Intermezzo da ópera Calvalleria Rusticana (1890) de Pietro Mascagni (Italia/Roma, 1863-1945), pela Orquestra Sinfônica da Gimnazija Kranj (2013), para inspirar mais uma edição de Uma leitura ao dia.

20/11/2024 22h04

Imagem: Same Passage

Ganga Zumba

“Durante o período, Ganga Zumba é líder de uma sociedade livre, com fartura de alimentos, enquanto a sociedade açucareira do Norte do Brasil passava por diversas crises.”

Obra: Zumbi dos palmares: por uma educação antirracista. O grande chefe Ganga-Zumba. Monstro dos Mares, 2020, Ponta Grossa. De Walter Vadala.

Há um certo espírito libertário do autor Walter Vadala em seu “Aviso de Copyleft”.

Ganga Zumba foi arrancado de sua família real no Congo para ser escravo no Brasil pela fera humana, mas ele fugiu e se estabeleceu em Palmares onde se tornou chefe do Quilombo por volta de 1670. Foi organizado um conselho de líderes nos mocambos, que eram vistos como filhos por Ganga Zumba “trazendo a essência africana de tribo para Palmares” (p. 25) em um contexto de Estado com sistema de defesa contra as os fazendeiros senhores de escravos.

A partir de 1677 o prestígio de Ganga Zumba começa a declinar na medida em que a força de proteção do Quilombo não se mostrava capaz de neutralizar investidas no lado do governo colonial, enquanto a guerra se alongava, no entanto houve um acordo no Recife entre Ganga Zumba e o governador de Pernambuco, que apenas reconhecia a liberdade de forma restrita:

Os negros nascidos em palmares eram livres; os que aceitassem a paz receberiam terras para viver; o comércio entre negros e os povoados vizinhos ficava liberado e legalizado; os negros que aceitassem a paz, passariam a ser vassalos da coroa, como quaisquer outros. Este acordo ficou conhecido como “A paz dos chefes” (p. 27).

Surge então a figura de Zumbi na liderança dos insatisfeitos com o acordo, dentro do Quilombo. Em meio à crise, Ganga Zumba, que tinha fugido da senzala, decidiu fugir do próprio Quilombo para Cacaú, uma terra próxima ao Recife que tinha sido prometida pelo governador, acompanhado por trezentos seguidores. A nova vida em Cacaú não deu certo para Ganga Zumba e aliados, pois estavam cercados por uma perigosa proximidade com a sociedade escravocrata que os hostilizava em um cenário diferente da Serra da Barriga.

Zumbi também seria assediado pelo sistema colonialista para que vivesse longe do Quilombo em troca da liberdade pessoal, mas reagiu de forma diferente; decidiu trocar os benefícios da proposta do governo pelo ideal de liberdade a todos os negros que decidissem viver no Quilombo dos Palmares (p. 29).

19/11/2024 20h34

Imagem: the-colosseum.net

Naumachie

“Nel corso di uno spettacolo in uno dei teatri, improvvisamente riempì il luogo di acqua di mare in modo che vi nuotassero i pesci e i mostri marini, e vi fu una battaglia navale tra “Persiani” e “Ateniesi”. Alla fine fece defluire l’acqua, prosciugare il sottosuolo e così continuarono le gare sulla terra, non solo tra due uomini alla volta, ma con gruppi contrapposti ad altri gruppi.”

Obra: Storia romana. Quarto Volume. Libri 55-65. aC 43 (a. u .711) – aD 69 (au 822). 2022, eBook Kindle. Traduzido para o italiano por Nicoila Lembo. De Lucio Cassio Dione (Nicea, 155-235).

A primeira vez que vi uma ilustração foi em Roma (2018) e fiquei impressionado: Le naumachie.

No filme Gladiador II, o diretor Ridley Scott explorou bastante o tema. Scott se caracteriza por filmes de ficção científica, além de apresentar narrativas sobre temas épicos que destoam das formas mais conhecidas, como fizera no filme Êxodo: Deuses e Reis (2014) que decepcionou um conhecido de fé cristã evangélica que foi ao cinema a pensar que assistiria a uma obra baseada na Bíblia (que também é narrativa, embora seja amplamente lida como se fosse obra de história) e se deparou com o estilo peculiar do diretor que trabalha suas próprias versões sem se importar nem um pouco com o que se tem por convencional. Scott fez algo um tanto similar em Napoleão (2023). Então, o mesmo interlocutor ao conferir Gladiador II me falou que desta vez o diretor “foi longe demais com aqueles barcos enormes dentro da arena convertida em lago”.

A engenhosidade dos antigos parece que ainda surpreende…. Primeiro, penso na obviedade do filme ser ficção, em boa parte fruto da imaginação do diretor, outra do roteirista, às vezes de um escritor quando se baseia em um romance; devo ter consciência que não estou a apreciar um documentário ou obra de história. Quando vou apreciar algo assim sei que o diretor trabalhou na obra como um romancista que está livre para contar o que quiser; é arte em forma de narrativa e não documentário, ou como aprendi com Umberto Eco, ludicamente o autor finge que conta algo que aconteceu e eu finjo que acredito…

Quanto às batalhas navais, na verdade, desta vez, Scott não foi original, pelo menos em termos de imaginação. Torno a uma de minhas visitas a Roma em gravuras dessas batalhas que teriam sido encenadas no Colosseo e, nesta obra de Dione Cassio (p. 232), se versa sobre registros que indicam que teriam sido realizadas em “teatros”, assim como discorre sucintamente a forma em que eram realizadas: o local ficava “com água do mar, peixes e monstros marinhos”, no caso, para “uma batalha naval entre ‘persas’ e ‘atenienses’, depois a água era escoada e em terra seguiam lutas entre dois homens ou com grupos que se digladiavam”. Participavam criminosos que tinham que lutar de verdade (ver a morte em duelos esportivos ou de espetáculos era uma forma de entretenimento na antiga Roma), mas às vezes se recorriam a trupes.

Quanto ao Colosseo, ocorrem questionamentos sobre o subterrâneo que impediria a arena de ser convertida em um enorme “piscinão” com profundidade suficiente para tornar a área navegável, diria, porém, na arqueologia também se considera que as áreas subterrâneas foram escavadas um tempo depois da inauguração pois os carimbos mais antigos nos tijolos das paredes do subsolo são da época de Domiciano (exceto as inúmeras reformas nos séculos seguintes), o que, em tese, viabilizaria as naumachie no maior estádio da antiguidade.

Júlio César promoveu a primeira batalha naval como espetáculo em 46 a.C em uma bacia artificial no Campo Marzio. Enquanto divertia a plebe, o ditador proto-imperador fazia propaganda política em torno de suas conquistas. Outro autor, Marziale, afirma que as naumachie foram realizadas no Colosseo nos primeiros anos após a inauguração e se foi assim, então, no contexto de Gladiador II, as batalhas navais não poderiam mais ocorrer a considerar o subsolo da arena que há na obra prima, o primeiro filme, porém, como falei, é ficção, entretenimento, narrativa, diversão…

18/11/2024 00h01

Imagem: polish history

Raphaël Lemkin

“[…] Genocide is directed against the national group as an entity, and the actions involved are directed against individuals, not in their individual capacity, but as members of the national group […]”

Obra: Axis rule in occupied Europe. Laws of occupation, analysis of government, proposals for redress. Chapter IX. Genocide. Carnegie Endowment for International Peace, 1944, 700 Jackson Place N. W. De Raphaël Lemkin (Bielorrússia/Bezvodno, 1900-1959). Por Gallica.

O portal Vatican News [280] noticiou matéria do diário italiano La Stampa trazendo alguns trechos do novo livro do papa Francesco A esperança nunca decepciona. Peregrinos em direção a um mundo melhor, que começará a ser vendido a partir da próxima terça (19).

Na matéria [281] se antecipam trechos da obra, sendo um deles a tratar sobre o entendimento do papa de que cabe uma investigação para saber se há genocídio em Gaza.

Quando li, imaginei o tamanho da polêmica que o papa decidiu se envolver pois, aparentemente, no mundo politicamente correto do sionismo abraçado na direita cristã conservadora, o termo não pode ser aplicado ao Estado de Israel cujo território e soberania existem para abrigar e defender o povo judeu, a considerar a reação que normalmente ocorre. A sensação que tenho é de que, nessa mentalidade dissonante, qualquer governo pode ser acusado de cometer genocídio, menos o de Israel.

Digamos que seja um disclaimer, sempre penso na separação de categorias quando reflito sobre essa questão:

Uma coisa é o Estado de Israel, outra coisa é quem ou o que governa o Estado de Israel e outra coisa é o judeu comum com o direito de existir, viver seus valores e ser respeitado, tanto quanto qualquer outro exemplar da nossa espécie. Acontece que a confusão dessas três categorias é típica do âmbito político-ideológico, onde a irracionalidade, o fanatismo, a inveja, o ódio e a idiotice são os principais ingredientes [282].

Em outras palavras, SE o governo de Israel estiver cometendo genocídio em Gaza, isso não me dá o direito de culpar, muito menos o absurdo de ofender e agredir todo judeu que encontrar pelo caminho. Os responsáveis devem responder e não um povo inteiro, por sinal, muitos judeus são simpáticos ao povo palestino.

Entendo que o governo de Israel, sob o argumento de que precisa destruir o Hamas, organização terrorista que usa civis para se camuflar após o ataque que executou 1.139 civis judeus pacíficos e inocentes em 7 de outubro de 2023, além de ter sequestrado 251 [283], está provocando a morte em massa de dezenas de milhares de civis palestinos entre crianças, mulheres, idosos, inocentes de um povo alocado naquele território, por meio de ataques sistemáticos.

Raphaël Lemkin, advogado polonês de origem judaica, entrou para a história ao cunhar o termo, que vem do grego genos (raça, tribo) e do latim cide (que significa matar). Afirma que genocídio é “a destruição de uma nação ou de um grupo étnico” e que esse ato “não significa necessariamente a destruição imediata de uma nação, exceto quando realizado por assassinatos em massa de todos os membros de uma nação. Pretende, antes, uma coordenação de plano de diferentes ações visando a destruição de alicerces essenciais da vida dos grupos nacionais, com o objetivo de aniquila-los”. Completa o autor que “os objetivos de tal plano consistem na desintegração do sistema político e de instituições sociais, de cultura, língua, sentimentos nacionais, religião e a existência econômica de grupos nacionais e a destruição do patrimônio pessoal, da segurança, da liberdade, da saúde, da dignidade e até mesmo a vida dos indivíduos pertencentes a tais grupos. O genocídio é dirigido contra o grupo nacional como uma entidade, e as ações envolvidas são dirigidas contra indivíduos, e não em sua capacidade individual, mas como membros do grupo nacional” (p. 79).

O termo discorre sobre um crime tão antigo quanto a humanidade, penso, e se esta definição de genocídio for consensual (parece-me bem precisa), então é mesmo preciso verificar legalmente se o que está a ocorrer em Gaza se aplica.

280. Papa: investigar se ocorre um genocídio em Gaza. Que a dignidade humana seja nossa preocupação

281. Papa Francesco: “Si indaghi se a Gaza è genocidio”

282. 09/11/2024 18h29

283. Israel: parentes de vítimas e sobrevivente falam ao Correio sobre o 7 de outubro

17/11/2024 00h01

Imagem: Luciana Amorim [279]

Il Colosseo

“Nel corso dell’epoca moderna alcuni autori hanno sostenuto che nessun cristiano subì il martirio nel Colosseo.”

Obra: Un nuovo messaggio cristiano dal Colosseo? Studio del disegno di una croce. EDUCatt, 2021, Milano. De Pier Luigi Guiducci (Italia/Roma, 1951).

Tenho um particular interesse pela história do Amphitheatrum Flavium relacionado com o martírio de cristãos. Na minha primeira visita (2018), enquanto envolto à natural empolgação de turistas com fotos, fiquei paralisado diante da arena ao pensar no que ocorrera naquele lugar de combates e martírios para o entretenimento da plebe.

Tornei em outras ocasiões ao Colosseo e em 2022 (imagem de tapumes que contam a história da icônica arena) me lembrei do que tinha escutado sobre uma história um tanto diferente: o martírio de cristãos lá teria sido um mito. Então encontrei este livro do professor, jurista e historiador Pier Luigi Guiducci que trata sobre um desenho de uma cruz em um fragmento de parede do Colosseo e indicações que contrariam a tese moderna do mito.

O professor apresenta os argumentos (p. 9) em favor da tese do mito: sentenças de pena capital eram realizadas em outras localidades (Circo Máximo, Circo de Nero), cristãos foram mortos em áreas diversas de Roma e os cidadãos romanos condenados à morte eram decapitados (o que, penso, não se associa ao que era feito na arena).

No período de Nero é possível que o martírio de cristãos tenha ocorrido em torno do Circo do Imperador, ao longo da via Cornelia (p. 10). Lembra o professor que (bem mais adiante, pensei) o Amphitheatrum Flavium é mencionado por Santo Agostinho (em referência de seu amigo Alípio que tinha passado por Roma), como lugar de espetáculo cruento (Confissões VI, 8.13). Cita em nota (27) Spettacoli del Colosseo nelle cronache degli antichi, de D. Augenti, sobre os lugares de martírio, onde menciona o anfiteatro Flávio na lista, quando foram mortos “escravos, prisioneiros de guerra e condenados por vários crimes (incluindo parricídio), onde cristãos, em geral, faziam parte da primeira e terceira categorias” (p. 12). Também comenta sobre o martírio de Santo Inácio de Antioquia (30~25-98~107 ) no Colosseo, entregue ad bestias (pp. 12-15), além da história em torno do que teria sido o cristão Quintus (p. 15) a ter se retratado antes do martírio ad bestias, o que indicaria a prática contra cristãos.

Então chega ao ponto central da obra: a cruz encontrada no fragmento de muro do Colosseo no terceiro nível (p. 31), próxima às letras T e S desenhadas (Parte IV). O professor faz uma análise detalhada dos símbolos à época, indica que não convence a hipótese de que o local era de culto (p. 41), e nas notas finais sugere que nenhum cristão desenharia uma cruz “por diversão”, “sem um ‘motivo” (pensei, de fato, em meio ao tempo de muita perseguição isso seria improvável), e que pode ter sido colocada como uma “resposta” a quem tinha desenhado as letras “T” e “S”, para chamar a atenção de quem passava por aquele ambiente (pensei, o terceiro nível era bem mais popular), em torno de um símbolo do sofrimento, cujo significado seria salvífico no sentido de que “Cristo salva” (p. 43).

Ao apreciar esta obra pensei como percebo na modernidade a constante tentativa, um tanto desesperada, de reescrever a história, sobretudo quando envolve o passado remoto da fé cristã.

279. A imagem é de um dos tapumes ao lado da entrada do Coliseu em 2022, contando a história da, provavelmente, mais famosa arena de todos os tempos.

16/11/2024 14h58

Imagem: Grattacielo Intesa Sanpaolo

Alessando Barbero

“Nel 301 Diocleziano aveva pubblicato un famoso editto sui prezzi, in cui stabiliva prezzi e tariffe massimi per tutta una serie di merci e di servizi. […]”

Obra: Costantino: Il vincitore. Parte quarta. LA LEGISLAZIONE DI COSTANTINO. XII. Rendere piú efficiente lo stato. 3.3. La regolamentazione economica. Salerno Editrice, 2016, Roma. De Alessandro Barbero (Italia/Torino, 1959).

Um governo decide, por decreto, estabelecer preços máximos para mercadorias e serviços…

Não estou a pensar na União Soviética no século XX, em Cuba, na Coreia do Norte, na Venezuela e outros países de socialismo mais avançado na atualidade, nem no Brasil de Sarney e da Sunab nos anos 1980, tampouco em algum mirabolante projeto de lei em Brasília (DF) ou em tios e tias do zap comemorando a “solução final” para o problema da inflação.

Estou a pensar no imperador Diocleciano (284-305) que em 301 d.C. decidiu apelar para a prática do controle de preços ao consumidor, o que o historiador do Piemonte discorre como de eficácia “geralmente ridicularizada”. O imperador Constantino o sucedeu e evitou fazer uso de tal recurso, pelo menos no sentido de que não há evidência documental. O que mais se aproxima de uma intervenção nessa área é o critério de juros sobre alimentos in natura (vinho, óleo ou cereais) ao permitir uma taxa de juros de 50% (um alqueire a cada dois) com vencimento na próxima colheita (p. 569), impressionantemente maior que o empréstimo de dinheiro cujo limite era de 1% ao mês, o que indicava um grande estímulo para empréstimos in natura (p. 570). Caso o credor recusasse o reembolso, ocorreria o “propter commo dum umorerum debitum receitare noluerit” ou a perda dos juros e do capital, pois a recusa era uma prática comum usada para forçar o acumulo de endividamento, onde a regulação do imperador tentar coibir (p. 570).

O modelo representava também o reflexo da “desproporção do preço do trigo antes e depois da nova colheita” onde os empréstimo em dinheiro perdiam sentido e o feito em produtos dava uma proteção aos credores diante da desvalorização da moeda sobre as variações de preços nos mercados durante a alta volatilidade, não havendo assim necessidade de ancorar os juros a um determinado período de tempo enquanto agricultores pobres, para não morrerem de fome, se viam forçados a contrair empréstimos para pagar com os mesmos alimentos com essa taxa estratosférica, principalmente na véspera da nova colheita, quando os recursos do ano anterior estavam esgotados (p. 570).

Parece-me evidente que aqui há um exemplo do pragmatismo de Constantino em satisfazer as elites e, concomitantemente, deixa os mais pobres com alguma proteção e uma caríssima possibilidade de acesso a recursos em tempos de escassez, pelas taxas que os empobreciam ainda mais.

Não há nada de novo debaixo do céu…

15/11/2024 14h20

Imagem: EBC

Deodoro da Fonseca

– Ela é linda…

Obra: A mulher que proclamou a República. Primeira conversa. Penalux, 2020, Guaratinguetá. De Aguinaldo Tadeu.

Deodoro da Fonseca é retratado nesta obra, entre outras coisas, como um comandante muito respeitado por seus colegas de farda tendo sido presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul e do Clube Militar (p. 18). Politicamente suas convicções se mostravam “conservadoras e monarquistas”. Na vida pessoal, quando jovem, foi muito vaidoso e conquistador de mulheres por onde passava, Deodoro da Fonseca fazia o tipo galanteador “exímio pé-de-valsa” que perfumava a barba com fragrância de violeta e de temperamento “muito explosivo, egocêntrico e impetuoso” (p. 19).

Como um membro da cúpula militar, com esse perfil, terminou como o comandante do golpe em 15 de novembro de 1889 que destronou o imperador e proclamou a República?

Há um detalhe investigado em sua vida pessoal que provoca historiadores e se relaciona com a tese de que havia uma motivação passional para a virada radical no posicionamento político do marechal. Teria sido a proclamação da República fruto de um impulso de um homem casado e encharcado de desejo por uma viúva gaúcha que o rejeitou e que acabou por se tornar, segundo suas palavras, “a mais amarga derrota” (p. 14) que teve na vida, quando penso que fora vencido por seu grande desafeto político nos bastidores da monarquia, Gaspar Silveira Martins?

O que uma paixão avassaladora e não realizada pela filha do Barão do Triunfo, Maria Adelaide Andrade Neves Meireles, pode ter feito no coração de um comandante tão poderoso como Deodoro da Fonseca? O que uma mulher a qual sua definição (p. 13) abre o primeiro capítulo, nas palavras do marechal, capaz de paralisá-lo, teve de fato influência em suas decisões que acabaram por destronar o imperador e instituir uma república que prejudicou quem fora seu rival nessa competição amorosa?

Eis o que se discorre nessa obra baseada no testemunho de Alcides, que também foi uma espécie de confidente como então secretário pessoal do marechal, após a precoce saída dele pela renúncia ao cargo de presidente da República.

Obra muito bem escrita, de leitura fácil.

14/11/2024 22h14

Imagem: EBC

Deodoro da Fonseca

“Assim, imposta aos trancos e solavancos, nasceu a República brasileira, tendo como primeiro líder um não republicano.”

Obra: Os presidentes: a história dos que mandaram e desmandaram no Brasil, de Deodoro a Bolsonaro. Deodoro da Fonseca (1889-1891), o homem errado. HarperCollins Brasil, 2019, Rio de Janeiro. De Rodrigo Vizeu.

Seria apenas mais um circo tupiniquim se o picadeiro não fosse trágico e caríssimo para quem herdou e é obrigado a bancá-lo até hoje, eis a história, assim entendi nesta leitura, acerca da fundação da República no Brasil.

Manuel Deodoro da Fonseca (1827-1892), tido como herói na Guerra do Paraguai (1864-1870) onde obteve a patente de Marechal-de-Campo, considerava-se próximo ao imperador (p. 20) e foi reflexo de um tempo de conflitos entre monarquistas e republicanos, com militares oportunistas no meio em busca de espaço. Deodoro relutou às correntes em favor do golpe, no entanto, para que servem boatos? No caso da proclamação da República, teria sido o ponto de partida de uma crise; Deodoro, alvo de perseguição imperial, diziam no primeiro, mas apenas uma intervenção do Exército caberia naquela manhã de 15 de novembro de 1889, com o marechal adoentado a dar vivas a D. Pedro II, que também estava apático por conta do problema com diabetes; nada de destituição, contudo, à tarde, pensei, jogaram outro boato para Deodoro, a envolver o nome de seu antigo desafeto, Gaspar Silveira Martins, e assim conseguiram que o marechal permitisse o manifesto na Câmara Municipal do Rio: uma estranha ressalva de um governo “provisório” no lugar da monarquia, com o povo assistindo a um espetáculo de caricaturas um tanto “bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava”, informava Aristides Lobo no Diário Popular (p. 22).

A República estava proclamada e abriu “uma época marcada por caça às bruxas, censura à imprensa e eliminação de nomes títulos e símbolos da era monárquica” (p. 24). Deodoro fora eleito indiretamente e não terminou o mandato. O primeiro presidente da República também foi o primeiro a renunciá-la: centralizador, faltava-lhe habilidade política e assim caiu por renúncia ao não receber o apoio que esperava da Marinha, após ter aplicado um golpe em novembro 1891 que dissolveu o Congresso, suspendeu direitos, perseguiu a imprensa e decretou estado de sítio” (p. 25).

A história bizarra do nascimento da república no Brasil pode servir de reflexão sobre como a ideia de “intervenção militar” se revelou desastrosa na política ao longo da história, no entanto, décadas adiante cairia no gosto de idiotas que apelam aos quartéis, quando atormentados por perturbações peculiares do mundo político.

Obra interessante para quem deseja iniciar um processo de verificação histórica fora da superficialidade, para então saber se procede a narrativa oficial (sempre suspeita) que exalta a Proclamação da República.

13/11/2024 21h24

Imagem: PUCRS online

Leandro Karnal

“[…] Os detratores cumpriram muito bem sua função pedagógica e de estímulo à humildade na minha jornada. Agradeço a todos, do fundo do coração, e a eles dedico este texto.”

Obra: A detração. Breve ensaio sobre o maldizer. Dedicatória com detração. UNISINOS, 2016, São Leopoldo. De Leandro Karnal (Brasil/Rio Grande do Sul/São Leopoldo, 1963).

Em minha sala de leituras Leandro Karnal e Olavo de Carvalho são indispensáveis.

Karnal, à mon avis, na medida em que fui me permitindo à apreciação de seus textos de forma desarmada, revelou-se um exemplo de elegância intelectual. Além de uma cultura extraordinária, vi pouquíssimos autores com a capacidade dele quanto ao saber reagir com mansidão, serenidade e inteligência a críticas ácidas e ofensas.

Olavo de Carvalho também faz parte de minha formação. Seus livros, penso, são indispensáveis para entender o comunismo, o conservadorismo, a política e a elite intelectual brasileiras.

Karnal e Olavo, para alguns, uma combinação insólita e, aos meu olhos, interessante dialética de perfil de autores em minhas experiências de leitura, por serem dois intelectuais de ambientes tão distintos e estilos tão diversos na produção de pensamento. Em comum oferecem uma imensa bagagem de leituras de maneira que o leitor encontrará neles duas grandes fontes de referências bibliográficas sobre os temas que abordam. Ler Karnal e Carvalho é certeza de crescimento intelectual para quem não está preso a alguma bolha, o que pode soar esquisito para quem prefere se comportar como fã de mentalidade binária, onde se acredita que apreciar um autor significa excluir o outro.

Quanto às diferenças, os dois também são interessantes para se verificar o quanto a intelectualidade é livre no desenvolvimento: o primeiro saiu do ambiente formal acadêmico, sendo um exemplo de excelência no institucional, apesar dos problemas que este meio possui no Brasil em termos de genuína erudição, enquanto o segundo correu por fora, sendo extraordinário em seu estilo próprio de analisar o mundo. Karnal, penso, inspira um senso crítico blindado de extravagâncias e paixões; é refinadíssimo na arte de fazer crítica sem cair no apelo da ofensa, e por isso pode ser confundido com o que se chama hoje de “isentão”, enquanto ler Olavo, sendo um filósofo, assim o reconheço, é como lidar com um fio desencapado de provocações que muitas vezes me incomodam pela forma indelicada (para usar um eufemismo) como menciona outros pensadores em suas avaliações, quando discorda deles (Karnal está nessa lista), o que acaba sempre para mim sendo um enorme desafio de esforço mental para separar bem o que consigo identificar de qualidade em seus argumentos, de seu gênio agressivo.

Bem sei que Olavo não gostou do Karnal (prefiro mais um eufemismo), no entanto, os dois seriam convidados de honra em um mesmo jantar para intelectuais em minha casa.

Este ensaio de Karnal sobre a detração me fez pensar inicialmente no estilo de Olavo. No entanto, na medida em que fui avançando na leitura, consegui tirar o arquétipo do Olavo e ficou apenas o meu ser em juízo, no banco dos réus na forma de reflexões sobre lembranças de comportamentos que tive, sobretudo na juventude, diante das questões que Karnal desenvolve sobre a detração e eis que percebi que, muitas vezes, as carências de habilidades e conhecimentos para lidar com o contraditório disse mais a respeito de mim mesmo do que das pessoas que discordei.

A humildade que deve acompanhar todo empreendedor intelectual envolve o saber apreciar bem as pessoas mais agressivas no que tange ao filtro sobre a consistência de seus argumentos.

A verdade e as grandes lições da vida podem estar discorridas de forma elegante, calma, serena, sem deixar de ser provocante, ou podem constar em manifestações intensas e um tanto desagradáveis. Resta saber se estamos dispostos a encará-las independente da forma, pois não deixarão de ser o que são nas virtudes do espírito.

12/11/2024 21h30

Imagem: flickr oficial

Olavo de Carvalho

“Os termos ‘esquerda’ e ‘direita’ só tem sentido objetivo quando usados na sua acepção originária de revolução e contrarrevolução respectivamente.”

Obra: O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. A mentalidade revolucionária. Record, 2017, São Paulo. De Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (Brasil/São Paulo, 1947-2022).

Olavo de Carvalho se refere às duas alas dos Estados Gerais no contexto do que entraria para a história como “Revolução Francesa” onde “de um lado, a esquerda é a revolução em geral, e a direita a contrarrevolução” (p. 191).

Considerando então que o filósofo brasileiro vê apenas sentido nos termos se usados conforme a acepção originária, à mon avis, há uma chave para entender, essencialmente, o que delineou ao longo de seus embates e polêmicas nas questões politicas como “direita” e “esquerda” e o porquê de, até o surgimento do fenômeno Bolsonaro, não ter reconhecido nenhuma força de direita no Brasil. Tem que haver um espírito contrarrevolucionário para ser autenticamente de “direita”, penso. Estimo que Bolsonaro indicou, para Olavo de Carvalho, algo diferente do que até então se dava no Brasil, no sentido de uma mentalidade de “contrarrevolução” diante do que entendeu sobre o estado de coisas na sociedade brasileira submetida a uma transformação abrangente feita por “porta-vozes do futuro hipotético” (p. 193), aqui penso nos que, por meio de políticas públicas, almejam intervir na sociedade como um todo contra “processos sociais regionais” ou a “ordem espontânea”; aqui estou em uma hipótese e, tirando essa cogitação, um pouco mais adiante Olavo de Carvalho aponta a confusão no uso desses termos no Brasil, “muito pior” que nos Estados Unidos, aponta (a considerar que é um texto de agosto de 2007), pois no contexto brasileiro é “usado, pelo partido governante, para nomear qualquer oposição que lhe venha desde dentro mesmo dos partidos de esquerda, ao passo que a oposição de esquerda o emprega para rotular o próprio partido governante” (p. 193). Esta leitura que Olavo de Carvalho faz da realidade política brasileira é, entendo, cirúrgica.

O mesmo, penso, não posso afirmar quanto a Bolsonaro representar a direita, dentro da hipótese que levantei sobre a chave para se aplicar corretamente os termos. Trata-se de outra questão, igualmente complexa. Talvez se pense aqui nas pautas de defesa das tradições no bolsonarismo, o que se choca naturalmente com pautas progressistas que almejam regular muitos aspectos da vida, não apenas no seio social, mas, sobretudo no privado, contudo, seria apenas um oportunismo? ou pode-se cogitar também um “perenialismo” no que seria uma aversão ao moderno, o que se camufla como suposta resistência às tentativas de transformação ampla na sociedade, o que suscita uma aproximação com questões em torno de um neofascismo?

Lembrei-me que ZW foi o primeiro a me advertir, em 1995, sobre o uso equivocado, o que chamou de “distorção revolucionária”, dos termos “direita” e “esquerda” para definir partidos, políticos e movimentos no Brasil, pois no lado revolucionário, o termo “direita” foi apropriado conforme as conveniências, incluindo a denominação de determinada ala dentro de ambientes revolucionários, tendo sido, exatamente, o que Olavo de Carvalho também explica neste artigo em termos de “arranjos ocasionais que não têm alcance descritivo, mas apenas uma utilidade oportunística” (p. 192).

11/11/2024 00h01

Imagem: Amazon

Julius Evola

“Per comprendere sia lo spirito tradizionale che la civiltà modera quale negazione di esso bisogna partire da un punto fondamentale: dalla dottrina delle due nature.”

Obra: Rivolta contro il mondo moderno. Parte Prima. Il mondo della tradizione. 1. Il principio. Terza edizione riveduta. Mediterranee, 1969, Roma. De Giulio Cesare Andrea Evola (Italia/Roma, 1898-1974).

“É um conceito trabalhado por um crítico do fascismo histórico que se tornou a principal referência do neofascismo na Itália”, assim iniciei a menção a Julius Evola, após um jovem entusiasta do que entendeu por “tradicionalismo” parafrasear a doutrina das duas naturezas sem nunca ter ouvido falar dele.

Evola apresenta como “conhecimento” e não de forma teórica, que correm em paralelo as ordens física e metafísica, superior versus inferior, “ser” versus “devir”, com um eixo “inabalável” no mundo da Tradição onde tudo em volta estava ordenado (p.19), “estava”, pois as bases dessa hierarquia, do divino real, da ação heroica e da contemplação, da lei tradicional e da casta, cujo símbolo terreno é o império, tudo isso, na abordagem de Evola, foi destruído “pela triunfante civilização ‘humana’ dos modernos” (p. 22); eis o ponto de partida desta obra que trabalha elementos comuns na disseminação de muitos tradicionalismos na política que falam de uma degeneração feita pela modernidade e da necessidade do restabelecimento de uma ordem no mundo mediante o reencontro com base nessas duas naturezas. O problema é que o conceito desse restabelecimento é explorado na política em favor de grupos que, na medida em que se tornam cada vez mais poderosos, repetem o mesmo efeito nocivo do autoritarismo que se verifica em arranjos socialistas que estão no lado da modernidade tão amaldiçoada nesta obra.

Então veio o inevitável “neofascismo?!”, de maneira que o interlocutor parecia não saber que estava a apresentar conceitos trabalhados por um pensador que se tornou a maior fonte pós-fascismo histórico de algo que lhe causa grande indignação. O neofascismo de Evola é um exemplo de que a releitura de algo histórico terrificante não é uma simples reedição mas, normalmente, nasce de uma crítica que passa para uma reestruturação teórica onde alguns pontos essenciais são conservados, enquanto outros são reformulados mediante adaptação às circunstâncias. Quando se pensa que alguém é “fascista”, é necessário saber que tipo de fascismo se trata, pois o histórico, penso, morreu com Mussolini, sendo objeto de saudosismo (entendo, coisa macabra) por visitantes da tumba em Predappio [278]; se tem uma coisa que me dá medo e tristeza é o espírito fascista que está no fascismo histórico, no Ur-Fascismo (tão bem explicado por Umberto Eco) e nos neofascismos que correm na Realpolitik, muitas vezes imperceptíveis para quem se declara antifascista.

O show de horrores não cessou nessa primeira descoberta do jovem entusiasta, pois quando mencionei que para entender a visão de mundo do fenômeno Steve Bannon (outro que lhe causa repulsa, apesar de se ver como de “direita”), é necessário, entre muitas coisas a conferir, tomar conhecimento desta obra de Evola, percebi que a sua reação me indicou o que muitas vezes ocorre quando o deslumbramento com conceitos não vem acompanhado com leituras das raízes teóricas que compõem aquilo em que se deslumbra. Isso ocorre hoje também com adolescentes/jovens que flertam com o marxismo (fui um desse tipo) manipulados por influencers do progressismo, assim como os que abraçam certas crenças tradicionalistas, em arraiais de direita, apenas com expectativas em boas intenções da parte de quem os arregimentou.

Em suma, quando há empolgação com ideias que nos são apresentadas, aparentemente tão interessantes para explicar e/ou melhorar o mundo, é fundamental buscar, através de leituras, conhecimentos profundos sobre as raízes que compõem os conceitos envolvidos para que não aconteça a forma mais subliminar de alienação.

278. 27/09/2024 22h59

10/11/2024 11h18

Imagem: BBC

Steve Bannon

“I think the politics are everything opposite of division.  Economic nationalism is what binds us together.  It doesn’t depend upon your color, your race, your ethnicity, your gender, your religion, or your sexual preference. […]”

Obra: Steve Bannon Interview: Verbatim Transcript: December 6, 2017, Fairhope, Alabama. Kindle. Por Richard Boyd.

Stephen Kevin Bannon (EUA, Virgínia, 1953) está no rol dos pensadores citados com frequência e não necessariamente bem conhecidos além da superficialidade de conversas de botequim. A complexidade de Bannon, à mon avis, pode ser ilustrada a partir do fato de ser um influenciador, alguns diriam “guru”, no viés da dita “extrema direita” americana populista, um tanto “perenialista”, tendo atuado como ex-conselheiro de Donald Trump, aparentemente próximo ao clã Bolsonaro e que declarou ser “fascinado” [276] por Lula.

Quanto ao trecho (pos. 166) desta Leitura, ao ser indagado sobre o seu pensamento político provoca divisão, o que teria feito Trump removê-lo da Casa Branca em citação ao que teria sido alegado por Doug Jones, que Bannon define como ligado historicamente aos Clintons, sendo “globalista”, “anti-trabalhador” e “anti-classe média” (pos 177). Bannon deu uma resposta que é um exemplo, penso, de como a mentalidade coletivista funciona para ser um poderoso instrumental da política de massificação de quem se permite à terceirização do pensamento, que prefere ter um articulador, um influenciador que pense em seu lugar e revele o caminho por onde deve ir, o que une incautos e insatisfeitos, de maneira que o “nacionalismo econômico” convêm para impedir quem deseja atuar além dos limites das fronteiras estatais e busca uma blindagem para si, e assim é um ingrediente para dar liga, para unir os que se apegam ao protecionismo, às barreiras tarifárias, à aversão ao estrangeiro, e a tudo o mais que contrarie seus interesses pessoais convertidos em assuntos de “segurança nacional” contra as “elites” dos negócios globais.

O problema maior que potencializa conflitos ideológicos, penso, diante do nacionalismo como diretriz das políticas públicas, reside nos que não compartilham desses valores e acabam prejudicados quando partidários dessa visão de mundo alcançam o poder e impõe suas crenças a todos. O mesmo ocorre, essencialmente, quando um grupo progressista chega ao topo e promove intervenções na vida privada, muito além da economia.

Torno a Bannon que segue a apontar na resposta que a agenda de Doug Jones com os Clintons é que divide o país. Nessa mentalidade é sempre o opositor que provoca aquilo em que se é acusado. O outro é sempre a causa que degenera o mundo. Então penso nesse coletivismo sendo um caminho para um neofascismo que me remete ao tema da perenidade que congrega a mentalidade fascista através dos tempos, e assim me faz lembrar também da ideia do Fascismo eterno ou Ur-Fascismo, esmiuçada por Umberto Eco [277].

O partidarismo é inerente ao debate político. A divergência e o confronto estão no âmago do fazer política que, a princípio seria uma atividade dialética, mas costuma se pautar em uma forma de irracionalidade. Muitas vezes a política se verte no campo das paixões que se avolumam na irracionalidade para beneficiar grupos de interesse. Perguntar se uma linha de pensamento político divide então, compreendo, está no campo do “óbvio ululante”, como diria Nelson Rodrigues, mas um influenciador com a capacidade de persuasão vai usar de uma retórica mais aprimorada para apresentar como “solução” essa obviedade que também pode ser vista como um problema grave, sobretudo a quem não entende que o campo político, em termos de realidade, não em redomas de acadêmicos teóricos, está constantemente minado; é tenso, belicoso, não raramente violento, carregado de contrassensos, fanatismos e tudo o que desperta fascínio no ser humano pelo poder.

276. BBC, 18/09/2022. Steve Bannon: Estrategista de Trump e aliado de Bolsonaro se diz ‘fascinado’ por Lula

277. 30/04/2022 14h42

09/11/2024 18h29

Imagem: anne frank house

Anne Frank

“Quando penso em nossas vidas aqui, geralmente chego à conclusão de que vivemos num paraíso, comparado aos judeus que não estão escondidos.”

Obra: O Diário de Anne Frank. Domingo, 2 de maio de 1943. Record, 2019, Rio de Janeiro. Tradução de Alves Calado. De Annelies Marie Frank (Alemanha/Frankfurt, 1929-1945).

Li em noticiário italiano [275] que Amsterdã, uma das cidades mais apreciadas no Velho Continente, voltou a ser cenário de antissemitismo em versão das mais selvagens. Torcedores do time israelense Maccabi Tel Aviv foram perseguidos e espancados no final da noite de ontem, após uma partida pela Liga Europa. Agressores gritavam palavrões acompanhados de “free Palestine now”, seguido de “for children”, em referência às crianças mortas na ofensiva do governo de Israel.

Amsterdã… Lembrei-me de Anne Frank, do Anexo, do famoso esconderijo, condição à época para todo judeu na Europa que tentava escapar dos campos de concentração. Registrou a adolescente que conseguir ficar escondido era o paraíso (p. 133) no tempo que resistiu até onde foi possível com sua família a dividir um espaço com outra. Fato é que a cidade tão charmosa onde nasceu um precioso bem no patrimônio da humanidade, na forma de um diário, reviveu cenas não mais protagonizadas por agentes e demais apoiadores da SS, e sim por militantes pró-palestina que se aproveitaram do pretexto do jogo com um time israelense para manifestar suas maiores toxinas no espírito, muitas vezes, brutalidade alimentada pela estupidez, quando na condição de manipulados, mas sempre pela maldade, onde normalmente se aproveita a confusão tão frequente entre judeus comuns, indivíduos pacíficos, muitos até simpáticos à causa palestina, e que assim apenas desejam viver suas vidas em paz com os semelhantes, diferentemente de judeus na política, alguns genocidas que governam o Estado de Israel. Agredir um judeu comum sob a “justificativa” do infanticídio que o criminoso governo de Netanyahu promove na faixa de Gaza, penso, é, guardadas as devidas proporções, o mesmo que culpar todos os alemães por causa de Hitler, e todos os italianos por causa do fascismo ou da máfia siciliana, um problema gravíssimo de dissonância cognitiva por conta, em parte, do que chamo de “coletivização da culpa”, onde um povo inteiro passa a ser responsabilizado por atos de barbárie de um grupo de poder ou de quem o governa, e o pior, no caso dos judeus, essa dissonância se eleva à enésima potência pois até os que não estão na condição de cidadania no Estado de Israel, acabam entrando nesse bojo de estupidez extrema, quando não, tão somente por puro ódio no coração.

Uma coisa é o Estado de Israel, outra coisa é quem ou o que governa o Estado de Israel e outra coisa é o judeu comum com o direito de existir, viver seus valores e ser respeitado, tanto quanto qualquer outro exemplar da nossa espécie. Acontece que a confusão dessas três categorias é típica do âmbito político-ideológico, onde a irracionalidade, o fanatismo, a inveja, o ódio e a idiotice são os principais ingredientes.

275. LA7, 08/11/2024. Amsterdam, aggressione ai tifosi israeliani del Maccabi. Tutto quello che c’è da sapere.

08/11/2024 23h02

Imagem: Jornal Opção

Otto Maria Carpeaux

“[…] Quer eliminar tudo o que não é essencial. […] Seria capaz de eliminar ainda páginas inteiras, eliminar os seus romances inteiros, eliminar o próprio mundo. […]”

Obra: Ensaios Reunidos. Volume I. 1942-1978. Visão de Graciliano Ramos. Topbooks/UniverCidade, 1999, Rio de Janeiro. De Otto Maria Carpeaux (Áustria/Viena, 1900-1978).

Carpeaux (p. 443) sobre Graciliano Ramos, romancista de um poder de síntese raríssimo e um estilo que faz da experiência de leitura um exercício de enlevo intelectual. Imagino que Graciliano Ramos é atualíssimo quanto ao problema que acomete escritores que tentam explicar “tudo” ao leitor e acabam não dizendo muita coisa.

Nos anos 1990 tive um professor de filosofia na graduação que deixava comentários em minhas provas. Tinha um tipo marcante: ora, caro Leonardo, se é possível dizer com clareza em uma linha, por que usar três? Em parte bem sabia que o professor pedia mais síntese e objetividade para não desgastá-lo tanto diante de sua incumbência de corrigir pilhas de provas e trabalhos, mas havia uma sabedoria que remetia ao que, certa vez, recitou de Linhas Tortas:

“Deve-se escrever da mesma maneira com que as lavadeiras lá de Alagoas fazem em seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”

Foi a primeira vez que tive contato com o espírito literário de Graciliano Ramos.

Torno ao Graciliano Ramos aos olhos de Carpeaux: um romancista muito além do clichê de “sertanejo culto” (p. 444); mergulhado em experimentos de um estilo singular “para acabar com o sonho de angústia que é a nossa vida” (p. 449), com doses de uma ironia sofisticada e voltado a um lirismo “bem estranho”, “amusical”, “adinâmico”, “estático”, “sóbrio”, “clássico”, “classicista” (p. 443), cuja realidade é de um mundo fechado em si mesmo (p. 447) em personagens com “estranhos hiatos” onde são trabalhados “afetos inexplicáveis” (p. 448) dos sonhos a narrativa de uma realidade intrigante que provoca um confronto com nossa civilização artificial. Penso então que Graciliano Ramos fez com a sua literatura o que buracos negros fazem na singularidade.

07/11/2024 20h54

Imagem: palquest.org

Edward Said

[…] Cicero’s definition of the early Roman empire was remarkably similar. […]

Obra: Culture and Imperialism. CHAPTER FOUR. FREEDOM FROM DOMINATION IN THE
FUTURE. (I) American Ascendancy: The Public Space at War. Vintage Books, 1994, New York. De Edward Wadie Said (Jerusalém, 1935-2003).

Os programas de análise política na França e na Itália que escuto diariamente, em certo sentido, estão envoltos no mesmo espírito provinciano que há em programas produzidos no Brasil, quando o assunto é eleição presidencial nos Estados Unidos. O futuro da nação parece, de alguma forma, estar muito ligado ao que acontece na Casa Branca, e não poderia ser diferente pois, de fato, em alguns aspectos, são províncias tanto quanto o Brasil, aos olhos dos mandatários do império americano.

O espírito provinciano no Ocidente em relação aos Estados Unidos pode ser refletido com o que Edward Said aponta no trecho (p. 286) desta Leitura. Culture and Imperialism foi publicada originalmente em 1993, ainda um pouco nos ares da pós-dissolução da União Soviética (1991) que sentenciou o fim da (primeira) Guerra Fria. Said rememora o que pensou em 1972 (a obra parte de ensaios antigos) e entende que ainda é (1993) algo preciso para descrever os Estados Unidos durante a invasão do Panamá (1989) e a Guerra do Golfo (1990), e isso diz respeito ao objetivo da política externa americana: voltada por um mundo cada vez mais sujeito ao Estado de direito, no entanto são os Estados Unidos que devem definir esse estado ou “organizar a paz”; aqui menciona uma referência dos anos 1960 com o secretário de Estado David Dean Rusk (1909-1994).

Nessa mentalidade, argumenta Said, os Estados Unidos impõem o “interesse internacional” ao estabelecer normas básicas para o desenvolvimento econômico e o destacamento militar em todo o planeta; regras para a então União Soviética em relação à Cuba, regras para o Brasil, regras para o Vietnã, o que denotou a expressão da política da Guerra Fria por uma série de diretivas, o que também o faz lembrar que “a definição de Cícero sobre o antigo Império Romano foi notavelmente semelhante, o domínio sobre o qual Roma gozava do direito legal de fazer cumprir a lei, sendo hoje o mandado autoproclamado da América que se estende por todo mundo, incluindo a União Soviética e a China, territórios (à época) onde o governo americano afirmou ter o direito de remeter aeronaves militares e, abençoados de forma única com uma riqueza incomparável e uma história excepcional, os Estados Unidos estão acima do sistema internacional, e não dentro dele, de forma suprema entre as nações para serem os portadores da Lei” (p. 286), com nota em referência a Richard J. Barnet em The Roots of War.

06/11/2024 21h35

Imagem: X

Elon Musk

“He contributed to the presidential campaigns of Barack Obama and then Hillary Clinton, and he was a vocal critic of Donald Trump in the 2016 election.”

Obra: Elon Musk. 44. Rocky Relationships 2016–2017. Trump. Simon & Schuster, 2023, New York. De Walter Isaacson (EUA/Lusiana/Nova Orleans, 1952).

Quem poderia imaginar o homem mais rico do mundo, outrora financiador das campanhas de Barack Obama e Hillary Clinton, então crítico contundente de Donald Trump em 2016 (p. 204), sendo o seu maior apoiador na corrida a Casa Branca deste ano?

Musk desdenhava de Trump, porém, aparentemente, ficou incomodado com a proibição do então ex-presidente republicano no Twitter (p. 342) e, tendo declarado que não era seu fã, na enquete que promoveu assim que tomou o controle do Twitter, parecia seguir um roteiro que terminou com o restabelecimento de sua conta, apesar de acha-lo um “perturbador” e “campeão mundial de besteira” (p. 426).

O que fez Musk tão radicalmente mudar de ideia? Uma questão que dificilmente um dia saberei respondê-la, mas nesse mar literário em que decidi viajar, li que Trump ficou impressionado com os foguetes do jovem visionário da Tesla, maravilhas projetadas por seus engenheiros que desaparecem para o chefe levar a fama, e assim o chamou de “um dos nossos grandes gênios,” e que assim “temos que protegê-lo” (p. 204). É bem provável que, pela graça divina, mais alguns 5, 10, 15 anos adiante nesse mar, provavelmente continuarei sem saber exatamente o que fez Musk pular a cerca da lacração democrata e ir animar o curral “conservador” de um partido republicano com pautas um tanto curiosas face ao dito liberalismo econômico ianque, e ainda mais sinistra aos olhos dos pais fundadores, que certamente se reviram no túmulo com as ideias messiânicas de Trump. Penso também que, apesar das alegações liberais de Musk na retomada da corrida espacial sugerir um apreço pelo livre mercado, apesar desse apelo soar como “iniciativa privada”, quem tem a proteção do dito, agora, politico “mais poderoso do mundo” não teria outros motivos para apoiá-lo, diria, mais pragmáticos e menos ideológicos? Talvez seja como na velha Roma onde a proteção do imperador era o maior objeto de desejo dos mais bem sucedidos homens de negócios.

Nesse “só sei que nada sei”, penso que poderia ser, quem sabe, uma forma mais associada de uma coisa que levei um bom tempo para entender: o capitalismo de compadres, onde nada é mais icônico do que um populista acenar para um magnata como se fora um “patrimônio nacional”, algo bem familiar no estado moderno que acabou configurado como o grande hub de oportunismos para lucros estratosféricos em castas de privilegiados, cuja reivindicação de genialidade, no caso dada a Musk, soa mais, entendo, a um apelo por uma receita antiguíssima e que pode ser apreciada no clube dos amigos do rei, ou melhor, do próximo avatar do império.

05/11/2024 21h20

Imagem: PBS

Collin Powell

“Nossa estratégia de contenção morreu com a União Soviética.”

Obra: Minha Jornada Americana. Um Epílogo. Editora Best Seller, 1995, São Paulo. Tradução de Rosane Albert e Tomás Rosa Bueno. De Colin Luther Powell (EUA/Nova Iorque, 1937-2021) com Joseph Edward Persico (EUA/Nova York/Gloversville, 1930-2014).

O fim da União Soviética (URSS) em 1991 encerrou um longo período de antagonismo do Oriente com o Ocidente capitaneado pelos Estados Unidos, mas esse encerramento, entendo, foi apenas de um modelo que fracassou, o que pode ser verificado no surgimento da aliança sino-russa nos últimos anos, fato que retoma o antagonismo.

Collin Powell, então secretário de Estado, foi uma das figuras mais importantes da Guerra Fria, pois vivenciou em detalhes os bastidores que não podem ser, imagino, expostos ao público, por sua natureza de “segurança nacional” (p. 587), tendo atuado como servidor de “três presidentes, três homens completamente diferentes” (p. 590), porém em sua auto biografia, uma das melhores que li, tem alguns indicadores da perspectiva do império face às profundas transformações que o mundo passava no início da década de 1990.

Primeiro, penso ser bastante discutível a ideia da “morte do comunismo como ideologia” (p. 585), associada ao fim do regime soviético no mesmo parágrafo de abertura deste epílogo, apesar de citar “Cuba e Coréia do Norte” que “ainda se aferram a um cadáver político e ideológico” (p. 586). A crença de que o fim da URSS enterrou o comunismo me faz lembrar o que tanto escutei nos anos seguintes, cuja queda do muro de Berlim servia de mantra, e que se revelou como uma das típicas narrativas ilusionistas do mundo político, usadas para simplificar um tema complexo para a massa que decide eleições. Entretanto, no contexto do mesmo parágrafo em que Powell aponta um sintoma da dissolução da URSS, que nas entrelinhas se trata de um vazio na falta de um grande inimigo para ameaçar o império, o qual serviu por 35 anos, em outras palavras, aponta como “alicerce” da segurança ocidental, isso também se mostrou ilusório em efeitos colaterais da Guerra Fria, entre alguns, aqui penso na participação dos Estados Unidos no financiamento de mujahidin afegãos para fazerem os russos terem o seu “Vietnã” [274].

Em segundo lugar, o mundo leigo, que normalmente se julga bem informado com noticiários, descobriria outras grandes ameaças à paz no ocidente, entenda-se ameaça aos Estados Unidos, após o fim da URSS que Powell classificou como “um império despótico expansionista” que “desapareceu, derrubado por sua própria malignidade”. Entre as maiores ameaças, penso, logo se destacou uma sem pátria, sem bandeira estatal, extremista religiosa e de estilo kamikaze: a terrorista de ordem islâmica, entre outros movimentos políticos que estavam se refazendo nesse novo cenário. E o sintoma mais devastador dessa grande ameaça, entre atentados de menor proporção, ocorreria dez anos depois do fim soviético, no 11 de setembro. Contudo este livro é de 1995, e Powell escreveu mais olhando para um grandioso fato geopolítico (o fim soviético) e menos a externar problemas de segurança mais próximos do cidadão americano e desta forma não considerou que algo tão devastador pudesse atingir o território no coração americano, afinal eram tempos de otimismo com a vitória contra o grande mal soviético com seus mísseis nucleares, o que o impeliu a cogitar, entre outros fatores de risco, o fundamentalismo islâmico com o potencial para “desestabilizar o sul da Eurásia” (p. 586), enquanto, no parágrafo anterior afirma estar “animado” com os acordos que corriam à época, a citar, entre outros, “o progresso da paz no Oriente Médio”.

Apesar de ter sido escrito em outro contexto, é atualíssimo o tema da obsolescência da contenção americana não mais diante da ameaça soviética ou de um candidato a império para tomar o seu lugar de polícia global. O cenário atual envolve um outro bloco de países, penso nos membros do Brics sob a batuta dos governos da Rússia e da China, em um arranjo bem mais inteligente e abrangente que o leste europeu na Guerra Fria, agora com uso de meios da economia de mercado, não mais em modo planificado (o que foi decisivo para falir a URSS), fator que o torna ainda mais ameaçador aos Estados Unidos, além do fato de agregar estados sob líderes com esquemas ideológicos variados, mas com o antiamericanismo em comum, alguns com arsenal nuclear, assunto que parecia morto no fim da URSS e que agora se mostra mais ativo e tenso do que nunca.

274. 10/03/2022 23h12

04/11/2024 00h01

Imagem: Torino Today

Dario Fabbri

“[…] Nei prossimi anni, gli americani potrebbero perdersi in una nuova guerra civille. Oppure destarsi per definitivo attaco al loro primato.”

Obra: Sotto la pelle del mondo. I. I momento degli Stati Uniti. Giangiacomo Feltrinelli, 2024, Milano. De Dario Fabbri (Italia, 1980).

Dario Fabbri é outro analista de geopolítica que tem me interessado na tentativa de melhor compreender a situação atual do mundo, na desconfiança de que o momento possa ter um profundo significado histórico mediante o embate entre o império americano e a aliança sino-russa.

Não raramente, penso, grandes momentos da história podem não ser percebidos de imediato, quanto à sua gravidade e possíveis desdobramentos pela geração de intelectuais que está passando por ele; apenas um tempo depois talvez se possa perceber a profundidade transformadora de certos acontecimentos. Penso, será que intelectuais do quinto século tinham a percepção que o império romano (do ocidente) estava chegando ao fim? Quando o Arquiduque Francisco Fernando, herdeiro da coroa do império Austro-Húngaro, foi assassinado em junho de 1914, qual analista político poderia ter o diagnóstico de que corria um processo de acontecimentos rumo a em uma guerra mundial? Será que os estudiosos em 1938 olharam para a invasão nazista da Áustria e a série de movimentos das tropas de Hitler em 1939 como uma provável nova guerra mundial em meio à política inglesa do apaziguamento? E como entenderam o impressionante Pacto de não agressão entre nazistas da Alemanha e comunistas da União Soviética (Molotov–Ribbentrop)?

A mesma coisa penso sobre o que a geração atual de grandes pensadores consegue ver entre os sinais de decadência do império americano e a aliança entre a China e a Rússia, o atual envolvimento da Coréia do Norte no fornecimento de soldados à Rússia, a expansão dos Brics com uma agenda que prevê a tentativa de uma moeda fiduciária e experimentações com um sistema comum de pagamentos… São muitas coisas acontecendo que podem sinalizar uma escalada…

Quem não entende a importância dessas questões certamente leva uma vida “normal” até o dia em que…

Enquanto isso, Dario Fabbri aborda o momento dos Estados Unidos que atravessam uma crise com a ideia de ser a referência de ordem no mundo, na ilusão de que poderiam absorver toda a humanidade em torno de sua supremacia, o que Dario Fabbri chama de “equívoco da cidadania ideológica” (p. 22), sob a crença de que lhe cabe o papel de salvar o mundo (p. 31); o fato é que o império americano vive em um constante estado de beligerância pela necessidade de controlar as rotas marítimas (p. 21) onde fluem seus negócios, envolvido em intervenções pelo mundo em meio a necessidade de importar seres humanos, como todo escopo imperial, mas que enfrenta dilemas internos com cidadãos que se sentem ameaçados dentro do próprio território, isso em meio a percepção de que estão cada vez mais envoltos a latinos, em especial aos vizinhos mexicanos (p. 24), os que resistem mais à assimilação de valores americanos (p. 19), e aqui, penso, cuja proximidade também é um fator de receio crescente no simbolismo do muro. Nesse caldeirão de perturbações, os texanos vivem ameaçando a secessão (p. 31). Junte-se a isso uma sociedade com números impressionantes de casos de depressão diagnosticada em 29% dos americanos, com a taxa de suicídio mais elevada do ocidente: 14 em 100 mil, quase o dobro da Alemanha e três vezes mais que a da Itália, cita (p. 20).

No quê esta super potência se tornará? A resposta terá repercussões não apenas entre americanos, mas a todos que vivem em torno; refiro-me aos satélites provincianos onde o Brasil se situa. Os Estados Unidos poderão cair em uma nova guerra civil ou em um restabelecimento de seu primado, indica Dario Fabbri no trecho (p. 35) desta Leitura.

03/11/2024 09h38

Imagem: Brasil 247

Pepe Escobar

““It’s Xi Jinping and Vladimir Putin that are now running the multilateral, multipolar show.”

Obra: EURASIA v. NATOstan (Chronicles of Liquid War Book 7) . Part II. Xi and Putin take the lead to bury pax. Nimble Books LLC, 2024, Ann Arbor. De Pepe Escobar (Brasil/São Paulo, 1954).

Este livro é, no momento, o mais vendido na Amazon [273], na seção de importados sobre o tema de relações internacionais.

Uma vantagem de não pertencer a grupo ideológico disso ou daquilo é ter a liberdade de ler qualquer autor que considerar relevante sem ter que perder tempo com discussões tolas sobre o que é ou não recomendável. Então quando mencionei a um “conservador” que estava a apreciar obras de Pepe Escobar, a primeira reação foi: “é do Brasil 247, não presta!”, e eis que me passou uma lista de autores “confiáveis” sobre geopolítica e geoeconomia, claro, devidamente homologados pelo seu clubinho da verdade. Neste aspecto, penso, os que gostam de seguir listas de livros “bons” e outra com os que “não se devem ler”, na verdade reencarnam um valor comum entre nazifascistas, comunistas, fundamentalistas religiosos e demais membros da ordem do fetiche por autoritarismo e escravidão mental.

Sobre o trecho (p. 79) desta Leitura, Pepe Escobar discorre sobre sua concepção da aliança sino-russa de Xi Jinping com Vladimir Putin como líderes do “espetáculo multilateral e multipolar”, para em seguida provocar os “excepcionalistas” com suas “rotinas de bebê chorão” diante de uma da visão que não mudará “especialmente para o Sul Global” (p. 79). Enfatiza a cooperação em alta tecnologia com 79 projetos avaliados em mais de 165 mil milhões de dólares que envolvem “tudo”; a destacar a construção de aeronaves, de máquinas-ferramentas, investigação espacial, agroindústria e corredores econômicos aprimorados, em destaque à “Nova Rota da Seda à EAEU” (p. 80). Quanto a esse último ponto, junto com o auto financiamento das reservas forçadas em dólar que manipulam os sistemas financeiros globais, penso, são os dois grandes pilares do império, a ênfase em uma rota comercial independente das linhas de navegação, controladas pela marinha americana, significa uma ação das mais ameaçadoras, entendo, na perspectiva do poder supremo que conduz o império. Aliás, quem quiser ter uma mínima noção dos porquês da ofensiva russa na Ucrânia, precisa considerar a geografia que sinaliza Putin para fazer do país invadido uma espécie de escudo contra a OTAN enquanto consolida uma pauta de rotas navegação que envolve o Mar Negro na ligação da Ásia com a Europa para o transporte de mercadorias, o que se situa dentro da visão antagonista com o império dos Estados Unidos.

Então, a leitura de Pepe Escobar vê de um lado o império americano nas últimas, mas que ainda impõe sua Pax ao mundo ocidental subserviente formado por europeus, Israel e os demais submissos nas “províncias” (os países ocidentais em desenvolvimento), tendo o instrumental da OTAN, e do outro corre o antagonismo em um reavivamento da Eurásia como força geopolítica e geoeconômica após o fim da União Soviética (URSS) que seria, segundo Escobar, para promover o “multilateralismo” (penso, ou seria um novo império que pretende tomar o lugar do americano?), não mais pautado apenas na Rússia como central de comando, nos moldes da antiga URSS; nessa nova edição do grande conflito geopolítico mundial, onde alguns diriam que se trata de uma versão atualizada da “Guerra Fria”, a China divide o protagonismo asiático com a Rússia, tendo como aliado o Irã, a envolver o âmbito dos Brics (onde o Brasil entra no tabuleiro), bem como aponta que 40 delegações da África estiveram em Moscou enquanto o mesmo governo russo promove uma reaproximação entre a Síria e a Turquia e entre a Arábia Saudita e o Irã (p. 81), tudo em uma costura geopolítica pela “multipolaridade” a formar um bojo de nações que estariam alinhadas para encerrar o monopólio de polícia global imposto pelo então “império romano” do tempo presente, o que seria, nas palavras de Pepe Escobrar, “o novo mundo que nasceu em Moscou” na semana em que ocorreram esses encontros onde Putin a definiu como “uma nova política anticolonial” que denota “como uma colcha de retalhos multipolar”, sendo um caminho sem volta (p. 82).

Estaria em perigo a supremacia americana? Antes, imaginei um encontro com o meu eu de 1991 (um sujeito muito antiamericano) que fez uma viagem no tempo e, após informá-lo sobre o cenário geopolítico do mundo quase 33 anos após o fim da URSS, aproveitei para provocá-lo:

Prezado eu de 1991, seria belo e moral (olhou como quem achou esquisitíssimos esses termos) desejar a vitória de uma aliança formada por dois regimes autoritários, com líderes como Xi Jinping e Vladimir Putin, que congregam modelos igualmente déspotas, belicosos, teocráticos e neofascistas pelo mundo avesso aos Estados Unidos, como os do Irã e da Coreia do Norte, respectivamente, entre outros grupos de grupos de líderes facínoras da África e da Ásia, além de incluir um convite a compor os Brics em favor do tirano Nicolás Maduro, da Venezuela (curiosamente vetado pelo atual governo brasileiro que parece estar em crise entre qual lado ficar, ou poderia optar pela neutralidade?) apenas para se satisfazer com o fim do malvado império americano? O meu eu de 1991 por um instante ficou mudo, pensou…… pensou… entendeu que seria apenas ridículo acreditar que os belicosos e tirânicos antiamericanos do século XXI são assim por causa dos Estados Unidos e que deixarão de serem, tornando-se “bonzinhos”, depois de conseguirem destruir o tão odiado império colocando em seu lugar a tal da “multipolaridade”, e como quem foi pego de surpresa com uma pergunta que lhe trouxe muita perturbação, deu um tímido e vergonhoso “não é correto desejar isso”, pois enquanto antiamericano, já tinha ciência do quão perverso fora o regime imperialista de cortina de fumaça que rivalizava com o pernicioso império ianque até poucos antes antes de ir à falência.

Após este déjà vú, a colcha de retalhos sino-russa parece ter uma consistência bem superior à soviética. A atual está baseada em economias relativamente abertas, ou seja, faz uso de potencialidade dos mercados submetidos a um grande arranjo político, enquanto o modelo antigo era muito planificado, o que comprometia a eficiência econômica, apesar de até então contar com um bloco de países no leste europeu que, na verdade, expandiam o problema mais do que proporcionavam boa robustez geopolítica. Se isso será suficiente para a “demolição dos restos da Pax Americana” (p. 82), como assim se expressa Pepe Escobar, resta o meu eu da atualidade, um sujeito que não é mais antiamericano, liberto da ilusão de que o futuro da humanidade depende da ruína do Tio Sam, desenganado dos “ismos” e de crenças políticas que comprometem o entendimento, navegando na imensidão de suas dúvidas, enquanto ciente de que nessa história não há mocinhos ou redentores da nossa espécie.

273. Consulta às 10h16 de 03/11/2024.

02/11/2024 12h04

Imagem: robsonhamuche.com.br

Robson Hamuche

“Nas mãos de quem você está colocando a sua felicidade?”

Obra: Pílulas de resiliência. Não se deixe levar pelas críticas. Gente, 2020, São Paulo. De Robson Hamuche.

Chamo de “dialética introspectiva” o delicadíssimo processo pelo qual apreendo críticas externas para reprocessar meus juízos internos e encontrar uma superação de dilemas existenciais, de maneira que sempre se revela tênue a linha entre saber escutar as interpretações, para aprender, e se tornar escravo das opiniões sobre as coisas que realizei ou deixei de realizar.

O ano 2007 foi marcado por decisões difíceis: deixei a dita “vida acadêmica” e a igreja batista pela qual era membro; pedi exclusão do rol. Foi um processo que, hoje entendo, se deu por um “alívio de bagagem” de coisas que não me faziam mais sentido espiritual e intelectualmente. Na “vida acadêmica”, em minha área de pesquisa, percebi que tinha que me moldar a certos caprichos ideológicos em orientadores, isso se quisesse seguir uma carreira que, alguns diziam, seria “promissora” e na igreja fiz uma reflexão sobre a falta de livre pensamento (o que é usual em um meio dogmático) e como o meu jeito de ser era incompatível com aquele ambiente, enquanto o que era ensinado constantemente se chocava com o realizado. Onde me situava nesses conflitos? Não queria viver uma vida social de boa aparência por causa de um ego acadêmico e de uma religião que nada mais me diziam a respeito sobre o sentido da vida, as pessoas que realmente se importam comigo, o amor ao conhecimento, o enlevo moral e a busca pelo refinamento ético.

O que decidi em 2007 se aplica ao meu contexto. Acredito que a felicidade se dá em um processo de descobertas de cada um e não em um pacote de coisas padronizadas que devemos aplicar. Ás vezes, para encontrar a felicidade, é preciso reduzir, diminuir, dispensar algumas coisas, isso posto porque vivo em um tempo em que se vende a ideia de felicidade atrelada ao acúmulo insaciável de “conquistas” que dizem mais sobre os outros do que quem as ostenta. Cabe ponderar: se não encontrei propósito existencial na igreja evangélica nem na universidade, outros o encontraram e assim a vida se revela. Fato é que percebi que precisava realizar mudanças um tanto profundas que interrompessem os estresses desnecessários e descobri que seria melhor me pautar em uma vida mais reclusa, com maior presença no lar mediante um trabalho o qual tinha começado aos 15 anos de idade ininterruptamente em um modo que hoje chamam de “home-office”, combinado com condições favoráveis para intensificar um empreendimento intelectual de meditar no prazer de leituras (algo que descobri também na adolescência) e na busca de uma espiritualidade desenviesada dos dois ambientes que estavam me sufocando. Percebi o quanto a tal da “vida acadêmica” e a religiosa podem desencadear em mim problemas de saúde mental quando notei uma pressão para viver em função de ditames que impedem a “dialética introspectiva” que mencionei, e eis que ao adotar um estilo de vida mais simples, o segundo andar se tornou então um canto sublime desafios e de paz em minha vida, com trabalho livre e reflexão desimpedida.

Evidentemente, nesse processo, encontrei pessoas, refiro-me aos dois ambientes os quais estava me libertando (visto que minha família sempre me apoiou), que embora dissessem o contrário, se comportavam como se soubessem o que era melhor para mim, na medida em que as críticas soavam como uma (ilusória) necessidade que eu tinha de sua aprovação, e quando li (p. 27) a pílula desta Leitura, lembrei-me sobre o quanto foi importante naquele ano a maturidade em que me situava, pois impediu que eu me deixasse levar pela falta de compreensão e achismos dos outros, de maneira que abdicaria de ser o responsável pela minha própria felicidade, cujo processo de busca se revela como sentido da vida.

01/11/2024 23h08

Imagem: Unicap

Dom Helder Câmara

“Não precisa de marxismo quem tem Jesus Cristo!”

Obra: Dom Helder: o Artesão da Paz. Resposta da Igreja à pobreza e à miséria, especialmente na América Latina. Senado Federal, Conselho Editorial, 2000, Brasília. Organizado por Raimundo Caramuru Barros e Lauro de Oliveira.

Em tempos pandêmicos um interlocutor católico, avesso ao Vaticano II e defensor da Missa de Sempre, a Tridentina (Pio V, pontificado 1566-1572), ao ouvir minhas dúvidas sobre o pensamento político-teológico de Dom Helder Câmara, tratou de apontar suas certezas: “foi muito mais político do que padre, um comunista de batina que envenenou leigos e bispos ao distorcer ensinamentos da Igreja com o marxismo”.

Mencionei “dúvidas” porque Dom Hélder Câmara foi, à mon avis, a personalidade mais difícil que estudei em termos de identificação de mentalidade política na Igreja Católica no Brasil. Considero que ele supera até mesmo as dúvidas que tenho sobre o papa Francesco.

Em 2003 vi entusiasmo entre alguns colegas de seminário (protestante) com as Comunidades Eclesiais de Base, onde Dom Hélder Câmara foi uma das maiores referências, e nessas observações identifiquei traços de um materialismo dialético em seu pensamento com pouquíssima ênfase na transcendência, enquanto evitava qualquer associação com Marx e marxismos em seu modo de pensar. Uma mente pensante com esta configuração é muito complexa para ser resumida em meros chavões.

A afirmação (p. 202) desta Leitura faz parte da palestra que proferiu na série de “Freedon and Justice Conferences” na ocasião do 41o Congresso Eucarístico Internacional nos Estados Unidos, Filadélfia, no Convention Hall and Civic Center em 03/08/1976 (p. 203). No parágrafo anterior afirma:

Impressionou-nos vivamente que, em pleno Congresso Eucarístico Internacional, haja o exemplo de estudar, a propósito do pão da vida, não só a fome mundial, mas as raízes da fome e da miséria, no estudo da falta de justiça e liberdade…

Costumo decepcionar quem espera de mim muitas certezas, no entanto, quem passou por exercícios de exegese sobre o Novo Testamento compreende que “pão da vida” tem um sentido muito mais profundo que o suporte material. E, ao pensar que Dom Hélder se revelou pautado em uma ideia mais terrena de justiça, entendo como definitivamente ele entrou em rota de colisão com a ortodoxia da Igreja que acumula dois mil anos de tradições ligando o céu à terra.

No contexto da afirmação, que pode surpreender haters que preferem se basear em opiniões de influencers, é importante considerar o contexto em que ocorreu: em um tempo de fortíssimo binarismo ideológico na Guerra Fria, ele estava em um território onde ter grande fama de “comunista” era o que bastava para virar alvo da inteligência pela dita “segurança nacional”, enquanto sentia na pele as variadas críticas no Brasil, dentro e fora da Igreja, dada a enorme desconfiança que havia sobre sua verdadeira face, supostamente marxista.

A afirmação tão categórica seria apenas para entreter o público mais conservador no centro anticomunista do mundo? Teria sido apenas um discurso aos de fora? Teria sido Dom Hélder um mito criado no escopo marxista para alienar massas de católicos que não sabem diferenciar a doutrina social da Igreja do comunismo moderno? Não tenho a mínima ideia que encerre essas questões, mas tenho algumas certezas, poucas, entre milhares de dúvidas: o marxismo não é compatível com o Evangelho; o primeiro se baseia em um regime que depende de uma intervenção violenta, sanguinária, revolucionária, sobre os detentores de propriedade, e o segundo estava regido por uma entrega voluntária que envolvia também um aceite à autoridade apostólica, como se pode verificar na forma como os bens eram deixados aos “pés dos apóstolos” (Atos 4:35-36), além de que um comunista marxista, que consiga se infiltrar em uma corporação religiosa tão longeva e notadamente anticomunista (no sentido moderno do termo), como é o caso da Igreja Católica, obviamente não vai tornar pública suas reais intenções de crença política, pelo contrário, terá que fazer uso da contrainformação sobre suas convicções ideológicas. Passo à íntegra do parágrafo de sua negação ao marxismo:

Enquanto se preparava o vosso e nosso Congresso Eucarístico Internacional, o CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano) reuniu, em Bogotá, um grupo de bispos para estudar a retomada de Medellín… Nada de atemorizar-nos diante da acusação cavilosa de leitura marxista do Vaticano II e de Medellín. Não precisa de marxismo quem tem o Evangelho, o Vaticano II e Medellín. Não precisa de marxismo quem tem Jesus Cristo!

É apenas um simples exemplo do que indago sobre um contraponto ao ter consciência da ênfase materialista de seus ditos, e assim minhas dúvidas permanecem enquanto distante das conclusões tão contundentes do indignado católico tradicionalista que escutei. Neste ponto imagino o quanto deve ser perturbador o processo de canonização aberto para quem vê Dom Hélder como agente comunista que se infiltrou na cúpula da Igreja. Limito-me, na minha pobreza de convicções, a reconhecer que o socialismo (transição a um comunismo) de Dom Helder Câmara não é o mesmo dos cristãos primitivos, tampouco é o da doutrina social da Igreja e, não raramente, indica-me algo mais subliminar que parece flertar com uma via a um comunismo que tenta soar como alternativo ao que fora alinhado a partir de Marx… parece… aqui as reticências, que tanto fizeram parte de suas articulações ditas e escritas, também fazem parte de minhas incertezas acerca de seu heterodoxo pensamento.

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