Uma leitura ao dia celebra outubro com um marco na história da música: “Eroica“, a Terceira Sinfonia de Ludwig van Beethoven (Sacro Império Romano-Germânico/Bonn, 1770-1827) com hr-Sinfonieorchester sob a regência do maestro colombiano Andrés Orozco-Estrada (1977).

06/10/2024 12h23

Imagem: he.wikipedia.org

בְּרֵאשִׁית

בְּרֵאשִׁית בָּרָא אֱלֹהִים אֵת הַשָּׁמַיִם וְאֵת הָאָרֶץ

Obra: Bíblia Hebraica. בְּרֵאשִׁית. Trinitarian Bible Society. 10m/2/98. London. SW19 3NN.

A tradução do primeiro verso do בְּרֵאשִׁית (Bëreshyt, No princípio de), que me foi apresentada em tradução imprecisa por “No princípio” como oração principal, título do livro mais conhecido como Gênesis, em meio a questionamentos sobre אֱלֹהִים (Elohym, “deuses”), despertou-me a tentar entender melhor por meio do que tinha à disposição de produção científica (a teológica apenas confunde) nos “pulmões” e à aquisição da Bíblia Hebraica.

Levou-me um tempo antes de perceber uma questão mais importante na expressão que intitula o primeiro livro da Torá: as traduções usuais católicas e protestantes deste primeiro verso estão tecnicamente fora da conformidade, e não me refiro à tradução para o singular de um substantivo no plural (deuses), e sim quando notei que a preposição בְּ indica uma oração subordinada adverbial temporal.

No princípio criou Deus o céu e a terra (tradução usual)

No princípio de criou deuses os céus e a terra (literal)

No princípio, quando Deus criou o céu e a terra (tradução alternativa na Bíblia de Jerusalém, 2000, p. 31, nota b)

No princípio de (o) criou (seria no princípio da criação), Elohym os céus a a terra, é uma oração que indica a abertura da narrativa que inicia seu desenvolvimento no verso 2. Quanto a בָּרָא (criou), significa “cortar”, “dar forma”, ou diria, Elohim estava a talhar, esculpir, compor, trabalhar elementos; portanto, não se trata de uma criação do nada, tampouco do universo como a ciência moderna discorre, nem a concepção filosófica metafísica da criação ex nihilo. A narrativa é um mito cuja afirmação de fé indica um constructo sobre algo transformado pela ação criadora de Elohym e, penso, restrita ao contexto da visão de mundo nesta tradição.

O termo Elohym também me remete ao problema do politeísmo em Israel antes do exílio na Babilônia (586 a.C. e 538 a.C.), enquanto a tradição cristã viu a Trindade no plural de Eloah.

Por fim, nada mudou em termos de minha fé no Deus-Criador-Todo-Poderoso, enquanto foi uma revolução em meu olhar para a teologia e o fenômeno religioso. Digo “revolução” porque as traduções usuais da Bíblia refletem muitas vezes um determinado viés teológico ou, em termos práticos, uma determinada ideologia. Isso posto, a Bíblia, independente da tradução, é uma coletânea de obras onde conflitos ideológicos demarcam suas narrativas. Na tradução, os conflitos ideológicos saem dos textos e envolvem as organizações interessadas na exploração da fé religiosa para diversas finalidades, do enriquecimento econômico pessoal ao controle social. Então o termo “fundamentalismo bíblico” me parece impreciso, pois o que esse tipo de disseminador faz é reproduzir uma ideologia intrínseca na tradução ou, em outras palavras, o crente fundamentalista é na verdade um agente manipulado em uma ideologia camuflada com o rótulo de teologia e, de forma mais bizarra, por uma doutrina, em um bojo que promove a ilusão da leitura bíblica ou seja, o que se apregoa em igrejas com base apenas na tradução, muitas vezes, não é necessariamente leitura da Bíblia e sim leitura do viés ideológico do tradutor.

Quando descobri essas coisas, em meio a hostilidades de um ambiente repleto de fundamentalistas, entendi que tinha chegado a hora de deixar o seminário: missão cumprida.

05/10/2024 18h49

Imagem: Bula

Thomas Pynchon

“[…] Em 1984, Orwell compreendeu que, apesar da derrota do Eixo, a vontade do fascismo não havia desaparecido; […]”

Obra: 1984. Posfácio. Companhia das Letras, 2009, São Paulo. Tradução de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. De George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair (Índia/Motihari, 1903-1950).

Neste posfácio de 2003 que consta na edição que disponho desta obra (está entre os 10 romances mais importantes que li), Thomas Pynchon (EUA/1937) pondera algo que pesou bastante na reflexão que fiz sobre Orwell em 1984, ao apontar que “previsões específicas na obra são apenas detalhes” e “talvez seja mais importante, necessário de fato, a um profeta em atividade, é estar apto a enxergar mais fundo a alma humana do que a maioria de nós” (p. 404).

E nesta visão mais profunda do espírito humano, em termos de relacionamento com o poder, Orwell lançou uma advertência de que a derrota do nazi-fascismo na Segunda Guerra não significou que essa visão de mundo foi superada. Como sugere Pynchon, “talvez ainda não tivesse nem alcançado seu ápice” (p. 404).

Em relação ao meu tempo, penso no poder de controle social dos aparatos estatais e em arranjos políticos em blocos onde governantes trabalham para concentrar cada vez mais poder em si mesmos. Quanto aos controles sociais, imagino o quanto avançaram de forma camuflada, não mais na brutalidade do que pensavam Hitler, Mussolini e Stalin, e sim na medida em que os cidadãos de sociedades sob regimes democráticos abdicam da privacidade em troca de “segurança” e “benefícios” sociais. Esse neonazifascismo é sútil, muito sofisticado, e tem muito a ver com o que Pynchon aponta quanto ao progresso da tecnologia. Para um texto de 2003, penso, onde a internet comercial não tinha completado nem 10 anos, Pynchon cogita em relação a esse ambiente, uma expectativa de controle social “numa escala com que aqueles singulares tiranos do século xx com seus bigodes engraçados nem sonhavam” (p. 405). E eis que 21 anos depois, o que Pynchon discorre como uma “promessa” se tornou realidade: a internet proporciona aos aparatos estatais um poderosíssimo controle social.

O posfácio de Pynchon, entre outras questões, também versa sobre o contexto do lançamento de 1984 como “vítima do sucesso de A revolução dos bichos” (p. 396), lembra que, em meio a intepretações da obra ser uma condenação ao stalinismo, Orwell estava na “esquerda da esquerda”, era a favor do “socialismo democrático” (p. 397), e pareceu “incomodado com a fidelidade generalizada da esquerda ao stalinismo, mesmo diante de evidências esmagadoras da natureza maldosa do regime”(p. 399). Consoante a este ponto, mais uma vez pensei em ZW (1996) quando me disse que o fundamentalismo político é “mais devastador que o fundamentalismo religioso” [263].

263. 27/09/2024 22h59

04/10/2024 22h12

Imagem: AlignThoughts

IED

“A chave para isto é: desenvolver novas habilidades para lidar com situações adversas geradoras de raiva.”

Obra: Como lidar com a raiva e o transtorno explosivo intermitente. 2. Emoções, pensamentos e comportamentos relacionados ao TEI. 2.6 Crenças relacionadas ao TEI. Hogrefe, 2020, São Paulo. De Liliana Seger, Carolina F. Silva Bernardo, Juliana Morillo e Deisy Emerich Geraldo.

Esta experiência de leitura me fez pensar no senhor “Valente”, analista sênior que conheci em 1993, durante um curso de rede Novell NetWare.

Estávamos a caminho de seu escritório quando, diante de uma briga de trânsito que tínhamos acabado de presenciar em um sinal, comentou que a cena de dois indivíduos que subitamente chegaram “às vias de fato” o fez lembrar do quanto fora um “barril de pólvora ambulante” (assim definiu a si mesmo com ar espirituoso). Contou-me que havia dois anos seu então “pavio curto” quase o destruiu. Em uma de suas discussões com um dos sócios à época, rapidamente foi dos gritos e palavrões a uma tentativa de agressão física, o que fez o colega sair correndo da sala. O surto de ira se encerrou com o gabinete do computador do sócio atirado da janela do quinto andar. Por sorte não havia passante na calçada: “hoje entendo que foi um livramento divino”, confessou, após ter comentado sobre a importância da terapia que estava fazendo para aprender a lidar melhor com a raiva, acompanhada de uma experiência de conversão em uma igreja evangélica, fatores determinantes para, um tempo depois, procurar o ex-sócio para lhe pedir perdão. “Nem consigo imaginar, o senhor é tão calmo”, comentei.

O transtorno explosivo intermitente (TEI) é um “quadro caracterizado por episódios de agressões que podem ser verbais e/ou físicas, direcionadas a pessoas, animais ou objetos que variam de intensidade e que ocorrem de forma impulsiva” (p. 14). A frequência é um fator na identificação (p. 15). A vergonha ou culpa que normalmente ocorre após as explosões fúria, é um dos critérios no processo de diagnóstico (p. 17) que avalia impulsividade (p. 18) cuja agressividade flui pela “instabilidade afetiva e a incapacidade de controlar os impulsos” que envolvem de maneira que a pessoa com TEI não tem tempo de avaliar a situação e a reação (pp. 19-20).

O trecho (p. 51) desta Leitura se relaciona com aspectos que envolvem senso de justiça, moralidade, respeito, honra, entre outros fatores, onde o portador de TEI pode desenvolver crenças, mediante experiências passionais negativas, mediante distorções de pensamentos que impulsionam a agressividade como tentativa de resolver uma situação desconfortável. Se um acometido de TEI se sentir desvalorizado, ofendido ou humilhado, o sistema de crenças será acionado e as distorções estabelecidas vão sinalizar uma resposta efetiva, contundente e, conforme como se dá a intensidade do fator emocional, de viés agressivo, que se torna intenso sob a ideia de que se não agir assim será tido como alguém “fraco”, “inferior”, “idiota”, “trouxa” (p. 46-52).

Por fim, destaco o capítulo 4, em relação a saber identificar os gatilhos como uma das chaves para começar a lidar com situações em que a exposição à raiva aumenta a probabilidade de explosões, bem como as estratégias apontadas pelos autores no trato deste transtorno.

Mais uma obra de utilidade pública.

03/10/2024 23h16

Imagem: Editora Rocco

Clarice Lispector

“Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos.”

Obra: A descoberta do mundo. As três experiências 1968. 11 de maio. Rocco Digital, 2020, eBook Kindle. De Chaya Pinkhasivna Lispector (Ucrânia/Chechelnyk,1920-1977).

A descoberta do mundo – por Heitor Odranoel Bonavenura

A descoberta do mundo inclui
o desbravamento do
meu próprio ser.
É um despertar contínuo
para o tempo que “urge”,
e vivê-lo é uma arte
que combina a brevidade
existencial
com a contemplação
da eternidade.

O amor é a salvação,
a palavra, instrumento
para domínio no mundo,
e os filhos,
bênçãos da renovação.
Na solidão quando
saem do ninho
estará o destino
de quem os criou.

O amor é perene,
imunidade à perdição,
cuja imensidão
permite, no que sobra,
o auto perdão.

Assim estará no amor
para o último dia,
quando o corpo se esvaziar
do pouco do vigor
que conservou na velhice,
até o último sopro;
e ultrapassará as fronteiras
das limitações do tempo
da existência superada
pela transcendência.

02/10/2024 22h59

Imagem: Center for Public Integrity

Ron Paul

“Ludwig von Mises foi o maior economista de todos os tempos. Mas ele nunca me convenceu de que […]”

Obra: Mises e a escola Austríaca: uma visão pessoal. Direitos naturais. Instituto Ludwig von Mises, 2012, São Paulo. Tradução de Ricardo Bernhard. De Ronald Ernest Paul (EUA/Pensilvânia/Pitburgo, 1935).

E o médico ex-membro da Câmara dos Representantes, candidato à presidência dos EUA em três ocasiões, assim aponta o que Ludwig von Mises afirma em Ação Humana:

É um disparate metafísico juntar a “escorregadia” e vaga noção de liberdade com as leis absolutas e invariáveis da ordem cósmica. Assim, a ideia básica do liberalismo é desmascarada como uma falácia. (…) No quadro da observação experimental dos fenômenos naturais, não há espaço para o conceito de direitos naturais. [1]

1.Ibid, p. 216.

Penso que, em termos filosóficos sobre “direitos naturais”, Mises estaria mais para o nominalismo em detrimento dos universais. Haveria também um viés de Immanuel Kant quanto à subjetividade do conhecimento nessa categoria, contudo, me parece mais claro se todo o parágrafo, do trecho de Ação Humana, selecionado por Ron Paul for lido:

1. Os homens não são iguais. O liberalismo do século XVIII e, da mesma forma, o igualitarismo de nossos dias partem da “verdade autoevidente” que afirma que “todos os homens são criados iguais, e são dotados pelo Criador com certos direitos inalienáveis”. Entretanto, dizem os advogados de uma filosofia biológica da sociedade, a ciência natural já demonstrou, de maneira irrefutável, que os homens são diferentes. No quadro da observação experimental dos fenômenos naturais, não há espaço para o conceito de direitos naturais. A natureza é insensível em relação à vida e à felicidade de qualquer pessoa. A natureza é necessidade e regularidade férreas. É um disparate metafísico juntar a “escorregadia” e vaga noção de liberdade com as leis absolutas e invariáveis da ordem cósmica. Assim, a ideia básica do liberalismo é desmascarada como uma falácia.

Penso que Mises ao apontar que “a natureza é insensível em relação à vida e à felicidade de qualquer pessoa” denota uma crítica importante à analogia da noção de liberdade com os fenômenos naturais que são impessoais, enquanto é igualmente importante considerar o seu modo de pensamento na praxeologia (p245) relacionada ao que ocorre na cataláxia:

“Todas as categorias praxeológicas são eternas e imutáveis, pois são determinadas unicamente pela estrutura lógica da mente humana e pelas condições naturais da existência do homem. Tanto ao agir, como ao formular teorias sobre a ação, o homem não pode se libertar dessas categorias nem ir além delas […]”

Nessas categorias residem as ações propositadas do agente humano (p. 54).

A defesa dos direitos naturais diante da crítica de Mises pode ser melhor refletida se for considerado o que entendo ser o ponto central da refutação (pp. 216-217):

“Seus defensores não se importam com o fato incontestável de Deus ou a natureza não terem criado os homens iguais, como prova a evidência de que muitos nascem sãos e fortes, enquanto outros nascem aleijados e deformados. Para eles, todas as diferenças se devem à educação, às oportunidades e às instituições sociais.”

Simplesmente Mises aponta que a defesa dos direitos naturais, uma cifra carregada de senso de justiça e moralidade, não tem amparo na observação experimental dos fenômenos naturais que acontecem sem evidente alinhamento com referências sobre o justo e o injusto, o bem e o mal. Desastres, tragédias no mundo natural acontecem com pessoas independente do conceito de moralidade que se tenha delas. Este problema, por sinal, é o que entendo como “o calcanhar de Aquiles” da teologia que tenta explicar o problema do mal, das coisas consideradas injustas herdadas da natureza, fora da interferência humana.

01/10/2024 21h53

Imagem: A Casa Humana

Ana Cláudia Quintana Arantes

“Não há espaço para falar sobre a morte com pessoas que não estão vivas em suas vidas.”

Obra: A morte é um dia que vale a pena viver. Como ajudar alguém a morrer. Sextante, 2019, Rio de Janeiro. De Ana Cláudia Quintana Arantes.

A doutora Ana Claudia premia os leitores ao compartilhar suas experiências na missão dos Cuidados Paliativos.

Mais uma obra de utilidade pública.

Entre diversos pontos que meditei, o que mais me tocou diz respeito ao sentido mais profundo dos Cuidados Paliativos defendido pela doutora através da kalotanásia, a morte “bela” (p. 60), onde a assistência ao paciente terminal se pauta pelo trato da forma mais amorosa e sublime que possa ser oferecido (p. 61), com empatia e compaixão (p. 66), muito além da ideia comum que se tem em torno da sedação (p. 59) mediante um quadro onde a medicina não tem mais nada a oferecer (p. 54). E esse “nada” é enganoso. Os Cuidados Paliativos envolvem o que a medicina pode oferecer para uma relação de apoio e alivio ao paciente enquanto o médico aprende sobre o aprimoramento do seu papel na humanização do processo.

O livro tem uma áurea poética; um verso ou um pensamento abre cada reflexão; Clarice Lispector, Gilberto Gil, Fernando Pessoa, Adélia Prado, Gibran Khalil Gibran, São João Crisóstomo, Mahabharata…. Nesse espírito me lembrei de uma passagem do filme Interstelar onde o professor Brand diz a Cooper: Eu não tenho medo da morte, eu sou um velho físico. Eu tenho medo é do tempo. E assim pensei em um outro ponto provocante suscitado pela autora: o problema do sentido da vida quando se é confrontado com a terminalidade humana, sobretudo quando envolve um ente querido.

O processo doloroso de lidar com a expectativa de morte iminente de alguém que amamos, quando a medicina não tem como curar e revela a proximidade da condição terminal, pode também ser um momento de enlevo espiritual quando desencadeia um exame de consciência em torno do sentido e da finitude da vida, na medida em que meditamos sobre uma experiência que também nos aguarda e nos questionamos sobre o que fizemos com o tempo que passamos na existência, o que me remete à reflexão que a doutora apresenta sobre os “zumbis existenciais” (pp 118-119). Se para um físico o tempo pode ter um sentido muito complexo, impactado pela teoria da relatividade, penso mais no plano humano-terreno-existencial, onde o tempo é uma conta que nos será cobrada no balanço que se fecha na experiência da morte. Se tivermos a disposição para um confronto auto crítico sobre como vivemos, se vivemos ou, como discorre a doutora, estamos em um modo “morto-vivo” que perambula se escondendo das questões mais essenciais da vida, vivendo mais para as aparências para agradar os outros, do que para algo substancial, sem encontrar sentido para seguir no fascínio da vida, a reclamar de tudo e todos, fingindo que se está vivo enquanto disfarça o sofrimento profundo, a incluir a imaturidade para refletir sobre a morte, como aponta no trecho (p. 85) de destaque desta Leitura.

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