31/05/2022 23h10
Ignazio Loconte
“Muitas vezes, as candidatas à reclusão já eram mulheres casadas, que assim passavam de casamentos tradicionais para casamentos místicos (obviamente com a permissão do cônjuge), e não tendo nenhuma regra eles tinham que confiar em um mestre espiritual, se não fazer como Dorothea von Montau, que, segundo o processo de canonização (26), foi dirigida diretamente por Cristo às práticas necessárias, em relação à janela, único espaço de contato com o exterior”.
26. Nota do autor, R. STACHINK-A.TRILLER – H WESTPFHAL, Die Acten des Kanonisationspozess.
Tradução livre.
Obra: Donne sull’orla del medioevo: donne francescane sul cammino dell emancipazione femminile. e-book Kindle, e, italiano, 2019. De Ignazio Loconte (Italia/Brindisi/Fasano)
O período medieval é longuíssimo e toda tentativa de resumi-lo a conceitos acaba falhando em estereótipos. Há muitas curiosidades em torno da forte religiosidade e no que tange à fé cristã, a ideia de separação do mundo (santidade), com práticas de auto flagelo e uma certo fetiche pelo sofrimento, na busca pelo perdão dos pecados, tinha uma presença constante no imaginário popular, muito além dos monastérios.
Nesta obra de Ignazio Loconte, o que achei mais curioso foi o caso da reclusão voluntária, em estilo monástico, de mulheres casadas em sociedades onde os casamentos eram tão somente arranjados entre famílias (não que seja muito diferente hoje em dia, não necessariamente entre famílias mas entre casais que o tratam como negócio). A reclusão da mulher casada transformava o casamento convencional em “místico”
A ideia da reclusão pela espiritualidade superava, no sexo feminino, a visão comum que se tem da vida restrita ao âmbito religioso das virgens consagradas que remetem a uma tradição desde à antiguidade e que, no contexto medieval, se associava também a mulheres casadas que decidiam por uma vida mais intensa a Cristo.
30/05/2022 21h32
Imagem: RIOTUR
“Ser miserável dentre os miseráveis
– Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiossincrasias!
Muito mais cedo do que o imagináveis
Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomias!
Psiquê biforme, O Céu e o Inferno absorvo…
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,
Ceva-se em minha carne, como um corvo,
A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos!”
Obra: Vítima do dualismo. Eu e outras poesias. Martin Claret, 2002, São Paulo. De Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (Brasil/Paraíba, 1884-1914).
Contradição – por Heitor Odranoel Bonaventura
O que um tempo chamava de “contradição” foram os meus contrastes famulentos de uma “vontade de potência”, em antagonismos que me faziam gemer com minha alma dada às bravias. Oh antinomias que frutifiquei em meus dualismos para não ser conduzido por outros ou por minhas próprias fraquezas travestidas de convicções.
Desmontar minhas certezas é como caminhar em um precipício no galope de um corcel indomável, por uma liberdade que não pode ser medida por um tempo comum, forjado em meias verdades que massageiam meu ego.
Prefiro ter que suportar minha psiquê biforme a fingir um cínico equilíbrio. Faz-me feliz, em muitas ocasiões, saber que não tenho nada que seja interessante além de minhas dúvidas. Não quero crentes em minha passagem, pois nessa trilha batem o céu e o inferno que absorvo com novas rebeliões de pensamentos aqui e ali, em esquinas esquecidas onde quase ninguém presta atenção.
Em meus conflitos há um lugar especial para opostas idiossincrasias no eterno ir e vir, por limites que não condenam meu intangível destino que versa como minha simultaneidade ultramonstruosa.
29/05/2022 12h15
Imagem: Vogue
“A não-violência constitui arma poderosa e justa. Trata-se de uma arma histórica, inigualável, que corta sem ferir e enobrece a quantos a empunham. É espada que cicatriza. Como resposta prática, moral, ao grito do negro por justiça, a ação direta, não-violenta, provou que poderia obter vitória sem perder guerras, tornando-se, assim, a tática triunfante da Revolução Negra de 1963.”
Obra: Luther King: O Redentor Negro – Preces e Mensagens. A Revolução Negra – Por que 1963? Coleção Mensagens Espirituais. Martin Claret, 2001, São Paulo. De Martin Luther King Jr. (EUA/Geórgia, 1929-1968).
À mon avis, a mais importante liderança religiosa do século XX e a maior referência que tenho sobre a confissão batista, na qual consiste a maior parte de minha base cristã. Pastor de grande envergadura intelectual (coisa raríssima), com muitas ideias conservadoras (também raríssimo), enquanto envolvido na luta pelos direitos civis.
Influenciado inicialmente por Bayard Rustin (1912-1987) sobre a não-violência, o estilo de vida adotado pelo doutor Martin Luther King Jr., no tabuleiro das questões sociais e na articulação política, reflete a mesma visão de Mahatma Gandhi (Índia/Porbanda, 1869-1946) aplicada cerca de três décadas atrás, mas não se resume somente a isso. A não-violência está na essência do Evangelho. O Jesus de Nazaré dos Evangelhos não se enveredou pelo caminho da luta armada para realizar a sua missão terrena, como muitos sectários judeus desejavam e assim tinham expetativa onde prevalecia a figura do messias como um rei líder político que libertaria o povo judeu do jugo que, na ocasião, se dava pelo Império Romano. Nos Evangelhos, Jesus de Nazaré é o Cristo de uma mensagem que apela ao coração humano, sem fazer uso da violência, sendo assim um dos pontos que trouxeram rejeição à sua pregação entre judeus que eram politizados e queriam derrubar o regime imperialista de Roma. Neste ponto, entendo que tanto o pastor Martin Luther Kink Jr. como o líder indiano Mahatma Gandhi estavam a reproduzir parte do que se vê no Jesus Cristo do cânon evangélico.
Jesus de Nazaré não quis saber de política; não foi um político (no sentido que se dá ao âmbito de Estado) a começar da rejeição para assumir os “reinos deste mundo”, em troca de uma submissão (Lucas 4:5-8), como lhe foi ofertado pelo inimigo durante as tentações no deserto. Jesus de Nazaré, nos Evangelhos, não procura políticos da corporação imperial romana, formada por procuradores locais para negociar direitos civis. Jesus de Nazaré adotou a não-violência para disseminar uma mensagem que apontava a um reino que “não é deste mundo” (João 18:36), no entanto, o mesmo Jesus de Nazaré decide operar milagre ao multiplicar pães e peixes (Marcos 6:30-44) diante da carência alimentar de um público de “quase cinco mil” (verso 44), assim como a transformar água em vinho (João 2:1-12), bem como a recomendar ao “jovem rico” a partilha voluntária de bens em favor dos pobres (Mateus 19:16-30), a denotar uma atividade missionária que, embora fosse para propagar um reino além deste mundo, tinha ações sociais (a ocupar-se do plano terreno) e é neste ponto que percebo referências para o “evangelho social”, entre protestantes, e para a “doutrina social” no âmbito da Igreja Católica Romana, assim como para doutrinas de assistência social entre outros segmentos do cristianismo. No caso do jovem rico, Jesus de Nazaré não sugere a violação ou tomada de seus bens, mas na partilha voluntária e esse ponto é muito importante porque diferencia a mensagem evangélica de Jesus da mensagem marxista, que defende a tomada por meios violentos. O uso da violência implica em violação, assim como da negação do voluntariado e por isso que a fé cristã e o marxismo são incompatíveis. Também por isso, é injusto afirmar que o pastor Martin Luther King Jr. foi “comunista” ou “marxista” por defender direitos civis diante de um contexto de racismo em um ambiente que permitia relativa liberdade para se expressar. A adoção da estratégia não-violência é, por si só, um ponto crucial que o diferencia da concepção marxista da “luta de classes” e da interpretação que versa sobre o uso da força física, armada, para fins revolucionários, embora já havia a doutrina da ocupação de Gramsci e da Escola de Frankfurt que, essencialmente, trabalhavam o ideário de Marx por disseminação mediante a cultura, para que se tornasse imperceptível para alienar a sociedade, no entanto, estão conservados nessas releituras os elementos da coerção sob a camuflagem do legalismo em torno dos direitos civis e de legislações que “legitimam” a obrigação de fazer e a a violação da propriedade privada para fins “sociais”.
Em essência, o Evangelho de Cristo está para o que é voluntário no coração humano; não há coerção, violação, mesmo que para fazer o bem, enquanto a mensagem politizada de “justiça social”, em torno do ideário marxista, tem uma visão de luta baseada no uso da força e da coerção,; é uma ideia de mudança com uso da violência para atingir determinados objetivos que supostamente são de natureza “social”.
O doutor Luther King Jr então fez uso da sabedoria da não-violência para atuar no campo da articulação política, onde Jesus de Nazaré não atuou nos relatos evangélicos, enquanto deixou referências para desenvolvimento de uma assistência social baseada na caridade, algo que entrou para a tradição da fé desde a era apostólica. O pastor batista Martin Luther King jr. usou a não-violência e foi além quando articulou com políticos, inclusive na Casa Branca e, talvez, por desconhecimento das enormes diferenças fundamentais das bases sociais do Evangelho e do comunismo (a partir de Marx), e por usar o termo “revolução” (apropriado por marxistas), em algumas ocasiões, acabou taxado de “comunista” quando, na verdade estava a versar a partir do bíblico “evangelho social” a dar um toque de articulação política.
28/05/2022 12h30
Imagem: Sitio San Francesco
“Com efeito, diz Agostinho no livro das Retratações [3], que o bom uso do livre arbítrio é virtude. Ora, o uso do livre arbítrio é um ato. Logo, a virtude é um ato. 2. Além do mais, o prêmio não se deve a alguém senão por razão do ato. No entanto, deve-se um prêmio a todo possuidor da virtude, porque qualquer um que morre na caridade alcançará a beatitude. Logo, a virtude é um mérito. No entanto, o mérito é um ato. Logo, a virtude é um ato.”
[3] Nota do editor: Agostinho, Retractationes, 2, 9, 6: PL 32,598; BAC XI. 40, 677 n.6.
Obra: As Virtudes Morais. Quaestiones Disputatae De Virtutibus. Questão 1. Artigo 1. Argumentos. Editora Ecclesiae, 2012, Campinas. Tradução baseada no texto Taurino, editado em 1953, Instituto Aquinate, Paulo Fatanin e Bernardo Veiga, e-book Kindle. De San Tommaso d’Aquino (Regno di Sicilia/Roccasecca, 1225-1274).
O que mais me fascina no pensamento de São Tomás de Aquino, em parte desenvolvido a partir de Santo Agostinho de Hipona,(Norte da África/Tagaste, 354-430) e como releitura cristã da filosofia grega, com destaque maior a Aristóteles (Grécia/Estagira, 384 a.C – 322 a.C ) é a concepção das virtudes como ações, atestadas mediante atos, a implicarem assim uma íntima relação do pensamento com o agir por livre arbítrio.
“O filósofo define o hábito como uma disposição segundo a qual alguém se dispõe bem ou mal, e no livro II da Ética, diz que é segundo os hábitos que nos comportamos em relação com as paixões, bem ou mal. Quando, pois, é um modo em harmonia com a natureza da coisa, então tem a razão de bem; e quando em desarmonia, tem a razão de mal.” [53]
A ação humana em contrapartida que aponta a um fim. O ato a evidenciar um propósito e atestar a virtude; do pensamento a ação, ter domínio sobre si, quanto às paixões mediante atos, o que então fará a diferença entre alcançar ou não a bem-aventurança. Virtudes são hábitos de bondade, munidos por afetividade a direcionar a ação humana para uma finalidade; virtude é prática, coisa concreta que atesta ou materializa o que foi pensado pelo feito em meio a vontades, desejos, ideais, prazeres, sentimentos, agradáveis ou não, em juízos por razão prática, bem disposta por uma combinação das virtudes intelectual e moral que operam pela consciência a dar sentido ao comportamento.
Outro ponto que me fascina em São Tomás de Aquino consiste na sofisticada relação entre a lei natural, que diz respeito aos princípios universais, com o hábito na aplicação desses princípios (sindérese) e a função cognitiva da consciência a definir moralmente entre o que cabe ou não fazer.
Um traço do pensamento de São Tomás de Aquino, acerca da virtude, desmonta um vício comum de se atestar o bem ou a boa intenção apenas por abstração ou discurso, sem considerar a sua relação com a ação como contrapartida na razão prática. Quando alguém, tomando por exemplo, diz que me deseja o bem ou que me respeita, isso não deve ser confundido com virtude, pois supostas “boas intenções” verbalizadas não bastam para atestar o que seja íntegro, verdadeiro, em suma, belo, moral, benigno; é necessária a contrapartida dos atos.
Então, em uma releitura pessoal, virtude está além de algo supostamente desejado para o bem; quando alguém diz que pretende fazer algo porque almeja determinada coisa bondosa, há então várias questões a se pensar, a começar pelo questionamento se o que externou em palavras refletiu a intenção declarada e se o objetivo, quando revelado, foi autêntico ao observar a ação ou apenas usado para omitir outra intenção, quando se analisam atitudes tomadas e os resultados obtidos. E se vivemos em um mundo onde muitas pessoas se deixam enganar por declamações, discursos, idealizações, confundindo o falado com o intencionado, tornando-se temerário ao associar o dito como se fosse fato, não avaliando o feito e os resultados comparados com o intencionado, então, o pensamento de São Tomás de Aquino é como se fosse uma praxeologia teológica e filosófica para analisar a ação humana mediante o que oito séculos depois aplicou em economia o distinto senhor austríaco que rememorei ontem.
53. Summa Theologiae, Ia. seção, IIa. parte, q. 49 a.2)
27/05/2022 22h06
Imagem: Mises Brasil
“Se a oferta de caviar fosse tão abundante quanto a de batatas, o preço do caviar – isto é, a relação de troca entre caviar e dinheiro, ou entre caviar e outras mercadorias – se alteraria consideravelmente. Nesse caso, seria possível adquiri-lo a um preço muito menor que o exigido hoje. Da mesma maneira, se a quantidade de dinheiro aumenta, o poder de compra da unidade monetária diminui, e a quantidade de bens que pode ser adquirida com uma unidade desse dinheiro também se reduz.
Quando, no século XVI, as reservas de ouro e prata da América foram descobertas e exploradas, enormes quantidades desses metais preciosos foram transportadas para a Europa. A consequência desse aumento da quantidade de moeda foi uma tendência geral à elevação dos preços. Do mesmo modo, quando, em nossos dias, um governo aumenta a quantidade de papel-moeda, a consequência é a queda progressiva do poder de compra da unidade monetária e a correspondente elevação dos preços. A isso se chama de inflação. Infelizmente, nos Estados Unidos, bem como em outros países, alguns preferem ver a causa da inflação não no aumento da quantidade de dinheiro, mas na elevação dos preços.”
Obra: As Seis Lições. Capítulo IV. A Inflação. 7a. edição, Instituto Ludwig von Mises, 2009, São Paulo. Tradução de Maria Luiza Borges. De Ludwig Heinrich Edler von Mises (Áustria-Hungria/Leópolis, 1881-1973).
A história desse livro se dá a partir de uma série de conferências de Mises em 1958, na Argentina. Margit von Mises, esposa do fundador da Escola Austríaca, encontrou o manuscrito datilografado e os transformou em um livro indispensável.
São muitos exemplos na histórica econômica acerca do que Mises explica no capítulo IV, no entanto pensei no Brasil a partir de 1890, quando os efeitos da política inflacionista do então ministro da Fazenda Ruy Barbosa começaram a ser sentidos. O intelectual do direito implementou uma reforma para impulsionar a indústria e o comércio, dando aos bancos a permissão para emissão de papel-moeda, sem lastro (outro/prata), o que veio a gerar emissões acima da capacidade de circulação de bens e serviços, o que tecnicamente Ludwig von Mises define como “inflação”. A política de Ruy Barbosa foi uma bolha de crédito que ao estourar (cedo ou tarde ocorre) provocou a falência de investidores na Bolsa do Rio de Janeiro e uma crise no comércio com a forte desvalorização da moeda. Era a “crise do encilhamento”, com empresas de fachada que foram criadas para obter crédito, muito facilitado com a desenfreada emissão de papel moeda.
Na leitura feita por Mises, o aumento de preços, normalmente demonstrado em índices, não é causa e sim consequência da inflação, que é o aumento da quantidade de dinheiro ou de papel-moeda em circulação. Por essa concepção, o causador da inflação é o emissor de papel-moeda a provocar aumento na base monetária; no caso brasileiro, é o Banco Central (BCB) que gerencia o “meio circulante” desde a publicação da Lei 4.595, de 31/12/1964 [52]. No entanto, como o próprio Mises menciona, há outra visão, e que se tornou predominante no pensamento econômico, onde a causa da inflação é vista na elevação dos preços, um conceito simplista que ajuda a esconder, dos não versados neste complexo debate, a causa que se dá pela emissão de dinheiro e por outros “estímulos” envolvendo instrumentos de aumento de liquidez, o que no Brasil é determinado pela meta da Selic definida pelo Comitê de Política Monetária (Copom) do BCB. Então, se prevalece o entendimento de que a causa da inflação está no fenômeno do aumento de preços, enquanto o problema da emissão deliberada de papel-moeda é ignorado ou menosprezado, a quem será conveniente tal entendimento sedimentado na sociedade? Sobretudo para aqueles que emitem dinheiro, desviar-se do problema apontado por Mises se torna estratégico no debate político. Por essa doutrinação econômica, inclusive apoiada por intelectuais em simbiose com o corporativismo estatal, a inflação será um problema a ser tratado pelo Banco Central e jamais causado por este órgão estatal. Não será uma surpresa também que a inflação passe a ser associada como problema originado dos que praticam os preços, os empresários, agentes na oferta. Conceitos como escassez de bens também acabam comprometidos por um entendimento superficial, enviesado, visto que se a inflação reside no aumento de preços, será o comportamento (ganância) de empresários o fator em destaque para explicar a carestia e não a relação de nível de oferta de bens versus o volume de dinheiro em circulação, quando aumentado pelo Estado. Também desse entendimento diferente do que Mises explica, de forma tão simples e didática, não haverá muita dificuldade para convencer o povo de que o governo deve fazer alguma coisa ou seja, deve controlar os preços, visto que é preciso que haja um líder político com personalidade forte o suficiente para enquadrar “culpados” que os praticam (normalmente sob apelos indignados com a “ganância” empresarial). Essa mentalidade paternalista, em torno do governante populista, pode ser observada quando a insatisfação de eleitores é associada à inflação no conceito de aumento de preços, onde o não fazer nada, por parte do governante, vira sinônimo de incompetência ou falta de coragem para enfrentar ou “dar um jeito” nos “culpados” pelos preços em elevação.
Em suma, o conceito de inflação como elevação dos índices de preços é utilíssimo aos que a causam, considerando a concepção de Mises ou seja, aos que emitem dinheiro, assim como também o será aos que adotam diversas formas de aumento artificial, deliberado, forçado, de liquidez, seja por expansão de crédito, não raramente por juros subsidiados por pagadores de impostos, seja por liberação em depósitos compulsórios ou por programas sociais que distribuem dinheiro, via de regra financiados por mais endividamento do Estado.
52. Ver LEI Nº 4.595, DE 31 DE DEZEMBRO DE 1964. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos
26/05/2022 22h01
Imagem: Clarín
“Que é o boss? É um empresário político capitalista que busca votos eleitorais em benefício próprio, correndo os riscos e perigos próprios dessa atividade. […] o boss, por sua prudência e discrição em matéria de dinheiro é, com sobra de razão, um homem dos meios capitalistas que financiam eleições. Em geral, o boss é um homem que sabe o que quer. […] Trabalha na obscuridade, diversamente do líder inglês. Não é ouvido em público. Conserva silêncio, conquanto sugere aos oradores o que convêm que digam. […] O boss não professa princípios e não se apega a uma doutrina política definida. Uma única coisa é importante a seus olhos: como conseguir o maior número de votos possível.”
Obra: Ciência e Política. Duas Vocações. Capítulo II. A política como vocação. Martin Claret, 2003, São Paulo. Tradução de Jean Melville. De Maximilian Karl Emil Weber (Alemanha/Erfurt, 1864-1920).
Esta edição em português é uma junção de dois textos: Wissenschaft als Beruf e Politik als Beruf, este último compondo o segundo capítulo que, originalmente, se trata de uma conferência de Weber a estudantes em Munique, em janeiro de 1919, no mesmo ano em que nascia o fascismo em Milão.
O boss é um empresário envolvido na política em íntima relação com o Estado. A política é a “influência que se exerce”, o que dá “direção do agrupamento”; e este agrupamento é o Estado (pág. 59), um instrumento de “violência legítima”, na visão de um dos pais da sociologia moderna que descreve as bases do que hoje entendo por “capitalismo de laços”, onde empresários estão em simbiose com o aparato estatal para tomada de vantagens em detrimento da ideia de uma competição em livre ambiente de mercado que, no pragmatismo do mundo político, não passa de uma piada para o deleite dos “amigos do rei”. Penso que da figura do boss, associada ao instrumento Estado e à política como “direção”, então se pode começar a entender certos mecanismos onde empresários preferem conchavos políticos em vez encararem um duro ambiente de livre competição econômica. Desta relação nasceu o fascismo, uma forma extrema de exploração do capitalismo de laços ou “compadrio”, assim como fora o nazismo, no entanto, perduram modelos mais sutis que fazem uso do velho patrimonialismo a preferir um ambiente onde as relações de subserviência ficam imperceptíveis aos olhos incautos de quem acredita que o Estado existe para o bem estar das pessoas e a política é uma atividade de serviço público.
O empresário na política hoje está mais sofisticado: continua financiando e/ou apoiando políticos que se comprometem com uma pauta a produzir legislação e demais atos que os beneficie, dada a violência do aparato estatal em impor normas pela política, assim como se envolve mais diretamente a ocupar cargos no executivo. Das duas formas, a política é um caminho para um rápido enriquecimento ilícito, aos iniciantes, enquanto uma base de sustentação às velhas raposas onde os seres político e empresário estão amalgamados.
O texto de Weber ajuda a entender, essencialmente, porque um empresário decide apoiar políticos que, aparentemente são contrários ao modo de economia de mercado, tendo em vista que as coisas neste ambiente funcionam por puro pragmatismo; e como as aparências enganam, pois não há qualquer apego a uma doutrina política definida e, enquanto um político de esquerda dissimula socialismo, na prática, por conta de suas inclinações mais intervencionistas, se torna bem mais útil a interesses de certas elites empresariais que vivem do capitalismo de laços a inibir livre competição, protegendo seus negócios por meio de favorecimentos diversos em seus vínculos de intimidade com os que exercem o poder político.
25/05/2022 19h56
Imagem: Grupo Editorial Record
“A modernização do estado brasileiro não extinguiu o seu caráter patrimonial. Em vez disso, atualizou o que o patrimonialismo tinha de pior e o tornou mais maleficamente eficiente. Ter à disposição modernos mecanismos de controle fez aumentar a centralização, a intervenção, e o poder dos representantes do governo. A atuação da Receita Federal é um dos grandes exemplos disso. Um Estado patrimonial modernizado é bom para os políticos, para os servidores do Estado, para os empresários amigos e para os intelectuais do regime, não para a sociedade.”
Obra: Pare de acreditar no governo. Por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado. Editora Record, 2015, Rio de Janeiro, formato físico. De Bruno Garschagen (Brasil/Espírito Santo/Cachoeiro do Itapemirim, 1975).
Terminei de ler este excelente livro do cientista político Garschagen em um quarto de hotel quando estava em um evento do Sped (2015) e pensei neste trecho. Foi na hora do coffee break que um desses influencers do meio contábil, que se acham “pensadores”, cheios de certezas sobre o que é lei é tem que se cumprir, viu a capa e achou o titulo “esquisito, sem sentido”, enquanto pensava que eu estava ali para tentar me enturmar com seus “amigos do rei-fisco”, e então falei que seria ótimo se o autor fosse convidado para falar em um fórum para um público “tão domesticado” (tive que suavizar), deslumbrado com os controles sociais do aparato fiscal-estatal brasileiro. Neste ambiente, o fisco anuncia seus abusos que violam a privacidade em arquivos digitais meticulosamente criados para um público de bestializados que aplaude, por ser incapaz de perceber e reagir à gravidade do que lhe é imposto.
Ter participado de alguns eventos do Sped foi, para mim, o mais próximo de um campo de observação que pude ter sobre o significado da modernização do Estado brasileiro, um engodo que leva a sociedade produtiva a se tornar refém de um nefasto sistema de controles sociais para uma mentalidade áulica, educada para não pensar, à mercê de formadores de opinião que exploram esse negócio a serviço de corporações de TI e entidades que funcionam como linhas auxiliares do fisco em um oneroso modelo (caro e prejudicial à sociedade produtiva) de oferecer “facilidades” para as dificuldades inventadas.
O patrimonialismo tem um vasto campo de ação e o que observei no mundo de contadores convertidos em despachantes delatores, em favor do fisco, é apenas um traço de uma mentalidade de simbiose de empresários “amigos do rei” com o aparato de coerção e compulsão, o Estado assim definido por Ludwig von Mises.
24/05/2022 23h08
Imagem: ABL
“O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco.”
Obra: Créditos extraordinários – Scoevola – O Sr. Penna em missão – Cinna – O ano novo. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 29/12/1861. Obra Completa, Machado de Assis, Edições W. M. Jackson, 1938, Rio de Janeiro. De Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro/Rio de Janeiro, 1839-1908).
Dezembro de 1861, no Diário do Rio de Janeiro soa uma crônica do maior escritor brasileiro de todos os tempos, durante a monarquia de um Brasil sob sucessivas crises políticas, cujo imperador Pedro II, às custas do preparo do negócio familiar, reina como se ainda fora aquela criança que não teve infância [50]. A crítica é sobre gastos extraordinários em “crédito suplementar”, e para os saudosistas da monarquia, eis um déjà-vu:
“Houve ontem muito quem se admirasse ao ler, na folha oficial, o decreto abrindo um crédito suplementar de setecentos e tantos contos ao Ministério da Fazenda.
Isso prova que a boa fé patriarcal ainda conta neste mundo, raros e preciosos exemplos.
Admirar-se de que, façam favor? É coisa de admirar que o governo brasileiro abra créditos extraordinários?
Deu-se, é verdade, um fato. Fould, o ministro das finanças de Luiz Napoleão, acabava de condenar esse sistema de créditos suplementares, achando neles a origem da crise por que passa atualmente a França.
[…]
O governo devia sentir-se tocado, pelo acúleo da consciência, e ver que, de fato, a situação desgraçada a que chegamos procedia também das despesas inúteis a que havia ocorrido com os créditos suplementares.“
Então, o maior de todos os tempos vê dois Brasis, um real, que é “bom” e “revela os melhores instintos“, e o outro, o oficial, “caricato e burlesco“. O Brasil oficial é o de “um governo que nada tem de simpático às constituições“. Penso neste Brasil sendo o das elites na ostentação de quem vive no glamour da inutilidade e da ostentação de gastar o dinheiro tomado dos outros. É o Brasil atual, formal, de funcionários públicos e seus privilégios, de burocratas do governo, do fisco que não produz a arrecada,; é o Brasil do Big Brother Fiscal, onde a privacidade e o sigilo profissional são ridicularizados pelo Sped e pelo eSocial, enfim, um país da letra morta de legislações confundidas com leis onde mudam regimes, mas a essência de parasita é a mesma. E o Brasil belo, real, bom? Creio que pode ser conferido todos os dias, em lavouras, bancos de feiras, mercados, chãos de fábrica e em todo lugar onde há trabalho livre de quem deseja tocar a vida, às vezes estigmatizado como “informal” enquanto sustenta (e é atrapalhado por) aqueles que fazem o “Brasil oficial”.
Há 160 anos o maior de todos os tempos já cantava a pedra dos dois Brasis, que Ariano Suassuna resgatou em um de seus memoráveis textos [51]:
“Se Machado de Assis fosse vivo, veria que o povo do Brasil real ainda acende nossa esperança, porque continua bom e revelando os melhores instintos; e, se alguma coisa mudou, foi o Brasil oficial, que está ainda mais caricato e burlesco do que no tempo dele.”
50. Logo após o primeiro ano de vida perdera a mãe, a Imperatriz Maria Leopoldina, em meio ao desgosto com um marido infiel, o então imperador Pedro I que, três anos depois, deixou o filho herdeiro do trono e partiu para Lisboa. Pedro II teve uma vida regrada no preparo para ser imperador, o que se revelou de forma mais explíticita na sua adolescência também anulada pelos negócios políticos da família.
51. Folha de São Paulo, 02/05/2000.
23/05/2022 22h12
Imagem: BRAZILIAN POETRY
“Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida…
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.”
Obra: Das Pedras. Cora Coralina, Melhores Poemas. Direção de Edla van Steen, 2a. edição digital, 2020, eBook Kindle. De Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (Brasil/Goiás, 1889-1985), pseudônimo Cora Coralina.
Uma recordação:
No meu cansaço me entristeço,
Mas a tristeza me fortalece,
me faz pensar na caminhada.
Na fadiga a minha alma retoma.
E no limite de minhas forças,
entendo o significado da dor.
Na tristeza, faço versos com meus erros,
e o tempo passa, o espírito aprende,
a vontade amadurece.
E aquela sensação, penso,
que eu chamava tristeza,
se revela como vontade de potência.
Volontà di potere nella mia stanchezza [49]
49. Volontà di potere nella mia stanchezza, Leonardo Amorim, setembro/2018.
22/05/2022 10h10
Imagem: Il Fatto Quotidiano
“Apaixonante este debate com golpes “fascistas” e “de direita “. Mas, sobretudo, é atual. A qualquer momento alguém pode pular e gritar “babilônico não és nada mais!” e outro o responderia. “és o pior que os cartagineses!”, ninguém prestaria atenção. A política italiana confirma a continuação das guerras púnicas por outros meios, de fato os políticos escrevem em alfabeto cuneiforme, no máximo usam ideogramas que só eles entendem.”
Obra: Lo Stato Montificio. Storia del 2012, l’anno dei tecnici. Tutta da ridere (per non piangere). Cartaginese sarà lei. Il Fatto Quotidiano, 28 agosto 2012. Edição digital por Simplicissimus Book Farm srl, no kindle, 2013. De Marco Travaglio (Italia/Torino, 1964)
Marco Travaglio é um jornalista investigativo que consegue incomodar políticos e militantes de direita, esquerda e centro. Especializou-se também em identificar “contradições” de políticos [46]. Para alguns Travaglio seria chamado de “isentão” na Pindorama dos adoradores de político, outros diriam que é um progressista enrustido nas críticas, e tantos outros o chamariam de “liberal” com medo de sair do armário. Vejo Marco Travaglio como um Jornalista, que visivelmente foi influenciado pela escola do ícone, também italiano, Indro Montanelli, sobretudo quanto ao estilo sofisticado, inteligente, provocativo, irônico, de seus textos.
O Estado Montificio é uma obra com sessenta dos mais de 300 artigos escritos por Travaglio no jornal O Fato Cotidiano (o qual é diretor), em 2012, a partir do mês de abril e retrata os velhos problemas da política italiana à época, sempre com algum escândalo de rotina, com destaque para Silvio Berlusconi, um senhor mega empresário de Milão que tinha entrado na política, virou primeiro-ministro e ficou famoso por denunciais fiscais, além de suas experiências e fantasias sexuais reveladas em depoimentos, e que naquele mesmo ano foi condenado a quatro anos de prisão por fraude fiscal [47].
É rir para não chorar, como sugere uma parte do subtítulo… A política na Itália concorre seriamente com a brasileira em matéria de maracutaia; é o Brasil da Europa entre políticos. Por lá estourou a Mani Pulitte (1992-1994), “Mãos Limpas” ou “Caso Tangentopoli” (que seria em livre tradução, caso da “cidade do suborno”, em referência à Milão), envolvendo parlamentares, iniciando pelo secretário do partido Comunista, Bettino Craxi (Italia/Milano, 1934-2000), envolvidos com empresários, mafiosos, todos no velho jogo de propinas em troca de favorecimentos políticos para os negócios. Craxi contou práticas antigas da república italiana, comuns, no mundo da política, muito familiares às que ocorrem no Brasil, e que impressionaram o (aparentemente ingênuo) então promotor Antonio Di Pietro. Craxi revelou também que a União Soviética financiava o Partido Comunista Italiano, mas que surpresa? Então, a investigação virou um espetáculo transmitido pela TV, inclusive à época criticado duramente por Indro Montanelli [48], um historiador e jornalista conservador italiano (Italia/Fuccechio, 1909-2001), apesar do caso atingir duramente a esquerda. No final, a Operação Mãos Limpas em nada resultou; o sistema político italiano tratou de legislar em favor dos acusados e a vida seguiu. O enredo da Operação Mãos Limpas foi seguido pela Operação Lava Jato no Brasil. Após o circo judicial, Antonio di Pietro entrou na política, com viés de esquerda, e fracassou. E parece que na Lava Jato o roteirista não quis inventar…
“os políticos escrevem em alfabeto cuneiforme, no máximo usam ideogramas que só eles entendem“
A arte de confundir, inerente à atividade política ou a lembrar:
“A obra intelectual visa, muitas vezes em vão, esclarecer um pouco as coisas, ao passo que a do político normalmente consiste, ao contrário, em confundi-las mais do que já estavam. Ser de esquerda, como ser de direita, é uma das infinitas maneiras que o homem pode eleger para ser um imbecil: ambas são, de fato, formas de hemiplegia moral.”
Obra: A Rebelião das Massas, em prólogo para franceses, página 61, ed. CEDET, formato físico. De José Ortega y Gasset (Espanha/Madrid, 1883-1955).
Penso no conto de quem começou pobre na política, virou deputado, prefeito ou governador e, de repente, enricou? A politica é, também (a parte mais atraente desse negócio), um atalho para o enriquecimento ilícito; dada a natureza de uma atividade baseada na conquista do poder para coagir e viver do que é produzido pelos outros, a política então se mostra como um centro de atração dos piores da sociedade. As expectativas criadas em torno da política para o “bem comum” não passam de ilusões, embora existam pessoas bem intencionadas no mundo da política, é preciso ponderar essa sua natureza sobre o ser humano que se fascina pelo poder de mandar nos outros, monopolizar relações por negociatas e impor custos à sociedade.
46. Não acredito na existência de contradição na política, à mon avis, existe político dizendo uma coisa para fazer com que as pessoas pensem aquilo que se deseja que elas pensem que, via de regra, não é o que verdadeiramente pensa o político.
47. BBC: Condenação é marco em histórico de escândalos de Berlusconi. Atualizado em 26 de outubro, 2012 – 15:33 (Brasília) 17:33 GMT
48. Ver La Storia d’Italia di Indro Montanelli – 14 Tangentopoli
21/05/2022 08h14
Imagem: Gazeta do Povo
“Atenção especial deve ser dada à Imprensa; sua influência sobre o povo é, de longe, a mais forte e penetrante de todas; seu efeito não é transitório mas contínuo. Seu imenso significado reside na repetição uniforme e persistente de seu ensino. Aqui, e em qualquer lugar, o Estado nunca deve esquecer que todos os meios devem convergir para o mesmo fim. Não deve ser desencaminhado pelo fogo-fátuo da chamada “liberdade de imprensa”, ou ser persuadido a negligenciar seu dever e reter a nação o que é bom e o que faz o bem. Com determinação implacável o Estado deve manter o controle desse instrumento de educação popular e colocá-lo à serviço do Estado e da Nação.”
Tradução livre.
Obra: Mein Kampf. Domínio público, formato digital. Da edição em inglês, por James Murphy (Abbots Langley February, 1939) . De Adolf Hitler (Áustria/Braunau am Inn, 1889-1945).
A regulação da imprensa foi um pilar do nazismo, assim como é de todo regime autoritário, senão vejamos um caso no lado canhoto da história:
“Quando perguntei a um influente jornalista cubano se lá existe liberdade de imprensa, ele deu uma gargalhada e respondeu: ´Claro que não´. ´E completou, com naturalidade: ´Liberdade de imprensa é apenas um eufemismo burguês. Só um idiota não é capaz de ver que a imprensa está sempre a serviço de quem detêm o poder. E aqui em Cuba quem detêm o poder é o proletariado. Estamos todos os jornalismos cubanos, portanto, a serviço do proletariado´.”
Obra: A Ilha (Um repórter brasileiro no país de Fidel Castro). Publicado pela Editora Alfa-Omega, 1987, São Paulo, em formato físico. De Fernando Gomes de Morais (Brasil/Minas Gerais, 1946).
Hitler adaptou ideias socialistas ao nacionalismo que forjou para uma Alemanha falida enquanto Estado. Neste aspecto, ele se aproxima do fascismo de Mussolini em um contexto de aproveitamento do caos e do vácuo de poder. Sobre Mussolini, Hitler tinha grande admiração como mentor fascista, embora não gostasse da Itália [43].
Minha Luta deve ser lida? Sim! Como fonte de conhecimento sobre raízes ideológicas do Nacional Socialismo e, talvez, esse saber venha a incomodar aqueles que gostam de chamar os outros de “neonazistas” enquanto assinariam embaixo certas ideias defendidas por Hitler nesta obra que, é filosoficamente paupérrima, cheia de delírios de um autor facínora, o maior criminoso de guerra do século XX, cujo viés ideológico é uma máquina de espantalhos.
Ainda sobre a regulação da imprensa, curioso ver candidato na terra da Pindorama a prometer coisa do gênero [44].
Sem dúvida, a marca maior de Minha Luta é o antissemitismo em uma narrativa que se aproveita para explorar a inveja ou o despeito (coisa comum no ideário marxista) em uma sociedade de desempregados, endividados e submetidos a hiperinflação (mazelas causadas pelo Estado), onde a visão empreendedora de certos grupos, no caso de judeus atuantes através dos tempos além das fronteiras nacionais, preparou o campo para uma narrativa de culpa que soa até coisa de comunista indignado com as práticas do mundo financeiro:
“Lenta mas firmemente, começou a participar da vida econômica ao seu redor; não como um produtor, porém, mas apenas como intermediário. Sua astúcia comercial, adquirida através de milhares de anos de negociação como intermediário, tornou-o superior em este campo aos arianos, que ainda eram bastante ingênuos e até desajeitados, cuja honestidade era ilimitada; de modo que depois de um curto período de tempo o comércio parecia destinado a se tornar um monopólio judaico. O judeu começou emprestando dinheiro a juros, que é um negócio permanente dele. Foi ele quem primeiro introduziu o pagamento de juros sobre o dinheiro emprestado. O perigo que esta inovação envolvia não foi logo reconhecido; de fato, a inovação foi bem-vinda, porque ofereceu vantagens.”
O contexto de culpar judeus por uma tragédia nacional envolveu, sobretudo, o cenário político no desfecho da Primeira Guerra de um Estado alemão super endividado, com os custos do conflito no mal resolvido Tratado de Versalhes. Hitler, como todo populista, denuncia quem bancou o Estado como se o financiamento em si da máquina de guerra não tivesse uma conta para a sociedade pagar:
“No mundo dos negócios a situação era ainda pior. Aqui os judeus tinham realmente se tornado ‘indispensáveis’. Como sanguessugas, eles estavam lentamente sugando o sangue dos poros do órgão nacional. Por meio das recém lançadas Companhias de Guerra, um instrumento havia sido descoberto pelo qual todo o comércio nacional foi estrangulado para que nenhum negócio pudesse ser realizado livremente. Ênfase especial foi dada à necessidade de centralização sem entraves. Assim como já em 1916-17, praticamente toda a produção estava sob o controle das finanças judaicas.”
E em uma Alemanha de Estado quebrado, o fatídico ano de 1931 foi decisivo pelas crises financeira dos bancos e fiscal do governo [45]. As tensões sociais que ajudaram Hitler e o partido nazista a ocupar a maioria das cadeiras do Reichstag nas eleições de 1932, passando por janeiro de 1933 na eleição de Hitler como chanceler, até o incêndio do Parlamento onde a máquina de contrainformação hitlerista pela cortina de fumaça, se fortaleceu na culpa atribuída aos comunistas. O nacional socialismo saiu da crise política como grande vencedor.
Hitler então centrou sua narrativa definindo os judeus como um “um problema de raça” e não propriamente religioso. O judaísmo era, na visão dele, uma coisa política e econômica que se infiltrou na vida social germânica para formar “um estado dentro de um estado”, controlando a economia, a imprensa e as artes. Por esta narrativa, Hitler desenvolveu um sistema segregacionista com generalizações dissociadas da realidade, com velha tática de super dimensionar supostos inimigos comuns da nação para “justificar” medidas extremas, em subterfúgio para unir uma população moral e economicamente destruída pelos desdobramentos do desfecho da Primeira Guerra. O populista e socialista patriota viabilizou o regime de terror que viria a estabelecer nos anos seguintes com um discurso de redenção da raça ariana para substituir o que entendia ser a supremacia judaica, por um Estado controlador da sociedade, unificador e preservador de valores que ele considerava genuinamente germânicos. Judeus representavam um meio de inculcar nas massas a ideia pretensiosamente objetiva de “culpados” por mazelas sociais alemãs. Por essa estratégia, Hitler montou um modelo de poder extremamente coletivista (socialista e nacionalista) para destruir aqueles que, segundo sua narrativa, estavam no controle do Estado e degeneravam a sociedade que deveria prezar pelo que entendia de pureza racial. O patrimônio dos bem sucedidos judeus foi então o maior elemento de atração para disseminar o ódio. Como seria financiada a máquina de guerra alemã em um Estado quebrado? De olho na riqueza do judeus, Hitler partiu para preparar uma legislação para saquear o patrimônio e assim formar a base para compor fundos visando executar seu projeto bélico de expansão rumo ao protagonismo alemão na Europa. Foi então que espalhou fake news acusando judeus de serem os manipuladores da sociedade, usou a imprensa controlada para essa finalidade. A orionia trágica é que Hitler alegou o poder financeiro dos judeus manipulando a mídia, enquanto fez exatamente isso quando chegou ao poder, saqueando o patrimônio de judeus e regulando a imprensa.
As ideias de Hitler para o estado germânico consistiam em uma “organização da comunidade, homogênea por natureza e sentimento, unida para a promoção e conservação da sua raça e para a realização do destino que lhe traçou a Providência”. O Estado hitlerista é para sedimentação da educação civil em torno da raça e radical defesa de interesses vendidos como se fossem “comuns à nação”. A economia é um instrumento dentro de uma estrutura de controle político voltado ao planejamento central, modo que viria a ser um marco no regime nazista. Não há localismo suportado na doutrina nacional socialista para o seu mentor; “A doutrina nacional socialista não é destinada a servir a interesses políticos dos diferentes Estados federados, mas a guiar a nação alemã.” .
Até imagino que muitos políticos não querem que Minha Luta seja lido pelas novas gerações de eleitores bem formados pela desinformação, porque há enorme risco de suas velhas práticas se tornarem ainda mais evidentes em figuras cataclísmicas como Hitler. Ser de “direita” ou de “esquerda” é uma classificação útil apenas para quem vive de construir narrativas. Olhando os fatos, as práticas, não há lado, e sim um “vestido de ideias” em formas de se chegar ao poder que são adotadas por puro pragmatismo, onde práticas socialistas são mais úteis não importa se políticos são rotulados ou auto definidos como “conservadores” ou “progressistas”.
Minha Luta deve ser debatido, como a melhor forma de anti propaganda (neo) nazista (e socialista) para mostrar até que ponto chega a maldade entre os homens através do empreendimento da política e do aparato estatal, por uma obra que serviu de base doutrinária aos que dizimaram milhões de judeus em uma das maiores máculas da história humana.
Diante do que está amplamente documentado, negar o Holocausto assim como o Holodomor (a versão stalinista do genocídio), é negação da humanidade.
43. Ver La Storia d’Italia di Indro Montanelli – 01 Piazzale Loreto e la fine del fascismo
44. Ver CNN Brasil 27/08/2021 às 08:53 | Atualizado 10/11/2021 às 16:24: Lula diz que vai ‘regular’ meios de comunicação caso volte ao poder
45. Ver a obra 1931: Debt, Crisis, and the Rise of Hitler (English Edition), de Tobias Straumann (Suíça/Wettingen, 1966)
20/05/2022 22h24
Imagem: BBC
“Em resumo, diremos que o “homem religioso” é um anormal e que a “religião” é a causa certa de algumas “doenças epidêmicas do espírito” para as quais é necessário o tratamento de alienistas”
Tradução livre.
Obra: L’uomo e la divinità. Dio non esiste. Le radici atee e materialiste del fascismo. A cura di Francesco Agnoli. Fede & Cultura, e-book Kindle, 2019, em italiano, De Benito Amilcare Andrea Mussolini (Italia/Predappio, 1883-1945).
Semana começou com o poeta português, então rememorei outro gênio literário, desta vez o dramaturgo francês – e que escrevia enquanto praticava nudismo doméstico – a passar por um encontro explosivo de dois socialistas que se odiaram enquanto deputados em crenças um tanto radicais, ambos chegados a uma ditadura; uma do proletariado, outra com empresários de joelhos ao supremo líder.
O homem e a divindade. Deus não existe é um texto de 1904 do sociopata Benito Mussolini na época em que foi uma importante liderança do Partido Socialista Italiano (PSI). Pretensiosamente filosófico, ateu militante, foi um blefe anticlerical; no poder, Mussolini preferiu um acordo com o Vaticano por meio do Tratado de Latrão (1929). Ainda em 1920 se mostrava pragmático, como um ensaio para os tempos de presidente do Consiglio dei Ministri, ao considerar que “problemas políticos são problemas políticos” [41] e que “ninguém na Itália, se não quiser desencadear guerra religiosa, pode atacar esta soberania espiritual” [41], se referindo ao que representa a Igreja Católica Romana, algo bem diferente do que apregoara aos camicie neri no que tange a confiscar todos os bens das congregações religiosas. Neste ponto, Umberto Eco bem define a base ideológica do fascismo como “uma colagem de ideias políticas e filosóficas, um alveário de contradições” [42], o que, de certa forma, espelha o “vestido de ideias” do próprio Karl Marx, base ideológica que forjou o Mussolini socialista.
Um aspecto importante nesta obra é que se pode notar traços das raízes materialistas típicas de um socialista progressista na primeira metade do século XX que, no caso de Mussolini, após a Primeira Guerra indicar que o proletariado combateu o proletariado de outra trincheira, derrubando a tese internacionalista em torno de Marx, decidiu ir por uma “terceira via” nacionalista até chegar no fascismo, organizado em 1919 na Piazza San Sepolcro em Milão, com o apoio das lojas maçônicas daquela cidade [41].
41. Ver apêndice de Francesco Agnoli. Mussolini e Dio: Prima e Dopo L’opuscolo del 1904.
42. Ver página 32 de O fascismo eterno. Editora La Nave di Teseo, Milão, 2018, no Kindle
19/05/2022 21h45
Imagem: AGENZIA ANSA
“Querida mãe, estou em Milão nas prisões judiciais de San Vittore desde 7 de fevereiro. Saí de Ustica em 20 de janeiro e uma carta sua me foi enviada aqui, sem data, mas que deve ser dos primeiros dias de fevereiro. Você não precisa se preocupar com essa mudança em minhas condições, isso só agrava meu estado até certo ponto; há só aumento no incômodo e no tédio, nada mais. Nem mesmo quero dizer-lhe em detalhes em que consiste a acusação que me é feita, pois nem mesmo eu pude entendê-la bem até agora; em todo o caso, estas são as habituais questões políticas pelas quais já fui atingido com os cinco anos de confinamento em Ustica. Vai exigir paciência e paciência eu tenho toneladas, vagões, casas (você se lembra como Carlo costumava dizer)”.
Tradução livre.
Obra: Lettere dal carcere. A Giuseppina Marcias, Milano, 26 febbraio 1927, e-book Kindle, 2011, em italiano, De Antonio Sebastiano Francesco Gramsci (Italia/Ales, 1891-1937).
Cartas do cárcere, de Antonio Gramsci. Na obra Sul fascismo (texto disponibilizado no Kindle também em italiano), é possível conferir trechos do deputado comunista a contestar o então deputado fascista Benito Mussolini, em debate no parlamento italiano, no entanto, os tempos são outros e Gramsci se encontra na condição de preso político no regime fascista, entre duas condenações, uma de cinco anos, outra de vinte, sob acusações um tanto vagas acerca de conspiração contra o país (entenda-se o regime) em favor do comunismo, onde o que fora um opositor de parlamento, Mussolini, outrora pensador socialista, agora é a personificação de uma ditadura fascista implacável com comunistas.
No trecho, Gramsci escreve à mamma. Cartas de cunho afetivo, familiar, e assim fui surpreendido ao ver um Gramsci diferente daquele relacionado apenas ao conceito de “hegemonia” ou do “marxismo cultural”, desenhado pela militância de direita, um tanto estereotipado. E eis que penso nesse Gramsci sereno, paciente e reflexivo sobre o que estava a ocorrer consigo e na Itália de Mussolini, a parte do até então desconhecido que se revela no valor que ele destina à sua família, a considerar a pauta constante de tentar tranquilizar seus entes mais próximos, a mãe, Giuseppina Marcias, a esposa Julia e os filhos Delio e Giuliano, em meio à tensão inevitável com a situação financeira e a manutenção do ordenado como deputado. Nas cartas ele também demonstra certa preocupação com a alimentação e a higiene pessoal, o que coincide com o período em que sua saúde começava a se deteriorar.
Apreciou bastante o hábito da leitura, pelos autores e obras que mencionou em um tempo onde ideias econômicas mais intervencionistas (que se encaixavam bem com suas ideias socialistas) estavam na moda, fascinando a quase todos. Seu ecletismo literário talvez explique a apurada capacidade reflexiva enquanto articulador acerca de encaminhamentos do Partido Comunista Italiano em relação ao que estava a acontecer em Moscou, tendo uma visão pragmática, visto sua crítica ao líder Palmiro Togliatti (Italia/Genova, 1893-1964), além da grande questão de como a conservação do poder político ocorre através do Estado na instrumentalização das instituições culturais, pois ele tinha na Itália um laboratório vasto em plena sociedade ocupada pela doutrina fascista. Ele mesmo, como prisioneiro político, sentiu isso na pele enquanto seu alinhamento político o remetia a outra forma de autoritarismo, algo que sempre despertou meu interesse para tentar compreender melhor um comportamento humano que, aparentemente, volta-se a criticar a forma autoritária de coisas que defende essencialmente.
Tenho a impressão de que Gramsci viu, no modelo doutrinário de Mussolini, uma forma bruta, grosseira, a lapidar, diria, de ocupação pela cultura (o fascismo foi um modelo de ocupação violenta), e enquanto fato, pensou em uma hegemonia pela ocupação indolor, mais sofisticada, sutil, imperceptível aos que se ocupam com as banalidades enquanto a política traça seus destinos.
18/05/2022 21h12
Imagem: Aliança Francesa
“Apenas fiz meu testamento. Qual é o ponto? Estou condenado às custas, e tudo o que tenho dificilmente será suficiente. A guilhotina é muito cara. Deixo uma mãe, deixo uma esposa, deixo um filho.”
Tradução livre
Obra: Le dernier jour d’un condamné (Annoté). e-book Kindle, 2011, em francês. De Victor Hugo (France/Besançon, 1802-1885)
Em O último dia de um condenado, nesta edição em francês que vem com comentários, o dramaturgo, poeta e romancista Victor Hugo, que tinha o hábito de escrever despido em uma sala privativa, como forma de manter a concentração, trabalha o tema da pena de morte no contexto da França pós-Revolucionária, onde as execuções eram realizadas em ambiente público, normalmente em praças e por guilhotina ou enforcamento, com os custos da execução a cargo do condenado, em cenas que Victor Hugo presenciou.
Qual seria o fundamento do direito que o Estado tem de tirar a vida de uma pessoa? Eis a pergunta que tirei após ler esta obra, importantíssima por tratar de direitos humanos diante do processo penal envolvendo tirar a vida por uma condenação e Victor Hugo então provoca os defensores da pena de morte em breves capítulos da sentença até a execução, cuja narração foi construída em primeira pessoa a inserir como personagem um homem, onde o nome e o motivo da sentença não são revelados, enquanto mergulhado no drama que é inerente a este tenso estado de espera que o remete a pensar no que fizera com a própria vida e o significado de sua condição diante da sociedade e da família.
O último dia de um condenado retrata uma França da primeira metade do século XIX sob o terror da banalização de condenações contra os inimigos do novo regime, palco de uma revolução republicana contra o absolutismo do rei, mas que se tornou um banho de sangue na guilhotina, tão aterrorizante quanto aquele em que os revolucionários destruíram.
17/05/2022 23h01
Imagem: Royal Academy of Arts
“Os genoveses eram superiores em número e tinham o vento a seu favor. Os venezianos, entoando o Evangelho do dia e invocando a ajuda de Cristo e do Monsenhor S. Marco, iniciaram o ataque. Uma luta feroz se seguiu nos navios interligados a formar um vasto campo de batalha. A carnificina foi terrível.”
Tradução livre.
Obra: Venezia e la sua storia. Il duelo con Genova. La chiusura del Maggior Consiglio. Edição em italiano, eBook Kindle, 2021. De Thomas Okey (Reino Unido, 1852-1935).
Em Veneza e a sua história, a trajetória da singular cidade contada neste livro de 1904 pelo professor inglês Thomas Okey, que lecionou italiano em Cambridge.
Trecho que retrata um confronto que reflete três características no medioevo. Primeiro, o contexto de guerras entre cidades-estado, visto que os grandes arranjos de estado não eram usuais depois da queda definitiva do Império Romano do Ocidente em 476 da era cristã. Mais comum era um status localista de estado às cidades ou reinos e os conflitos se davam mais de forma pontual, sem grandes envolvimentos de massa. Em 1264, as cidades-estado de Veneza e Gênova travaram uma batalha naval em uma Itália dividida como ex-província do Império Romano, outro ponto característico desse longo período medieval até a unificação, que se deu em um processo político da segunda metade do século XIX até 1871. O terceiro aspecto no trecho está no forte elemento religioso em torno da fé cristã: “os venezianos, entoando o Evangelho do dia e invocando a ajuda de Cristo e do Monsenhor S. Marco” enquanto iam a uma batalha cuja “carnificina foi terrível”.
Evidentemente, a Idade Média não se resume a estes elementos, mas serve de reflexão sobre como os valores da religiosidade e o senso de guerra estavam intimamente ligados.
16/05/2022 23h50
Imagem: Casa Fernando Pessoa
“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.”
Obra: Autopsicografia. Poema. Em Mensagem. Edição da Martin Claret, 2005, São Paulo, formato físico. De Fernando António Nogueira Pessoa (Portugal/Lisboa, 1888-1935).
O poeta é um fingidor, o romancista, outro da encenada dor.
Ambos penetram em empatia pelas dores alheias, tão bem que parecem suas.
Ambos fingem tão profunda e completamente que chegam a fingir que é dor, a dor que deveras sentem porque mergulham, em veias que pulsam não somente no imaginário e nas abstrações das palavras, mas por sentimentos e ideias que dão sentido e alma às palavras.
Quando leem o que escreveram, na dor, na melancolia, na vastidão do coração, sentem bem, não as duas que tiveram, mas apenas as que não tiveram. Nesse encontro frenético de sentimentos e razão entretida, poeta e romancista nas calhas de roda, giram, nesse comboio literário que se chama coração.
15/05/2022 10h40
Imagem: Província Carmelitana Fluminense
“O Apocalipse é, antes de tudo, uma mensagem de conforto e de esperança para um povo em crise, ameaçado na sua fé por causa de mudanças e das perseguições. O Apocalipse quer ajudar o povo a encontrar-se, novamente com Deus, consigo mesmo e com sua missão. Quer animá-lo a não desistir da luta e armá-lo melhor para o combate.
Por isso, qualquer interpretação do Apocalipse feita para meter medo no povo ou para aumentar nele o desânimo deve ser considerada errada e falsa! Seria o mesmo que usar o sol para molhar, ou a água para enxugar!”
Obra: Esperança de um povo que luta. O Apocalipse de São João: uma chave de leitura. Edição da Paulus, 2004, São Paulo, formato físico. De Jacobus Gerardus Hubertus Mesters (Holanda/Limburgo, 1931), nome na Ordem Carmelita: Frei Carlos Mesters.
Em 2005 tive a oportunidade de assistir no seminário a uma aula deste simpático e amável teólogo e frei carmelita holandês, hoje com 90 anos de idade na ativa e que abraçou o Brasil, autor deste livrinho que é um livrão na linha da Leitura Popular da Bíblia.
Desde que conheci o trabalho do Frei Carlos, notei nele um potencial para incomodar pessoas que fazem dos estudos bíblicos apenas algo para erudição egocêntrica, a usar a linguagem como forma de exclusão enquanto a Leitura Popular da Bíblia é uma proposta de reflexão em torno de uma linguagem inclusiva, simples sem ser pobre ou vulgar na profundidade das chaves de leitura. Em 1988 especularam (fake news) sobre processos em andamento no Vaticano envolvendo o nome dele [38], provavelmente por conta de sua proximidade com a teologia da libertação [39], duramente criticada no início dos anos 1980, e depois suavizada pelo mesmo crítico, o então papa João Paulo II [40]. Fato é que Frei Carlos não deu atenção aos boatos e seguiu na sua obra missionária com uma marca inconfundível de trazer questões complexas da Bíblia para o bojo de uma sofisticada simplicidade no âmbito popular.
Entendo que a teologia da libertação tem sérios conflitos teológicos na sua ala politizada que mistura fé cristã com política, cujo ícone maior no Brasil é o Frei Leonardo Boff, em relação ao materialismo marxista que a influencia, mas isso não tira o valor do trabalho de chave de leitura desenvolvido por Frei Carlos Mesters.
E no caso da obra Esperança de um povo que luta, Frei Carlos Mesters utiliza uma interessante chave de leitura onde o último livro da cânon do Novo Testamento não é visto como uma futurologia para colocar medo nas pessoas, com muita danação para tempos distantes e sim uma mensagem codificada para o presente, em visões e símbolos para levar conforto e esperança a um povo sofredor, dentro de um contexto de perseguição religiosa imposta pelo corporativismo do Império Romano.
Além da perseguição religiosa, Frei Carlos aponta também uma crise de fé no contexto de produção do Apocalipse de João, a afetar os perseguidos com a falta de visão e questionamentos se valia a pena continuar parte de comunidades (cristãs) tão oprimidas (p.16). O Apocalipse então, nesta chave, também é uma mensagem de fortalecimento às comunidades cristãs em crise de fé para anunciar que os opressores do povo (no Império Romano) serão derrotados e condenados ; Cristo triunfará no final sendo a ressureição o sinal desta esperança.
38. Ver matéria do CEBI
39 Ver Os ”jurássicos” da Teologia da Libertação
40. CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II AOS BISPOS DA CONFERÊNCIA EPISCOPAL DOS BISPOS DO BRASIL, 09/04/1986.
14/05/2022 19h55
Imagem: Grattacielo Intesa Sanpaolo
“Dante nasceu e viveu até os 35 anos em uma cidade que, para a época, era enorme: com seus 100 mil habitantes, era uma das maiores metrópoles da Europa. Seus homens de negócio atuavam em todas as cidades do mundo cristão e seus banqueiros administravam as finanças do papa, isto é, da mais colossal organização multinacional existente no mundo. Os lucros eram imensos, os enriquecimentos rapidíssimos, a mobilidade social era mais importante do que em qualquer outro lugar e, apesar disso, a ganância, a inveja e o medo entre os florentinos, em vez de se aplacar, tornavam-se sempre mais ferozes, envenenando o convívio social; é compreensível então que os que viviam às margens de tais contatos, mergulhados nos livros e se contentando em viver comodamente de rendas, como era o caso de Dante, vissem com desprezo os protagonistas dessas relações.”
Tradução livre
Obra: Dante. Edição da Laterza, em italiano., 2020, no Kindle. De Alessandro Barbero (Italia/Torino, 1959).
Ao lado de Umberto Eco (Italia/Alexandria, 1932-2016), Alessandro Barbero é a maior referência que tenho quando o tema é medioevo. Quando o assunto é guerra, Alessandro Barbero também é uma grande fonte de aprendizado pessoal em minhas leituras. A minha admiração pelo professor aumentou quando comecei a acompanhar lives e aulas disponibilizadas por universidades e instituições diversas da Itália. Aprecio demais o estilo de seus textos e a forma como se comunica de maneira que despertou em mim um sonho de um dia cumprimentá-lo in loco, por sinal gesto comum de muitos leitores que lotam suas aulas lá na Itália. Entendo que Barbero é um dos mais importantes historiadores do nosso tempo e com uma característica nobre: ele não se comporta como um doutor arrogante cheio de estrela, como, infelizmente, é possível observar em muitos “acadêmicos”. Barbero gosta de se apresentar como professor e assim ele se notabilizou em programas ou documentários da RAI (a principal TV italiana). Famoso como escritor não apenas na Itália, mas na Europa, tem disposição para participar de lives, não apenas em grandes centros, com estudantes e professores onde discorre sobre suas obras. Acompanhei algumas dessas lives e notei que Barbero, embora tenha muito a falar, gosta de ouvir as pessoas comuns e costuma ser gentil nas respostas, sobretudo no contraditório.
Quanto à obra, Dante Alighieri (Repubblica di Firenze/Firenze, 1265-1321) foi o autor de uma das obras mais importantes de todos os tempos, La Divina Commedia, uma referência sagrada em minha formação como leitor. A obra está no rol da literatura mundial e foi construída em meio ao momento mais difícil da vida do poeta: Dante estava no exílio, a partir de 1301, após ser expulso de Firenze (Florença) em meio a disputas políticas em uma das mais importantes cidades da Europa medieval, conforme o trecho selecionado (tradução pessoal livre). Envolvimento com política costuma estragar pessoas e Dante Alighieri não escapou dessa danosa experiência. É neste contexto que se pode entender a abertura da Divina Commedia a retratar o momento pessoal dramático em que o grande poeta vivia:
“No meio da jornada de nossa vida,
eu me encontrei em uma floresta escura,
perdido estava do caminho certo.
Ah como dizer o que era é coisa difícil
esta floresta selvagem, áspera e forte
que em pensamento renova o medo!”
Tradução livre.
Derrotado e denunciado por ‘baratteria’, um crime que hoje chamamos de “corrupção” quando cometido por agente público ou político em exercício de um cargo público em negociatas para favorecer pessoas do meio privado, Dante então foi julgado, condenado e expulso de Firenze, a mesma cidade onde hoje o reverencia como gênio e filho ilustre (fico a imaginar quantos apreciadores de sua estátua em Firenze sabem que ele morreu ridicularizado e expulso daquela cidade). Como consequência da condenação, o grande poeta ficou isolado da família, desprovido dos bens em um exílio perpétuo (por falta de dinheiro para pagar a multa da condenação) e, enquanto casado (com Gemma Di Manetto Donati), nutria um amor platônico por Beatrice (Beatriz, que dá nome à marcante personagem da Divina Commedia), referência de sua infância e adolescência, e que morreu jovem, aos 25 anos.
E eis que um homem derrotado na política, com um amor não realizado, de moral arruinada, quebrado economicamente, condenado por um julgamento político em sua cidade natal, encontrou inspiração em seus últimos 20 anos de vida para produzir a Divina Commedia que, sem dúvida retrata muitas de suas experiências pessoais. Dante Alighieri foi um gênio que retrata o medioevo, “um homem de seu tempo”, como diz o professor Barbero, e entendo um ser humano de um talento literário imenso enquanto cheio de desencontros, frustrações, falhas, marcado por conflitos morais e éticos.
13/05/2022 21h30
Imagem: Senado Federal
“A Assembléia Geral decreta:
Art. 1º – É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil
Art. 2º – Revogam-se as disposições em contrário
Paço do Senado, em 13 de maio de Maio de 1888″
Obra: Lei Áurea. Biblioteca Nacional (BN). Sancionada por Princesa Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Orléans e Bragança (Império do Brasil/Rio de Janeiro/Palácio Imperial de São Cristóvão, 1846-1921)
Apenas dois artigos, sem delongas, com uma pena de ouro cravejada usada apenas para assinar a lei [37] a encerrar um longuíssimo processo politico de 80 anos em torno de esforços para abolir a escravidão no Brasil. Foram três séculos de escravatura, cerca de 4,5 milhões de escravos que sobreviveram a travessia oceânica na maior chaga da história humana, cravada pelos horrores dos porões dos navios “negreiros” que transportavam seres humanos, muitos convertidos em escravos na África por tribos que guerreavam entre si, então transformados em “peças” ou mercadorias, com tabelas de preços que atraiam europeus a um lucrativo mercado. A princesa Isabel, de toda forma, entrou para a história; “redentora” para alguns abolicionistas, enquanto para outros teria sido a filha mais velha do imperador Pedro II, assim herdeira do trono destituído pelo golpe republicano do ano seguinte, que assinou uma lei de abolição sob enorme pressão e que deixou os escravos na miséria e no abandono à mercê do sistema assalariado, que seria mais lucrativo para os cafeicultores de São Paulo, neste ponto em uma visão estrita entre “marxistas”, os mais novos críticos sociais e econômicos que surgiram em uma Europa em ebulição indo para o final do século XIX.
No segundo artigo “revogam-se as disposições em contrário” é algo por demais importante visto que a escravidão até então era coisa legal. Ter escravos era sinal de prestígio na sociedade que, diga-se de passagem se achava como cristã, fazia parte do normal seres humanos serem negociados legalmente em mercados, anunciados em jornais quando não, usados para diversão sexual. A escravidão sendo legal mostra uma verdade simples que, muitas vezes, passa sem ser notada; nem tudo que é legal é moral. Não raramente, muitas coisas que fazem parte da lei são indecentes, por exemplo, as mordomias de políticos, juízes e funcionários públicos de altos escalões são coisas legais, e seriam também morais? Outras coisas são piores ainda; são abjetas, como fora o caso da escravidão.
E em meio a polêmicas ou problematizações sobre “dívida histórica”, fato é que a escravidão passou por séculos sendo uma prática socialmente aceitável, de arenas da antiguidade onde escravos serviam de entretenimento de lutas até a morte, vistas como “espetáculos”, até o negócio de tratar o ser humano como mercadoria que era legal até o final do século XIX, enquanto persiste clandestina e pontualmente ainda em nossos dias, apesar da infâmia do racismo que perdura, nossa espécie segue dando sinais de que está a evoluir tendo em vista que a escravidão é vista como abominável não apenas por legislação, mas por um senso de moralidade que se aprimorou.
37 Brasil, uma história, de Eduardo Bueno, página 393.
12/05/2022 22h45
Imagem: DW
“É tarefa essencial do professor despertar a alegria de trabalhar e de conhecer. Caros meninos, como estou feliz por vê-los hoje diante de mim, juventude alegre de um país ensolarado e fecundo.
Pensem que todas as maravilhas, objetos de seus estudos, são a obra de muitas gerações, uma obra coletiva que exige de todos um esforço entusiasta e um labor difícil e impreterível. Tudo isto, nas mãos de vocês, se torna uma herança. Vocês a recebem, respeitam-na, aumentam-na e, mais tarde, irão transmiti-la fielmente à sua descendência. Deste modo somos mortais imortais, porque criamos juntos obras que nos sobrevivem.
Se refletirem seriamente sobre isto, encontrarão um sentido para a vida e para seu progresso. E o julgamento que fizerem sobre os outros homens e as outras épocas será mais verdadeiro.”
Obra: Como vejo o mundo. Alocução a meninos. Nova Fronteira, 1981, Rio de Janeiro. Tradução de H. P. de Andrade. De Albert Einstein (Alemanha/Ulm, 1879-1955).
A aprendizagem como um processo repassado com alegria, prazer, satisfação, que cabe ao professor. Einstein celebra o saber como resultado de uma atividade naturalmente desgastante, “um labor difícil e impreterível”, enquanto não se converte em uma obrigação amarga, sem curiosidade e fascínio. Estudar faz parte do “sentido para a vida e para seu progresso“, no entanto, infelizmente, para muitos pode ser uma atividade chata, enfadonha, talvez porque apenas se tem em mente um proposito legalista de passar em alguma “prova” (que pouco ou nada prova), sem qualquer sentido prático ou existencial.
Outro aspecto nesta alocução de Einstein envolve o processo do conhecimento que se dá por “herança”, uma construção coletiva de geração em geração. Lendo o gênio da teoria da relatividade, neste ponto, me lembro do aforismo dos anões e dos gigantes, atribuído a Bernardo de Chartres, “somos como anões aos ombros de gigantes, de modo que podemos ver mais longe que eles, não em virtude de nossa estatura, ou da acuidade de nossa visão, mas porque, estando aos seus ombros, estamos acima deles.” [36].
A atividade de estudo só ganha sentido se for prazerosa., além da importância de se aprender e aplicar da melhor forma possível e isso nada tem a ver com o formalismo da educação que se aprisiona em paredes institucionais e diplomas que muitas vezes enganam.
36. Matalogicon (III, 4) com tradução em Aos Ombros de Gigantes, de Umberto Eco.
11/05/2022 23h13
Imagem: Cuba Debate
“Que significam relações sexuais sem entraves? Significa que não existiam os limites proibitivos vigentes hoje ou numa época anterior para essas relações. já vimos caírem as barreiras dos ciúmes. Se algo pôde ser estabelecido irrefutavelmente, foi que o ciúme é um sentimento que se desenvolveu relativamente tarde. O mesmo acontece com a ideia de incesto. Não só na época primitiva irmão e irmã eram marido e mulher, como também, ainda hoje, em muitos povos é lícito o comércio sexual entre pais e filhos.”
Obra: A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. II. A Família. Civilização Brasileira, 9a. edição, 1984, Rio de Janeiro, formato físico. De Friedrich Engels (Alemanha/Barmen, 1820-1895).
Em referência ao período imediatamente anterior à “revolução neolítica”, com base na obra A sociedade primitiva, de Lewis Morgan [32] e em notas de Karl Marx, Engels discorre sobre a vida em sexo livre ou “sem entraves”; onde os filhos eram considerados como pertencentes a todos na comunidade ou tribo. Como teria ocorrido então o processo de fim do “comunismo sexual”? Por adoção de formas de organização baseadas em vínculos de sangue, com a determinação de parentesco sendo feita, inicialmente, através da identificação prioritária da mãe, inaugurando assim uma concepção matriarcal. Roland de Vaux, no Capítulo I da obra Instituições de Israel no Antigo Testamento, afirma que “o matriarcado é um tipo de família muito mais comum nas sociedades primitivas” e que “a criança (no matriarcado) pertence à família a ao grupo social da mãe” [33]. Chegou-se então a um regime privado ficando cada vez mais restrito, atingindo o padrão monogâmico, onde se apresenta a consolidação do sistema patriarcal.
Hoppe em Uma Breve História do Homem, parte do problema malthusiano da superpopulação para desenvolver uma teoria sobre o surgimento da família como resultado de propriedade privada. O instinto humano sexual teria sido se relacionado com com o instinto de sobrevivência no âmbito econômico. Partindo então do “princípio da população” [34] em Malthus, que versa sobre a taxa populacional crescendo em progressão geométrica, enquanto os meios de subsistência, em proporção aritmética, haveria uma explicação com base na percepção de um colapso iminente. Se Malthus foi desacreditado depois, pela realidade da revolução industrial, o princípio por ele apresentado serviu de referência para Hoppe considerar que em tempos primitivos o agente humano estava em uma relação exclusivamente passiva com a natureza, como nômade coletor e caçador, enquanto o crescimento populacional se tornou uma ameaça à vida comunitária. Naturalmente, o ser humano pode ter entendido que o “tribalismo sexual” se tornou insustentável, na medida em que os filhos envolviam questões comunitárias (tribais). Afirma o filósofo alemão austrolibertário que “do ponto de vista puramente econômico, então, a solução para o problema da superpopulação deveria ser imediatamente aparente. A propriedade das crianças, ou mais corretamente, a administração das crianças, deve ser privatizada”. [35].
No entanto, a visão de Bertrand de Jouvenel em ON POWER: The Natural History of Its Growth é um tanto diversa: “Mesmo que não seja admitida a possibilidade de o patriarcado ter sido uma instituição primitiva, sua ascensão é facilmente explicada em termos de guerra. Concordaram que, por razões naturais (na medida em que a parte do pai na procriação dos filhos não era inicialmente compreendida), o filho era propriedade universal dos membros masculinos da família da mãe. Mas não há família materna com a qual os guerreiros vitoriosos, voltando de um combate com um bando de mulheres, tenham contas a acertar. Os filhos serão os deles, e a sua multiplicação lhes trará riqueza e força. E aqui está a explicação da passagem da família avuncular (tios) para a paterna.” Neste ponto, o patriarcalismo é explicado no contexto de guerras de conquista, se sobrepondo à relação familiar avuncular.
32. Etnólogo e evolucionista americano (1818-1881)
33. Instituições de Israel no Antigo Testamento, Ed. Teológica, 2003. Página 41.
34. Thomas Malthus (1766-1834) na obra “Ensaio sobre o princípio da população”
35. Uma Breve História do Homem. Ed. LVM, 2018. Página 70.
10/05/2022 22h20
Imagem: Mises Brasil
“Em todas as grandes empresas, cada seção possui, de certa forma, uma independência em sua contabilidade. Cada seção é capaz de calcular e comparar os custos da mão-de-obra com os custos dos materiais, o que torna possível que cada grupo individual atinja um determinado equilíbrio e classifique, por meio de uma abordagem contábil, os resultados econômicos de sua atividade. Pode-se assim apurar qual foi o sucesso que cada seção em particular obteve, bem como tirar conclusões quanto à necessidade de haver reorganizações, cortes de despesas, abolição ou expansão de grupos existentes, ou até mesmo a criação de novos. Reconhecidamente, alguns erros são inevitáveis em tais cálculos. Eles surgem parcialmente em decorrência das dificuldades de se alocar as despesas gerais. Já outros erros surgem da necessidade de se calcular aquilo que, sob vários pontos de vista, não constitui dados rigorosamente determináveis — por exemplo, quando, ao se avaliar a lucratividade de um dado método de produção, calcula-se a depreciação das máquinas baseando-se na hipótese de elas terem uma durabilidade já pré-determinada. Ainda assim, todos esses erros podem ser considerados ínfimos, de modo que eles não atrapalham o resultado líquido do cálculo. O que restar de incerto vai entrar no cálculo da incerteza das condições futuras, que afinal é uma característica inevitável da natureza dinâmica da vida econômica.
Seguindo-se essa lógica, pode ser tentador querer fazer — por meio de analogias — estimativas e valorações individuais para determinados grupos de produção no estado socialista. Mas isso seria totalmente impossível, pois cada cálculo econômico para cada seção individual da mesma empresa só pode ser feito se houver um livre mercado de formação de preços. É exatamente nas transações de mercado que os preços de mercado — a serem tomados como base para todos os cálculos — são formados para todos os tipos de bens e mão-de-obra empregados. Onde não há um livre mercado, não há mecanismo de preços; e sem um mecanismo de preços, é impossível haver cálculo econômico.”
Obra: O cálculo Econômico sob o Socialismo. Edição do Instituto Ludwig von Mises. Brasil, São Paulo, 2012. Tradução de Leandro Augusto Gomes Roque. De Ludwig Heinrich Edler von Mises (Áustria-Hungria/Leópolis, 1881-1973).
A segunda edição revista e ampliada desta obra foi publicada sob o título O Cálculo Econômico em uma Comunidade Socialista.
Parece-me sedutora, pelo que observo na história econômica e, em especial, nos momentos de crise de escassez, a ideia de adoção de um controle central de preços até mesmo entre pessoas que se julgam “liberais” na economia e quando li pela primeira vez este texto, em 2007, foi como se tivesse tomado a pílula vermelha de Matrix. O problema da falta de um mercado livre para indicar preços está na consciência sobre a escassez. O preço em um mercado é um indicador de escassez derivado pela relação oferta versus demanda. Na mentalidade socialista de planejamento central, os preços livremente exercidos pelo mercado são substituídos por aqueles de acordo com a política traçada, então se um determinado bem tem o preço X e há um choque de oferta do próprio bem ou de insumos que o compõem, em uma economia de mercado, haverá no preço em alta a indicação dessa escassez maior, mas no ambiente de preços controlados, a política, que não tem conhecimento de todos os fatores de produção, determina valores, e nesse determinismo ficará comprometido o conhecimento sobre a escassez. Digamos que o litro da gasolina seja R$ 6 e uma guerra no leste europeu compromete a cadeia de produção e distribuição de petróleo. A escassez aumentará rapidamente e digamos que um governante decida, por decreto, determinar o congelamento do preço do litro da gasolina no preço que estava antes da guerra. Os consumidores continuarão a tomar um bem que se tornou bem menor na oferta, pois o sinal da escassez que vem pelo preço não é sentido pelos consumidores. Acabará rapidamente o estoque dos postos, salvo se não for imposto um racionamento e mesmo assim, com o preço fixado em tabela, o governante ignora que outros fatores que compõem os custos fogem de seu controle de preços o que, inviabilizará o negócio da venda do bem, fazendo com que falte o produto mesmo com uma oferta mínima, visto que o revendedor evitará tomar prejuízo ao vender por um preço menor que os custos de sua aquisição, o que restará ao governante interventor apelar à estatização do negócio onde o prejuízo de subsidiar o acesso ao bem via preços controlados será socializado com os pagadores de impostos que sentirão o aumento do custo de vida por meio de nos tributos embutidos de forma generalizada ou como disse Milton Friedman (EUA/Nova Iorque, 1912-2006), “não existe almoço grátis”.
Agora, o problema descrito acima é um caso isolado onde o preço que seria de mercado foi substituído por um preço determinado por uma política intervencionista. Em uma comunidade socialista, se parte de uma premissa de que não se adotam preços livres de mercado de forma geral. Os bens são produzidos e distribuídos de acordo com políticas de de um planejador central; eis a essência do socialismo em economia, algo que ganhou maior notoriedade durante o século XIX por meio das ideias avessas ao livre mercado defendidas por Karl Marx (Reino da Prússia/Renânia-Palatinado/Tréveris, 1818-1883) que, diga-se de passagem, não deixou um manual para substituir o modelo de mercado por um da comuna. Então foi Mises, em 1920, o pioneiro a suscitar o ponto crítico da ausência do cálculo econômico que é derivado do mercado livre a indicar a inviabilidade do socialismo a partir do ensaio “O Cálculo Econômico sob o Socialismo”. Trata-se então de um alerta dado (e ignorado) bem antes da predominância de tentativas de implantar modelos de planejamento central que marcaram o século XX, tendo a então URSS como maior referência socialista, além do aumento do intervencionismo, evidentemente via planejamento central em países não socialistas digo, de Estado de bem estar social, evidentemente sem apologia direta à Marx e sim às ideias heterodoxas de J. M Keynes, em um contexto de “políticas públicas” anticíclicas, como as que se deram após o trágico final dos anos 1920 estigmatizados por recessões e crash acionário.
09/05/2022 23h38
Imagem: Perfil oficial no Twitter
“Acho escandaloso que, apesar do histórico empírico, continuemos a projetar o futuro como se fôssemos bons nisso, usando ferramentas e métodos que excluem eventos raros. Previsões são firmemente institucionalizadas em nosso mundo. Temos uma queda por aqueles que anos ajudam a navegar pela incerteza, sejam eles adivinhos, acadêmicos (chatos) “bem publicados” ou servidores civis utilizando matemática fajuta.”
Obra: A lógica do cisne negro. Capítulo 10 – O escândalo da predição. Edição da best.business, Rio de Janeiro, 2018. Tradução de Marcelo Schild. De Nassim Nicholas Taleb (Líbano/Greater Amyoun, 1960).
Taleb dedica o capítulo 10 de A lógica do cisne negro para tratar de uma modesta verdade: simplesmente não podemos prever, porém, economistas, não raramente, vivem a fazer previsões ou “projeções” (termo mais apropriado a essa classe de doutos) e são muito bem pagos por isso. Acontece que entre um vidente e um economista, quando o assunto é previsão, se tiver que fazer uma “escolha coercitiva”, penso que cabe bem ser um profissional do ramo, o que se aplica ao primeiro caso; o segundo é sedutor por usar matemática, e mesmo por assim impressionar, prefiro quem é do negócio e isto posto além de videntes, para quem deseja saber coisas do futuro, entendo que isso cabe mais a profetas, magos, ciganos (quando sabem ler a mão), cartomantes, astrólogos, pais de santo quando jogam os búzios, adivinhos e outros profissionais afins com expertise em saber manipular corretamente uma bola de cristal. Contudo, obras preditivas de economistas podem ser apreciadas em publicações do tipo Focus do Banco Central. E esse negócio de prever na economia deve ser por demais lucrativo, dado o respaldo na ocupação de indivíduos que normalmente usam ternos caros e falam com uma retórica impecável, principalmente se estiverem em talk show, devidamente munidos de seus cálculos “precisos” e “comprovados”.
Entre os que militam nas coisas ditas “públicas”, com o dinheiro igualmente dito “público”, onde não há skin in the game, pois são socializados os custos dos erros de quem planeja a alocação do que foi coercitivamente tomado dos outros, não me causa surpresa que o ramo de fazer previsões costuma ir também de vento em popa e assim surgem coisas do tipo se um gestor governamental alocar X em Y e/ou controlar determinados fatores A, B e C (os detalhes ou onde está o inferno ficam a cargo dos que lhes dão crédito), então “obterá” resultados W, Z que soam como margem matemática razoável, tudo como se a sociedade fosse uma máquina precisando de regulações e o mercado funcionasse apenas através de suas pretensiosas regressões, métodos, planilhas e equações onde não se tem por estima o insondável peso subjetivo da ação humana em uma imensa cadeia de combinação de elementos intangíveis. Não se trata aqui de aversão à matemática e a econometria como ferramentas que, sem dúvida, auxiliam para uma melhor compreensão sobre o que aconteceu traduzido em números, mas entre analisar um passado “fotografado” em estatísticas, balanços e big datas, e entre usar modelos para justificar “prognósticos muito generalizados” sobre o que se deve esperar em determinada situação acerca de problemas e fenômenos econômicos, se trata então de um salto da ciência para outra coisa.
08/05/2022 10h36
Imagem: Discogs
“Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fronte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.”
Obra: Minha Mãe. O Caminho para a Distância (trecho). Companhia das Letras, 2008, São Paulo, no Kindle. De Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes (Rio de Janeiro/Rio de Janeiro, 1913-1980)
Minha Mãe, poema que compõe O Caminho para a Distância, que foi o primeiro livro de “O Poetinha” Vinícius de Moraes, publicado em 1933. “Eu queria ter sido Vinicius de Moraes”, disse Carlos Drummond de Andrade [31], autor de outro lindo poema sobre as mães:
Imagem: Lusofonia Poética
Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Obra: Para Sempre (trecho). Lição de coisas. Companhia das Letras, 2012, São Paulo, formato físico. De Carlos Drummond de Andrade (Brasil/Minas Gerais, 1902-1987).
Dois poemas de dois gigantes da literatura para o amor que mais se aproxima do amor de Deus.
Dois poemas de dois filhos gigantes da literatura para o amor que mais se aproxima do amor de Deus.
Amor incondicional, não de quem faz juras em conveniências pessoais; não tem riqueza, nem pobreza que resista, muito menos se limita ao desejo do estético. É o amor que supera barreiras sobre o belo; não é um amor que se confessa apenas em momentos de alegria ou prazer. Para quem tenta problematizar ou politizar a maternidade, o amor de mãe é a resposta; toca irresistivelmente todos os corações.
Amor que se fortalece com o passar do tempo, ao contrário do “amor” de quem, jovem, faz confissões, mas que se perdem quando as rugas aparecem e assim o substitui pelo “novo” e agradável às futilidades. Mãe simplesmente ama sua insubstituível criação; é do jeito que for, em todo tempo, em qualquer circunstância, eternamente.
Amor de mãe é humanamente incomparável.
31. Amizade em site oficial de Vinícius de Moraes.
07/05/2022 20h16
Imagem: Skoob
“Uma ética verdadeiramente socialista, que procure a justiça sem suprimir a liberdade, que imponha cobranças aos indivíduos, mas sem abolir a individualidade, ver-se-á muito embaraçada com os problemas que põe a condição da mulher. Viola-se mais profundamente a vida de uma mulher, dela exigindo-se filhos, do que regulamentando as ocupações dos cidadãos: nenhum Estado ousa jamais instituir o coito obrigatório. […] Não seria possível obrigar diretamente uma mulher a dar a luz: tudo o que se pode fazer é encerrá-la dentro de situações em que a maternidade é a única saída; a lei ou os costumes impõem-lhe o casamento, proíbem as medidas anticoncepcionais, o aborto e o divórcio. São exatamente essas velhas coações do patriarcado que a URSS ressuscitou; reavivou as teorias paternalistas do casamento; e com isso foi levada a pedir novamente à mulher que se torne objeto erótico: um discurso recente convidava as cidadãs soviéticas a cuidarem dos vestidos, a usarem maquiagem, a se mostrarem vaidosas ao flerte para reterem seus maridos e incentivá-los ao desejo.”
Tradução livre.
Obra: Le deuxième sexe. I. Les faits et les mythes. Edições de Gallimard, 1949 Renouvelé en 1976, Paris, formato digital. De Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir (France/Paris, 1908-1986).
O segundo sexo, obra fluvial e quando a li (2003) tinha ideias socialistas que predominava em minha visão de mundo.
O livro é conhecido, pelo público não versado pela parte inicial (grifei) da frase: “Não se nasce mulher, torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino”. Talvez retorne a este trecho em outra publicação.
Volto-me ao trecho em tradução livre e a primeira questão é o dilema da justiça e da liberdade em uma ética socialista, questão difícil para quem prefere um mundo de grandes controles sociais e se depara com experiências políticas que se deram e se dão onde as liberdades ficam no porão em favor de projetos tirânicos de poder. Isto posto, desde a primeira leitura me chamou a atenção a importância que Beauvoir dá a individualidade, algo típico de uma pensadora existencialista onde o papel do indivíduo tem um peso imenso. Contudo, cabe a ressalva que hoje a individualidade se trata de um instrumento político no feminismo militante para enaltecer o direito de escolha conforme a conveniência política. A individualidade aplicada ao direito de a mulher escolher ser o que bem entender: casar, ter filho(s) ou não, optar pela castidade antes do casamento entre outras questões que envolvem a sexualidade, o que para mim é algo belo e moral quanto ao respeito à individualidade, fica em descrédito por militantes feministas; se a mulher decidir ser esposa dona de casa, mãe e zeladora dos filhos, estará tão-somente sob narrativa da “submissão ao patriarcado”.
Sobre “uma ética verdadeiramente socialista, que procure a justiça sem suprimir a liberdade”, duas décadas após a leitura, penso: Será que Beauvoir conseguiu enxergar, como existencialista, os sérios problemas de incompatibilidade do socialismo real (e não apenas de governos com o propósito de serem socialistas) com a liberdade?
O contexto em que se situava a autora deve ser sempre considerado pois, quando ela argumenta sobre a maternidade ser “única saída”, quando a lei ou os costumes impõem o casamento, a citar proibições de medidas anticoncepcionais, do aborto e do divórcio, está dentro de um mundo em ebulição onde tais questões estavam aquém, se comparadas com as mudanças nas legislações até se chegar na atualidade, além da abertura maior da participação da mulher em questões que estavam restritas aos homens.
Leitura, como premissa pessoal, é um esforço para tentar entender e aprender sobre o que um autor escreveu; meus valores importam enquanto reflito e direciono minhas ações, mas tenho que tomar cuidado para que não atrapalhem a compreensão sobre o que a autora está a apresentar pelo texto. Sou totalmente avesso ao aborto, mas enquanto leitor prefiro deixar a autora “falar pelo texto” sem que eu obscureça o desenvolvimento do tema, procurando identificar contextos, sobretudo no caso deste livro onde são discorrido diversos problemas em argumentos bastante complexos, longos e com amplitude bibliográfica; não devo esquecer que o objetivo é tentar aprender mais sobre o tema mediante a obra, ficando o concordar ou não com a autora em uma questão secundária derivada de uma reflexão que deve ser sempre livre e destemida de conveniências políticas.
Curioso é o descontentamento da autora com a União Soviética, considerando que ela, enquanto socialista na produção do texto, revela um incômodo em uma campanha estatal do maior governo socialista em seu tempo (e de todos), o que pode surpreender alguns, saber que o regime soviético incentivou suas cidadãs a cuidarem da estética exterior, a investirem em boa aparência, em vestidos, a usarem maquiagem, ou seja, a se mostrarem vaidosas. Seria apenas um problema de se ver a mulher como “objeto erótico”? Novamente penso no problema ético do direito de escolha pois será mesmo apenas coisa de “submissão ao patriarcado”, caso uma mulher decida ser atraente para o sexo masculino? Mais uma vez penso na visão existencialista do ser humano em relação ao poder das escolhas. O problema está mal resolvido até hoje entre as que demonstram carecer de uso mínimo de lógica que torne consistente um argumento sobre algo tão importante como a subjetividade.
06/05/2022 23h16
Imagem: Casa Fernando Pessoa
“Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis escritos por mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem de um estranho; desreconheço-me neles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora despertado como de um sono alheio.”
Obra: Livro do Desassossego. 3. A ficção de mim mesmo. Editora Brasiliense, 1986, Biblioteca digital AEJM. De Bernardo Soares (semi-heterônimo) por Fernando António Nogueira Pessoa (Portugal/Lisboa, 1888-1935).
Assinada pelo semi-heterónimo Bernardo Soares “ajudante de guarda livros na cidade de Lisboa”, a insondável capacidade reflexiva de Fernando Pessoa desfila nesta obra. Uma pessoa mesmo não comportaria, e assim parafraseio o poeta: criou em si, constantemente, várias personalidades; cada sonho seu foi, imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado em outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e ele não (p. 160).
Quantos Leonardos “desreconheci”? Vários, porque a busca de valores e conhecimentos envolve mudanças, a começar em si mesmo. Eis que Uma leitura ao dia me faz revirar livros, anotações, reviver memórias, classificar rascunhos, de um Leonardo nas 15, 20, 25, 30 e 40 primaveras; às vezes “desreconheço-me” e sinto certa vergonha por alguma ingenuidade ou imprudência em raciocínios um tanto rudimentares, sem a maturidade mínima, no entanto percebo que mais importante que a vergonha auto infligida, foi ter passado por toda essa ebulição de leituras no intelecto, não ficando no meio do caminho preso a um orgulho doentio confundido com “constância” ou “estabilidade” de crenças que não se permitem a uma reflexão.
Em outros momentos dou risadas, fico incrédulo no melhor estilo “não acredito que escrevi isso” quando não, sinto até medo quando me imagino a conversar com um Leonardo dos anos 1990 tão palpiteiro ou “certo” das coisas incertas; tão “pleno” de conclusões que nada concluíam.
Ah, hilário mesmo é quando bato de frente com o Leonardo adolescente, socialista marxista vidrado em Lênin e Trótski, fascinado por Cuba, e sucedido pelo frustrado com o fim da URSS e o choque de realidade do início dos anos 1990 de um Brasil mergulhado em inflação galopante, reeditada dos anos 1980, maldita herança dos militares socialistas e canastrões do desenvolvimento. Então adormeceu um Leonardo no cotidiano de lutas, de um jovem confuso, imaturo demais para ser pai a surgir um leitor com ares de biblista no início deste século, meio apologeta, meio crítico livre, mas que morreu ao abraçar os “pulmões do seminário” [30] para dar lugar a um tanto liberal de uma teologia avessa ao fanati$mo de futuros pastores que o convenceram de que se tratava de mais um “negócio”, o que não o apeteceu onde, em paralelo corria um estudante de economia keynesiano de final de curso, amante da matemática e da estatística, com ilusória inclinação econometrista e planos de consertar externalidades do “deus mercado” (e as risadas ficam mais intensas quando penso nos multiplicadores do lorde). Esse Leonardo também morreu para em seguida nascer outro Leonardo; liberal socialdemocrata cada vez mais próximo do laissez-faire clássico e que desencarna para, em 2007 emergir em um embrião austrolibertário no segundo andar da Anchieta, se descobrindo em ideias, crenças revisitadas, leituras em refinamento, por anotações, escritos, certezas, decepções, dores, alívios e mais reinvenções de si mesmo para calibrar, depurar conceitos.
E assim sigo adiante nesta “ficção de mim mesmo”, a cometer novos erros entre alguns acertos. Uma palavra em italiano resume a consciência desse processo que hoje percebo mais claro, aos 47 anos: Divenire.
30. A biblioteca STBNB, entre 2003 e 2007, era onde eu poderia ser encontrado se não estivesse em aula.
05/05/2022 22h12
Imagem: ABL
Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha…
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô…
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha…
A moça não disse nada;
Mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro…
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade…
Agora
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma renda
de arabescos de sol nos ladrilhos vermelhos
que apesar de tão velhos
só hoje é que conhecem a luz do dia…
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão da telha
milagrosa…
Ou alguma estrelinha audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.
Que linda, a camarinha! E era tão feia!
— Você me disse, um dia,
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão…
Por que você não experimenta?
A moça não foi tão bem sucedida?
Ponha uma telha de vidro em sua vida!”
Obra: Telha de Vidro. Serenata: Poesias. Editora Armazém da Cultura, Fortaleza, 2010. De Rachel de Queiroz (Brasil/Ceará/Fortaleza, 1910-2003).
Serenata é uma coletânea de poemas escritos entre 1925 e 1930, de uma das mais importantes escritoras em língua portuguesa do século XX, cujos registros foram organizados pela bibliófilo José Augusto Bezerra, mantenedor do Memorial Rachel de Queiroz.
Em meio a sombras que nos envolvem por fatalidades ou casualidades da vida, muitas vezes podemos encontrar luz através de coisas simples. A “telha de vidro” ilustra que em vez de lamentos com o que se dispõe ou pelas circunstâncias da vida, muitas vezes, à semelhança da moça que “não disse nada”, no lugar de resmungos e auto flagelação, será salutar se permitirmos a um proveitoso silêncio que fale ao nosso juízo, e eis que apesar das dificuldades, haveremos de ver que o sol brilha para todos, e tamanha verdade nos inspira ao desejo para iluminar nosso momento de “tristura”, não importa se estivermos em “uma alcova sem luzes” onde o que nos resta é apenas uma “camarinha sem claridade”. E o que estava triste, sombrio, sem luz, ficará claro ao meio-dia para revelar a beleza do que parecia feio e desprezível quando a escuridão escondia.
04/05/2022 23h45
Imagem: El Español
“[…] o paralogismo é um simples erro de raciocínio, que pode ser corrigido sem problemas. Por exemplo, dizer que todos os atenienses são gregos, todos os espartanos são gregos, logo todos os atenienses são espartanos é um paralogismo. À parte o facto de que a conclusão parece falsa logo à luz do bom senso, o paralogismo é demonstrado por um diagrama do gênero:
Todos os A são G.
Todos os S são G.
Logo, todos os A são S”
Obra: Aos Ombros de Gigantes. Paradoxos e Aforismos. La Milanesiana. Gradiva, 2010, Lisboa. Tradução de Eliana Aguiar. De Umberto Eco (Itália/Alexandria, 1932-2016).
Umberto Eco aborda a questão do paradoxo na lógica e na filosofia em contraponto ao que é usado em retórica, até chegar no paralogismo, que é um erro de raciocínio, por sinal muito comum no cotidiano que se dá na falácia que explora a “falta de quantificação do termo médio”; um silogismo onde a falta de conhecimento determinado em relação ao “termo médio” G pode levar a conclusões equivocadas sobre a equivalência objetiva de A e S.
O paralogismo evidencia um problema de conhecimento mínimo suficiente, quando classificações sintéticas geram conclusões inconsistentes enquanto aparentemente lógicas. Lembro-me da “tábua das categorias” de Kant em relação à quantidade: “a totalidade não é mais do que a pluralidade considerada como unidade” [28], penso, “considerada”, levando em conta “um ato particular do entendimento” [29], para que não se aplique um silogismo falacioso com fatores que precisam ser separados, qualificados, ponderados analiticamente.
Erros de raciocínio desta natureza encontram no imaginário popular um fértil terreno em se tratando de uma massa que pensa brutamente ou em outras palavras:
Todos os conservadores são opositores de Lula.
Todos os bolsonaristas são opositores de Lula.
Logo, todos os conservadores são bolsonaristas.
Ou:
Todo crítico de Bolsonaro é petista.
Leonardo é um crítico de Bolsonaro.
Logo, Leonardo é um petista.
Ou:
Todo crítico de Lula é bolsonarista
Leonardo é um crítico de Lula
Logo, Leonardo é bolsonarista.
E, por ser crítico de Bolsonaro e Lula, aos ambidestros olhos militontos, Leonardo é, concomitantemente, petista e bolsonarista.
28. Immanuel Kant em “Crítica da Razão Pura”. página 110. Ed. Martin Claret, 2002.
29. Obra da anterior, página 111.
03/05/2022 23h08
Imagem: post-italy
“No meio da jornada de nossa vida,
eu me encontrei em uma floresta escura,
perdido estava do caminho certo.
Ah como dizer o que era é coisa difícil
esta floresta selvagem, áspera e forte
que em pensamento renova o medo!”
Tradução livre.
Obra: La Divina Commedia. Inferno, Purgatorio e Paradiso. Edição em italiano em eBook Kindle. De Dante Alighieri (Repubblica di Firenze/Firenze, 1265-1321).
E assim começa uma das mais importantes viagens literárias de todos os tempos, uma jornada alegórica do poeta que se sente perdido no momento da vida em que parou para refletir sobre sua jornada pessoal. Prestes a completar 35 anos, no ano de 1300, Dante Alighieri está em busca do caminho de redenção e purificação moral para se libertar dos equívocos, para superar as feridas e do pecado no imaginário do homem medieval no desejo de ganhar beatitude.
A obra-prima começa com uma questão pessoal; Dante Alighieri tinha se envolvido com a política e, no lamaçal, passava pela dura experiência do exílio e do abandono da própria família; “Ai como dizer o que era é coisa difícil esta floresta selvagem, áspera e forte”, pois quando se olha introspectivamente e a consciência reverbera erros marcantes de uma juventude, em certo momento da vida pode ocorrer um misto de introspecção, arrependimento, melancolia, em processo de lamento e dor; eis que “em pensamento se renova o medo”, pela sensação de temor diante da condição de debilidade e/ou fracasso, talvez em um (semi) consciente esforço de maturidade; o poeta está a passar pela comum crise de meia idade.
E nessa tempestade existencial, escreveu um poema épico em língua vulgar, fiorentina, em vez de aplicar o latim, onde era versado e tradicionalmente aceito. Nesta decisão de ruptura com o mainstream literário, acabou por ser um marco na base do que viria a ser a moderna língua italiana, quebrando o paradigma da alta literatura restrita, até então, às elites medievais habituadas a desmerecer a língua popular, falada pelo homem comum.
02/05/2022 23h04
Imagem: ABL
“Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem…”
Obra: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Assis, Machado de. Obra Completa. vol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, Domínio Público. De Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro/Rio de Janeiro, 1839-1908).
Machado de Assis para mim foi o auge da literatura brasileira; um Camões que tivemos. E um dia desses sonhei com Chicó a falar com Brás Cubas. E entre uma baforada, um toque na gaita de João Grilo e outro “só sei que foi assim”, empolgado por se encontrar com o famoso “defunto escritor”, contou aquela velha história de que conheceu “um sujeito lá em Cabaceiras que se encontrou com Jesus” e que “o Paraíso fica lá pros lado da Bahia, por isso que o Cristo é escurinho” [25]. A conversa de Chicó também parecia agradável a Brás Cubas, ainda um tanto enfadado de suas memórias no além, conseguiu dar umas risadas e até esqueceu um pouco o seu “póstumo arrependimento literário”. Brás Cubas aproveitou para perguntar por “Seu Ariano”. Chicó deu outra baforada, olhou profundo no horizonte e disse que “Dotô Ariano aparece de vem em quando, vive lá pras bandas da Quarta Esfera Celestial” [26] e completou: “Da última vez que ele passou por aqui, tava indo com Capiba pra um um tal de colóquio com Olavo Bilac, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Alexandre Dumas, Dostoiévski e Tolstoi [27], e segundo Quincas Borba fica lá na Irmandade dos Eternos, organizada por teu pai, Machado de Assis, mais Dante Alighieri e Luiz Vaz de Camões”.
25. O Auto da Compadecida.
26. A Divina Comédia, esfera solar onde ficam os sábios.
27. Alguns escritores apreciados por Ariano Suassuna.
01/05/2022 12h20
Imagem: Voltaire Fundation
“Fanatismo é para a superstição o que o delírio é para a febre, o que é a raiva para a cólera. Aquele que tem êxtases, visões, que considera os sonhos como realidades e as imaginações como profecias é um entusiasta; aquele que alimenta a sua loucura com a morte é um fanático. [… ] Fanatismo por assassinato excita humanos [23] […] O mais detestável exemplo de fanatismo é aquele dos burgueses de Paris que correram a assassinar, degolar, atirar pelas janelas, despedaçar, na noite de São Bartolomeu [24], seus concidadãos que não iam à missa. Há fanáticos de sangue frio: são os juízes que condenam à morte aqueles cujo único crime é não pensar como eles; […] Não há outro remédio contra essa doença epidêmica senão o espírito filosófico que, progressivamente difundido, adoça enfim a índole dos homens, prevenindo os acessos do mal porque, desde que o mal fez alguns progressos, é preciso fugir e esperar que o ar seja purificado. As leis e a religião não bastam contra a peste das almas; a religião, longe de ser para elas um alimento salutar, transforma-se em veneno nos cérebros infeccionados. […] Que responder a um homem que vos diz que prefere obedecer a Deus a obedecer aos homens e que, consequentemente, está certo de merecer o céu se vos degolar?”
Obra: Dictionnaire Philosofique. Dicionário Filosófico. Em francês, (online) TOME CINQUIEME. EDITION STKRÉOTYPK D APRES LE PROCEDE DE FlRMIN DlDOT, A. PARIS, 1886. Em português: Martin Claret, 2002, São Paulo, 2002. Tradução de Pietro Nassetti. De François-Marie Arouet (France/Paris, 1694-1778), pseudônimo Voltaire.
Voltaire é mais um caso notório de pseudônimo. Usei uma publicação online em francês combinada com uma edição em português.
Neste domingo primeiro de maio achei por bem revisitar esta obra, lida em 2002, e rever passagens sobre “fanatismo”. O contexto de Voltaire é de um livre pensador em um mundo predominantemente absolutista monárquico e sob forte influência política da Igreja Católica Romana; um mundo também em ebulição com ideias iluministas em torno do livre pensamento ou do “espírito crítico” cada vez mais em conflito com o absolutismo de reis e do papa. Então, é natural que Voltaire, sendo um filósofo iluminista. se volte com frequência ao fanatismo com um pano de fundo mais intenso nos problemas de quem usa a religião para fins de poder e repressão. Neste aspecto, também se torna compreensível que Voltaire tenha sido um ferrenho (e justo) crítico do cristianismo enquanto fenômeno de poder temporal, terreno, político, diga-se de passagem, totalmente avesso ao que se pode ler nos Evangelhos.
Deve-se considerar que Voltaire não viveu o suficiente para ver que o fanatismo, pela religião, que matava (e ainda mata hoje) em nome de Deus, apresentou uma versão laica ou “anticlerical” na matança em massa que se sucedeu com os desdobramentos da Revolução Francesa (1789-1799) no banho de sangue onde a guilhotina foi popularizada. O grande pensador francês não teve como conferir o fanatismo não religioso, em nome do Estado, por indivíduos avessos à Igreja e que se tornaram tão assassinos quanto os fanáticos religiosos que ele tanto se indignou. Voltaire não testemunhou o fanatismo de se matar em nome de ideologias predominantes no Estado que se modernizava, não mais atrelado ao religioso; o grande iluminista de Paris, que foi implacável (com justiça) aos horrores de se matar em nome de Deus, na fogueira “santa” da Inquisição, não viveu tempos de intolerância extrema de autoridades civis sem compromissos religiosos e com dispositivos constitucionais que funcionam como “cortina de fumaça” em favor de intolerantes.
O fanatismo político-estatal segue matando, e para isso basta conferir os conflitos militares pelo mundo, muitos contando com líderes religiosos, como é o caso de Vladimir Putin na Rússia, apoiado publicamente pelo patriarca Cirilo I da Igreja Ortodoxa. Outros tantos avessos a qualquer religião, e neste aspecto, nada superou a matança de Stalin na União Soviética, ateu por natureza política, seguida pelas atrocidades de Hitler na Alemanha, com o nazismo sendo um movimento reconhecidamente pagão.
No entanto, o fanatismo ideológico laico tem suas versões “pacíficas” ou não militarizadas que dominam mentes nos aparatos estatais movidos por um insaciável desejo de controlar a sociedade e as opiniões dos indivíduos por meio de censuras onde a moralidade é confundida com legalismo. Parafraseando por uma releitura eu diria: Que responder a um homem do Estado, um juiz (STF?), um parlamentar, um presidente que manda silenciar quem pensa diferente, mesmo sem incitar morte ou promover crimes, e assim desdenha do direito natural da liberdade de expressão e que, consequentemente, acha que merece ser reconhecido como “justo”, perante as leis (legislações) do Estado, ao cancelar, censurar e aprisionar quem tão-somente discorda de suas opiniões?
Neste dia de reflexão sobre o trabalho, penso no fanatismo político de quem fomenta o ódio contra empresários e empreendedores, indivíduos que trabalham na difícil tarefa de investir no país onde quem, honestamente, promove negócios e costuma ser amaldiçoado.
O fanatismo é um fenômeno humano que não tem fronteiras na religião. Pode acometer letrados, iletrados, crentes, ateus, eclesiásticos, magistrados de um estado não clerical, intelectuais de todas as áreas, professores universitários, em suma, qualquer indivíduo que abra a porta de sua mente para alimentar preconceitos, permitir-se à presunção, e juntando problemas dessa natureza com alguma paixão ideológica incontrolável então, a receita para um fanatismo mortal ficou pronta.
Na política, o fanatismo produz formas tão horripilantes quanto nas versões religiosas, com o agravante de que no tabuleiro laico das ideias as coisas se camuflam sem o rótulo da abstração de uma fé religiosa e, em algumas ocasiões, se passando por “científico”. Em grupos políticos, sejam de esquerda ou de direita, o fanatismo é tão desumano, perverso e destrutivo quanto qualquer fanatismo religioso, senão vejamos:
Na esquerda, o fanatismo político alimentou o marxismo, o stalinismo (marxismo versão soviética), os regimes de Fidel Castro em Cuba, o chavismo na Venezuela, que se perpetuou com Maduro, o petismo e linhas auxiliares (PSOL, Rede, PSB e outros) e o lulismo no Brasil. Também penso no regime da Coreia do Norte, considerado por muitos o país mais fechado do mundo que combina traços do Ur-Fascismo, explicado por Umberto Eco, com ideias marxistas e de absolutismo monárquico em uma colcha de retalhos.
Na confusão dos lados, pensei no fanatismo político do peronismo na Argentina e na ditadura militar no Brasil que combinou planejamento central (socialismo) com discursos de direita.
No lado destro, pensei no fanatismo político que sustentou o fascismo e o nazismo, assim como diversos regimes autoritários pelo mundo no pós Segunda Guerra, na Europa, com Pinochet no Chile. Hoje o fanatismo político de direita assombra a Europa, com movimentos neonazistas e outros de extrema direita na França, na Itália e no leste. No Brasil, o fanatismo político de direita pode ser observado no bolsonarismo como resposta radical ao fanatismo petista.
Então, o fanatismo é uma pandemia além da religião e que não cessa na história da humanidade; não se trata de um problema restrito a pessoas sem instrução, não poupa doutos, costuma infeccionar intelectuais, todos encharcados por paixões ideológicas a formar opinião para alimentar bolhas que, no estouro, provocam enormes danos e desnudam os dilemas mais profundos na convivência social em nossa espécie.
23. Tomo quinto, em francês, página 120,
24. Repressão violentíssima por assassinatos em massa de protestantes em Paris nos dias 23 e 24 de agosto de 1572. Movimento patrocinado pela monarquia francesa em favor do catolicismo romano.
Adorei o de Umberto Eco, resumo das tretas nos grupos de zap da família:
“Todo crítico de Bolsonaro é petista.
Leonardo é um crítico de Bolsonaro.
Logo, Leonardo é um petista.
Ou:
Todo crítico de Lula é bolsonarista
Leonardo é um crítico de Lula
Logo, Leonardo é bolsonarista.
E, por ser crítico de Bolsonaro e Lula, aos ambidestros olhos militontos, Leonardo é, concomitantemente, petista e bolsonarista.”
Parabéns pelo belo trabalho.