06/11/2024 21h35
Imagem: X
“He contributed to the presidential campaigns of Barack Obama and then Hillary Clinton, and he was a vocal critic of Donald Trump in the 2016 election.”
Obra: Elon Musk. 44. Rocky Relationships 2016–2017. Trump. Simon & Schuster, 2023, New York. De Walter Isaacson (EUA/Lusiana/Nova Orleans, 1952).
Quem poderia imaginar o homem mais rico do mundo, outrora financiador das campanhas de Barak Obama e Hillary Clinton, então crítico contundente de Donald Trump em 2016 (p. 204), sendo o seu maior apoiador na corrida a Casa Branca deste ano?
Musk desdenhava de Trump, porém, aparentemente, ficou incomodado com a proibição do então ex-presidente no Twitter (p. 342) e, tendo declarado que não era seu fã, na enquete que promoveu assim que tomou o controle do Twitter, restabeleceu a sua conta, apesar de acha-lo um “perturbador” e “campeão mundial de besteira” (p. 426).
O que fez Musk mudar de ideia? Uma questão que dificilmente saberei respondê-la, mas Trump ficou impressionado com os foguetes do jovem visionário da Tesla, maravilhas projetadas por seus engenheiros, e o chamou de “um dos nossos grandes gênios,” e que assim “temos que protegê-lo” (p. 204). É bem provável que continuarei sem saber exatamente, pelo resto da vida, o que fez Musk pular a cerca democrata e ir animar o curral de um partido republicano com pautas um tanto estranhas ao dito liberalismo econômico ianque, e ainda mais sinistras aos olhos dos pais fundadores que certamente se reviram no túmulo com as ideias messiânicas de Trump. Penso também que, apesar das ideias liberais de Musk na retomada da corrida espacial sugerir um apreço pelo livre mercado, muitas vezes esse apelo é dito como “iniciativa privada”, mas na realidade política não passa de uma forma mais associada a uma pequena coisa que levei um bom tempo para entender: capitalismo de compadres, onde nada é mais icônico do que um político populista e nacionalista acenar para a proteção de um magnata como se fora um “patrimônio nacional”, algo bem familiar no estado moderno que acabou configurada como a grande central de oportunismos dos mais lucrativos em torno de privilégios políticos, cuja reivindicação de genialidade, no caso dada a Musk, soa mais, entendo, a um apelo de uma receita antiguíssima e que pode ser apreciada no clube dos amigos do rei.
05/11/2024 21h20
Imagem: PBS
“Nossa estratégia de contenção morreu com a União Soviética.”
Obra: Minha Jornada Americana. Um Epílogo. Editora Best Seller, 1995, São Paulo. Tradução de Rosane Albert e Tomás Rosa Bueno. De Colin Luther Powell (EUA/Nova Iorque, 1937-2021) com Joseph Edward Persico (EUA/Nova York/Gloversville, 1930-2014).
O fim da União Soviética (URSS) em 1991 encerrou um longo período de antagonismo do Oriente com o Ocidente capitaneado pelos EUA, mas esse encerramento, entendo, foi apenas de um modelo que fracassou, o que pode ser verificado no surgimento da aliança sino-russa nos últimos anos, fato que retoma o antagonismo.
Collin Powell, então secretário de estado, foi uma das figuras mais importantes da Guerra Fria, pois vivenciou em detalhes os bastidores que não podem ser, imagino, expostos ao público, por sua natureza de “segurança nacional” (p. 587), tendo atuado como servidor de “três presidentes, três homens completamente diferentes” (p. 590), porém em sua auto biografia, uma das melhores que li, tem alguns indicadores da perspectiva do império face às profundas transformações que o mundo passava no início da década de 1990.
Primeiro, penso ser bastante discutível a ideia da “morte do comunismo como ideologia” (p. 585), associada ao fim do regime soviético no mesmo parágrafo de abertura deste epílogo, apesar de citar “Cuba e Coréia do Norte” que “ainda se aferram a um cadáver político e ideológico” (p. 586). A crença de que o fim da URSS enterrou o comunismo me faz lembrar o que tanto escutei nos anos seguintes, cuja queda do muro de Berlim servia de mantra, e que se revelou como uma das típicas narrativas ilusionistas do mundo político, usadas para simplificar um tema complexo para a massa que decide eleições. Entretanto, no contexto do mesmo parágrafo em que Powell aponta um sintoma da dissolução da URSS, que nas entrelinhas se trata de um vazio na falta de um grande inimigo para ameaçar o império, o qual serviu por 35 anos, em outras palavras, aponta como “alicerce” da segurança ocidental, isso também se mostrou ilusório em efeitos colaterais da Guerra Fria, entre alguns, aqui penso na participação dos EUA no financiamento de mujahidin afegãos para fazerem os russos terem o seu “Vietnã” [274].
Em segundo lugar, o mundo leigo, que normalmente se julga bem informado com noticiários, descobriria outras grandes ameaças à paz no ocidente, entenda-se ameaça aos EUA, após o fim da URSS que Powell classificou como “um império despótico expansionista” que “desapareceu, derrubado por sua própria malignidade”. Entre as maiores ameaças, penso, logo se destacou uma sem pátria, sem bandeira estatal, extremista religiosa e de estilo kamikaze: a terrorista de ordem islâmica, entre outros movimentos políticos que estavam se refazendo nesse novo cenário. E o sintoma mais devastador dessa grande ameaça, entre atentados de menor proporção, ocorreria dez anos depois do fim soviético, no 11 de setembro. Contudo este livro é de 1995, e Powell escreveu mais olhando para um grandioso fato geopolítico (o fim soviético) e menos a externar problemas de segurança mais próximos do cidadão americano e desta forma não considerou que algo tão devastador pudesse atingir o território no coração americano, afinal eram tempos de otimismo com a vitória contra o grande mal soviético com seus mísseis nucleares, o que o impeliu a cogitar, entre outros fatores de risco, o fundamentalismo islâmico com o potencial para “desestabilizar o sul da Eurásia” (p. 586), enquanto, no parágrafo anterior afirma estar “animado” com os acordos que corriam à época, a citar, entre outros, “o progresso da paz no Oriente Médio”.
Apesar de ter sido escrito em outro contexto, é atualíssimo o tema da obsolescência da contenção americana diante da ameaça soviética ou de um candidato a império para tomar o lugar do americano. O cenário atual envolve um outro bloco de países, penso nos membros do Brics sob a batuta dos governos da Rússia e da China, em um arranjo bem mais inteligente e abrangente que o leste europeu na Guerra Fria, agora com uso de meios da economia de mercado, não mais em modo planificado (o que foi decisivo para falir a URSS), fator que o torna ainda mais ameaçador aos EUA, além do fato de agregar estados sob líderes com esquemas ideológicos variados, mas com o antiamericanismo em comum, alguns com arsenal nuclear, assunto que parecia morto no fim da URSS e que agora se mostra mais ativo e tenso do que nunca.
274. 10/03/2022 23h12
04/11/2024 00h01
Imagem: Torino Today
“[…] Nei prossimi anni, gli americani potrebbero perdersi in una nuova guerra civille. Oppure destarsi per definitivo attaco al loro primato.”
Obra: Sotto la pelle del mondo. I. I momento degli Stati Uniti. Giangiacomo Feltrinelli, 2024, Milano. De Dario Fabbri (Italia, 1980).
Dario Fabbri é outro analista de geopolítica que tem me interessado na tentativa de melhor compreender a situação atual do mundo, na desconfiança de que o momento possa ter um profundo significado histórico mediante o embate entre o império americano e a aliança sino-russa.
Não raramente, penso, grandes momentos da história podem não ser percebidos de imediato, quanto à sua gravidade e possíveis desdobramentos pela geração de intelectuais que está passando por ele; apenas um tempo depois talvez se possa perceber a profundidade transformadora de certos acontecimentos. Penso, será que intelectuais do quinto século tinham a percepção que o império romano (do ocidente) estava chegando ao fim? Quando o Arquiduque Francisco Fernando, herdeiro da coroa do império Austro-Húngaro, foi assassinado em junho de 1914, qual analista político poderia ter o diagnóstico de que corria um processo de acontecimentos rumo a em uma guerra mundial? Será que os estudiosos em 1938 olharam para a invasão nazista da Áustria e a série de movimentos das tropas de Hitler em 1939 como uma provável nova guerra mundial em meio à política inglesa do apaziguamento? E como entenderam o impressionante Pacto de não agressão entre nazistas da Alemanha e comunistas da União Soviética (Molotov–Ribbentrop)?
A mesma coisa penso sobre o que a geração atual de grandes pensadores consegue ver entre os sinais de decadência do império americano e a aliança entre a China e a Rússia, o atual envolvimento da Coréia do Norte no fornecimento de soldados à Rússia, a expansão dos Brics com uma agenda que prevê a tentativa de uma moeda fiduciária e experimentações com um sistema comum de pagamentos… São muitas coisas acontecendo que podem sinalizar uma escalada…
Quem não entende a importância dessas questões certamente leva uma vida “normal” até o dia em que…
Enquanto isso, Dario Fabbri aborda o momento dos EUA que atravessam uma crise com a ideia de ser a referência de ordem no mundo, na ilusão de que poderiam absorver toda a humanidade em torno de sua supremacia, o que Dario Fabbri chama de “equívoco da cidadania ideológica” (p. 22), sob a crença de que lhe cabe o papel de salvar o mundo (p. 31); o fato é que o império americano vive em um constante estado de beligerância pela necessidade de controlar as rotas marítimas (p. 21) onde fluem seus negócios, envolvido em intervenções pelo mundo em meio a necessidade de importar seres humanos, como todo escopo imperial, mas que enfrenta dilemas internos com cidadãos que se sentem ameaçados dentro do próprio território, isso em meio a percepção de que estão cada vez mais envoltos a latinos, em especial aos vizinhos mexicanos (p. 24), os que resistem mais à assimilação de valores americanos (p. 19), e aqui, penso, cuja proximidade também é um fator de receio crescente no simbolismo do muro. Nesse caldeirão de perturbações, os texanos vivem ameaçando a secessão (p. 31). Junte-se a isso uma sociedade com números impressionantes de casos de depressão diagnosticada em 29% dos americanos, com a taxa de suicídio mais elevada do ocidente: 14 em 100 mil, quase o dobro da Alemanha e três vezes mais que a da Itália, cita (p. 20).
No quê esta super potência se tornará? A resposta terá repercussões não apenas entre americanos, mas a todos que vivem em torno; refiro-me aos satélites provincianos onde o Brasil se situa. Os EUA poderão cair em uma nova guerra civil ou em um restabelecimento de seu primado, indica Dario Fabbri no trecho (p. 35) desta Leitura.
03/11/2024 09h38
Imagem: Brasil 247
““It’s Xi Jinping and Vladimir Putin that are now running the multilateral, multipolar show.”
Obra: EURASIA v. NATOstan (Chronicles of Liquid War Book 7) . Part II. Xi and Putin take the lead to bury pax. Nimble Books LLC, 2024, Ann Arbor. De Pepe Escobar (Brasil/São Paulo, 1954).
Este livro é, no momento, o mais vendido na Amazon [273], na seção de importados sobre o tema de relações internacionais.
Uma vantagem de não pertencer a grupo ideológico disso ou daquilo é ter a liberdade de ler qualquer autor que considerar relevante sem ter que perder tempo com discussões tolas sobre o que é ou não recomendável. Então quando mencionei a um “conservador” que estava a apreciar obras de Pepe Escobar, a primeira reação foi: “é do Brasil 247, não presta!”, e eis que me passou uma lista de autores “confiáveis” sobre geopolítica e geoeconomia, claro, devidamente homologados pelo seu clubinho da verdade. Neste aspecto, penso, os que gostam de seguir listas de livros “bons” e outra com os que “não se devem ler”, na verdade reencarnam um valor comum entre nazifascistas, comunistas, fundamentalistas religiosos e demais membros da ordem do fetiche por autoritarismo e escravidão mental.
Sobre o trecho (p. 79) desta Leitura, Pepe Escobar discorre sobre sua concepção da aliança sino-russa de Xi Jinping com Vladimir Putin como líderes do “espetáculo multilateral e multipolar”, para em seguida provocar os “excepcionalistas” com suas “rotinas de bebê chorão” diante de uma da visão que não mudará “especialmente para o Sul Global” (p. 79). Enfatiza a cooperação em alta tecnologia com 79 projetos avaliados em mais de 165 mil milhões de dólares que envolvem “tudo”; a destacar a construção de aeronaves, de máquinas-ferramentas, investigação espacial, agroindústria e corredores econômicos aprimorados, em destaque à “Nova Rota da Seda à EAEU” (p. 80). Quanto a esse último ponto, junto com o auto financiamento das reservas forçadas em dólar que manipulam os sistemas financeiros globais, penso, são os dois grandes pilares do império, a ênfase em uma rota comercial independente das linhas de navegação, controladas pela marinha americana, significa uma ação das mais ameaçadoras, entendo, na perspectiva do poder supremo que conduz o império. Aliás, quem quiser ter uma mínima noção dos porquês da ofensiva russa na Ucrânia, precisa considerar a geografia que sinaliza Putin para fazer do país invadido uma espécie de escudo contra a OTAN enquanto consolida uma pauta de rotas navegação que envolve o Mar Negro na ligação da Ásia com a Europa para o transporte de mercadorias, o que se situa dentro da visão antagonista com o império dos EUA.
Então, a leitura de Pepe Escobar vê de um lado o império americano nas últimas, mas que ainda impõe sua Pax ao mundo ocidental subserviente formado por europeus, Israel e os demais submissos nas “províncias” (os países ocidentais em desenvolvimento), tendo o instrumental da OTAN, e do outro corre o antagonismo em um reavivamento da Eurásia como força geopolítica e geoeconômica após o fim da União Soviética (URSS) que seria, segundo Escobar, para promover o “multilateralismo” (penso, ou seria um novo império que pretende tomar o lugar do americano?), não mais pautado apenas na Rússia como central de comando, nos moldes da antiga URSS; nessa nova edição do grande conflito geopolítico mundial, onde alguns diriam que se trata de uma versão atualizada da “Guerra Fria”, a China divide o protagonismo asiático com a Rússia, tendo como aliado o Irã, a envolver o âmbito dos Brics (onde o Brasil entra no tabuleiro), bem como aponta que 40 delegações da África estiveram em Moscou enquanto o mesmo governo russo promove uma reaproximação entre a Síria e a Turquia e entre a Arábia Saudita e o Irã (p. 81), tudo em uma costura geopolítica pela “multipolaridade” a formar um bojo de nações que estariam alinhadas para encerrar o monopólio de polícia global imposto pelo então “império romano” do tempo presente, o que seria, nas palavras de Pepe Escobrar, “o novo mundo que nasceu em Moscou” na semana em que ocorreram esses encontros onde Putin a definiu como “uma nova política anticolonial” que denota “como uma colcha de retalhos multipolar”, sendo um caminho sem volta (p. 82).
Estaria em perigo a supremacia americana? Antes, imaginei um encontro com o meu eu de 1991 (um sujeito muito antiamericano) que fez uma viagem no tempo e, após informá-lo sobre o cenário geopolítico do mundo quase 33 anos após o fim da URSS, aproveitei para provocá-lo:
Prezado eu de 1991, seria belo e moral (olhou como quem achou esquisitíssimos esses termos) desejar a vitória de uma aliança formada por dois regimes autoritários, com líderes como Xi Jinping e Vladimir Putin, que congregam modelos igualmente déspotas, belicosos, teocráticos e neofascistas pelo mundo avesso aos EUA, como os do Irã e da Coreia do Norte, respectivamente, entre outros grupos de grupos de líderes facínoras da África e da Ásia, além de incluir um convite a compor os Brics em favor do tirano Nicolás Maduro, da Venezuela (curiosamente vetado pelo atual governo brasileiro que parece estar em crise entre qual lado ficar, ou poderia optar pela neutralidade?) apenas para se satisfazer com o fim do malvado império americano? O meu eu de 1991 por um instante ficou mudo, pensou…… pensou… entendeu que seria apenas ridículo acreditar que os belicosos e tirânicos antiamericanos do século XXI são assim por causa dos EUA e que deixarão de serem, tornando-se “bonzinhos”, depois de conseguirem destruir o tão odiado império colocando em seu lugar a tal da “multipolaridade”, e como quem foi pego de surpresa com uma pergunta que lhe trouxe muita perturbação, deu um tímido e vergonhoso “não é correto desejar isso”, pois enquanto antiamericano, já tinha ciência do quão perverso fora o regime imperialista de cortina de fumaça que rivalizava com o pernicioso império ianque até poucos antes antes de ir à falência.
Após este déjà vú, a colcha de retalhos sino-russa parece ter uma consistência bem superior à soviética. A atual está baseada em economias relativamente abertas, ou seja, faz uso de potencialidade dos mercados submetidos a um grande arranjo político, enquanto o modelo antigo era muito planificado, o que comprometia a eficiência econômica, apesar de até então contar com um bloco de países no leste europeu que, na verdade, expandiam o problema mais do que proporcionavam boa robustez geopolítica. Se isso será suficiente para a “demolição dos restos da Pax Americana” (p. 82), como assim se expressa Pepe Escobar, resta o meu eu da atualidade, um sujeito que não é mais antiamericano, liberto da ilusão de que o futuro da humanidade depende disso, desenganado dos “ismos” e de crenças políticas que comprometem o entendimento, navegando na imensidão de suas dúvidas, enquanto ciente de que nessa história não há mocinhos ou redentores da nossa espécie.
273. Consulta às 10h16 de 03/11/2024.
02/11/2024 12h04
Imagem: robsonhamuche.com.br
“Nas mãos de quem você está colocando a sua felicidade?”
Obra: Pílulas de resiliência. Não se deixe levar pelas críticas. Gente, 2020, São Paulo. De Robson Hamuche.
Chamo de “dialética introspectiva” o delicadíssimo processo pelo qual apreendo críticas externas para reprocessar meus juízos internos e encontrar uma superação de dilemas existenciais, de maneira que sempre se revela tênue a linha entre saber escutar as interpretações, para aprender, e se tornar escravo das opiniões sobre as coisas que realizei ou deixei de realizar.
O ano 2007 foi marcado por decisões difíceis: deixei a dita “vida acadêmica” e a igreja batista pela qual era membro; pedi exclusão do rol. Foi um processo que, hoje entendo, se deu por um “alívio de bagagem” de coisas que não me faziam mais sentido espiritual e intelectualmente. Na “vida acadêmica”, em minha área de pesquisa, percebi que tinha que me moldar a certos caprichos ideológicos em orientadores, isso se quisesse seguir uma carreira que, alguns diziam, seria “promissora” e na igreja fiz uma reflexão sobre a falta de livre pensamento (o que é usual em um meio dogmático) e como o meu jeito de ser era incompatível com aquele ambiente, enquanto o que era ensinado constantemente se chocava com o realizado. Onde me situava nesses conflitos? Não queria viver uma vida social de boa aparência por causa de um ego acadêmico e de uma religião que nada mais me diziam a respeito sobre o sentido da vida, as pessoas que realmente se importam comigo, o amor ao conhecimento, o enlevo moral e a busca pelo refinamento ético.
O que decidi em 2007 se aplica ao meu contexto. Acredito que a felicidade se dá em um processo de descobertas de cada um e não em um pacote de coisas padronizadas que devemos aplicar. Ás vezes, para encontrar a felicidade, é preciso reduzir, diminuir, dispensar algumas coisas, isso posto porque vivo em um tempo em que se vende a ideia de felicidade atrelada ao acúmulo insaciável de “conquistas” que dizem mais sobre os outros do que quem as ostenta. Cabe ponderar: se não encontrei propósito existencial na igreja evangélica nem na universidade, outros o encontraram e assim a vida se revela. Fato é que percebi que precisava realizar mudanças um tanto profundas que interrompessem os estresses desnecessários e descobri que seria melhor me pautar em uma vida mais reclusa, com maior presença no lar mediante um trabalho o qual tinha começado aos 15 anos de idade ininterruptamente em um modo que hoje chamam de “home-office”, combinado com condições favoráveis para intensificar um empreendimento intelectual de meditar no prazer de leituras (algo que descobri também na adolescência) e na busca de uma espiritualidade desenviesada dos dois ambientes que estavam me sufocando. Percebi o quanto a tal da “vida acadêmica” e a religiosa podem desencadear em mim problemas de saúde mental quando notei uma pressão para viver em função de ditames que impedem a “dialética introspectiva” que mencionei, e eis que ao adotar um estilo de vida mais simples, o segundo andar se tornou então um canto sublime desafios e de paz em minha vida, com trabalho livre e reflexão desimpedida.
Evidentemente, nesse processo, encontrei pessoas, refiro-me aos dois ambientes os quais estava me libertando (visto que minha família sempre me apoiou), que embora dissessem o contrário, se comportavam como se soubessem o que era melhor para mim, na medida em que as críticas soavam como uma (ilusória) necessidade que eu tinha de sua aprovação, e quando li (p. 27) a pílula desta Leitura, lembrei-me sobre o quanto foi importante naquele ano a maturidade em que me situava, pois impediu que eu me deixasse levar pela falta de compreensão e achismos dos outros, de maneira que abdicaria de ser o responsável pela minha própria felicidade, cujo processo de busca se revela como sentido da vida.
01/11/2024 23h08
Imagem: Unicap
“Não precisa de marxismo quem tem Jesus Cristo!”
Obra: Dom Helder: o Artesão da Paz. Resposta da Igreja à pobreza e à miséria, especialmente na América Latina. Senado Federal, Conselho Editorial, 2000, Brasília. Organizado por Raimundo Caramuru Barros e Lauro de Oliveira.
Em tempos pandêmicos um interlocutor católico, avesso ao Vaticano II e defensor da Missa de Sempre, a Tridentina (Pio V, pontificado 1566-1572), ao ouvir minhas dúvidas sobre o pensamento político-teológico de Dom Helder Câmara, tratou de apontar suas certezas: “foi muito mais político do que padre, um comunista de batina que envenenou leigos e bispos ao distorcer ensinamentos da Igreja com o marxismo”.
Mencionei “dúvidas” porque Dom Hélder Câmara foi, à mon avis, a personalidade mais difícil que estudei em termos de identificação de mentalidade política na Igreja Católica no Brasil. Considero que ele supera até mesmo as dúvidas que tenho sobre o papa Francesco.
Em 2003 vi entusiasmo entre alguns colegas de seminário (protestante) com as Comunidades Eclesiais de Base, onde Dom Hélder Câmara foi uma das maiores referências, e nessas observações identifiquei traços de um materialismo dialético em seu pensamento com pouquíssima ênfase na transcendência, enquanto evitava qualquer associação com Marx e marxismos em seu modo de pensar. Uma mente pensante com esta configuração é muito complexa para ser resumida em meros chavões.
A afirmação (p. 202) desta Leitura faz parte da palestra que proferiu na série de “Freedon and Justice Conferences” na ocasião do 41o Congresso Eucarístico Internacional (Filadélfia, EUA, no Convention Hall and Civic Center em 03/08/1976 (p. 203). No parágrafo anterior afirma:
Impressionou-nos vivamente que, em pleno Congresso Eucarístico Internacional, haja o exemplo de estudar, a propósito do pão da vida, não só a fome mundial, mas as raízes da fome e da miséria, no estudo da falta de justiça e liberdade…
Costumo decepcionar quem espera de mim muitas certezas, no entanto, quem passou por exercícios de exegese sobre o Novo Testamento compreende que “pão da vida” tem um sentido muito mais profundo que o suporte material. E, ao pensar que Dom Hélder se revelou pautado em uma ideia mais terrena de justiça, entendo como definitivamente ele entrou em rota de colisão com a ortodoxia da Igreja que acumula dois mil anos de tradições ligando o céu à terra.
No contexto da afirmação, que pode surpreender haters que preferem se basear em opiniões de influencers, é importante considerar o contexto em que ocorreu: em um tempo de fortíssimo binarismo ideológico na Guerra Fria, ele estava em um território onde ter grande fama de “comunista” era o que bastava para virar alvo da inteligência pela dita “segurança nacional”, enquanto sentia na pele as variadas críticas no Brasil, dentro e fora da Igreja, dada a enorme desconfiança que havia sobre sua verdadeira face, supostamente marxista.
A afirmação tão categórica seria apenas para entreter o público mais conservador no centro anticomunista do mundo? Teria sido apenas um discurso aos de fora? Teria sido Dom Hélder um mito criado no escopo marxista para alienar massas de católicos que não sabem diferenciar a doutrina social da Igreja do comunismo moderno? Não tenho a mínima ideia que encerre essas questões, mas tenho algumas certezas, poucas, entre milhares de dúvidas: o marxismo não é compatível com o Evangelho; o primeiro se baseia em um regime que depende de uma intervenção violenta, sanguinária, revolucionária, sobre os detentores de propriedade, e o segundo estava regido por uma entrega voluntária que envolvia também um aceite à autoridade apostólica, como se pode verificar na forma como os bens eram deixados aos “pés dos apóstolos” (Atos 4:35-36), além de que um comunista marxista, que consiga se infiltrar em uma corporação religiosa tão longeva e notadamente anticomunista (no sentido moderno do termo), como é o caso da Igreja Católica, obviamente não vai tornar pública suas reais intenções de crença política, pelo contrário, terá que fazer uso da contrainformação sobre suas convicções ideológicas. Passo à íntegra do parágrafo de sua negação ao marxismo:
Enquanto se preparava o vosso e nosso Congresso Eucarístico Internacional, o CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano) reuniu, em Bogotá, um grupo de bispos para estudar a retomada de Medellín… Nada de atemorizar-nos diante da acusação cavilosa de leitura marxista do Vaticano II e de Medellín. Não precisa de marxismo quem tem o Evangelho, o Vaticano II e Medellín. Não precisa de marxismo quem tem Jesus Cristo!
É apenas um simples exemplo do que indago sobre um contraponto ao ter consciência da ênfase materialista de seus ditos, e assim minhas dúvidas permanecem enquanto distante das conclusões tão contundentes do indignado católico tradicionalista que escutei. Neste ponto imagino o quanto deve ser perturbador o processo de canonização aberto para quem vê Dom Hélder como agente comunista que se infiltrou na cúpula da Igreja. Limito-me, na minha pobreza de convicções, a reconhecer que o socialismo (transição a um comunismo) de Dom Helder Câmara não é o mesmo dos cristãos primitivos, tampouco é o da doutrina social da Igreja e, não raramente, indica-me algo mais subliminar que parece flertar com uma via a um comunismo que tenta soar como alternativo ao que fora alinhado a partir de Marx… parece… aqui as reticências, que tanto fizeram parte de suas articulações ditas e escritas, também fazem parte de minhas incertezas acerca de seu heterodoxo pensamento.
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