar e até mesmo manipular. O fato de se ter ciência de alguma verdade, não importa em que área for, tampouco se for simples ou complexa, não garante que haverá liberdade. Pode-se saber a verdade e encobri-la ou fazê-la parecer outra coisa; políticos mandam lembranças.
A verdade que liberta segundo Cristo se associa absolutamente ao que Ele representa e, claro, nada tem a ver com a verdade ensaiada como teoria, o que me remete ao campo da filosofia, tendo assim imensa importância embora insira o problema do relativismo, questão que se torna familiar ao que Bauman analisa ao abordar pensadores que suscitam espíritos mais contundentes ao absoluto; penso aqui em Nietzsche e Kant, entre os mencionados. No entanto, o problema da teoria da verdade extrapola a beleza filosófica de teorizá-la quando se insere pura e simplesmente a disputa por superioridade sistemática, típica de ambientes onde a competição é pela narrativa e não pelo saber de alguma verdade que possa ser conhecida.
28/08/2024 22h35
Imagem: TVU Espanha
“O que nos impede de agir assertivamente , dizer ‘não’ e não nos deixarmos manipular ou explorar?”
Obra: O direito de dizer não! O primeiro passo para resgatar o amor-próprio e ser feliz. O que nos impede de ser assertivos? L&PM, 2018, Porto Alegre. Tradução de Marlofa Aseff. De Walter Riso (Italia/Napoli, 1951).
O terapeuta e professor italiano explica como a intenção de dizer um “não” pode não passar da vontade, um problema comum pelo qual sou diariamente confrontado.
Diante de uma situação desconfortável ou imprópria, ao surgir uma vontade de dizer “não”, uma luta interior se desencadeia a apontar dois processos antagônicos: um mental e outro emocional. No lado mental, reside a percepção e o juízo sobre o que provocou indignação e vontade de contestar, de expor o contraditório, de promover a rejeição, “de se fazer respeitar até as últimas consequências” (p. 60), mas do outro atua uma força oposta que aplaca esse espírito de irritação e disposição ao enfrentamento, o impulso à negação. Nesse encontro, a vontade de recusar pode ficar submetida a uma reavaliação que aponta o que se estima por consequências da intenção de se dizer “não” que estava até então em evidência.
Essa força oposta à vontade de dizer “não” revela “um inimigo difícil de enfrentar”: o medo, normalmente associado a uma possível resposta agressiva do rejeitado, ou de se parecer inoportuno, talvez de se sentir culpado, ser visto como insensível, em suma, deriva-se do medo da reação, do receio das consequências da recusa por meio de um processo que se desenvolve pelo acionamento de um sistema de crenças, que exerce peso de avaliação e atua para moderar o que a reação natural de negar acionou como instrumento de defesa; quando esse medo prevalece, há a submissão ou evasão, e assim o impulso pelo “não” termina superado (p. 59), mas quando o temor é vencido pelo sentido da dignidade, da consciência da relevância do “não”, apesar do desgaste pessoal, há uma resposta assertiva (p. 60). Contudo, não é o único fator a ansiedade social mediante a reavaliação que impede que se diga “não”; “crenças irracionais” e “aprendizagem ruim” são outros fatores que provocam o impedimento do “não” (p. 62) os quais Walter Riso discorre nos capítulos seguintes.
27/08/2024 23h03
Imagem: Nobel Prize
“Quanto mais se aprende a respeito da história econômica, portanto, mais enganosa se torna a crença de que a conquista de um Estado altamente organizado constitui a culminância do desenvolvimento inicial da civilização.”
Obra: Os Erros Fatais do Socialismo. Por que a teoria não funciona na prática. Capítulo 3 – A evolução do mercado: comércio e civilização. O comércio é mais antigo que o Estado. Faro Editorial, 2017, São Paulo. Tradução de Eduardo Levy. De Friedrich August von Hayek (Áustria/Viena, 1899-1992).
Esta é a derradeira obra do economista da Escola Austríaca (EA) mais conhecido no mainstream. Também foi a última obra que li de Hayek em um ciclo de doze anos a partir de 2006 quando comecei a estudar a EA.
Quando passei por este trecho (p. 62), fui remetido à mais uma recordação do então irritante ZW em 1996 quando discutíamos sobre a origem do capitalismo. Tinha abandonado a crença no socialismo havia pouco tempo e estava me esforçando para não cair em algum argumento marxista; considerava-me “socialdemocrata” e naquela discussão estava convicto de que ZW tinha ido longe demais ao afirmar que “o capitalismo não tem origem no Estado”; “ultraliberal”, “extremista”, afirmei, enquanto sentia que tinha algo perturbador em não entender seu raciocínio. Insisti que sem o Estado não poderia ter se desenvolvido qualquer ordenamento jurídico para legitimar posse e transmissão de propriedade, assim como meio de transação regulado e seguro (moeda) para o comércio no pós-escambo. Sem política não existia reconhecimento legal da propriedade privada, e então ele rebateu:
“No princípio criou o Estado os céus e a terra…”
Só fui entender essa paráfrase como uma ironia a partir de 2006 com os austríacos.
Torno então a Hayek que afirma que se sabe muito mais sobre os feitos do governo organizado do que “as conquistas da coordenação espontânea dos esforços individuais” e que por isso o papel governamental acaba sob exagero nos registros históricos (p. 62). Cita o nível de desenvolvimento científico e tecnológico chinês superior ao europeu no século XII tendo a estagnação posterior ocorrido justamente por conta do aumento da interferência do governo. Hayek então retrocede 16 séculos para definir como de “completa incompreensão”, o pensamento de Aristóteles diante da espontânea ordem ampliada de mercado que corria na Grécia antiga (p. 63), cujo fundamento foi o lucro, que condenou como antinatural e desta concepção econômica teria sido derivada a aversão da Igreja medieval ao lucro e à precificação livre dos bens por forte influência da teologia do aristotélico Tomás de Aquino, enquanto corria uma anarquia política que expandia a economia na Idade Média (p. 63). Torno à Grécia antiga, onde Hayek aponta a geração de riqueza, pela produção voltada ao lucro, como um fenômeno que “transcendia significativamente as necessidades conhecidas de outros indivíduos”. Então, a ideia de um Estado na antiguidade, que pesa no ordenamento econômico, não faz sentido para Hayek. O Estado na antiguidade era insignificante em uma comparação com o Estado moderno, penso. Torno a Hayek que, em suma, aponta que a civilização evoluiu na medida em que o comércio livre se expandiu nas relações interpessoais por regras e costumes tradicionais (p. 61), provavelmente a partir de famílias nas trocas de bens, o que pode ter evoluído para instituições mais impessoais dos anfitriões ou “intermediadores” (p. 59) a denotar a evolução desse agente para o que hoje conhecemos por “comerciante”, o que permitiu a densidade da ocupação do mundo (p. 58) e não em torno de uma “ética adequada, na melhor das hipótese, a um estado estacionário” (p. 65), como se esse processo fosse orquestrado por mentes planejadoras a determinar o curso dos acontecimentos e, sobretudo, o comportamento dos indivíduos.
26/08/2024 00h01
Imagem: ADAA
“Você já notou que frequentemente tira conclusões precipitadas, vê as coisas piores do que na verdade são e vê muitas coisas acontecerem em termos de como ‘deveriam ser’, em vez de descrever e aceitar o mundo como ele é?”
Obra: Não Acredite em Tudo que Você Sente. Capítulo 7. Minhas emoções estão fora de controle. Nossa pensamento enviesado. Artmed, 2021, Porto Alegre. Tradução de Sandra Maria Mallmann da Rosa. De Robert L. Leahy (EUA/Virgínia/Alexandria, 1946).
Tenho apreço especial por autores que, no texto, conversam com o leitor.
Quanto ao trecho (p. 105) desta Leitura, penso que evitar conclusão precipitada é um dos maiores desafios que enfrento comigo mesmo no cotidiano e uma forma que encontrei de combater esse problema consiste em aplicar o conceito de que minha opinião imediata NÃO é importante; assim, tento constantemente evitar o “eu acho”, que é um passo para a precipitação, a respeito de algo que tenha em mim provocado algum sentimento relevante, seja desagradável ou não, de um determinado comportamento de uma pessoa a um problema técnico. Em suma, procuro me pautar por fatos, sondar meu pensamento de maneira que não seja conduzido a trabalhar de forma automática, o que normalmente provoca um achismo pelo viés; aqui me refiro a um elemento importantíssimo na Terapia Cognitiva-Comportamental (TCC) de Aaron Beck (1921-2021) e Albert Ellis (1913-2007), citados por Leahy.
Trata-se de um exercício mental muito difícil e, às vezes, flagro-me em conclusões precipitadas. Quando falho nesse esforço, isso não significa que meus sentimentos sejam irreais e sim um indicador da possibilidade de que meus padrões de pensamento habituais estejam a exacerbar minhas emoções a prejudicar um melhor entendimento da situação, fator que, se ignorado, conforme adverte Leahy, potencializa transtorno de ansiedade e até depressão.
Leahy aponta categorias de pensamentos distorcidos (pp. 106-107) e exemplos de distorções para diferentes emoções (p.109) e em seguida deixa um quadro em branco (p.110) para que o leitor reflita sobre suas próprias distorções.
No estudo da TCC aprendi que não somente é possível, mas também é prazeroso trabalhar o pensamento para neutralizar vieses e interromper crenças que induzem a distorções cognitivas mudando assim meus sentimentos, o que pode ser aplicado de forma ampla. Digo “possível” por meio de uma técnica para moderar, controlar e com frequência reduzir a intensidade de sentimentos para a desproporcionalidade na forma de ver as coisas (p. 111) em uma disciplina que coloque o meu jeito de pensar em modo diferente, em perspectiva que seja capaz de questionar minhas crenças pré-concebidas, assumindo o pouco conhecimento que tenho de uma situação desagradável para evitar estimativa exagerada, além do detector de perigo desajustado, fatores que provocam a ansiedade ruim que leva a um transtorno. Afirmo que é “prazeroso” porque ao conseguir realizar o trabalho de superar o pensamento automático e evitar uma precipitação, vejo que consegui neutralizar um preconceito ou um erro de interpretação que poderia ter resultado em um equívoco ou dano grave.
25/08/2024 00h10
Imagem: Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia no Brasil
1.[1]Meu senhor me havia levado a Roma para me vender a uma certa Rosa. Vários anos depois, a revi e comecei a amá-la como irmã.
2.Algum tempo depois, eu a vi tomando banho no Tibre, lhe estendi a mão e ajudei a sair do rio. Olhando sua beleza, pensava comigo mesmo: “Eu seria muito feliz se tivesse mulher com essa beleza e caráter.” Era a única coisa que eu pensava, sem ir além disso.
Obra: O Pastor, de Hermas. Em Padres apostólicos. Hermas. Visões. Primeira visão. Paulus, 1995, São Paulo. Tradução de Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. Introdução e notas explicativas de Roque Frangiotti.
O Pastor, de Hermas, que teria sido irmão do papa Pio (142-155), segundo o Cânon de Muratori. Uma das obras mais curiosas da patrística, muito popular entre cristãos gregos a lembrar o gênero apocalíptico. Do século II, esta obra se destacou porque foi mencionada com certa reverência por vários padres escritores como Eusébio de Cesaréia, Clemente de Alexandria e São Jerônimo. Leitura “por muito tempo, tida como inspirada, inclusive alguns a colocavam no Cânon do NT” (p. 77), texto “lido em voz alta durante séculos em inúmeras comunidades cristãs” [254], o que sinaliza um prestígio de Escritura em um tempo em que não havia a Bíblia como a conhecemos hoje, O Pastor foi literatura para os que “acabavam de entrar na Igreja e queriam ser instruídos na piedade” (p. 78).
Penso que se trata de uma ficção e não de uma biografia de Hermas; um conto de linguagem simples, novelístico. Na introdução desta edição da Paulus se afirma que o autor é “de estilo pobre e que não conhece muito a teologia” (p. 78).
O Pastor tem um roteiro sob pano de fundo de visões a partir da mesma mulher que Hermas confessa um desejo na abertura da narrativa:
4.Durante minha oração, o céu se abriu e vi aquela mulher que havia desejado. Do céu, ela me saudou: “Bom dia, Hermas”. 5. Olhei para ela e falei: “Senhora, que fazes aí?” Ela me respondeu: “Fui transportada para denunciar ao Senhor os teus pecados.”
A lembrar o estilo do Apocalipse, trabalha o tema da penitência em uma narrativa com informações dispersas em torno da história de que teria sido um escravo vendido em Roma que conseguiu a liberdade com sua proprietária, casou-se com uma mulher indiscreta e enriqueceu como comerciante de conduta duvidosa. Após um tempo de prosperidade empobreceu por castigo divino; chefe de um lar romano, pauta-se na condição de Hermas que foi da ostentação à ruína por não zelar a vida espiritual e a família, com filhos blasfemadores, mas encontrou na penitência um caminho para a misericórdia divina.
Quase 300 anos depois de sua grande popularidade, O Pastor terminou entre os apócrifos por decisão do papa Gelásio (492-496) no Decretum Gelasianum e, ao considerar sua cristologia mais oriental, um tanto familiar ao arianismo e distante da romana, em comparação com a que prevaleceu na Patrística pela ortodoxia católica, não me foi difícil perceber uma motivação teológica para esta decisão; O Pastor substitui Jesus Cristo pelo Espírito Santo na encarnação, como se pode verificar na Quinta Parábola [255] e, penso, se tivesse ficado no Novo Testamento, de fato seria uma obra destacada pela enorme distância da linha cristológica dos Evangelhos, das cartas e do Apocalipse.
254. 29/07/2022 22h54
255. 59. 1. Ele respondeu: “Escuta. O Filho de Deus não aparece sob a forma de escravo, mas com grande poder e soberania.” Eu disse: “Como, senhor? Não compreendo.” 2. Ele continuou: “Porque Deus plantou a vinha, isto é, criou o seu povo e o entregou a seu Filho, e o Filho estabeleceu os anjos sobre eles para guardá-los individualmente. Ele próprio purificou os pecados deles, trabalhando muito e suportando muitas fadigas, pois ninguém pode capinar uma vinha sem trabalho e fadiga. 3. Ele, portanto, tendo purificado os pecados do povo, ensinou os caminhos da vida, dando-lhes a lei, que recebera de seu Pai. Observa que ele é o senhor do povo, porque recebeu todo o poder do seu Pai. 4. Escuta por que o senhor nomeou seu filho conselheiro e os anjos gloriosos para decidir a herança que deveria ser dada ao escravo. 5. Deus fez habitar na carne que ele havia escolhido o Espírito Santo preexistente, que criou todas as coisas. Essa carne, em que o Espírito Santo habitou, serviu muito bem ao Espírito, andando no caminho da santidade e pureza, sem macular em nada o Espírito.
24/08/2024 14h26
Imagem: El Español
“‘Da tempo desideravo conoscere un uomo la cui fama mi è stata di lezione e di monito per tante importanti decisioni che hanno ispirato la mia vita.'”
Obra: Il nome della rosa. Quarto giorno. NONA. Bompiani, 2019, Firenze. De Umberto Eco (Italia/Alexandria, 1932-2016).
Uma sutil ironia de Guglielmo da Baskerville diante de uma sutil hostilidade na chegada do inquisidor Bernardo Gui e sua comitiva para tratar dos delitos na abadia (p. 350).
Ambientado em uma abadia no norte da península itálica no final de 1327, o mundo construído pelo mestre Umberto Eco, com base no manuscrito de Adso da Melk [253], tem o elemento complexo da Inquisição medieval, aspecto que parece ter incomodado bastante um professor que tive em meados dos anos 1990 que externou sua indignação pelo romance pois, segundo sua interpretação, Umberto Eco distorceu elementos essenciais da Inquisição medieval que, em sua concepção, estava mais para uma caridade na medida em que fora uma contribuição da Igreja para inquirir e conter o frequente justiçamento contra os cátaros, taxados como hereges de extrema periculosidade no sul do Royaume de France. Em vez da justiça com as próprias mãos, a Igreja teria instituído um importante sistema processual com princípios que hoje são caríssimos como a presunção da inocência, o direito de defesa e o julgamento justo.
Passaram-se 15 anos e escutei argumentos parecidos de um colega catequista que fez referência ao “desserviço” de Umberto Eco em O nome da rosa. O meu eu de 1995 não tinha lido a obra e assim ficou com a imagem deixada pelo professor. Um tempo depois (1999) assisti ao filme (1986) com a brilhante interpretação de Guglielmo feita por Sean Connery (1930-2020). Já o meu eu de 2010 tinha passado pela primeira experiência de leitura, em português, e pode assim refletir melhor sobre o incômodo do interlocutor católico sobre o romance histórico que incomoda como se fosse um documentário; na obviedade de ser um romance, certamente a causa reside por ter feito enorme sucesso mundial, além de ter sido premiado com o Strega em 1981.
Quando comprei a edição em italiano (2019), em uma livraria próxima ao Palazzo Montecitorio, um senhor puxou conversa na fila do caixa, perguntou se eu tinha visto a série televisiva (foi quando tomei conhecimento desta outra adaptação) e que O nome da rosa é “um belíssimo romance que o autor não tinha apreço”. Como assim?, perguntei, e ele completou: “ele chegou a confessar publicamente que foi o seu pior romance”.
Torno ao trecho (p. 350) desta Leitura que versa sobre o primeiro contato de Guglielmo com o inquisidor Bernardo Gui e, após apreciar a edição italiana de 2019, penso ao modo do conceito de “obra aberta”, deixado pelo mestre Umberto Eco, termo que se aplica inclusive ao título do seu inaugural romance: Guglielmo, frade franciscano, representa o espírito de justiça pela investigação acurada; embora não seja mais um inquisidor, como se verifica em sua fala, ele representa o investigador por excelência, humilde, prudente, determinado a apurar os fatos para promover a boa justiça (sendo oportuno lembrar a obviedade que ele é também católico), já Bernardo Gui, dominicano (p. 349), representa a justiça afetada pela arrogância, pelo apego ao poder político, pelo autoritarismo que se devota às conveniências do exercício do poder para si mesmo enquanto se atrela ao desinteresse pela verdade. Então, penso, o mestre Umberto Eco pode ter pensado em uma belíssima metáfora a envolver um confronto entre o verdadeiro espírito de justiça e a injustiça disfarçada de justiça.
253. 28/09/2022 23h31
23/08/2024 23h10
Imagem: flickr oficial
“Uma fraqueza crônica do pensamento liberal é que, em sua resistência obstinada e não raro heroica ao crescimento do poder estatal, acaba por fazer vista grossa ao fato de que nem sempre os movimentos revolucionários e ditatoriais concentram o poder do Estado, mas às vezes fora dele.”
Obra: A Nova Era e a Revolução Cultural. Apêndices. Recordações Inúteis [79]. Vide Editorial, 4a. edição, 2014, formato físico. De Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (Brasil/São Paulo/Campinas, 1947-2022).
Nota do editor: 79. Publicado em Diário do Comércio, em 7 de março de 2012.
Doze anos depois essa verdade parece melhor compreendida com a maior evidência da cultura woke em grandes corporações, sobretudo no entretenimento. O marketing da woke apresenta um paradoxo entre grandes empreendedores que exploram apelos progressistas para divertir e infantilizar o público-alvo, o que enseja em um poder de manipulação que pode na verdade estar submetido subliminarmente ou manipulado em nível de excelência por quem está à frente da ocupação de espaço na hegemonia em Gramsci.
Olavo de Carvalho lembra o que ensina o leninismo, em termos básicos, sobre a condição principal de todo movimento que pretenda se apossar do Estado: tornasse mais poderoso que ele para se impor a qualquer interferência estatal adversa (p. 213). Também lembra Olavo de Carvalho o que dissera em 1993, na primeira edição desta obra sobre o avanço do que chama de “petização integral do Brasil” enquanto a intelectualidade liberal “gastava todos os seus neurônios no empenho idealístico de defender no plano doutrinário a economia de mercado e a liberdade democrática”, dois elementos que partidos progressistas careciam de preservar “para poder parasitá-las”, de maneira que se fortalecesse o suficiente para depois “subjugá-las, deformá-las e, no devido tempo (que só agora está chegando), extingui-las” (p. 214).
Sobre a extinção das liberdades, em especial a de mercado, que é normalmente parcial, este ponto, penso, por reflexão acerca do que aprendi em leituras de Mises e Hayek, significa cortar o suporte vital do processo produtivo da cooperação social, coisa que socialistas e comunistas instrumentalizam junto com a liberdade democrática; no máximo, o que é possível fazer fora das ditaduras escancaradas é uma forte regulação do mercado em um modo típico de economia fascista, na medida em que não esfole totalmente a iniciativa privada enquanto deixa seus empresários em total dependência do aparato estatal em termos de compliance. Socialistas, comunistas e demais progressistas que aprenderam alguma coisa de economia com as experiências da extinta URSS e do leste europeu (a latino-americana demonstra, muitas vezes, que não saiu do jardim da infância, ainda, enquanto os chineses se tornaram mestres em conciliar parâmetros de mercado com regime político autoritário), hoje costumam aplicar doses um tanto moderadas de intervencionismo, pois, conscientemente ou não, indicam saber que as mais extremas evidenciam risco elevado que pode matar a “galinha dos ovos de ouro”, a fonte produtiva que gera riqueza e paga impostos, penso. Até mesmo em regimes mais autoritários como o cubano, o norte coreano e o venezuelano, utilizam-se indicadores do mercado externo para não deixar totalmente às cegas a economia interna diante da noção de preços quando muito planificada, no entanto, em um cenário de socialismo avançado, a sustentabilidade do sistema econômico fica bastante comprometida; extinguir o mercado, entendo, é abdicar de sinais advindo do sistema de preços que orientam alocação de recursos, os quais apenas no campo das relações de oferta e demanda entre agentes privados, com posse de meios produtivos, é possível conhecê-los.
Lembra também o filósofo brasileiro a questão da proliferação das ONGs em relação ao fortalecimento da “sociedade civil”, termo que diz respeito “ao terreno de escolha para a penetração das forças revolucionárias” (p. 214) cuja disseminação reflete o pensamento de Antonio Gramsci (1891-1937), e que, em meio a falta de sensibilidade de liberais, dois militares expressaram consciência do problema da hegemonia do pensamento “esquerdista”: o general José Fábrega que publicou um artigo em um jornal de pequena circulação, e o general Sérgio Augusto de Avelar, em dois livros entre 2002 e 2004 que foram “publicados tarde demais para poder inspirar qualquer ação eficaz contra o processo de controle hegemônico da sociedade brasileira” (p. 215).
Aprendi com Olavo de Carvalho como a mentalidade dita “esquerdista” (penso ser um termo anacrônico usado em embates políticos para confundir eleitores) domina os que se dizem contrários a partidos com pautas expressamente progressistas, não apenas no campo econômico mas, sobretudo, no seio cultural por meio do jeito de raciocinar e de se expressar. Em outras palavras, não é raro encontrar indivíduos que se dizem “conservadores”, “defensores da liberdade de mercado” e da “liberdade de expressão”, com desejos (praxis) que se chocam com o que afirmam acreditar a servirem mais de instrumentos em favor de pautas que condenam em seus discursos.
22/08/2024 21h16
Imagem: Casa Fernando Pessoa
O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!
Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anónimo e frio,
A vida vivida em vão.
A esperança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobe mais que a minha esperança.
Rola mais que o meu desejo.
Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam — verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.
Gastei tudo que não tinha
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha;
Despiu-se, e o reino acabou.
Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!
Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.
Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só as lembranças,
Mas as mortas esperanças —
Mortas, porque hão-de morrer.
Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim —
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser — muro
Do meu deserto jardim.
Ondas passadas, levai-me
Para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.
Obra: O andaime. Em Mensagem. Martin Claret, 2005, São Paulo. De Fernando António Nogueira Pessoa (Portugal/Lisboa, 1888-1935).
O tempo da entrega – por Heitor Odranoel Bonaventura
Na solitude pensava
Desnudo a todo instante,
No vazio lhe restava
Quão medonho distante
Do olvido tempo clamava.
Ao som das águas no escuro,
Ondas batiam nas lembranças
Em memórias órfãs de futuro
Que penetravam como lanças
Em seu juízo obscuro.
Das ilusões que pregou,
Ficou mais velho que o tempo
Do não-ser que o legou.
E quebrantado deu-se ao vento,
Ao mar revolto se entregou.
21/08/2024 22h06
Imagem: Ex-isto
Imagem: Editorial Herder México
“[…] não, as massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo, e é isso que é preciso explicar…”
Obra: O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Capítulo III: Selvagens, bárbaros, civilizados. [III.10. A representação capitalista]…. [III.10.7. Desejo e interesse]. Ed. 34, 2010, São Paulo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. De Gilles Deleuze (France/Paris, 1925-1995) e Félix Guattari (France/Villeneuve-les-Sablons, 1930-1992).
Primeiro contato com a obra em 2003 nos “pulmões do seminário”, após uma leitura do professor João Ferreira Santos que resume um dos pontos fundamentais sobre “o inimigo maior – o fascismo – não só de Hitler e Mussolini, mas o fascismo que habita em nosso espírito, fazendo-nos amar o poder, desejando ardentemente essa coisa que se explora, em benefício de uns e prejuízo de outros” [251]; aqui penso em como o espírito do fascismo se renova ao longo do tempo, algo que se relaciona com a abordagem feita por Deleuze e Guattari sobre o desejo, o interesse e os neoarcaísmos, este último tomado por referência ao sociólogo e filósofo Edgar Morin (1921).
Diferentemente do interesse, que pode ser traído ou desconhecido, o desejo nunca é enganado. E assim introduzem a síntese que consiste no trecho (p. 341) desta Leitura em referência ao psiquiatra Wilhelm Reich (1897-1957). O desejo pode ser um fenômeno de oposição ao próprio interesse e “o capitalismo se aproveita disso, mas também o socialismo, o partido e a direção do partido”, apontam; neste aspecto, os autores externam uma filosofia cujo espírito crítico é raríssimo nos dias atuais onde impera um binarismo que prende os juízos na superficialidade.
Quanto aos “neoarcaísmos”, explicam que “as sociedades modernas civilizadas definem-se por processos de descodificação e de desterritorialização. Mas o que elas desterritorializam de um lado, elas reterritorializam do outro” (p. 341), e assim são reintroduzidos fragmentos de códigos para derivarem pseudocódigos ou jargões. Então penso em como coisas como o fascismo transpassam contextos, culturas, crenças políticas que podem até se declararem “antifascistas”.
Esta obra me ajudou a entender melhor como indivíduos que se declaram “de esquerda” ou progressistas vivem a defender ideias autoritárias que Hitler e Mussolini aplaudiriam com louvor; penso aqui em coisas do tipo a submissão do empresariado ao aparato estatal, o policiamento das ideias e o controle da imprensa, assim como entre os assim chamados de “extrema direita” que carregam a fama pelo outro lado onde normalmente estão o protecionismo que aprofunda o capitalismo de compadres e o nacionalismo belicista (também estão na realpolitik dos assim chamados “de esquerda”). A inserção desse código remodelado funciona como um vírus que vai contaminando sistemas de pensamento, de maneira que a confusão que provoca faz os seus incautos militarem por coisas que não conseguem compreender quanto às verdadeiras intenções tomando proveito de sua energia e, obviamente, dos desejos que permeiam sua psicologia coletiva, para justamente provocar um antagonismo subliminar com os fatos que dizem respeito aos interesses. Lembrei-me também aqui, nesse processo de releitura de ideias antigas que se recondicionam e atingem reavivamentos, na obra O fascismo eterno [252], de Umberto Eco.
251. Introdução à Filosofia, Recife, 2003, p. 69.
252. 30/04/2022 14h42
20/08/2024 00h12
Imagem: PlanetadeLibros
“É improvável que, entre os desígnios de Deus para o universo, se inclua o de fazer você ficar rico.”
Obra: Os Axiomas de Zurique. O 8o. Grande Axioma. Best Bussines, Rio de Janeiro, 2019. Tradução de Isaac Piltcher. De Max Gunther (UK/England, 1927-1998).
Se a preocupação com dinheiro ocupar a reza é provável que se fique mais pobre; não há evidência de o Ser Supremo se importar com o fato de se ficar rico ou pobre (p. 140); “apoiar-se no sobrenatural tem o mesmo efeito de apoiar-se em previsões ou ilusões de ordem”, afirma Max Gunther em um ensinamento do oitavo axioma de banqueiros suíços o que, certamente, vai desagradar muita gente que procura misturar experiência religiosa com interesses para se alcançar riqueza material, e quando não afirma isso categoricamente, o faz sem perceber.
A existência de Deus não faz parte do campo de reflexão nos axiomas de Zurique. Ser ateu, crente, agnóstico, consagrado, desviado, não faz a menor diferença. Não cabe atribuir a Deus, ou a qualquer crença no sobrenatural, o papel de fonte de inspiração ou direcionamento na tomada de decisão como investidor ou especulador. O saldo no banco, o patrimônio, as dívidas, os direitos e as obrigações são problemas de cada indivíduo e não de Deus ou de forças do além, eis o que sintetizo dos argumentos de Max Gunther que conta a história de um investimento feito por uma igreja, sob a empolgação de um pastor, em um terreno que aos olhos era seco, mas se revelou pantanoso alguns palmos abaixo, o que inviabilizava construções e assim acabou em grande prejuízo. Pautar-se tão-somente na crença de que era um “presente de Deus” (p. 139), como no caso da comunidade e do pastor, e não em uma análise técnica, foi a receita para a perdição.
Fora da fé religiosa mais convencional, no campo das forças sobrenaturais, Max Gunther menciona também o caso de Jesse Livermore que desenvolveu um meio baseado em “adivinhação” de preços para ficar rico em operações, o que influenciou amigos e lhe deu notoriedade, mas sua vida acabaria em um suicídio entre uma das quebradeiras que enfrentou na trajetória de especulador baseado em clarividência (pp. 141-146).
Quando Max Gunther afirma que “padres, pastores e rabinos vivem dizendo às pessoas que não devem rezar pedindo dinheiro, mas muita gente reza” (p. 141) e o 12o. axioma menor que salienta que “se astrologia funcionasse, todos os astrólogos seriam ricos” (p. 146), lembrei-me mais uma vez do velho ZW, judeu, rico e espirituoso o bastante para afirmar que se Deus se importasse com quem fica rico ou pobre, o negócio de loteria estaria quebrado. O tempo em que aprendi essa lição bem humorada de ZW foi oportuno, pois estava cercado por influências “evangélicas” que, via de regra, intencionam fazer uma lavagem cerebral com base em alguma teologia de prosperidade, a maior aberração que encontrei no meio religioso dito “cristão”.
19/08/2024 00h01
Imagem: Center for Public Integrity
“A ideia de que um crime possa ser julgado com base no fato de que ele tenha sido ou não motivado pelo preconceito contra certos grupos, introduz a noção de uma polícia do pensamento.”
Obra: Definindo a Liberdade. Capítulo 11. Crimes de Preconceito. Instituto Ludwig von Mises, 2012, São Paulo. Tradução de Tatiana Villas Boas Gabbi. De Ronald Ernest Paul (EUA/Pensilvânia/Pitburgo, 1935).
Quando comentei, lá pelos idos de 2014, parafraseando o trecho (p. 72) dessa Leitura, com um jovem político progressista, após ouvir sua apaixonada defesa por uma legislação mais severa para tratar ofensas relacionadas a preconceitos contra minorias, pude perceber o fascínio que demonstrou na ocasião com a normatização de uma polícia do pensamento. Passei então a observar com mais atenção como em ambientes progressistas esse tipo de mentalidade determina uma pauta de grande envergadura e, talvez, muitos não percebam que estão a desejar algo que regimes totalitários adotaram em grande escala.
Pude refletir também como em ambientes que se rotulam como “conservadores”, muitas vezes acusam de crime contra a pátria, ou preconceito com o que seja de origem nacional, indivíduos que defendem a livre concorrência e não compactuam com qualquer tipo de protecionismo na economia. Nazistas, fascistas, stalinistas, castristas, chavistas e tantos outros “istas” com algum ditador e/ou populista de estimação, não importa se de “direita” ou de “esquerda” (terminologias anacrônicas atualmente), possuem exatamente a mesma crença política em favor do aparato estatal ter que policiar a liberdade de expressão que visa combater pensamentos que contrariam suas crenças.
Ron Paul aponta no capítulo seguinte, que trata sobre um efeito relacionado – a demagogia – como se torna danosa a militância em torno dessa pauta ao alertar que o poder do governo para controlar significa mais intromissão no âmbito privado (p. 80). Pondera que significativa parte do esforço para punir “crimes de preconceito” decorre de interesses políticos com pouco interesse em promover justiça; a ideia de uma legislação para punir preconceito contra minorias comete o erro de ignorar o que é definido como crime no sentido inverso, quando uma minoria comete preconceito contra um tipo diverso e/ou predominante, por exemplo quando um homossexual ofende um heterossexual por estar nessa condição, ou quando um negro faz o mesmo contra um branco (p. 74), o que sugere que algumas vítimas possam tem mais valor que outras, algo que contraria o sentido de justiça ou, em suas palavras, “o uso do poder com peso extra e arbitrário fere o princípio da igualdade da justiça perante a lei. Por que a pena para uma agressão teria que ser diferente de acordo com a raça, a orientação sexual ou associação da vítima a um dado grupo?”; o que parece ser um sinal de compaixão, na verdade, na visão de Ron Paul, significa o contrário e em vez de adotar a ideia de direitos são de um grupo em particular, é preferível que sejam garantidos aos indivíduos, pois “
Ron Paul aponta no capítulo seguinte, que trata sobre um efeito relacionado – a demagogia – como se torna danosa a militância em torno dessa pauta ao alertar que o poder do governo para controlar significa mais intromissão no âmbito privado (p. 80). Pondera que significativa parte do esforço para punir “crimes de preconceito” decorre de interesses políticos com pouco interesse em promover justiça; a ideia de uma legislação para punir preconceito contra minorias comete o erro de ignorar o que é definido como crime no sentido inverso, quando uma minoria comete preconceito contra um tipo diverso e/ou predominante, por exemplo quando um homossexual ofende um heterossexual por estar nessa condição, ou quando um negro faz o mesmo contra um branco (p. 74), o que sugere que algumas vítimas possam tem mais valor que outras, algo que contraria o sentido de justiça ou, em suas palavras, “o uso do poder com peso extra e arbitrário fere o princípio da igualdade da justiça perante a lei. Por que a pena para uma agressão teria que ser diferente de acordo com a raça, a orientação sexual ou associação da vítima a um dado grupo?”; o que parece ser um sinal de compaixão, na verdade, na visão de Ron Paul, significa o contrário e em vez de adotar a ideia de direitos são de um grupo em particular, é preferível que sejam garantidos aos indivíduos, pois “a falácia deste tipo de legislação conduziu à prática de aceitar o conceito de que grupos têm direitos, no lugar do conceito de que todos os indivíduos têm direitos iguais” (p. 73).
18/08/2024 11h35
Imagem: Recanto do Poeta
JOÃO GRILO
Eu não lhe disse que a fraqueza da mulher do patrão era bicho e dinheiro?
CHICÓ
Disse.
JOÃO GRILO
Pois vou vender a ela, para tomar o lugar do cachorro, um gato maravilhoso, que descome dinheiro.
CHICÓ
Descome, João?
JOÃO GRILO
Sim, descome, Chicó. Come, ao contrário.
CHICÓ
Está doido, João! Não existe essa qualidade de gato.
JOÃO GRILO
Muito mais difícil de existir é pirarucu que pesca gente e você mesmo já foi pescado por um.
CHICÓ
É mesmo, João, do jeito que as coisas vão eu não me admiro mais de nada.
Obra: Auto da Compadecida. Segundo ato. Nova Fronteira, 2018, Rio de Janeiro. De Ariano Vilar Suassuna (Brasil/Paraíba/Parahyba do Norte, atual João Pessoa, 1927-2014).
João Grilo, ciente das duas fraquezas da mulher do padeiro, decide então reuni-las em uma única “solução”: o gato que descome dinheiro (p. 67).
Na edição cinematográfica (2000) dirigida por Guel Arraes, a história do gato que descome dinheiro foi removida em comparação com a minissérie (1999) escrita por Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão, e o roteiro original da peça original (1955) do mestre Ariano Suassuna, encenada pela primeira vez em 11 de setembro de 1956 no Teatro de Santa Isabel, pelo Teatro de Adolescentes do Recife (p. 14).
Na peça original, João Grilo orienta Chicó a enfiar moedas no gato que deixou amarrado fora da casa e, após resolverem sobre o tamanho da moeda que caberia e o quanto seria colocado, João Grilo inicia o assédio à mulher do padeiro, abalada com a perda do cachorro (no filme e na minissérie é uma cachorra) e com a despesa do testamento de treze contos (no filme e na minissérie, nove, sendo três para a paróquia e seis para a diocese) e lhe garante que o novo animal de estimação em vez de somente gerar despesa, dará lucro por defecar dinheiro. João Grilo chama Chicó e o faz demonstrar como o gato “descome” moedas quando a mulher do padeiro, desconfiada da primeira demonstração, pede para “ver o parto” (p. 71) e então fica impressionada com a segunda demonstração.
Após negociar a entrada no testamento e receber metade de um conto, a qual pretende dividir com seu parceiro de presepadas que o informa que só conseguiu enfiar três moedas e assim logo tudo será descoberto (p. 74). A história do gato, que na minissérie está no segundo episódio, é uma entre diversas adaptações feitas pelo mestre Ariano em torno de obras populares de cordel. O segundo ato tem como base de inspiração A História do Cavalo que Defecava Dinheiro, “obra popular recolhida por Leonardo Mota” (p. 14). Sobre o primeiro ato, é uma adaptação do cordel O Dinheiro, de Leandro Barros [249]. O terceiro ato foi baseado no folheto O Castigo da Soberba, “recolhida por Leonardo Mota junto ao cantador Anselmo Vieira de Sousa (1867-1926)” (p. 13).
Na peça a bexiga foi extraída do cachorro para ser usada em outra encenação caso o negócio do gato desse errado (p. 68), enquanto da edição do filme é aproveitada em outro contexto: João Grilo arma um plano para se passar pelo cangaceiro Severino de Aracaju onde Chicó faria novamente o papel do valentão, desta vez sob uma morte forjada com uso da bexiga, o que acaba dando errado, pois o verdadeiro cangaceiro chega antes da armação (segunda invasão) forçando João Grilo a um improviso com a história da gaita que é oferecida com a funcionalidade de, ao ser tocada, realizar ressureição.
Há elementos de outras peças do mestre Ariano inseridos nas adaptações para a televisão e o cinema. Penso, entre alguns, na porca deixada pela avó de dona Rosinha que lembra a peça O Santo e a Porca [250]. Outra diferenças mais relevantes modificam a narrativa original pela adaptação dirigida por Guel Arraes: dona Rosinha, a filha do major Antonio Moraes, Cabo Setenta, o homem da lei na cidade, e Vicentão, o valentão, personagens inexistentes na peça original, foram inseridos na adaptação televisiva mencionada nesta Leitura que repercutem na edição feita para o cinema, além da ausência do Palhaço, personagem típico do estilo circense trabalhado na obra do mestre Ariano, o Frade e o Sacristão da peça original também foram removidos da adaptação de Guel Arraes.
249. 20/07/2024 11h33
250. 19/02/2023 16h38
17/08/2024 13h56
Imagem: ABERT
“O menino Senor tinha um nome que soava muito diferente aos ouvidos brasileiros. Mas como surgiu esse nome tão distinto?”
Obra: Silvio Santos: A biografia definitiva. A estreia de Senor no palco da vida. Universo dos Livros, 2023, São Paulo. De Marcia Batista e Anna Medeiros.
Em 1492 o judeu Dom Isaac Abravanel (1437-1508) tinha esse título por gozar de prestígio na coroa portuguesa, após se destacar na recuperação das finanças do reino, algo que se repetiria na Espanha, mas eram tempos de Inquisição na península Ibérica e a mortal perseguição religiosa contra os judeus, promovida pelo catolicismo romano, forçaria Abravanel a ter que tomar uma difícil decisão: atender ao pedido dos reis Fernando e Isabel para se converter ao catolicismo e ficar sob a proteção real ou, para não ser morto, deixar o reino levando consigo tudo o que pudesse carregar (exceto ouro).
“O povo judeu vai e eu vou junto” (p. 23).
Abravanel assim teria respondido à proposta real e encontrou em outra península, a Itálica, na Repubblica di Venezia, um espaço para recomeçar a vida. Seus descendentes ocupariam posições de destaque na Itálica e depois seguiriam para Salônica, hoje parte da Grécia. Foi lá que nasceu Alberto Dom Abravanel em 1897, mas quando o Império-Truco-Otomano se aliou à Alemanha, à época uma monarquia em decadência na Primeira Guerra com traços de antissemitismo, ou seja antes de Hitler e do nazismo, o jovem Abravanel teve que deixar sua terra natal para escapar do alistamento militar obrigatório e, nesse recomeçar, na medida em que passava por países europeus para tentar se estabelecer, trabalhou como comerciante. Foi um tempo em que o antissemitismo se tornou mais intenso na Europa e sua jornada terminaria no Brasil em 1924, onde conheceu, no Rio de Janeiro, uma imigrante turca chamada Rebeca; casaram-se e em 12 de dezembro de 1930 tiveram o primogênito cujo primeiro nome decidiram por Senor, como adaptação à língua portuguesa em referência aos antepassados (p. 24) que usavam o título de “Dom”, termo que “muito provavelmente, se origina a palavra hebraica Adon, cujo significado é ‘senhor’ (señor em espanhol) ou ‘mestre'” (p.23).
Senor Abravanel teve uma infância em um bairro boêmio, zona sul do Rio; logo ganhou um irmão, Leon, o qual dividia sua paixão pelo cinema, mas o pai Abravanel era viciado em cassino, transtorno bem mais conhecido hoje em dia com os jogos online, e assim quebrou o comércio da família com dívidas. O primogênito aos 14 anos cursava o segundo ano de contabilidade, e para não ter que passar fome, debutou sua vida laboral pela veia empreendedora da família; tinha talento para se comunicar e encontrou uma oportunidade como camelô na venda de canetas e capinhas para título de eleitor (p. 29), enquanto sua mãe trabalhava como costureira (p. 26).
O negócio prosperou e o menor camelô Senor Abravanel montou uma equipe com três funcionários: o irmão Leon, que ficava de tocaia para avisar a chegada do “rapa”, a fiscalização contra o comércio ambulante sem registro; o segundo tomava conta do estoque de canetas enquanto o terceiro era o “farol”, o sujeito que chegava de quinze em quinze minutos para elogiar a caneta e fazer um pedido em uma rua movimentada, típica da transeuntes variados, onde chamava a atenção de um público que não conseguia perceber a repetição (p. 30), e claro havia o talento extraordinário do empreendedor adolescente no uso combinado da voz com o talento da persuasão, o que logo chamaria a atenção de um fiscal que, em vez de conduzi-lo ao Juizado de Menores, deu-lhe um cartão da Radio Guanabara com recomendação para um teste (p. 32).
Foi naturalmente no rádio e no circo que debutou o aquele que seria o maior comunicador brasileiro de todos os tempos e que hoje faleceu a deixar um imenso legado de espírito empreendedor. Gostem ou não do estilo popular, alguns diriam “popularesco”, Sílvio Santos é um tema para historiadores; merece ser estudado como um dos maiores fenômenos brasileiros de todos os tempos em termos empresariais. Sua trajetória de gênio do entretenimento envolve a construção de um império com três dezenas de empresas. Foi pioneiro no marketing da televisão e um misto de comunicador extraordinário do palco com o que se exige de um empreendedor no país da burocracia por excelência; enquanto tinha grande disposição para riscos, depurava-se com disciplina financeira, neste ponto a incluir sua formação em contabilidade (p. 30). Entre tantas lições que podem ser extraídas de sua vida conhecida penso no momento em que adotou o zelo com o acompanhamento dos resultados econômicos, qualidade que combina com sua primeira formação técnica na ciência da riqueza, um saber hoje, não raramente, desprezado por muitos empresários que paradoxalmente sonham com prosperidade. No bojo de seus valores, há o que se denota sobre ética nos negócios, o que envolvia cuidado com os colaboradores, generosidade e respeito pelos clientes, como por exemplo pode ser verificado no caso da impressionante recuperação que protagonizou da falida empresa do “Baú”, até então de seu amigo do rádio, Manoel de Nóbrega (pp. 49-55).
A história de Silvio Santos é uma síntese de um menino humilde, filho de imigrantes que teve que trabalhar como camelô para ajudar no sustento do lar, que se descobriu como expert do entretenimento e se tornou bilionário; determinado, ora pragmático, ora ousado, aberto a riscos, disciplinado nos números e inspirado por um espírito de autonomia que o tornava imprevisível e fascinante.
16/08/2024 22h10
Imagem: El Español
“‘Non ci sono storie senza senso. E io sono um di quegli uomini che sno trovarlo anche là dove gli altri non lo vedono. […]'”
Obra: Baudolino. 2. Baudolino incontra Niceta Coniate. La nave di Teseo, 2020, Milano. De Umberto Eco (Itália/Alexandria, 1932-2016).
Neste trecho (p.42) Baudolino me fez lembrar do mestre Ariano Suassuna, de João Grilo e, um pouco mais, de Chicó em Auto da Compadecida.
Misture uma pitada de fatos, para dar uma convincente aparência de coisa séria, com um pouco meias verdades, para melhor disfarçar dos mais desconfiados, e deixe temperar bem com o principal ingrediente: um caldeirão de mentiras. Então terás um Baudolino por aí contando histórias…
Também lembra um pouco o Forrest Gump quanto ao fascínio que desperta como contador de histórias, no entanto há uma enorme diferença, pois o personagem do filme, sob o estigma do baixo QI, é rotulado como um idiota. Baudolino, filho de camponeses, está mais para a esperteza que se pode reparar em João Grilo e Chicó, a dupla mestra em presepadas. A fala de Baudolino soa como diria Chicó, que logo depois de um “causo”, seguido de uma provocação em que fora confrontado pela inteligência de João Grilo, tão-somente apela a um “só sei que foi assim”.
Baudolino passa por cifras de um talento com a imaginação que reúne humor e sentimento; vai ao encontro do imperador, apaixona-se pela imperatriz e chega a seduzi-la; ele é burlesco, dá conselhos a quem está pio de sua seriedade, canoniza Carlos Magno e de mostra como um poeta que descobre o verdadeiro amor; é um andarilho a ganhar o mundo, estuda em Paris, caminha pelo paraíso na Terra, salva uma cidade com a vaca do pai, encontra uma mulher com um unicórnio, desfila pela existência com auto estima e saudosismo entre fatos entrelaçados em causos para alcançar uma expressão de erudição que define este romance que é categoricamente o que Umberto Eco queria dizer sobre “obra aberta”; destarte o mestre italiano forjou, na proporção de sua genialidade, uma versão medieval de um mentiroso profissional, tendo a esperteza por vocação de saber usar a moderação para não perder a graça por subestimar a inteligência de seus ouvintes, e nesse estilo literário se esvazia da ideia de entregar ao leitor algo a ser assimilado pela persuasão do que pretendia passar.
Baudolino é uma pérola que inspira a uma experiência de leitura onde se constrói um entendimento peculiar, de acordo com disposições cognitivas a um romance repleto de referências históricas do medioevo, com a potencialidade da imaginação do leitor se confrontar em traços da história com as fantasias de um conto.
15/08/2024 23h15
Imagem: IEA/USP
“A medicina contemporânea gera um imenso exército de mortos-vivos que perambulam pelos ambulatórios ou vivem presos a tubos de UTIs..”
Obra: O mito do progresso. Capítulo 4. Ciência médica, saúde e progresso. Editora UNESP, 2006. De Gilberto Dupas (Brasil/São Paulo, 1943-2009).
Há problema em que apenas o silêncio e a meditação são apropriados. Gilberto Dupas aborda um tema dessa natureza, que não imagino como lidar: o enfrentamento da hora em que a finitude da vida é evidente e a eutanásia. Trata sobre o avanço da medicina diante do prolongamento da vida em condições de profundo sofrimento para o paciente e então lança a questão sobre “saber enfrentar a hora de morrer”, uma decisão que somente o indivíduo em causa pode tomar, argumenta (p. 198).
Em recém-nascido a complexidade dessa questão atinge a dor mais intensa; de um lado os pais diante do dilema de submeter seu neonato com defeito congênito a um procedimento cirúrgico de baixíssima probabilidade de êxito e profundo sofrimento para o paciente. Se o valor de uma cultura se mede pela forma como são tratados os idosos e as crianças, Dupas lembra Gori & Volgo que propõem incluir os doentes nessa lista (p. 199).
Onde estão os valores ontológicos? medito. Mais uma vez a ciência se depara com questões acima da objetividade e da evolução de seu conhecimento, sobretudo a moral onde, Dupas adverte, é edificada no progresso científico sobre a pretensa “exatidão” com o intuito de ocupar o lugar da religião ou da mística (p. 199); cita Max Weber com a ideia de neutralidade e autonomia da ciência (p. 200) e reitera que a reflexão sobre o sentido último para a vida humana tem significados que devem ser buscados “em outras esferas, como a religião e a política, mas jamais na ciência” (p. 200).
Estende o problema a forma como tratamos os animais, em especial os que servem como nosso alimento, para em seguida inserir uma reflexão onde traz uma referência bíblica no primeiro casal que se alimentava apenas de ervas e frutos ao homem carnívoro a partir de Noé e associa, em referência a Lévi-Strauss, a patologias em animais semelhantes a doenças advindas do canibalismo (p. 201) e os métodos em cativeiros com química de aceleração de crescimento que representam o “potencial de danos mortíferos ao ser humano” (p. 202), enquanto forçam um processo de consumo de calorias na criação que concorre com a demanda humana (p. 203).
14/08/2024 22h53
Imagem: L&PM Editores
“[…] We civilised men, on the other hand, do our utmost to check the process of elimination ; we build asylums for the imbecile, the maimed, and the sick ; we institute poor-laws ; and our medical men exert their utmost skill to save the life of eyery one to the last moment. There is reason to belieye that vaccination has preserved thousands, who from a weak constitution would formerly have succumbed to small-pox. Thus the weak members of dvihsed sodeties propagate their kind. No one who has attended to the breeding of domestic animals will doubt that this must be highly injurious to the race of man. […]”
Obra: The Descent of Man and Selection in Relation to Sex. Part I. Chapter V. Natural Selection as affecting Civilised Nations. John Murray, Albemarle Street, 1896, London. De Charles Robert Darwin (UK/Shrewsbury/The Mount, 1809-1882)
Mais uma vez Darwin a ilustrar o caso de autor muito comentado, pouco conhecido, e se a referência ao “Criador” na segunda edição de A Origem das Espécies costuma surpreender bastante quem se encaixa no que me refiro, a eugenia deste trecho (p. 133) certamente será algo ainda mais chocante para desavisados.
“Nós homens civilizados…” – O século XIX soou como um preâmbulo acerca de ideias que seriam praticadas de forma intensa no século seguinte. Penso no socialismo dito “científico” baseado em Marx, no protoexistencialismo de Søren Kierkegaard, na transmutação de todos os valores de Nietzsche, formas distintas de subjetividades filosóficas que contribuíram para compor pensamentos que foram associados ao impreciso conceito de “pós-modernidade” e, neste bojo, a eugenia forjada por Francis Galton (1822-1911) que foi acolhida por seu primo bem mais famoso, Darwin.
William Rathbone Greg (1809-1881), Alfred Wallace (1823-1913) e Galton são as referências citadas por Darwin que demostra como teve grande destaque a ideia que hoje causa repulsa, embora haja quem tenha simpatia, alguns sem perceber: a busca pela “pureza” da raça, a ideia de melhoria de características genéticas de uma massa populacional por métodos de eliminação de débeis, fracos, portadores de doenças crônicas, acometidos de baixo QI, portadores de deficiência física, doentes mentais, ou para ser direto, a exclusão como indesejados sob uma ótica de manter o processo de descendência para um “refinamento” pelos mais aptos para proporcionar uma carga genética cada vez mais depurada na transmissão da procriação. Fico a imaginar Hitler lendo esta obra de Darwin, especialmente no trecho desta Leitura, junto com outro pensador marcante do século XIX, o filósofo Nietzsche, que foi apologista da eutanásia [248] e resumiu o doente a um “parasita, o que certamente inspirou muitos sociopatas, sobretudo no mundo sinistro da politica.
A eugenia é, à mon avis, a maior negação categórica da humanidade que tenho conhecimento, por meio de uma ideia positivista, materialista, utilitarista, tudo ao extremo para servir como fonte de inspiração para o racismo, além de apologia ao genocídio. Um conceito com a capacidade de distorcer radicalmente o significado da vida esvaziando a consciência sobre a amplitude da existência humana a ponto de ser passado como coisa inteligente, “científica”, onde temo que seja subliminarmente exercido hoje por outras nomenclaturas com ar de politicamente corretas a depender do viés ideológico.
A ciência jamais deve se desgarrar da ética.
248. 23/02/2024 23h30
13/08/2024 23h24
Imagem: FACESP
“O universo econômico, por outro lado, se organiza, perigosamente, em torno de um só poder: o mercado. […]”
Obra: Economia é coisa séria. A busca da igualdade. Publicado em 18 de julho de 2000. Organização e prefácio André Mendonça de Barros. Portfolio-Penguin, 2021, São Paulo. De Antônio Delfim Netto (Brasil/São Paulo/São Paulo, 1928-2024).
Para se ter um razoável conhecimento dos parâmetros políticos da economia brasileira, em especial durante a ditadura militar (1964-1985), é preciso conhecer o pensamento e o histórico de Delfim Netto enquanto ministro da Fazenda (1967-1974) durante o assim chamado “milagre econômico” (1968-1973).
Comecei a me interessar por economia quando era um adolescente (final dos anos 1980) e o nome Delfim Netto me foi apresentado como sinônimo de inteligência e prosperidade ainda em referência ao dito “milagre”. Essa imagem começou a mudar em 1994, durante as primeiras lições de economia, não por conta do que era ensinado em sala de aula, e sim por ZW, senhor estranho, gostava de se definir como “libertário” (não fazia a menor ideia do que significava o termo), além de citar versos de Raul Seixas para falar das coisas loucas do Brasil com recortes de jornais e revistas sobre os anos do regime militar o qual chamava de “socialismo de direita”, uma expressão que causava mais confusão em minha mente tão imatura.
No primeiro semestre daquele ano começou uma discussão sobre o Real e havia um colega bancário, do sindicato, fervoroso eleitor de Lula, que chamou o plano de fantasia, que só um milagre derrubaria a hiperinflação naquele ano, e que a última vez que o Brasil teve um competente ministro da Fazenda “foi nos tempos do Delfim”, afirmou. Eu, menino verde, acompanhei o relator, quando ZW então decidiu dar a maior aula sobre o “milagre do Delfim” que tive; não careceu de dar a clássica ênfase ao grave problema do aumento da concentração de renda eternizado pela famosa frase “É preciso primeiro aumentar o ‘bolo’ para depois reparti-lo”, isso por si só é um tema bem estudado. ZW apontou evidencias de que a era Delfim reforçou a ideia, na ambidestra psicologia coletiva, de uma economia muito dependente das políticas intervencionistas do Estado, apesar da ênfase em investimentos por atração de capital estrangeiro, e que esse legado seria retroalimentado por Geisel no viés do endividamento, da elevação da carga tributária e da expansão da base monetária que desembocaria em um quadro de recessão com hiperinflação nos anos 1980. “As pessoas que idolatram o Delfim” – finalizou – “aplaudem a orquestração de um desastre macroeconômico”. No entanto, o que deixou o petista chocado (e eu também) foi o fato de Delfim Netto ter sido um dos signatários do AI-5, um fato que muitas vezes passa desapercebido ou simplesmente faz parte das coisas que ilustram o quanto o brasileiro médio desconhece pontos elementares da história política do país. Daquele encontro ficou a lição de que milagre maior, no universo de entusiastas do Delfim, foi o do esquecimento, algo que me veio à baila novamente com as referências de enlevo ao ex-ministro que ontem faleceu, sem destaque maior à sua participação no ato mais infame do regime.
Hoje o nome Delfim Netto representa para mim um conceito de economista com um pensamento que merece ser bem conhecido, pois é uma síntese do que predomina na mentalidade econômica brasileira cuja afirmação neste artigo de 2000 vem bem a calhar: “o universo econômico (o mercado) é definido dentro do universo da política” (p. 16). O “merece ser bem conhecido” aqui não tem conotação de concordância ou alinhamento ideológico; é tão-somente para se estudar melhor um fato de que o Brasil que herdamos dos militares passa pela visão intervencionista de Delfim Netto, com a ressalva de que o que ele apresenta neste artigo é uma revisão um tanto radical do que defendeu durante os tempos de ministro na ditadura quanto à pouca relevância que deu à época para o que os economistas analisam sob o nome de “Coeficiente de Gini”.
12/08/2024 00h01
Imagem: Corriere della Sera
“In termini contemporanei, potremmo dire che in quei cenacoli si praticava il ‘comunismo assoluto’ […]”
Obra: Paolo. L’uomo che inventò il cristianesimo. 16. Il soffio vitale del cristianesimo. Rai Libri, 2023, Roma. De Corrado Augias (Italia/Roma, 1935).
No contexto do trecho (p. 210) desta Leitura, uma das passagens mais difíceis de Atos dos Apóstolos: a morte súbita do casal Ananias e Safira como punição após terem retido uma parte da propriedade que venderam em detrimento de depositarem aos pés dos apóstolos (5:1-11).
Em 4:32 e 4:34-35 fica claro que havia um comunismo entre os que abraçaram a fé em Cristo em Jerusalém; na medida em que as posses eram vendidas, e o recebido posto aos pés dos apóstolos, seguia-se para uma redistribuição conforme as necessidades de cada membro da comunidade. Recordei quando certa vez fui considerado um “comunista” simplesmente por discorrer o que está na obra que, por sinal, estou relendo de cabeceira.
Contudo, o comunismo dessa comunidade primitiva crista está longe de ser análogo ao comunismo moderno que é ateu, baseado em coerção e ruptura da ordem social por métodos violentos, quando a comunidade apostólica crescia pela adesão e uma vez dentro dessa vida de repartição comum, a retenção do que fora vendido era considerado um dano à coletividade; Ananias e Safira ao omitirem o valor real do que arrecadaram na venda, traíram a confiança de todos sobre algo que superava a visão política e tinha uma conotação religiosa, de “fé ardente” ultra mundana, aponta (p. 210) Augias.
A concepção de dano à comunidade em uma visão sacra na retenção do que seria depositado aos pés dos apóstolos se relaciona com o que Augias recorre ao contexto socioeconômico na província romana da Judeia; era altíssimo o número de pobres no primeiro século da era cristã (p. 209), período onde se situa o ocorrido com o casal. A pobreza extrema fazia da comunidade cristã então uma referência para os mais carentes buscarem auxílio para necessidades básicas; a caridade era a lei suprema, trabalhar era uma virtude (p. 208) e, evidentemente, a carência por alimentos entrou nesse contexto dentro de uma visão apostólica que sacralizou a refeição comunitária e o partir do pão, este último um ato familiar afetuoso derivado da fé judaica, o qual foi inserido nas comunidades cristãs em referência ao sacrifício de Jesus Cristo (p. 203); o sacerdote realizava um sermão e ninguém podia tocar na refeição antes de sua conclusão. Após a refeição havia outro sermão. Desta forma, a refeição comunitária se tornou um dos símbolos mais fortes das primeiras comunidades, como Augias aponta (p. 206) e penso, neste ponto se situa a raiz da Eucaristia, na terminologia católica, e da “Santa Ceia”, na protestante. Com o passar do tempo, essa refeição em comunidade foi reduzida ao ato místico em torno do pão repartido (p. 207), explica.
Apesar dos meios de análise que disponho, a severidade pela qual o casal é submetido permanece para mim como algo muito difícil de ser compreendido fora do contexto da comunidade em que se situa o quinto capítulo de Atos dos Apóstolos, assim como em comparação com os relatos evangélicos dos ditos de Jesus.
11/08/2024 12h01
Imagem: Harvard Department of Psychology
“[…] a unidade de uma ciência preditiva não é uma resposta, mas sim uma classe de respostas. Para descrever-se esta classe usar-se-á a palavra operante. […]”
Obra: Ciência e Comportamento Humano. Capítulo V. Comportamento operante. Martins Fontes, 2003, São Paulo. Tradução de João Carlos Todorov e Rodolfo Azzi. De Burrhus Frederic Skinner (EUA/Pensilvânia/Susquehanna Depot, 1904-1990).
No contexto do trecho (p. 71) desta Leitura, logicamente uma resposta ocorrida “não pode ser prevista ou controlada, mas é possível prever a ocorrência de respostas semelhantes”, afirma o psicólogo americano que lecionou em Harvard.
Estava a rememorar provas de psicologia que fiz em 1994 no início da graduação em economia e como à época me identifiquei com a psicanálise e o behaviorismo. Quando minha esposa decidiu pela carreira de psicóloga, de certa forma ela acabou por realizar uma formação que ensejou em um fascínio que eu tive na juventude.
Torno à obra de Skinner que apresenta evidências de que “o comportamento opera sobre o ambiente para gerar consequências” cujas propriedades geram bases (de dados) ou, como afirma o autor, “servem de base” para definir respostas semelhantes (p. 71). Skinner menciona E. L. Thorndike em relação a experimentos de mudanças provocadas por consequências de comportamentos (p. 65), em especial o realizado com um gato posto em um alçapão com uma porta pela qual conseguia sair, e na medida em que o experimento era repetido, o felino realizava a saída mais rapidamente o que sugeriu que “a parte do comportamento foi-se ‘estabelecendo’ porque era sempre seguido pela abertura da porta”, fenômeno que foi batizado de “Lei do Efeito” em meio a quantificação que realizou a qual derivou uma “curva de aprendizagem” que, argumenta Skinner, não descreve o processo básico pelo qual um comportamento se estabelece, mas as suas propriedades (p. 66), como os tipos de comportamento se separam, se afirmam e se reordenam (p. 67), o que exige um entendimento da “probabilidade de resposta”, conceito que define como “extremamente importante; e bastante difícil, infelizmente” (p. 68), tendo como maior problema técnico, em termos de experimento controlado, consiste em obter condições para observação e interpretação de frequências (p. 69), com destaque especial a este último ponto que não deve ser tratado em termos absolutos para não cair em uma “ficção explanatória” como argumenta Skinner; refiro-me aqui a outro experimento, feito com um pombo o qual demonstrou maior tendência de realizar determinado movimento com a cabeça para obter um alimento (p. 70).
Skinner desenvolveu o conceito de comportamento operante que contribui para entendimento de questões sobre como o comportamento é afetado e controlado por suas consequências sejam favoráveis, onde a tendência de repetição aumenta, ou desfavoráveis, quando as consequências produzem situações indesejadas, algo que pode ocorrer em nosso cotidiano sem que possamos dar conta; é automático. Compreendi que as evidências de Skinner abrem um leque de aplicações sobre ética, normas de conduta, política de relacionamentos profissionais e, no âmbito que mais me interessa, na política de atendimento a clientes. Quanto mais clara, objetiva, consistente, séria, disciplinada for essa política, respostas mais eficientes ao trabalho serão obtidas; eis o que percebo no meu dia a dia.
10/08/2024 19h10
Imagem: Chateau de la Brède
“Le tribunal de l’inquisition, formé par les moines chrétiens sur l’idée du tribunal de la pénitence, est contraire à toute bonne police. Il a trouvé partout un soulèvement général; et il aurait cédé aux contradictions, si ceux qui voulaient l’établir n’avaient tiré avantage de ces contradictions mêmes.
Ce tribunal est insupportable dans tous les gouvernements. Dans la monarchie, il ne peut faire que des délateurs et des traîtres; dans les républiques, il ne peut former que des malhonnêtes gens; dans l’État despotique, il est destructeur comme lui.”
Obra: De l’esprit des lois. Livre vingt-sixième Des lois dans le rapport qu’elles doivent avoir avec l’ordre des choses sur lesquelles elles statuent. Chapitre XI Qu’il ne faut point régler les tribunaux humains par les maximes des tribunaux qui regardent l’autre vie. Éditions Gallimard, 2015, Paris. De Charles-Louis de Secondat, Montesquieu (France/La Brède, 1689-1755).
Mais uma obra de referência proibida pela Igreja nos tempos do Index Librorum Prohibitorum.
À luz do que tipificou em termos de estados e governos, o barão de La Brède e de Montesquieu assim define o tribunal do catolicismo romano, “formado por monges cristãos com base na ideia do tribunal da penitência”, como sendo “contrário a todas as boas políticas”. O tribunal inquisitório da Igreja, segundo Montesquieu, “em toda parte encontrou uma revolta geral e poderia ter cedido às contradições se os que o estabeleceram não tivessem aproveitado essas mesmas contradições”, e assim, completa, tornou-se “insuportável em todos os governos. Na monarquia só pode gerar informantes e traidores; nas repúblicas forma pessoas desonestas e no estado despótico é igualmente destrutivo” (p. 319). Parece-me clara então neste trecho uma motivação para a S. Congregazione dell’ Indice inserir esta obra na lista.
Desde quando me deparei com este tema, encontrei variadas interpretações, e a mais comum é a que se encontra normalmente em meios protestantes onde é a Inquisição definida como um símbolo da “idade das trevas” mediante a temática da intolerância religiosa. O problema maior aqui é o “idade das trevas” para definir o medioevo, período longuíssimo que, ao longo de minhas leituras e lições que escutei de professores italianos e franceses, fui percebendo o quanto foi iluminado por ideias e inovações, inclusive dentro da Igreja. Quanto à “intolerância religiosa”, não tenho dúvida que foi uma enorme mancha na história do catolicismo romano e talvez tenha marcado o momento de maior distanciamento da Igreja (instituição política e social) em relação ao Evangelho de Cristo. A ideia do “Santo Ofício” em si para julgar o que contrariasse os ensinamentos da Igreja, não entendo como um problema de intolerância; penso ser compreensível que a Igreja possa analisar e emitir um parecer sobre determinada conduta ou ensinamento. Acredito que a Igreja é livre para se pronunciar sobre temas relevantes, o que é diferente de impor sua fé ou qualquer valor às sociedades. No entanto, esse juízo se tornou um problema gravíssimo em um mundo onde todos, pelos menos a priori no Ocidente, eram católicos, a considerar que a cúpula da Igreja estava mais envolvida com questões terrenas, digo políticas, sociais e econômicas que qualquer outra coisa que se assemelhasse à liderança espiritual, e quando surgia alguém em evidência, capaz de influenciar o laicato com ideias que se chocavam com o que a Igreja ensinava, sendo julgado pelo tribunal do Santo Ofício, mesmo sem definir em lei civil a pena, tampouco executa-la, porém dado o envolvimento amalgamado das autoridades da Igreja com autoridades jurídicas civis (uma separação que passou a ser evidente apenas quando surgiram os estados modernos laicos), deu-se então o ambiente favorável e fatal para que o Tribunal da Inquisição se tornasse vinculado a práticas de tortura (para forçar confissões) e sentenças cruéis, muitas com pena de morte onde a fogueira se tornou símbolo macabro, assim levando a Igreja ao nível extremo de intolerância religiosa.
Os desdobramentos do Tribunal da Inquisição me fizeram entender finalmente o dramático antagonismo entre cristianismo versus fé cristã, Igreja-Terrena-Político-Social versus Igreja-Corpo-de-Cristo.
09/08/2024 23h10
Imagem: Instituto Humanitas
“The difference between Einstein and Tillich, then, seems to come to this: they shared a kind of religious view that Einstein thought best expressed by denying a personal god and Tillich thought best expressed, though more mystically, by simultaneously denying and affi rming such a god.”
Obra: Religion without God. 1. Religious atheism? Impersonal Gods: Tillich, Spinoza, and Pantheism. Harvard University Press, 2013, Cambridge. De Ronald Myles Dowrkin (EUA/Rhode Island/Providence, 1931-2013).
A primeira vez que ouvi falar de Ronald Dowrkin, escutei em uma referência tão negativa, condenatória, que soava como uma versão neoconservadora do Index Librorum Prohibitorum, eis a inspiração que encontrei para decidir pelo apreço de seu pensamento. Uma das coisas que aprendi na vida de leitor é não me limitar à leitura de outrem sobre um pensador, por mais bem considerado que seja na capacidade interpretativa, prefiro ir diretamente à fonte.
Dowrkin me fez pensar na leitura que tive de Voltaire há 20 anos, a qual revivi recentemente quanto ao problema do senso moral no ateísmo. O filósofo americano, em contraste com o ícone francês do iluminismo, passou-me uma visão mais profunda de uma ordem que transcende a esfera da vida religiosa convencional e pode ser traduzida em espiritualidade que celebra valores e se depura pelo exercício da ética. Evidentemente isso vai perturbar os que militam por uma religiosidade calcada na imagem que celebram na própria mente, avessa a um diálogo franco entre cosmovisões distintas.
No tópico em que aborda o tema dos “deuses impessoais”, Dowrkin promove um encontro curioso das concepções teológicas de Paul Tillich e Albert Einstein. Dowrkin demonstra que a visão de Einstein reside no Deus impessoal, o que tinha percebido em Como vejo o mundo, algo que se afasta do judaísmo convencional e flerta com o provocante Spinoza. Já o alemão Tillich, um teólogo de uma sofisticação incomum, não para os que sentem urticária de ver o conceito sobre o Deus pessoal como um símbolo, dado que se trata de conhecimento “inacessível” (p. 135), Dowrkin o define como “um teísta religioso e um ateu religioso ao mesmo tempo, que acreditava que o caráter “numinoso” da experiência religiosa apagava a diferença entre eles” (p. 37).
Das leituras de Einstein, Tillich e Spinoza, tirei a lição de que a fé, sendo um meio de inspiração para enlevo espiritual e não uma ferramenta de aversão ao outro que pensa de forma diversa e pode não crer, é um saber invertido onde o objeto no fenômeno reside em quem a proclama e não no que é proclamado. Se em Spinoza chegou a um nível de “panteísmo”, diria uma forma grotesca de definir seu pensamento, entendo que esse saber dialoga com minhas capacidades cognitivas a fornecer cifras que tornam inteligíveis certas grandezas que transcendem em relação à dimensão que posso compreender, e uma das cifras é a pessoalidade de Deus, uma experiência na alma que não se restringe apenas ao sentir e ao interpretar, mas à lógica, à razão pura que versa até a prática o que, neste ponto, contrasta com o nominalismo que pauta o viés protestante.
08/08/2024 22h54
Imagem: Students for Liberty
“[…] o objetivo real era mudar as atitudes dos estudantes – de forma direta, para realizar uma lavagem cerebral com a visão dos ungidos, com o intuito de suplantar os valores que lhes foram ensinados em casa.”
Obra: Os Ungidos. As fantasias das políticas sociais progressistas. Capítulo II O Padrão. Educação Sexual. LVM Editora, 2022, São Paulo. Tradução de Felipe Ahmed. De Thomas Sowell (EUA/Carolina do Norte, 1930).
Imagino que se existisse um Index Librorum Prohibitorum dos progressistas (quem sabe esteja no inconsciente), um nome certo seria o de Thomas Sowell. O título original desta obra The vision of the anointed é bem sugestivo e me faz lembrar o que disse a um jovem progressista que estava a debutar na política, quanto às semelhanças que percebo entre religiosos fundamentalistas que se auto proclamam como baluartes da salvação e políticos progressistas que anunciam a versão redentora do social com suas fórmulas “científicas” que devem ser aplicadas goela abaixo em uma espécie de “coerção do bem”.
No contexto do trecho (p. 41) desta Leitura, o sistema de educação escolar para adolescentes nos EUA, onde no segundo capítulo (pp. 36-54) o economista americano mais politicamente incorreto (fora da Escola Austríaca) que tenho notícia, faz uma análise das políticas públicas voltadas à “educação sexual”. As bizarrices que conferi até parecem que são de um certo país abaixo da linha do Equador, senão vejamos:
O ponto que mais me chamou a atenção está no abismo entre o que é anunciado como intenção e o realizado, muitas vezes sob um proposital desconhecimento dos pais, como o que ocorrera em um programa popular para alunos do ensino fundamental, entre 13 e 14 anos, pautado por exibição de vídeos de casais despidos, “dois homossexuais e dois heterossexuais, realizando uma variedade de atos sexuais explícitos”, com uma recomendação aos professores de “não mostrar o material para pais ou amigos” para que não ocorram “mal entendidos” (pp. 41-42). E quando alguns pais souberam e passaram a protestar, os “ungidos” da política progressista trataram de aplicar o velho rótulo de “fundamentalista” e “extremista de direita” (p. 42), em um comportamento que se versa em um monopólio da verdade similar ao que se observa entre religiosos fundamentalistas.
No roteiro CRISE-SOLUÇÃO-RESULTADOS-RESPOSTA, Sowell demonstra como as políticas públicas forçaram o aumento massivo de gastos com “educação sexual” nas escolas desde 1968, e como as taxas de gravidez entre adolescentes aumentou junto com os índices de nascimentos e abortos (pp. 36-40) a denotar o contrário do que fora anunciado como intenção dos programas. As evidencias apontadas por Sowell podem ser perturbadoras para quem acredita nas “boas” intenções da políticas, no entanto, o que penso é que se trata de uma normalidade que caracteriza o hiato do que é anunciado como propósito e os resultados que indicam um caminho contrário.
07/08/2024 23h06
Imagem: Voltaire Fundation
“O fanatismo é certamente mil vezes mais funesto, porquanto o ateísmo não inspira, como ele, paixão sanguinária. O ateísmo não se opõe ao crime: o fanatismo o atiça.”
Obra: Dicionário Filosófico. Capítulo 13. Ateu, ateísmo. Martin Claret, 2002, São Paulo. Tradução de Pietro Nassetti. De François-Marie Arouet (France/Paris, 1694-1778), pseudônimo Voltaire.
Dicionário Filosófico também figura no Index Librorum Prohibitorum que, no meu caso, serve como lista de recomendações de leitura.
Entre outros autores, Voltaire aborda o tema do ateísmo versus fanatismo (religioso) a citar Pierre Bayle (1647-1706) em Pensées Diverses sobre o “paradoxo” de uma possível existência de uma sociedade de ateus (p. 45) e uma ponderação de Plutarco (46-120) sobre ser preferível a condição de ateu a ter uma crença má (p. 47), o que discorda o filósofo, primeiro, destaco, ao lembrar do que considera ser o “poderosíssimo” freio da fé judaica em torno da crença dos castigos divinos até a quarta geração (p. 46) e a “santidade dos juramentos” intrinsicamente à fé, para em seguida afirmar o que está disposto no trecho (p. 47) desta Leitura.
Embora reconheça que é melhor ter uma religião má a não ter nenhuma ao argumentar que é “absolutamente imprescindível aos príncipes e aos povos o estar profundamente gravada nos espíritos a ideia de um Ser Supremo, criador, condutor, remunerador e vingador” (pp. 47-48), Voltaire suscita o tema do mal produzido pelo fanatismo, sempre bom frisar no viés religioso, e menciona como exemplo o massacre da noite de São Bartolomeu (1572) em Paris, protagonizado por católicos sobre protestantes huguenotes. Há outro tipo de fanatismo tão ou mais sanguinário quanto o religioso, e penso aqui no de viés político ideológico.
Contudo não por isso o ateísmo será uma visão da vida livre da volúpia, da ambição, como aponta Voltaire no que ilustra, ou do mal propriamente dito, e neste ponto penso acerca do que segue a argumentar “se é tão funesto como o fanatismo, é quase sempre fatal a virtude”, e assim o classifica como “um monstro pernicioso para os que governam, e igualmente para os estadistas em disposição” (p. 48).
O “freio” arrogado por Voltaire no exercício da fé seria uma exclusividade da experiência religiosa convencional? Conheci ateus ética e moralmente bem mais admiráveis, determinados na busca do bem, honestos, em comparação com muitos crentes e, sob este ângulo, penso, talvez estejam mais próximos de Deus; ser crente está longe de ser garantia de santidade. Há ateus praticantes com fantasia religiosa, que podem ser vistos em missas e cultos, por sinal a adoção de uma vida social religiosa é uma das formas mais eficientes de se camuflar a descrença objetiva, enquanto há praticantes da supremacia do bem que preferem ficar de fora de sistemas religioso e são mais conhecidos como “ateus”.
06/08/2024 22h02
Imagem: Prabook
“Diz-se que uma pessoa ‘pode ser ensinada’ se ela for dócil e passiva. Mas é justamente o contrário: o ensinamento é uma virtude extremamente ativa. Ninguém é verdadeiramente capaz de aprender se não exercitar livremente seu poder de julgamento independente. […]”
Obra: Como ler livros. O guia clássico para a leitura inteligente. 10. Como criticar um livro. O ensinamento é uma virtude. Realizações, 2010, São Paulo. Tradução de Edward Horst Wolff e Pedro Sette-Câmara. De Mortimer Jerome Adler (EUA/Nova York/Nova York, 1902-2001) e Charles Lincoln Van Doren (EUA/Nova York/Nova York, 1926-2019).
A leitura é uma conversa com o autor (p. 149) e a qualidade desse encontro vai depender da “etiqueta intelectual”, penso, onde cabe ao leitor deixar o autor falar” penso, e esse “deixar o autor falar” significa ler com atenção, respeito, para então meditar sobre o conteúdo apresentado até que se alcance um nível de entendimento considerável para que se possa ter condições de bem responder ao autor, atingindo assim o terceiro estágio da leitura analítica (p. 150). O “meditar” está relacionado com a recomendação de Bacon, citada pelos autores, para “pesar e ponderar” (p. 151) no exercício da leitura, não para refutar, concordar ou exaltar convicções.
O “poder de julgamento” pelo qual destaquei no trecho (p. 151) desta Leitura, está intimamente ligado à aprendizagem que enseja uma busca séria, esforçada ao máximo (p. 152), honesta, bem embasada do teor da obra em questão, caso contrário, a experiência da crítica na leitura será tão-somente uma mera reprodução das ideias e/ou crenças do leitor, e não das que o autor escreveu.
O bom juízo passa por um entendimento refinado para que seja possível dar uma resposta ao autor. Trata-se de um processo delicado que exige prudência, paciência. O juízo só deve ser realizado após a certeza de que se compreendeu o que o autor afirma na obra (p. 153), algo que exige humildade do leitor para reconhecer suas eventuais limitações, problema que poderá trazer inspiração para buscar aprimoramentos intelectuais para ler analiticamente melhor, o que envolve uma auto crítica com disposição para questionar se o que se está emitindo é o que o autor falou ou um reflexo das imagens construídas na mente que podem estar pautadas por preconceitos. Depurar a própria interpretação em desenvolvimento é o que entendi sobre o que os autores apontam como análise crítica na leitura ou seja, penso que o leitor deve cultivar o hábito de desafiar a consistência e a precisão do próprio entendimento na medida em que avança na leitura analítica, destarte promoverá em si mesmo um crescimento intelectual robusto capaz de prover um controle de qualidade da sua atividade de leitura.
Eis o terceiro estágio da leitura que aponto por inspiração nesta obra de referência, mediante o que penso ser uma harmonia com os dois estágios anteriores a apontar uma síntese dos autores que é uma chave para uma leitura saudável, edificante, de enlevo espiritual mediante a reformulação da regra 9 (p. 154):
VOCÊ TEM DE DIZER COM RAZOÁVEL GRAU DE CERTEZA “EU ENTENDO” ANTES QUE POSSA DIZER “CONCORDO” OU “DISCORDO” OU “SUSPENDO O JULGAMENTO”
05/08/2024 00h01
Imagem: The Market For Ideas
“Un più genuino Kulturkampf si combatteva allora nei paesi cattolici, una lotta iniziata già da oltre un secolo dalle loro monarchie assolute, che sciolsero a grado a grado lo stato da soggezione e vincoli teocratici, e proseguita dai governi liberali con la consapevolezza, che in quelle monarchie non poteva ancora esserci […]”
Obra: Storia d’Europa nel secolo decimonono. IX. L’età liberale. (1871-1914). A cura di Giuseppe Galasso, Adelphi, Milano 1991. De Benedetto Croce (Italia/Pescasseroli, 1866-1952).
Eis uma das obras que mencionei na publicação anterior, no rol das proibidas pela Igreja nos tempos do Index Librorum Prohibitorum, Storia d’Europa nel secolo decimonono é muito interessante ao ser um trabalho de análise da história da Europa no século XIX, com as repercussões no século seguinte, sob a perspectiva de um dos mais importantes filósofos italianos, que também foi historiador e político de viés liberal até certo ponto, pois em termos econômicos tinha aversão ao laissez-faire.
Croce aborda um tema que certamente incomodou bastante a Igreja; a longa e íntima relação do catolicismo romano com as monarquias e a associação que se tinha deste regime com o absolutismo onde residiam narrativas em favor de governos republicanos através de pautas liberais e progressistas.
Abre o capítulo a afirmar que, no que se seguiu a partir de 1870, “não havia mais na Europa reavivamentos de antigas monarquias absolutas nem explosões de novos cesarismos” (p. 248). No entanto as monarquias resistiam na convivência com os parlamentos, enquanto havia um crescimento da direita liberal e de socialistas com uma agenda progressista, ambos a exercerem pressão. Nesse contexto se encontra o trecho (p. 267) desta Leitura, onde se lutava por um “choque cultural em países católicos, processo que tinha se iniciado havia mais de um século diante de suas monarquias absolutas que se baseavam na sujeição e em restrições teocráticas”.
Na Alemanha o reduto monárquico encontrava suporte na Prússia (p. 253) no final do século XIX, mas avançava em meio a negociações entre a coroa e o parlamento. Na Inglaterra havia muito tempo o sistema parlamentar, com viés liberal, destacava-se diante da velha monarquia (p. 254) e uma reforma em 1885 fez o eleitorado aumentar em dois milhões e meio. Eram sinais de que a aristocracia europeia aos poucos dava lugar a uma democracia em paralelo com a resistência monárquica enquanto na França o processo estava mais avançado desde a segunda República, quadro que era diverso na Itália, até então recentemente unificada por um modelo de monarquia que promoveu um número de eleitores com aumento de quatro ou cinco vezes o volume. Na Bélgica a massa eleitoral cresceu dez vezes com o voto múltiplo, na Áustria o avanço do sufrágio também era evidente, na Suíça se adotou o governo por votação direta após reformas constitucionais (p. 255) e “em países onde ainda não existia (essa combinação de mais democracia parlamentar com monarquia), surgiam pautas em favor e se não surgissem espontaneamente, eram importadas”.
Porém na Rússia do Czar e na Polônia, esse fenômeno não tinha o espaço que se dava na parte ocidental (p. 257), mas no final do século XIX surgiam sinais de um aumento da mentalidade oposta ao regime czarista aristocrático, com tendências ocidentais e liberais, o que avançou no início do século seguinte com a concepção do primeiro partido democrático-constitucional e em movimentos socialistas que estavam divididos entre moderados e majoritários bolcheviques (p. 259).
Há nas entrelinha em Croce um certo deslumbramento com esse processo, sobretudo quanto ao ocorrido na Itália reunificada quando afirma que “nos últimos quarenta anos (a considerar o marco inicial do capítulo em 1870), muito trabalho foi realizado e manteve-se como uma base sólida com o espírito crítico fortalecido e difundido cuja superioridade do pensamento e do conhecimento secular tornou-se tão intensa que os próprios clérigos frequentavam universidades do estado para se prepararem com vistas à ciência e ao ensino” (p. 269), no entanto penso que esse avanço dos regimes democráticos, que engoliriam quase todas as monarquias um pouco mais adiante, em meio às narrativas liberais e progressistas, resultou em estados ainda mais controladores das sociedades, mais caros, digo mais tributários, mais burocráticos e invasivos na vida privada, entendo, quando combino os dados mencionados pelo intelectual italiano com análises baseadas em outras obras.
04/08/2024 11h51
Imagem: Soy Ateo
“Nè si dica che la condanna dei libri nocivi è violazione di libertà, guerra alla luce del vero e che l’Indice dei libri proibiti è un permanente attentato al progresso delle lettere e delle scienze.”
Obra: Index Librorum Prohibitorum. SS.MI D. N. PII PP. XI. IUSSU EDITUS. ANNO MCMXXXVIII. I. Prefazione. IMPRIMATUR: Fr. Alfonsus C. de Romanis, Ep. Porpbyreonen., Vic. Gen. Civitatis Vaticanae. TYPIS POLYGLOTTIS VATICANIS. MCMXXXVIII.
Instituído em 1546 pelo papa Paulo IV, revogado pelo papa Paulo VI em 1966, o Index Librorum Prohibitorum pertence a um período de 420 anos em que a Igreja Católica Apostólica Romana impôs censura de livros aos fiéis por meio de uma lista.
Primeiro, em termos gerais, o que significa uma condenação feita pelo papa? Penso, proibir e condenar têm conotações diferentes em nosso tempo de pluralismo tão avançado em comparação com o tempo do auge do poder terreno da Igreja, cuja condenação de um papa sobre algo significava uma vedação absoluta, uma proibição equivalente a um mandamento de Cristo na terra em sociedades onde, oficialmente, todos eram católicos (esta parte do “Cristo na terra” aprendi com as lições do historiador italiano Alessandro Barbero em referência a uma carta de Santa Catarina de Siena). Penso, em nosso tempo “condenação” não tem a mesma conotação, não significa necessariamente “proibição” ou um mandamento em termos indiscutíveis, sobretudo ao observar o comportamento de muitos que se veem como católicos e costumam fazer o contrário do que a Igreja ensina. Estou aqui a meditar sobre condenação em geral, não apenas de livros e um exemplo pode ser visto quando o papa condena o aborto, um tema fechado no clero, enquanto não é difícil encontrar católicos que o aceitam e até militam em favor e não aparentam deixar de ser católicos por isso. Alguns diriam que católicos que defendem o aborto não são legítimos, bem como os católicos que aceitam o divórcio e se casam novamente no civil, o que para o ensinamento da Igreja enseja em adultério, assim como as mulheres que tomam anticoncepcionais contrariam um ensinamento básico nas tradições da Igreja, e nem por isso deixam de se considerarem pessoas de fé católica. Contudo, o que pretendo pontuar aqui é que uma condenação do papa, nos tempos em que a Igreja tinha protagonismos político e religioso sobre o Ocidente (diria até um pouco antes da reforma protestante, século XVI), significava um exercício de regulação por algo muito poderoso, supremo, o que deveria ser seguido à risca, pois caso contrário poderia resultar em acusação de heresia sob possibilidade de excomunhão e, nos tribunais profanos, até em pena de morte, enquanto desde então até nosso tempo, marcado pela mentalidade dita “pós-moderna”, significa tão somente uma posição da Igreja e não necessariamente algo que cada fiel vai cumprir, embora, pontuo, católicos mais tradicionais possam não entender assim, quem sabe no desejo de se ter de volta essa era absoluta, diria autoritária, do “Cristo na terra” que pesava mais que a última palavra da suprema corte.
Então hoje se um papa condena um livro, um autor, uma ideia, um movimento, um regime político, uma inovação científica, a união homoafetiva, os métodos anticoncepcionais não naturais, e outros temas sensíveis, será ridículo pensar que se trata de algo sob conotação de “proibição geral”, inclusive aos católicos; será, no máximo, uma orientação aos fiéis, tão-somente diz respeito à posição oficial da Igreja. Penso agora nos anos 1960 quando foi revogado o Index Librorum Prohibitorum, década marcada no Ocidente por ebulição de ideias liberais nos costumes e progressistas na política, e eis que a revogação da tabela oficial de livros proibidos pela papa caducou; havia muito tempo, desde a renascença, a perder espaço na psicologia coletiva.
Torno à obra desta Leitura onde se menciona que no Concílio de Niceia (325) foi proibida a obra Thalia de Ario, que o papa Anastasio (399-401) condenou as obras do teólogo Orígenes (185-253) porque “seriam mais prejudiciais ao insensato, quão proveitoso ao sábio”, além das obras dos Maniqueus condenadas pelo papa Leo (Leão I, 440-461), que também ordenou aos bispos espanhóis um movimento contra os livros dos Priscilianistas (p. VI). Portanto, a censura a obras promovida pela Igreja por meio do Index Librorum Prohibitorum não foi a primeira. Nesta edição de 1938 fica evidente que determinar o que os fiéis deveriam ler ou não segue uma linha que apela até uma antiga tradição da Igreja, inclusive é mencionada a “pregação zelosa” dos apóstolos associada aos fiéis de Éfeso que queimaram livros de superstição (p. V, At 19-19), contudo, ao analisar o contexto da passagem de São Paulo em Éfeso, o texto não explicita uma imposição para que se queimassem os livros, e sim deixa relacionado os efeitos da conversão à pregação apostólica, ou seja, uma decisão das pessoas que abraçaram a fé e não dos apóstolos, o que é bem diferente.
A ideia defendida no Index Librorum Prohibitorum é que se faz necessário uma “autoridade competente” para evitar, por meios coercitivos, ou seja, por atos de censura, a circulação de conteúdos que tenham erros que possam contaminar a fé, “corromper os bons costumes” (p. VIII), Então, no lugar do indivíduo decidir o que deseja ler, cabe a uma autoridade central fazê-lo em seu lugar, algo que nazistas, fascistas e comunistas, além de qualquer outro grupo extremista que assuma o poder, concordariam plenamente em relação aos seus respectivos ideais.
A lista de obras proibidas, na edição que disponho (1938), tem 505 páginas. Em certo sentido, tenho que agradecer aos papas ditadores, pois o Index Librorum Prohibitorum, sob meu olhar bibliófilo, torna-se uma imensa e belíssima lista de recomendações de leitura, senão vejamos uma pequena demonstração:
Bruno, Giordano. Opera omnia. Decr. 8. Off. 8 febr. 1600.
Croce, Benedetto. Storia d’Europa nel secolo decimonono. Beer. 8. Off. 13 iul. 1932.
Esprit (De i’) des loix ou du rapport que les loix doivent avoir avec la constitution de chaque gouvernement, les moeurs, le climat, la religion, le commerce. Decr. 29 novemb. 1751. v. Montesquieu, Charles de Secondât de.
Darwin, Erasmus. Zoonomia or the laws of organic life. Decr. 22 dec. 1817.
Dictionnaire philosophique portatif. Decr. 8 iul. 1765. v. Voltaire.
Diderot, Denis. Jacques le fataliste et son maître. Decr. 2 iul. 1804.
Kant, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft. B eer. 11 iun . 1827.
* Leopardi, Giacomo. Operette morali. D on ec corrig. Decr. 2 7 iun . 1850.
* Descartes, Renatus. Meditationes de prima philosophia, in quibus Dei existentia et animae humanae a corpore distinctio demonstratur. Donec corrig. Decr. 8. Off. 10 oct. 1663.
Rousseau, Jean-Jacques. Du contract social, ou principes du droit politique. Decr. 16 iun . 1766.
Spinoza, Benedictus de. Opera posthuma. Decr. 29 aug. 1690.
Vita (G. D. M.) di Martin Lutero. Decr. 3 apr. 1882.
Voltaire, François-Marie Arouet. Lettres philosophiques. Decr. 24 mai 1752.
03/08/2024 15h29
Imagem: Site oficial
“A ansiedade é adaptativa quando se trata de uma resposta a um risco momentâneo em nosso ambiente e patológica quando se torna um estado crônico de tensão […]”
Obra: Calma. Técnicas comprovadas para acabar com a ansiedade agora. Capitulo Um. A ansiedade está conduzindo a sua vida? Por que lutamos contra a ansiedade. Latitude, 2021, Cotia. Tradução de Luciane Gomide. De Jill P. Weber.
A psicóloga PhD americana abre esta obra de utilidade pública com uma abordagem que diferencia a a ansiedade adaptativa da patológica. A primeira é apropriada, diria necessária diante de situações de percepção de ameaça ou perigo onde é acionada uma resposta fisiológica momentânea (p. 1); a segunda é uma resposta imprópria desencadeada por sinais que não são ameaçadores (p. 2). A dra. Weber apresenta então um quadro para que se identifique as diferenças entre o medo comum, associado a adaptativa, e a ansiedade patológica (p. 4).
A experiência de leitura me proporcionou uma melhoria significativa no autoconhecimento de minhas emoções, tanto para aproveitar o que entendi ser a boa ansiedade, onde ocorre uma reação natural e saudável diante do medo derivado de uma ameaça real. Quando estou a investir ou programar, saber identificar bem a emoção do medo ou do receio diante de um problema, requer um constante aprimoramento de avaliações que preciso fazer para ter um bom entendimento da situação concreta que me torne capaz de não cair em especulações e achismos, para em seguida construir opções para sanar o problema em questão. Aqui percebo a importância da relação triangular emoções-comportamento-pensamentos apontada pela dra. Weber para lidar com a tensão natural dessa atividade no cotidiano afim de evitar um estresse desnecessário e uma leitura distorcida da realidade como fatores que venham a transformar essa boa ansiedade em um transtorno.
No meu trabalho é comum me deparar com clientes acometidos de sinais de ansiedade além da adaptativa. Muitas vezes há uma disfunção quanto à gravidade e um grau de imediatismo que revela distorção de prioridades. Neste contexto, bem comum, preciso identificar esses problemas para evitar que a carga emocional do cliente venha a me contagiar de maneira que atrapalhe a minha leitura da situação; uma chave está em saber identificar bem minhas emoções, tolerá-las , incluindo sobretudo aquelas me trazem desconforto de modo que vou aprendendo a reconhecê-las de forma cada vez mais precisa. Fugir ou evitar minhas emoções foi a primeira grande lição que identifiquei nas técnicas da dra. Weber. Em seguida, algo que estou a desenvolver ao longo desses anos de trabalho intenso, reside em ter um bom entendimento dos fatos; tenho que ser prudente nas apurações para ler bem o que me fora demandado, o que envolve os pensamentos, fator que combina com uma disciplina mental que trabalhe a calma, a concentração, o sequenciamento lógico de tarefas e a determinação, complexo que envolve o comportamento, para ser possível então encontrar cotidianamente os meios que posso aplicar de forma adequada.
Neste livro encontrei técnicas que ensinaram a aprimorar meu modelo de atendimento para que possa ser mantida uma relação saudável com a boa ansiedade, algo que proporciona uma capacidade proativa de neutralizar tendências que posso desenvolver para transtornos.
02/08/2024 21h49
Imagem: Senado
“[…] é oportuno lembramos as lições de alguns austríacos, paladinos das ideias liberais. […]”
Obra: A Constituição Contra o Brasil. 29. A humildade dos liberais. LVM, 2018, São Paulo. De Roberto de Oliveira Campos (Brasil/Mato Grosso/Cuiabá, 1917-2001), organizado por Paulo Roberto de Almeida.
Recife, 1995, agosto – ZW tinha o hábito de trazer recortes de jornais e foi em um desses que ouvi pela primeira vez os nomes Hayek e Mises, os dois que fariam parte de minha metanoia econômica na década seguinte.
A caminho dos 21 anos de idade, empanzinado de keynesianismo, era um crente da “Constituição Cidadã”, ainda incapaz de entender o que ZW tentava me ensinar acerca da “humildade dos liberais”. Contudo não tinha consciência que a fortíssima carga de marxismo naquele meu eu de 1995 estava se esfarelando aos poucos com as idas à biblioteca e as perturbações de ZW. Estava em processo de mudança de mentalidade econômica, lentamente. Foi neste contexto que me deparei com este artigo de Roberto Campos.
Lembro-me que até meados do ano anterior tinha ojeriza de ouvir o nome do maior liberal que este país teve e preferia o jocoso “Bob Fields”, mas naquele dia, entre baforadas de ZW, estava disposto a, pelo menos, analisar o texto do recorte, mesmo sendo inapto para compreender minimamente bem a tal humildade, tampouco o que aquele senhor (cuja idade à época era próxima da que tenho hoje, experimentado no mercado financeiro) tinha grifado sobre a economia como “o resultado das ações dos homens e não de suas intenções” (p. 231); ouvir isso e considerar como “investigável” denotava uma mudança significativa.
Na recente releitura que fiz deste artigo, parei para meditar o quanto uma mudança de mentalidade ocorre como um milagre sem que se tenha mínima percepção desse processo revolucionário. O importante é buscar o conhecimento, abrir-se a uma crítica diversa às conveniências que me cercam, ser capaz de enfrentar as próprias crenças, mesmo que o entendimento de imediato seja precário e deixar o espírito conversar com as provocações, hoje penso.
O meu eu de 21 anos pouco compreendeu sobre o que leu e discutiu com ZW naquela noite, mas a semente de um pensar econômico mais amadurecido tinha sido plantada e germinaria 12 anos depois.
01/08/2024 20h47
Imagem: Luciana Amorim
“[…] Talvez, o misterioso encanto desse sorriso, para nós, seja o de um dejà vu […]”
Obra: Ensaios Reunidos. Volume I. 1942-1978. Presenças. Sobre o sorriso da Gioconda. Topbooks/UniverCidade, 1999, Rio de Janeiro. De Otto Maria Carpeaux (Áustria/Viena, 1900-1978).
O sorriso da burguesa italiana, os lábios semi-abertos que me fazem pensar em quem passa pelo mundo, vê o cinismo, a dissimulação, com tudo mais o que subestima a inteligência alheia e posa de gênio.
Um sorriso ironicamente dado como se não tivesse percebido uma desfaçatez…
É o sorriso do eu sei, mas prefiro deixá-los convencidos em si mesmos do contrário, com uma ponta de desconfiança…
Quem sabe seja um sorriso da voz da consciência de quem a contempla enquanto pensa sobre as maiores bobagens que realizou como se nada tivesse a ver?
É muito mais que um sorriso de uma femme fatale ensaiada por Gautier (p. 734). Carpeaux o define como um sorriso “típico”, no sentido de que fora utilizado em outras obras de Leonardo da Vinci (1452-1519), até em L’Ultima Cena na face de Cristo, bem como em diversas obras de arte arcaica (p. 734). Intrigante para uns, provocante para outros, constrangedor a quem segue no prazer da culpa no cartório sob o trabalho de mantê-la cotidianamente debaixo do tapete.
Quando o vi pela primeira vez no Louvre, fascinado que fiquei, nem notei logo o tamanho que nada lembra o glamour do que seria de um gosto “obsoleto”, segundo Berensom ou, para o doutor Freud um sintoma de desejos “incestuosos do artista”, como menciona Carpeaux (733).
Só sei que o sorriso da notável senhora esposa do Giocondo combina bem em vários lugares e em ocasiões diversas, sobretudo para decorar gabinetes de “artistas” que pintam o mundo de demagogia e hipocrisia, diante da massa keep smiling (p. 755) que regem.
Comentar pelo Facebook