Uma leitura ao dia abre fevereiro com Jacob and the Stone, composição de Emile Mosseri, da trilha sonora do filme Minari (2021), dirigido por Lee Isaac Chung, obra de arte que renovou minhas esperanças no cinema. O arranjo e a produção desta versão são de Elijah Siegler.

Imagem: TonLivre.fr

Charles Baudelaire

“Les dictateurs sont les domestiques du peuple, — rien de plus, un foutu rôle d’ailleurs, et la gloire est le résultat de l’adaptation d’un esprit avec la sottise nationale.”

Obra: Journaux intimes. Fusées. Mon coeur mis à nu. LXVI. G. Crès, 1920, Paris. De Charles Pierre Baudelaire (France/Paris, 1821-1867).

Baudelaire foi mais um autor que começou a fazer parte de minha juventude após ser classificado como “não recomendável”. Quando me envidei na nobre tarefa de desapontar quem se achava na posição de definir o que me cabe ou não ler, causou-me perplexidade o realismo de suas poesias e de seus ensaios, sobretudo em As Flores do Mal.

Neste ponto sobre política em Mon coeur mis à nu, Baudelaire aborda uma questão de forma bem típica ao seu estilo realista de pensamento (tradução livre): “perante a história e o povo francês, a grande glória de Napoleão III foi provar que o primeiro a chegar pode, ao apoderar-se do telégrafo e da Imprensa Nacional, governar uma grande nação. Tolos são os que acreditam que tais coisas podem ser realizadas sem a permissão do povo – e aqueles que acreditam que a glória só pode ser baseada na virtude! Os ditadores são os servos do povo – nada mais, pelo menos se está em um maldito papel, cuja glória é o resultado da adaptação de uma mente à estupidez nacional” (p. 73).

Um ditador é um resultado de uma bem sucedida adaptação de uma mente à estupidez de um povo. Ao ler isso imediatamente me lembrei mais uma vez de ZW quando falou que “o povo é uma síntese da estupidez coletiva” e a democracia “é um catalizador de imbecilidades”, o que deixou inconformada a professora de sociologia quando estávamos a tratar sobre a redemocratização brasileira, ocorrida oito havia anos. “Vejamos o Collor… o povo, em sua maioria soberana o escolheu, no entanto, o outro candidato, Lula da Silva, representava outro viés catalisador de imbecilidade…. é sempre assim, cara professora, viés de quê? ora, nas eleições presidenciais temos o suprassumo dos melhores representantes dos idiotas em cadeia nacional”, o que deixou a docente perplexa com o que chamou de “lamentável desprezo pela democracia por um senhor que viveu os tempos da ditadura”, no entanto, ZW a lembrou que ter uma posição crítica ao realismo da democracia não significa estar de acordo com regimes autoritários (essa confusão é bem comum nos dias atuais). ZW falava francês fluentemente, pois tinha vivido um tempo em uma república de estudantes em Paris durante a juventude, então, quando mencionava autores franceses, como Baudelaire, era algo simples e cativante. Embora não tivesse condições de compreender minimamente muitos de seus argumentos à época, com ZW aprendi a não contemporizar com ninguém por afinidade, seja qual for, quando ideias entram em discussão; não escapavam de sua implacável criticidade esquerdistas que ignoravam o fato de que nos anos de chumbo seus movimentos lutavam para impor outra ditadura (a do proletariado), assim como os saudosos do regime 64-85 que tentam justificá-lo pela ameaça comunista e as ilusões do dito “milagre econômico”.

O senhor mais politicamente incorreto que conheci falou de uma vasta lista de eleitos pelo povo que se revelaram no rol dos piores que uma sociedade pode produzir, a começar pelo primeiro presidente eleito na república francesa, justamente Napoleão III que, no afã de um segundo mandato, à época não permitido na constituição, deu um golpe de estado para se tornar imperador. Depois citou Hitler que “chegou ao poder pela legalidade do sistema político, e gozava de grande admiração pelo povo germânico, visto como tão ‘culto'”. Em seguida lembrou a eleição direta do “ditador Getúlio Vargas, cinco anos após deixar o poder exercido por 15 anos de forma autoritária”. Quando estudei mais o Estado Novo percebi que o regime, de fato, foi o mais próximo do fascismo ocorrido no Brasil.

O meu eu de 1997 apenas tomou algumas notas, sem bom discernimento. Ao ler este tópico então, o meu eu contemporâneo percebeu o quanto naqueles ditos havia de certas verdades inconvenientes que somente tipos como Baudelaire e ZW têm a disposição de demonstrar.

Imagem: Students for Liberty

Thomas Sowell

“[…] aqueles que discordam com a visão predominante são vistos não apenas como equivocados, e sim como pecadores. […]” 

Obra: Os Ungidos. As fantasias das políticas sociais progressistas. Capítulo I. Unção Lisonjeira. LVM Editora, 2022, São Paulo. Tradução de Felipe Ahmed. De Thomas Sowell (EUA/Carolina do Norte, 1930).

Sowell abre o capítulo a mencionar o dogmatismo que caracteriza a disseminação de uma visão social predominante (p. 14). O nazismo e o Império Romano são mencionados como exemplos de regimes autodestrutivos onde a rigidez dogmática impediu o que chama de “feedback da realidade” (p. 15). Mesmo com alguma abertura para argumentação, prevalece a visão dogmática sem evidências empíricas. Tal visão oferece “um estado especial de graça para aqueles que acreditam nela” (p. 17), não pode ser confrontada e qualquer evidência empírica contrária a seus pressupostos se torna suspeita (p. 16).

A forma como Sowell esmiúça o problema na política me faz pensar como crenças políticas podem se assemelhar às religiosas em termos de fundamentalismo. Em muitas ocasiões percebi como a mentalidade do “ungido” na política, na defesa de políticas públicas, se parece com a mentalidade de um “ungido” típico protestante fanático com a Bíblia na mão ou de um fervoroso católico exclusivista no sentido de ver como um perdido pecador quem não acredita na Igreja como a Arca da Salvação. Em certa ocasião comentei com jovem político de um partido socialista, sem dúvida um “ungido” na síntese de Sowell, que a forma como ele se referiu à Constituição Federal de 1988 e às obras de Marx em uma palestra foi essencialmente a mesma que vi em muitos fundamentalistas evangélicos em relação à Bíblia; o fanatismo é o mesmo em termos essenciais, assim como observei em muitos católicos em relação à obediência incondicional que apregoam em favor da Igreja. No entanto, a crença política de cunho fundamentalista, ao se tornar predominante pelos “ungidos”, consegue ser ainda mais nociva para a sociedade, pois vem camuflada como coisa de “ciência” em meio a carência de evidências empíricas. Neste caso, os “ungidos” são acadêmicos que usam os títulos para disfarçarem suas narrativas pseudocientíficas, devidamente munidas de estatísticas cuja interpretação se harmoniza com o viés predominante.

Outro aspecto nessa mentalidade dos “ungidos” consiste na prática de se colocarem moralmente acima dos outros, o que se relaciona com outra: a de demonizar oponentes (pp. 19-20). Ao citar a forma como o mainstream do estado de bem estar social recebeu a excepcional obra O caminho da servidão, de Hayek (p. 18), Sowell dá um categórico exemplo de como essa mentalidade consegue reproduzir no ambiente laico debilidades do intelecto que podem ser facilmente observadas em ambientes religiosos.

Por fim, embora Sowell aborde o problema apenas pelo lado do progressismo, entendo que não é preciso fazer muito esforço para observar que no lado dito “conservador” a demonização do oponente, o arrogo de uma moralidade superior e a defesa de políticas públicas baseadas em crenças sem evidências empíricas também são problemas comuns.

Imagem: Editora Unespe

Immanuel Kant

“[…] o ceticismo é um lugar de descanso para a razão humana, onde está pode refletir sobre o caminho dogmático percorrido […]”

Obra: Crítica da Razão Pura. Apêndice à Dialética Transcendental. Capítulo I. Segunda seção. Disciplina da razão pura referente ao uso polêmico. Impossibilidade em que se encontra a razão pura, em desacordo consigo mesma, de encontrar a paz no ceticismo. Martin Claret, 2002, São Paulo. Tradução de Alex Marins. De Immanuel Kant (Prússia/Königsberg, 1724-1804).

Esta obra está entre as que marcaram o final de minha juventude (meados de 2003, 28 anos) quando refletia muito sobre o significado do ceticismo em minha vida até então. Penso que fora o início da chamada “crise de meia idade”, que se estendeu, pelo menos, por uns seis anos. A palavra “crise” aqui não tem uma conotação de “perdição” ou falta de referência de valores, e sim um “momento de juízo”, a considerar a raiz grega do termo. Neste sentido, a crise faz parte de um processo de amadurecimento e, em certo aspecto, de superação de dilemas da juventude; daí entendi o espírito da expressão que escutei no seminário: “sem crise não há salvação”.

Perguntava-me se havia mínimo sentido uma vida pautada no ceticismo, e não se tratava de um flerte com o ateísmo ou o agnosticismo. De duas coisas me policiava: de qualquer traço de fanatismo, incluindo o fundamentalismo bíblico, e o ceticismo generalizado que, entendia, significava abrir uma perigosa porta para um relativismo de vazio existencial ou para o ateísmo que, compreendia, ser uma forma rasa de lida com o problema. Então adotava um ceticismo com o ceticismo geral e essa norma de foro íntimo se derivou enquanto tentava entender melhor a relação dialética da razão com a fé, e aqui “fé” não se limita ao escopo religioso e sim a qualquer forma de crença. Destarte, faziam parte as minhas crenças políticas e econômicas nesta “relação dialética” que desenvolvia no desejo de uma melhor harmonia espiritual ou, em uma linguagem hegeliana, por uma síntese ou superação. Três anos adiante escreveria que “viver sem crença é buscar uma paralisia mental” [294] e a crença sem reflexão se traduz em anti-intelectualismo, primeiro passo para ser dominado por fanatismo.

Um tempo depois me dei conta do problema da dispersão do conhecimento e da necessidade da ação humana diante dessa grave limitação do racional no espírito humano; bem ou mal o ser humano tem que decidir em vários momentos da vida, e se estiver pautado tão-somente no ceticismo, ficará catatônico. É neste sentido que entendo o que Kant quis dizer sobre a impossibilidade de encontrar paz no ceticismo; “a razão tem limites determinados” (p. 544) o que implica no ceticismo não ser uma morada eterna para a razão humana e sim um lugar temporário para descanso enquanto reorganiza as crenças (p. 546); um lugar acolhedor para a reflexão em torno do dogmático, de maneira que pode qualificar a caminhada intelectual com maior segurança. Essa limitação que Kant aponta e relaciona com o campo da experiência, à mon avis, é um alerta para quem vive no ceticismo generalizado.

Em muitas situações o ser humano, para decidir, recorre a um determinado sistema de crenças e valores quando entende que a razão não é capaz de lhe dar suporte. E a razão humana é insuficiente mediante a infinidade de fatores que não são conhecidos para se chegar a uma certeza completa em muitos momentos da vida. Curiosamente essa reflexão se deu de maneira acidental, por outra linha de estudo, quando comecei a mergulhar em Hayek, que tratou desta questão não em um sentido puramente filosófico, mas para explicar a impossibilidade técnica do socialismo na economia, quando entendi que o socialismo não é viável porque depende da razão limitada diante da impossibilidade de saber todas as coisas do tecido social, onde se situam os fenômenos econômicos, para se chegar a uma “certeza completa”.

294. 29/01/2025 21h26

Imagem: The Palestinian Return Centre

Nur Masalha

“[…] But the Nakba did not end in 1948. For Palestinians, mourning 60 years of al Nakba is not just about remembering the ethnic cleansing of 1948;”

Obra: 60 years after the Nakba: Historical truth, collective memory and ethical obligations. Kyoto Bulletin of Islamic Area Studies. 3 (1): 37–88, 2009, July. De Nur ad-Din Masalha (Israel/Galileia, 1957).

As recentes declarações do presidente dos Estados Unidos em relação à situação da Faixa de Gaza, face a um controle do império americano que forçaria o deslocamento de palestinos para a implementação da “Riviera do Oriente Médio”, atestam o que o professor e autor de The Palestine Nakba [293] afirma no trecho (p. 78) desta Leitura.

Al-Nakba, entendo, não começou em 1948 nem terminou, sendo um fator determinante para uma melhor compreensão sobre a Palestina na perspectiva dos que passaram pela profunda destruição antes, durante e depois da criação do Estado de Israel. A “nova” ideia de deslocação reedita uma questão que está no cerne dos problemas dos palestinos com o Estado judeu.

Afirma o professor que a Nakba hoje (este “hoje” foi de 2009, ano da publicação deste longo artigo de 52 páginas na Kyoto Bulletin of Islamic Area Studies) continua com a política de negação em torno da “limpeza étnica” (p. 78). Os crimes contra o povo palestino são ignorados na realpolitik desde o mandato britânico, consolidou-se com o Estado israelense, de maneira que a condução do processo fez com que a ideia dos dois estados servisse mais para esconder o que de fato mais importa no problema da reparação, pois para o quê servirá um estado concedido a um povo devastado pelo sionismo?

A humanidade caminha para os 70 anos da Nakba 1948, diante de uma Faixa de Gaza devastada pelos mísseis israelenses. Penso que a conta da reconstrução deveria ser cobrada ao Estado de Israel; cada rua, cada casa destruída, cada prédio demolido, cada indenização de civil morto pelos bombardeios, tudo deveria repercutir nos cofres dos que financiam um regime de destruição em massa de inocentes na guerra contra o grupo terrorista Hamas, contudo, o mandatário do império ianque do ocidente, com seu peculiar estilo, decidiu distrair a opinião pública com um empreendedorismo dos amigos do rei, enquanto os verdadeiros culpados pela devastação seguem impunes.

293. 15/05/2024 21h55

Imagem: PlanetadeLibros

Max Gunther

“O comportamento do ser humano não é previsível. Desconfio de quem afirma que conhece uma nesga que seja do futuro.”

Obra: Os Axiomas de Zurique. O 4o. Grande Axioma. Best Bussines, Rio de Janeiro, 2019. Tradução de Isaac Piltcher. De Max Gunther (UK/England, 1927-1998).

O exemplo que Gunther apresenta na abertura do capítulo (p. 72) me fez pensar no Boletim Focus, nos relatórios do Ministério da Fazenda, do Banco Mundial e do FMI; nada consegue ser mais ilusório do que previsão sobre economia.

Após discorrer outros casos hilários de previsões de analistas de mercado, afirma Gunther: “A verdade é que ninguém tem a mais remota ideia do que vai acontecer no ano que vem, na semana que vem, nem sequer no dia seguinte” (p. 75), no entanto, sujeitos amparados por estatísticas, econometria, métodos quantitativos e outras ferramentas que lhes dão um ar de que estão a fazer “ciência”, aparentemente, são levados a sério. Em qualquer telejornal “previsões” do “mercado” (um termo vago, usado como se fosse alguém, uma pessoa) ou de alguma instituição considerada relevante são anunciadas, não raramente seguidas por “análises” que, para terem algum sentido racional, carecem da confirmação do que fora previsto.

A variável que mais derruba videntes (termo que considero mais apropriado) em economia, penso, é o câmbio. Em uma corretora dessas de grife, pensei em um sujeito empolgado com suas ferramentas a fazer uma análise dos impactos na “inflação” (outro termo distorcido no mundo tenebroso do economês) com com base no USD previsto para um determinado valor no final do ano passado, quando então, pensei, todo embasamento dos impactos estava a depender da faixa de cotação estimada, o que não se confirmou, de maneira que a análise apresentada foi para um ambiente que simplesmente só existiu na cabeça do analista.

Lembrei-me de outro analista que gosta de falar sobre um “big crash” que estaria por vir. Ele vem anunciando isso há uns 10 anos e sua neura apocalíptica me fez pensar que talvez se trate de uma versão secular de um irmão fundamentalista que conheci em meus tempos de igreja evangélica; ele adorava falar sobre o “fim dos tempos”, que “está próximo” e virá “como um ladrão”, pois “o dia e a hora ninguém sabe”, a repetir versos do Novo Testamento que alimentavam nos ouvintes uma angústia que servia para “convertê-los” à fé, traduzindo, ao sistema de crenças onde o irmão pregador ganha a vida financeira, e da mesma forma o tal analista de mercado procede com seus ouvintes atormentados, quando em seguida anuncia suas “soluções” para um mundo pós-crash que, incluem, claro, a aquisição de seu caríssimo aplicativo de recomendações.

Nostradamus não acertava com frequência, mas previa com frequência, lembra Ghunter (p. 78) ou seja, quem trabalha nesse ramo logo entende que uma grande quantidade de previsões serve para aumentar as chances de acerto e que, uma vez ocorrendo, deve ser destaque, enquanto os erros (maioria) são escondidos. Há coisas que podem ser preditas por serem fenômenos físicos do mundo natural, como o nascer e o pôr do sol, mas na economia, a predição não existe porque esta ciência (sim, é uma ciência, apesar dos economistas) lida com eventos humanos que são imprevisíveis (p. 82); eis a essência do quarto axioma de Zurique (p. 83).

Quando se estima algo em economia, entra-se no campo das expectativas que puxam especulações que se relacionam diretamente com comportamentos humanos em uma mescla de racionalidades, crenças e emoções. Os riscos consistem na imprevisibilidade em um bojo de fatores intangíveis que são precificados. Ignorar isso é viver uma ilusão em torno de qualquer previsão para a economia.

Imagem: aeon

Jacques Derrida 

“A escritura, meio mnemotécnico, suprimindo a boa memória, a memória espontânea, significa o esquecimento.”

Obra: Gramatologia. 2. Linguística e gramatologia. O fora e o dentro. Perspectiva, 1973, São Paulo. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro. De Jacques Derrida (Argélia/El Biar, 1930-2004).

Lembra Derrida o que Platão afirma em Fedro quando compara a escritura à fala sendo hypomnesis à mneme ou “o auxiliar lembrete à memória viva”; a escritura dissimula da presença natural o sentido que está no logos (p. 45).

A palavra escrita, na funcionalidade de memória auxiliar, penso, é uma espécie de caricatura do logos, que se desenvolveu na nossa espécie que artificializou um modelo de memória auxiliar. Derrida a define como” matéria sensível e exterioridade artificial: uma ‘vestimenta'” (p. 42). Neste ponto, pensei, primeiro, na escrita como uma máscara que intenciona transmitir algo em relação ao logos como utilitário. Afirmo “algo em relação ao logos” porque a escrita pode ser um disfarce ou até uma contra informação em relação ao que contêm no logos, que diz respeito ao mais profundo do ser.

Depois pensei que a escrita, diante da crítica de Derrida, pode ser um esforço diante de uma experiência com o logos. Esse “esforço” consiste em traduzir em palavras escritas o que pensei e/ou senti, bem como falei espontaneamente, o que muitas vezes para mim se revelou como um produto frustrante. Em diversas ocasiões o que traduzi em escrita permaneceu aquém da experiência com o logos; é como se o texto escrito fosse algo bruto, distante, aqui a lembrar um pouco o que Derrida aponta como “violência originária” da escritura, embora seja rebuscada, parece mesmo uma fantasia de mau gosto em relação ao que trafegou pela razão e pelos sentidos, e isso me parece ainda mais constrangedor quando noto que a espontaneidade da fala possui uma dinâmica criativa que a palavra medida em um texto meditado também deixa a desejar, e aqui penso na escritura se tornando vestimenta da fala. Derrida menciona Ferdinand de Saussure (1857-1913) a considerar a escritura vestindo a fala como algo pervertido, desarranjado (p. 43).

Em seguida pensei no conceito de poema, como um esforço para um estágio mais elevado da escrita que tenta se aproximar da sofisticação do logos. Aqui penso no que Derrida fala como o poema e o canto sendo incompatíveis com a escritura (p. 327). É como se o espírito humano buscasse uma expressão digna para a intensidade do logos, talvez à semelhança de um escultor ou um pintor ao reproduzir uma paisagem e/ou pessoa no mundo real, mas permanecerá distante da pureza e da complexidade do mundo natural.

Imagem: WTO Blog

Ralph Ossa

“This assessment has to be revised entirely following the radical shift in US trade policy under President Trump. The most visible policy change is probably the trade war between the US and China, in which the US is now imposing special tariffs on over half of Chinese bilateral exports (Bown and Zhang 2019). […]”

Obra: Trade War The Clash of Economic Systems Endangering Global Prosperity. Part 2: The costs of trade wars. The costs of a trade war. CEPR Press, 2019, London. Editado por Meredith A. Crowley. De Ralph Ossa.

Este artigo do economista-chefe e diretor da Divisão de Pesquisa Econômica e Estatística da Organização Mundial do Comércio (OMC) está no contexto do governo Trump I. Ralph Ossa aponta no final que o envolvimento em guerras comerciais é prejudicial para todos os países participantes cujos danos terminam por afetar seus cidadãos (p. 48).

A retratar o Trump I, Ralph Ossa resume um cenário à época com a guerra comercial entre os EUA e a China, onde o governo americano impôs tarifas especiais sobre mais de metade das exportações bilaterais chinesas, incrementou medidas revisionistas de política comercial, incluindo a saída da Parceria TransPacífico (TPP), a imposição de tarifas especiais sobre o aço e o alumínio, a substituição do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), o anúncio para considerar tarifas especiais sobre as importações de automóveis da UE, e até mesmo a ameaça de saída da OMC (p. 45).

Os primeiros sinais do Trump II, penso, indicam que se trata de uma versão mais ameaçadora para o “livre” comércio mundial sob claros sinais de uma ofensiva mais ampla em torno de narrativas de expansão territorial, com a ideia de incorporação do Canadá, que passaria a ser 51o. estado, a tomada da Groelândia, além da retomada do canal do Panamá que está no contexto do protagonismo comercial chinês. Trump II desvela uma face medonha do quanto o imperialismo americano é essencialmente tão nefasto quanto o que se fala acerca dos planos de Putin de retorno da Rússia às proximidades do que fora a extinta União Soviética, e da gradual expansão global da China capitaneada por um regime autoritário de partido único dito “comunista”. A ideia de que os Estados Unidos possuem uma vocação bem intencionada para policiar o mundo, enquanto se demoniza a Rússia e a China, tenta esconder o óbvio: não existe imperialismo do bem.

O professor Ralph Ossa explica que uma guerra comercial surge quando todos os países se envolvem simultaneamente em políticas para empobrecer os vizinhos com tarifas aumentando em todos os lugares (p. 47). Este trecho me fez lembrar de uma lição que tomei do velho ZW em 1997 quando usava o termo “guerra comercial” em uma apresentação na cadeira de economia internacional. Um professor discordou, outro considerou “interessante” quando ZW falou que o correto seria chamar de “guerra estatal”, pois o fenômeno é de encarecimento de preços provocado por governantes que fazem uso de majoração de impostos sobre importação, o que prejudica produtores e vendedores externos junto com os consumidores que passam a enfrentar uma carestia forçada fora do mercado. Chamar de “guerra comercial” então é uma distorção cognitiva, em termos de definição e, ao mesmo tempo, uma afronta a empreendedores que, na verdade, competem nos mercados através do sistema de preços que fica distorcido, neste caso, por efeito exógeno de políticas estatais.

Hoje foi um dia que escutei bastante “trade war” e “guerra comercial”, de maneira que percebi o quanto ZW foi cirúrgico. Jornalistas, analistas de mercado…. todos em uníssono a repetir esse jargão para ilustrar o poder do automatismo para distorcer a compreensão de um fenômeno que não é causado por mercados, e sim por políticos que se digladiam pelo poder, e mesmo que estejam a serviço de grandes empresários, ainda sim não se trata de um fenômeno de mercado, mas político em torno do capitalismo de laços que é uma corruptela do capitalismo como movimento histórico baseado na livre competição.

Imagem: Vaticano

Papa Francesco

“Fiquei alguns segundos paralisado, quase não acreditava no que meu interlocutor dizia ao telefone. […]”

Obra: Vida: A minha história através da História: A inspiradora autobiografia de Papa Francisco. XII. A Renúncia de Bento XVI. happer Collins, 2024, Rio de Janeiro. Tradução de Milena Vargas. De Papa Francesco, Franciscus (2013), Jorge Mario Bergoglio (Argentina/Buenos Aires, 1936).

Sobre o momento em que o então cardeal Jorge Mario Bergoglio tomou conhecimento da renúncia de Bento XVI, no dia 11 de fevereiro de 2013.

Enquanto assistia ao bom filme “Dois Papas”, chamaram-me mais atenção as cenas que envolvem os diálogos entre Bergoglio (interpretado por Jonathan Pryce) e o papa Bento XVI (interpretado por Anthony Hopkins) momentos antes do anúncio da renúncia papal. A primeira parte foi retratada em Castel Gandolfo (residência de verão), e a segunda na Capela Sistina. Ao compará-las com a experiência de leitura que tive desta obra autobiográfica, ficou-me claro que o filme apresenta uma narrativa ficcional, a considerar que o cardeal Bergoglio recebeu a notícia da renúncia em Buenos Aires, por telefone (p. 168) e a única coisa que confere é o espanto dele, perfeitamente compreensível para um fato tão incomum com precedente em mais de 700 anos

Nos diálogos, o diretor Fernando Meirelles (Brasil/São Paulo, 1955) promove um interessante encontro dialético de duas visões eclesiásticas bem distintas:

  1. O papa Bento XVI representa um viés conservador diante de transformações no mundo a influenciar a Igreja. Já o cardeal Bergoglio representa um viés reformador e carismático, diria uma visão da Igreja em constante transformação, aberta a um diálogo fraterno com o mesmo mundo que Bento XVI tem certo receio de se abrir. Chama-me atenção a tolerância de Bento XVI com Bergoglio em meio a uma grande discordância sobre vários temas. Neste ponto o diretor promove uma desconstrução da imagem inquisidora atribuída ao então papa enquanto aproxima Bergoglio de uma visão filosófica que concebe o ser humano de fé em constante movimento ou amadurecimento, o que implica em aceitar mudanças sem abrir mão de princípios, o que está em harmonia com a visão que o cardeal apresenta no livro sobre o discurso de despedida de Bento XVI, direcionado aos cardeais, onde cita Romano Guardini sobre a Igreja ser “uma realidade viva” e não uma instituição construída “em torno de uma mesa” enquanto “permanece a mesma, e seu coração é Cristo” (p. 171);
  2. A síntese desta tríade é belíssima ao retratar um desfecho poético de humildade de Bento XVI que, apesar de discordar de muita coisa argumentada por Bergoglio, de alguma forma entende que o cardeal argentino tem o perfil de liderança adequado para o momento da Igreja, entendimento que se relaciona no contexto de sua renúncia ao papado, entre outros fatores, sendo o principal, não se sentir mais na condição de ouvir a voz de Deus mediante o peso da consciência sobre seus pecados, sobretudo os que se relacionam com escândalos de pedofilia onde deveria ter tomado mais pulso para enfrentá-lo mediante a estrutura de comando entre seus bispos e cardeais;
  3. A cena final na capela Sistina se torna belíssima, à altura do cenário que tanto me comoveu quando o visitei, pois ambos se confessam; Bergoglio conta seus problemas na ditadura da Argentina quando foi acusado de fazer acordo com o regime para proteger padres da ordem, quando então o papa lhe ministra o perdão. O mesmo ocorre com o papa que começa a desabafar sobre os problemas que deveria ter dado mais atenção para, enfim, o cardeal jesuíta assumir a função sacerdotal em torno do perdão.

A ficção converte em narrativa eventos na vida real entre os dois personagens. Um exemplo no filme se dá quando o cardeal Bergoglio escuta de Bento XVI sobre escândalo na Igreja, tratando-se de uma conversa informal onde fica a impressão de que o papa estava na intenção de vê-lo como sucessor, enquanto no livro essa abordagem, feita de forma concreta por documentos sigilosos, é relatada pelo papa Francisco (já como sucessor) como um fato na formal passagem de insígnias do papa emérito Bento XVI (p. 173).

Imagem: .emanueleseverino.it

Emanuele Severino

“Nello Stato democratico, tolleranza e libertà non sono dunque principi” o ’’fondamenti”’ universali, il cui chiarimento abbia bisogno dell’autorità della filosofia, ma sono convinzioni che, attraverso un processo storico determinato, si sono consolidate nelle democrazie occidentali. […]”

Obra: La filosofia futura. XII Democrazia e Apparato. 3. “La priorità della democrazia sulla filosofia”. Rizzoli Libri, 1989, Milano. De Emanuele Severino (Italia/Brescia, 1929-2020).

Não me surpreende que um dos mais importantes filósofos do século XX não seja muito conhecido. Emanuele Severino foi professor de Umberto Galimberti (1942), outro filósofo italiano que se tornou referência em minhas experiências de leitura.

Severino menciona os filósofos John Rawl e R. Rorty, com visões alinhadas no contexto americano, sendo o segundo um intérprete do primeiro, de que a democracia no estado não tem necessidade de uma base filosófica, pois nela a liberdade e a tolerância não são princípios ou fundamentos, mas convicções, e assim essa concepção se dá por meio de um processo histórico determinado com a política social validada por um bem sucedido acordo entre indivíduos (p. 101). Assim a democracia, penso, ao refletir sobre a ideia central do ensaio A prioridade da democracia sobre a filosofia (tradução livre), do segundo filósofo mencionado, afasta-se definitivamente da visão clássica grega, pois faz de si mesma um aparato pelo qual as ideologias estarão subordinadas, conforme aborda Severino (p. 100).

A ideia de democracia como base construída por “convicções” me remete ao problema do relativismo nas crenças face aos temas suscitados. Considerando o modelo de democracia na análise e, estendendo às democracias atuais fora dos Estados Unidos, pelo que posso observar, é comum essa disseminação em evidência no processo político sobre “liberdade” e “tolerância” de acordo com o que se acredita nelas, ou seja, a democracia funciona como uma espécie de sistema de credos sobre pautas sociais e econômicas. Talvez seja por isso que o uso estrito da razão costuma entrar em choque na defesa de políticas públicas e os discursos de políticos sejam muito baseados em crenças do que propriamente em ciência, embora haja forte apelo pelo segundo termo. Os conceitos de liberdade e tolerância então estariam sujeitos ao que se acredita, a uma fé política, penso, determinada por quem está no poder, sobre o que significam sem qualquer interesse por uma consistência lógica e reflexão filosófica dela derivada no que Severino aponta ao analisar os dois filósofos mencionados que indicam que o descarte da filosofia, sempre bom frisar, no estado democrático, diz respeito a questões sobre a natureza universal racional e comum ou uma ordem antecedente ao ser humano.

O problema que encerra o parágrafo anterior aponta, penso, ao que se trata do fator de maior tensão na política atual que corre por baixo dos conflitos, muitas vezes sem a devida percepção e, não raramente, sob a proposital confusão feita por ambas as partes que arrogam para si o entendimento “justo” sobre problemas de liberdade e tolerância, enquanto rejeitam elevar o debate ao âmbito filosófico para não caírem em constrangimento perante uma crítica qualificada que destoa do público eleitor médio cada vez mais manipulado, entendo.

Comentar pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *