12/01/2025 13h03
Imagem: confindustriaemilia.it
“[…] Qualcuno a tavola disse che lo stesso risultato si poteva raggiungere con le drogue.[…]”
Obra: La speranza indiana. Storie di uomini , città e denaro dalla più grande democracia del mondo. VIII. Seduzioni e miraggi d’Oriente. Mondadori, 2007, Milano. De Frederico Rampini (Italia/Genova, 1956).
Torno a esta obra do experiente e versátil jornalista italiano no trecho (p. 307) do capítulo em que aborda a passagem dos Beatles pela Índia em fevereiro de 1968 (p. 306), quando foram alunos de Maharishi Mahesh Yogi (191?-2008) em um curso de meditação transcendental (MT).
Harrison não concordou com a opinião de que o uso de droga leva ao mesmo resultado da MT, pois entendeu que a primeira preenche um vazio entre os que procuravam visões estupendas, mas a morte era algo um pouco complicado, o que fazia da filosofia e da religião (associadas à segunda) terem utilidade. Curiosamente, menciona Rampini, após Harrison ter invocado a sabedoria indiana como alternativa às drogas, nativos “filhos das flores”, apesar de conhecedores da MT, passaram a buscá-las (p. 307).
O quarteto musical mais famoso do século XX e seus acompanhantes mais íntimos gozavam de alguns privilégios em comparação com os demais alunos em um lugar que à noite se tornava úmido e frio: “dispunham da única casa com água corrente e conforto quase ocidental ” (p. 306), no entanto Maureen, a esposa de Ringo (que tinha saudade dos filhos e dos nove gatos do lar, enquanto pensava que poderia ficar na posição de Lótus em Liverpool mesmo, p.309), não suportava as moscas. Então o sábio Maharishi teria respondido que elas não têm muita importância no reino da pura sabedoria (p. 309), e fiquei a imaginar a cena onde era preciso ficar imóvel por longo período (p. 307) para atingir o tal estágio…
Entre os deslumbramentos iniciais e a perda do encanto com o curso, que ocorreu logo após o primeiro mês (p. 310), com algumas situações um tanto polêmicas, entre as quais um suposto assédio sexual do guru sobre a atriz Mia Farrow (p. 310), uma das personalidades que também estavam no treinamento, os Beatles saíram da montanha “com as trinta canções que compuseram para o White Album“(p. 311).
A apreciação desta obra, em especial neste capítulo, sinalizou o quanto há imagens enviesadas, romantizadas, ingênuas, estranhas e distorcidas no Ocidente em relação aos “orientais”. Aspas pois os problemas começam pela classificação de “Oriente”, estranha aos ditos “orientais” que se veem no centro do mundo ou Zhong Guo (a terra do meio), como por exemplo os chineses se referem ao próprio país (p. 239). Um ponto muito interessante suscitado por Rampini consiste na narrativa ocidental que associa historicamente o Oriente ao despotismo, ignorando que a Índia, por exemplo, se deu no século XVII em um “laboratório político de tolerância e diálogo entre as religiões enquanto a Santa Inquisição condenava Giordano Bruno por heresia em Roma” (p. 242).
A história dos Beatles na Índia é apenas um ponto no rol de delírios que ocorrem no Ocidente em relação ao que é chamado de “Oriente”, que versa sobre um mundo de fato pouco compreendido, riquíssimo de tradições, complexo demais com seus valores e contradições.
11/01/2025 21h07
Imagem: Biblioteca de São Paulo
“The most difficult subjects can be explained to the most slow-witted man if he has not formed any idea of them already ; but the simplest thing cannot be made clear to the most intelligent man if he is firmly persuaded that he knows already, without a shadow of doubt, what is laid before him.”
Obra: The Kingdom of God Is Within You. CHRISTIANITY NOT AS A MYSTIC RELIGION BUT AS A NEW THEORY OF LIFE. CHAPTER III. CHRISTIANITY MISUNDERSTOOD BY BELIEVERS. The Cassel Publishing, 1894, New York. Traduzido para o inglês por Constance Garnett. De Lev Nikolaevitch Tolstoi (Rússia/Yasnaya Polyana, 1828-1910).
Esse trecho (p. 49) me fez lembrar de um proprietário de escritório, um tanto espirituoso, lá nos idos de 2017 quando me perguntou se eu conhecia alguém para trabalhar como auxiliar contábil: “não precisa ter experiência, prefiro que não tenha conhecimento de sistema, isso atrapalha, basta ter noções de contabilidade, aceito em nível de estágio”. Quando perguntei a razão sobre a preferência por quem não tenha experiência, que não conheça sistema porque “atrapalha”, ele respondeu: “dá bem menos trabalho explicar procedimentos do nosso sistema de contabilidade para alguém verde, você sabe, do tipo que não tenha ideia formada, e depois de tanto sofrer, aprendi que até as coisas mais simples ficam complicadas para repassar a quem é convencido, que tem a “cabeça feita”, cheio de certezas, que pensa que já sabe muita coisa quando na verdade sabe pouco e está condicionado a um determinado software. Fica difícil treinar pessoas assim, entendeu?”. Respondi: “o senhor acabou de atualizar Tolstói para uma versão compatível com o seu software contábil”.
Talvez ele tivesse um viés de confirmação sobre pessoas experientes. Obviamente, não é verossímil que toda pessoa experiente seja arrogante e esteja fechada para um novo aprendizado. A generalização não raramente é uma porta escancarada para o viés de confirmação. No mais, seu olhar foi de um “não entendi”, no entanto, o pragmatismo de seu argumento me fez pensar novamente no capítulo III desta magnum opus, onde a primeira leitura se deu pelo interesse que desenvolvi por problemas de “viés de confirmação”. No contexto, Tolstói esmiúça o significado da doutrina cristã, compreendida por uma minoria em torno de seus interesses, e totalmente incompreensível para a maioria por conta da má interpretação e da convicção ou crença equivocada de que possui o entendimento (p. 48), de maneira tão completa, indubitável e conclusivamente que não pode ter outro significado senão aquele que é atribuído (p. 49). Então, penso, provavelmente é por isso que conversar seriamente questões de teologia e fé com uma pessoa devota (nem penso aqui necessariamente em um fanático ou fundamentalista, onde o bloqueio nesse caso normalmente vem acompanhado de uma agressividade) tende a ser um empreendimento mais estressante que o necessário, por conta do viés de confirmação; por mais que sejam apresentados fatos e argumentos consistentes, se contrariarem suas convicções, o viés de confirmação ativo tende a funcionar como uma trava que impede o espírito crítico que viabiliza um novo aprendizado ou uma reinterpretação melhor, diria bem mais depurada sobre o assunto.
O mesmo ocorre por analogia fora do âmbito religioso. No seio político o fenômeno do viés de confirmação é muito parecido e talvez ainda mais potencialmente destrutivo, porque afeta a sociedade inteira, ou seja, religiosa ou não. Muitas vezes o socialismo inspirado em Marx, em especial entre ateus, pode funcionar como um credo fundamentalista, uma religião sem Deus, e o mesmo pode ser observado em progressistas defensores de “políticas públicas” que não gostam de ser vistos como socialistas, mas tratam suas ideias como “crenças inabaláveis”, travestidas de ciência por um outro viés de confirmação que atua na interpretação de dados estatísticos. O viés de confirmação também pode ser apreciado entre liberais e austrolibertários que romantizam o mercado e se mostram um tanto insensíveis a problemas sociais. Por mais que evidências, fatos e argumentos bem embasados sejam apresentados, o indivíduo seguidor, diria crente, apaixonado por determinada ideologia e/ou líder político, mediante seu viés de confirmação que atesta a “validade” que ele acredita no que deseja acreditar, sendo movido por tal crença, determinará suas conclusões por ela que, não raramente, serão confundidas com a realidade. Por isso, conversar seriamente assuntos de economia, política e sociedade com um entusiasta de escola de pensamento econômico, um bolsonarista, um petista ou qualquer outro “ista” pleno de certezas tende a ser um esforço em vão, entendo.
E no ambiente profissional, ao longo de minhas experiências nesses 34 anos de caminhada, cometi inúmeros erros (alguns consegui identificar e tratar, outros jamais saberei ou descobrirei) por conta de minhas crenças sobre aquilo que julgava entender em um viés de confirmação, algo que é sensível demais porque trabalho com programação de sistemas. No mais, é um problema que, imagino, ninguém escapa; doutos, iletrados, juízes, médicos, engenheiros, advogados, padres, pastores, professores, cientistas em geral, crentes, ateus… Meu interesse pelo tema também foi motivado para compreender melhor sua gravidade em clientes usuários, sobretudo nos casos dos que pensam saber mais do que realmente sabem por conta de suas convicções acerca de si mesmos e das coisas que valorizam.
Ter crenças não é um problema desde que não atrapalhe o entendimento da realidade.
10/01/2025 23h06
Imagem: BBC
“O cérebro e o eu são complicados demais para serem compreendidos através de um único vocabulário. No fim das contas, ‘Conhece-te a ti mesmo’ é o conselho mais difícil que já se deu.”
Obra: O demônio do meio-dia: Uma anatomia da depressão. Epílogo . Companhia das Letras, 2018, São Paulo. Tradução de Myriam Campello. De Andrew Solomon (USA/New York, 1963).
Torno a este livro extraordinário que faz jus ao termo “anatomia” no subtítulo e revela, além do conhecimento depurado, uma impressionante coragem do autor ao compartilhar suas experiências.
Passados vinte anos de sua primeira depressão grave, afirma o autor, “não posso mais me imaginar sem ela” (p. 425). A experiência estabeleceu uma consciência sobre o quanto a doença definiu sua própria identidade como “um depressivo profissional” (p. 425) pela forma como se expôs publicamente na produção deste tratado. Solomon convive com o problema em si mesmo, em meio a recaídas (p. 427), mediante medicamentos que prefere consumir para ter condições de viver no mundo em vez de se fechar em si mesmo (p. 426), e uma disciplina que o mantêm atento aos sinais enquanto lhe prepara para cada ocasião em que o “demônio do meio-dia” retorna (p. 469).
A insegurança em relação ao que é “real” e ao que apenas está em seu pensamento é um dos problemas da doença mental (p. 429), aponta, que, à mon avis, ilustra a elevadíssima complexidade do cérebro humano com seus efeitos somáticos que deixam o legado de não saber como as saúdes mental e física se enfrentam (p. 431). E nessa trajetória, Solomon descobriu o “lugar-comum” em que a doença se situa em pessoas que estão passando por ela ou que conhecem alguém próximo que esteja (p. 431), e assim encontrou na depressão uma comunidade (p. 468).
Solomon apresenta um resumo do que apreciou sobre pesquisas e políticas públicas, além dos tratamentos, medicamentos disponíveis e efeitos colaterais (pp. 432-457). A evolução no trato e a disciplina médica evoluíram significativamente, aponta, e destaca os avanços nos últimos vinte anos (p. 459) contudo, chamou-me atenção o problema que menciona sobre médicos influenciados por laboratórios farmacêuticos sob “lealdades conflitantes que distorcem o tratamento” (p. 458) o que se relaciona com a identificação do melhor tratamento possível, a forma extremamente difusa da comunidade de pesquisa, o estigma sobre os depressivos e a desigualdade na cobertura dos seguros de saúde (p. 459), fatores que, penso, potencializam o sofrimento de pacientes diante de uma doença que envolve filosoficamente o que está descrito no trecho (p. 458) desta Leitura.
09/01/2025 22h00
Imagem: Mundaréu
“Em que medida estes Estados eram, ou se tornaram, nações?”
Obra: A Sociedade Feudal. CAPITULO V. RUMO À RECONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS: AS EVOLUÇÕES NACIONAIS. V. As nacionalidades. Edições 70, Lisboa. Tradução de Emanuel Lourenço Godinho. De Marc Léopold Benjamin Bloch (France/Lyon, 1886-1944).
Eis o momento em que o grande historiador Marc Bloch fez a pergunta que eu buscava a resposta na medida em que avançava na leitura… O desmantelamento do Império Romano do Ocidente foi seguido por uma pulverização de poder em monarquias que, de certa forma, vislumbravam um reavivamento dos tempos imperiais, durante os seis séculos que se seguiram após a queda com inúmeras transformações e até um renascimento antes do renascimento após o final doo século XI, onde um reagrupamento de forças foi se desenvolvendo em meio a “densidade crescente da população” que “não tornava apenas mais fácil a manutenção da ordem”, assim como “favorecia também a renovação das cidades, do artesanato e das trocas. Graças a uma circulação monetária mais abundante e mais activa, o imposto reaparecia e, com ele, o funcionalismo assalariado e os exércitos pagos, em substituição do ineficaz regime de serviços hereditariamente contratuais”(p. 484), a denotar uma Europa medieval de crescimento econômico, com condados sendo adquiridos por reis (p. 488), adaptando-se às novas condições sociais, como fizera a destoante realeza francesa (p. 489) em relação às germânicas em um emaranhado de jogos de interesses entre duques, condes e o clero.
Afirma Marc Bloch que “não foi entre os homens mais instruídos que nasceu o sentimento nacional” (p. 496), e na aplicação de recursos comuns de expressão comuns os homens não apenas ficam mais próximos uns dos outro, mas também retroalimentam um processo que cria outras expressões aglutinando em meio a uma diversidade cultural combinado com a lealdade política, no caso, monárquica, somando-se a “contributos mais complexos: comunidade de língua, de tradição, de
recordações históricas mais ou menos bem compreendidas; sentido do destino comum imposto por certos quadros políticos, delimitados muito ao acaso, mas cada um dos quais correspondia, porém no seu conjunto, a afinidades profundas e já antigas” (p. 502).,
Tratou-se de um fenômeno deveras complexo, penso, e segue o autor a afirmar que “não foi criado pelo patriotismo” (aqui entendi que seria uma simplificação inútil esse associação para entender melhor a questão) e sim pela sociedade que “recebia de si mesma, estas realidades latentes”, aponta (p. 502).
08/01/2025 22h28
Imagem: Jornal Opção
“O socialismo, para Dostoievski, é apenas a propagação do egoísmo burguês entre os proletários.”
Obra: Ensaios Reunidos. Volume I. 1942-1978. Ensaios de interpretação dostoievskiana. Topbooks/UniverCidade, 1999, Rio de Janeiro. De Otto Maria Carpeaux (Áustria/Viena, 1900-1978).
Algo que me parecia tão científico e ético… destarte não foi fácil me livrar da crença de que as externalidades do modo de produção capitalista poderiam ser superadas pela coletivização dos meios de produção. Contudo, no final de 1994 vivia os últimos dias de minha fé de que o socialismo tornaria o mundo melhor e este trecho (p. 171) me fez lembrar de uma incompreendida (à época) recomendação de ZW: “Leo, você precisa ler Dostoievsky”.
Enquanto meu eu de 19 anos pensava muito em economistas ou cientistas políticos, essa recomendação do velho provocador não fazia sentido, e tão-somente 15 anos depois comecei a me aventurar neste tipo de empreendimento mental quando percebi que ZW se referiu às nuances de um mergulho dostoievskiano, quanto à mentalidade de um autor que traduziu com magistralidade um período crítico da Rússia antes dos sovietes e que se tornou um assunto de “predileção da psicanálise” pela forma como trabalhou suas personagens (p. 168), cujo senso crítico me fez pensar no individualismo em versões muito além do que o ser humano externa para aparentar: primeiro a pensar no europeu liberal, em seus leques, até chegar no tipo aristocrata que também ocorre no âmbito russo que se manteria adiante no regime soviético por uma máscara ou fantasia mediante o que o socialismo segundo Stalin lhe dispunha, muitas vezes a envolver o espírito do proletário alienado em fileiras revolucionárias, um recurso que se acomodou nas vantagens comparativas do aparato ideológico partidário; eis o que Carpeaux me fez pensar quando afirma que em Dostoievsky “o eu, na sua superficialidade, permanece odioso”, é mesquinho, interesseiro e apegado à sua pobreza interior, e assim, penso, desnuda o que parece inacessível enquanto vai se adaptando desonestamente para fazer de conta que representa algo nada associado ao seu egoísmo, travestido de coisas com boas intenções. Outro ponto é o que Carpeaux cita sobre a literatura russa do século XIX ser “profundamente política”, em um país sem tribuna onde essa arte se tornou “a única voz do povo, em plena evolução política e social” (p. 168), o que ajuda a entender o viés politizado de Dostoievsky (p. 169) que, paradoxalmente, “não crê nos próprios ideais” (p. 170).
O ensaio de Carpeaux (pp. 167-173) também me remete a outras questões que fui amadurecendo nas metamorfoses ideológicas que passei onde percebi que “ideologia” muitas vezes não passa de uma fantasia que serve para esconder um eu que não tem coragem de plenamente se apresentar como de fato intenciona em seu íntimo. E algo análogo ocorre com a religião. Carpeaux cita O Grande Inquisidor (p. 171), e exprime a sensação que tive de que Dostoievsky desmoraliza o rótulo de cristão em meio aos interesses pessoais que denotam uma pretensão enganosa de quem vive uma religião do Anticristo. A ideologia, aqui a envolver a fé religiosa, seria uma fuga de si mesmo quando se reconhece a própria mesquinhez para satisfazer o ego de forma secreta no disfarce social. E a crença política, à mon avis, é outra versão dessa fuga.
07/01/2025 21h17
Imagem: BBC
“Le petit Breton avait grandi, la France rapetissé. Pour la relever, j’ai choisi le combat politique.”
Obra: Fils de la Nation. Tome I. Mémoires. Editions Muller, 2018, Paris. De Jean-Marie Le Pen (France/Trinité-sur-Mer, 1928-2025).
Um próspero empreendimento que, não raramente sai do controle, é o negócio de fazer protesto em Paris e, penso, faz jus ao que entendo como capital mundial das manifestações para ilustrar que a elegância francesa também não é capaz de resistir à brutalidade das paixões ideológicas.
E assim, entre as incontáveis, de funcionários públicos, passando por militantes de direita contrários às políticas de imigração e de gênero, até chegar na esquerda, pelo menos duas me chamaram a atenção por um ponto em comum: o sobrenome “Le Pen” mencionado por socialistas em tom de oposição por faixas que faziam alusão à reforma das pensões (um barril de pólvora por lá) e questões ligadas ao racismo, ao antissemitismo e à islamofobia, sendo os últimos três pontos como heranças atribuídas (penso, sob o típico exagero dos antagonismos) à famosa líder da extrema direita Marine, quando estão enraizados no que fizera o Le Pen pai. A filha, por sinal, considerada da “extrema”, o expulsou do partido em 2015, depois mudou o nome da instituição e posicionou-se assim um tanto distante do extremismo paterno, mas então, pensei, se a Marine Le Pen mesmo tendo tomado decisões tão amargas em termos pessoais, imagino, ainda é vista como uma extremista, o que seria então o senhor seu pai Le Pen?
Jean-Marie Le Pen faleceu hoje e, entre polêmicas pesadíssimas que se envolveu, de causar inveja, certamente, aos mais radicais da direita brasileira brucutu, Le Pen foi um militar ex-combatente que gostava de modinhas nazistas que disseminava em suas primeiras campanhas partidárias, seja para ser bem lembrado por seus seguidores, seja para ser objeto de profundo desprezo no lado canhoto (e entre pessoas com um mínimo juízo), seja para ser submetido ao julgamento da história, coisa um tanto vaga que políticos como Emmanuel Macron preferem adotar (talvez para não perder muitos votos entre simpáticos ao extremismo de destra), sem dúvida o senhor Le Pen representou um capítulo vasto, bruto e sombrio da história política francesa desde meados dos anos 1950. Um jovem de família rural, humilde, que cresceu na vida e declarou seu grande amor por sua família, pela pátria e por Deus (soa familiar…), além da Bretanha, e que levou o termo “combat politique” ao extremo à moda francesa tradicional para encarnar uma versão nacionalista-capitalista-racista de Estado análoga ao radicalismo comunista que me remete ao medo, dadas suas crenças e ações; era capaz de ir às vias de fato contra adversários, em especial os socialistas, munido de uma metralhadora giratória em argumentos propositalmente rasos, alienantes, desconexos de uma mínima sensatez para levar ao delírio seus adeptos bestializados, até classificar o Holocausto como “detalhe”, revelando um traço de seus valores que me causaram náusea, apesar dos esforços para me posicionar como leitor.
06/01/2025 21h42
Imagem: flickr
“O testemunho sincero de si para si é a primeira e indispensável condição do conhecimento objetivo.”
Obra: O Jardim das Aflições. De Epicuro à ressureição de César: ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. Capítulo 3. Ética de Epicuro. §9 A abolição da consciência. Vide Editorial, 2015, Campinas. De Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (Brasil/São Paulo, 1947-2022).
Eis um Olavo que primeiro conheci como leitor, um tanto diferente do que vi posteriormente em redes sociais, muitas vezes irreconhecível, diga-se de passagem. Prefiro o escritor e professor ao militante bolsonarista, alguns diriam “guru”, em outras palavras. E assim aprecio sua abordagem sobre o Tetrafármacon que, aponta, é “uma psicologia prática” (p. 74) para a conquista do que Epicuro entende como felicidade. Uma disciplina “necrófila” (p. 76), entende, plena de inconsistência lógica (p. 75) que promove uma meditação saudosista que busca sobrepor o desconforto da vida presente com recordações agradáveis do passado (p. 74).
A prática persistente do epicurismo insere, na crítica de Olavo, o problema da abolição da capacidade de intuitivamente diferenciar as sensações presentes das imaginadas que estão para a lógica como o efetivo e o possível (p. 77), sendo “uma física para hipnotizados” (p. 78) que compromete o senso do real, que está sujeito às limitações do espaço e do tempo; o primeiro com certa flexibilidade na percepção na medida em que é possível se deslocar de um ponto a outro e modificar a percepção, o que se pode ver, ouvir, sentir, mas o segundo é “invencível”, pois o que passou apenas pode ser re-produzido desde dentro, quando se consegue lembrar indo ao pensado ou imaginado a implicar responsabilidade com a memória (p. 79), o que faz do homem uma testemunha de si mesmo em um ato de liberdade moral, na medida em que envolve uma decisão de ser verdadeiro ou não quanto a se expressar acerca do que se passa em seu interior (algo não inato) como condição para o conhecimento objetivo no contexto do trecho (p. 80) desta Leitura.
Em suma, o conhecimento objetivo depende, na crítica de Olavo, da opção preliminar, em foro íntimo, de assumir um compromisso ou não com a verdade e a coerência (p. 81). Após mencionar como uma “aspiração utópica e autocontraditória” (p. 81) o desejo de que todos fossem compromissados com a verdade, mediante a realidade de que o ser humano sempre encontra formas de evitá-la, para alcançar um alívio no estresse que uma verdade pode provocar em uma psique, em seguida insere o que entende pela melhor definição de neurose, feita pelo psicólogo clínico Juan Alfredo César Müller (1927-1990) de que “é uma mentira esquecida na qual você ainda acredita” (p. 82), o que faz dessa negação da verdade algo sistemático em um programa que se automultiplica. Com isso, Olavo defende que não pode haver consciência moral, nem conhecimento objetivo, sem algum desconforto ou sofrimento psíquico voluntário (p. 82).
05/01/2025 12h38
Imagem: The Orthodox Church in America
“Se não puderdes vos lembrar de tudo, em vez de tudo, eu vos imploro, jamais esqueçais de que não compartilhar riquezas com os pobres é roubar os pobres e privá-los de seus meios de subsistência. Os bens que detemos não são apenas nossos, mas deles também. […]”
Obra: A Riqueza e a Pobreza: Sermões do Boca de Ouro São João Crisóstomo. Segundo sermão. Paz e Terra, 2022, Rio de Janeiro. Tradução de Livia Almeida. De São João Crisóstomo (Império Romano/Antioquia, 347-407).
Um pouco antes do recesso, em auguri para mais uma passagem de ano solar que se aproximava, um interlocutor cliente, um tanto envolvido com política partidária progressista, empolgado me assegurou que “lendo esta obra, abandonaria minha posição de ver o comunismo incompatível com a fé cristã”.
Entre 2003 e 2007 minha vida de leitor passou por uma profunda transformação: passei a ver a leitura não mais como uma necessidade acadêmica e sim como o ar que respiro, o volume mínimo de água que precisava tomar diariamente para me manter vivo, o alimento para ter disposição com o espírito; tornou-se uma necessidade espiritual e fisiológica e se intensificava em noites que me recolhia aos “pulmões”. Outra mudança foi de amplitude: antes de 2003 tinha uma maior concentração em obras de economia, política e filosofia, quando percebi um oceano literário a navegar, metáfora de minha ignorância. Quanto mais lia, mais tomava conhecimento de meu desconhecimento.
São João Crisóstomo foi um dos que marcaram aquele período. O Boca de Ouro surgiu como uma espécie de “problema de heurística” diante de minha base literária marxista até meados dos anos 1990. Quando o cliente me falou que eu precisava “ler este livro”, o meu sorriso imediato o fez perguntar sobre o motivo da risada. “É que você está me reconectando com o Leonardo de 2004” que se deparou com De eleemosyna e as cinco Homilias sobre Lázaro em questões análogas cruzadas com o Novo Testamento e o que pude ler de Dom Helder Câmara, Frei Leonardo Boff, Dom Jacques Gaillot, Frei Beto e tantos outros pensadores envolvidos com política progressista, considerados “comunistas”.
Junto com essa nova carga de experiências de leitura, inseri o que tinha de Marx e do marxismo, quando percebi que, entre alguns entusiastas com a Teologia da Libertação (TL) e a Igreja Integral (versão protestante do progressismo da TL), havia uma questão face ao que entendiam de “comunismo” e “doutrina social” em uma fé cristã primitiva, o que dificultava a diferenciação de pautas ideológicas derivadas de concepções marxistas que apenas pareciam alinhadas. Coloquei aspas não para negar o termo e sim para diferenciá-lo do comunismo que se desenvolveu a partir de Marx. Possuem fatores opostos: o “comunismo” da igreja primitiva é teísta, baseado em livre associação (ofertas, doações e compartilhamentos), além de pacifista. Pensei à época: quando alguém doa, transfere livremente a posse de um bem para uma instituição cristã, está praticando uma coletivização voluntária que pode ser considerada como uma forma de comunismo, cuja essência está na caridade e se torna visível na liberdade de materializar uma justiça social. Já o comunismo a partir de Marx é um resultado de uma superação dialética a partir do conceito de “luta de classes”: é revolucionário, beligerante, combativo, coercitivo, partidário-extremista, sua base reside em um aparato político compulsivo que deve vencer a tal luta enquanto organizado para consolidar a chamada “ditadura do proletariado”; é inevitavelmente violento, ateísta, invasivo à privacidade, utilitarista, diria “maquiavélico” no sentido de ser uma colcha de retalhos de ideias e conceitos aproveitados conforme conveniência onde o que importa unicamente é alcançar o objetivo de erradicar os detentores de propriedade privada dos meios de produção, não tendo escrúpulo para exterminar quem estiver contrário a seus intentos por se julgar no lado certo da história.
Quando ponderei esses fatores, perguntei a mim mesmo: Teria sido comunista o movimento de Jesus, assim como a sua institucionalização inicial em comunidades, da mesma forma que o marxismo é comunista? A confusão não seria um terrível engano que aliena muitos entusiastas em fileiras de partidos socialistas ou comunistas que na verdade estão no âmbito de pautas que indicam a intenção de aniquilar a própria fé cristã?
Então, ao mencionar o trecho (p. 54) deste sermão, o segundo de uma série onde trabalha questões sobre quem levava uma vida de festividades, embriagues e outras coisas indiferentes à santidade que entendia sobre a vida cristã (p. 12), insere sua análise sobre a parábola de Lázaro e o homem rico (pp 23-40), meu interlocutor me fez suscitar uma saraivada de problemas que deixei para trás quando percebi as diferenças de categoria.
O Boca de Ouro apela a seus ouvintes para refletirem sobre o profundo sentido da santidade cristã como sabedoria prática onde se inclui a caridade diante de problemas sociais de uma Antioquia em crise econômica, repleta de pessoas passando necessidade. Crisóstomo, penso, em nenhum ponto do sermão ordena que se faça uma revolução, ou qualquer ação violenta ou coercitiva no sentido comunista moderno para tomar posses e coletivizar bens. Quando afirma que “os bens que detemos não são apenas nossos, mas deles também”, se relaciona com o que a parábola sinaliza como bens que foram recebidos (p. 55), e que a forma como nos relacionamos com essas dádivas terá consequências no juízo divino. Na medida em que há indiferença pelo sofrimento alheio, o que inclui as necessidades básicas materiais, o uso dos bens se torna injusto diante de Deus; rouba-se a dignidade do próximo. Crisóstomo apela então a uma atitude entre cristãos diante dos mais necessitados para “alimentar o Cristo na pobreza e amealhar grandes proveitos para a vida futura” (p. 56), a sinalizar que a fé se movimenta por essa caridade que não é uma abstração, mas uma realidade, da assistência social que denota o quanto a responsabilidade pela posse dos bens foi bem conduzida a apontar para um plano além da vida terrena, o que é algo bem diferente do materialismo dialético que pauta partidos comunistas em suas variadas interpretações de Marx que convergem ao espírito ditatorial, violento e revolucionário que na verdade antagoniza com a base da ideia cristã sobre os problemas sociais.
04/01/2025 19h11
Imagem: Goodreads
“Perhaps even people you like and admire immensely can make you see the World in ways you would rather not.”
Obra: Piranesi. 4. Part 6: Wave. Other people. Bloomsbury Publishing Plc, 2020, New York. De Susanna Mary Clarke (UK/England/Nottingham, 1959).
A Casa-Mundo e suas portas em Piranesi e o intrigante “16”, uma mulher chamada “Raphael” em uma narrativa que testa intensamente a perspicácia do leitor. Este romance é uma prova de como a literatura atravessa os tempos com arte e sofisticação em meio à mediocridade do lugar comum.
Tenho a impressão de que se fizerem um filme baseado nesta obra, o primeiro grande problema será o de confrontar a ideia predominante do cinema como mero entretenimento, distante da arte para provocar o espirito humano além de seus pragmatismos em torno de carências emocionais.
Quanto à conversa com Raphael, Piranesi está em uma busca de si mesmo e o traço descrito a partir do que lhe dissera seu interlocutor na Casa-Mundo me faz pensar em inúmeras ocasiões onde vi a admiração de uma pessoa por outra ser confrontada com o que a pessoa admirada era capaz em termos de fazer quem lhe estima ver o mundo de maneiras um tanto fora das preferências ou, diria, desagradáveis, mediante algum sistema de crenças e convicções. Às vezes uma pessoa que temos em grande estima, muitas vezes pela inteligência, pode nos surpreender negativamente com um espírito crítico que coloca em discussão paradigmas que conduzem nosso jeito de pensar, e isso não necessariamente passa por uma descoberta de uma “falha de caráter” ou qualquer coisa desabonadora em termos de valores do outro que questiona, e sim da forma como as crenças dominam nossos juízos que interpretam a realidade. Então, quando Raphael fez uma determinada pergunta a si mesmo, na perspectiva de quem ouviu soou como algo desagradável ou se o mundo inteiro parecesse um lugar mais sombrio, triste. Então Piranesi, em seu processo de descobertas, pensou que talvez até pessoas prezadas, admiradas imensamente, podem fazer com que ele enxergue o mundo de maneiras que não prefere.
03/01/2025 21h23
Imagem: Revista Bula
“Morro do que há no mundo:
do que vi, do que ouvi.
Morro do que vivi.
Morro comigo, apenas:
com lembranças amadas,
porém desesperadas.
Morro cheia de assombro
por não sentir em mim
nem princípio nem fim.
Morro: e a circunferência
fica, em redor, fechada.
Dentro sou tudo e nada.”
Obra: Morro do que há no mundo. Biblioteca Digital Luso-Brasileira. Manuscrito. B869.1. Junho/63. De Cecília Benevides de Carvalho Meireles (Brasil/Rio de Janeiro, 1901-1964).
Eterno retorno – por Heitor Odranoel Bonaventura
Não cabem em mim
o tempo e o espaço
quando o mundo
sem poesia
passa indolente por
meu universo…
e dou saltos…
vou ao começo,
depois ao fim.
Infinitamente
morro em um
Déjà vu
subversivo
e indomável
para que
um outro eu
retorne
eternamente.
02/01/2025 20h54
Imagem: Babelio
“Vladimir Poutine a un projet politique qu’il met en ouvre, em Russie et à l’extérieur du páys.”
Obra: La fascination russe. Politique française : trente ans de complaisance vis-à-vis de la Russie. Partie IV. 3. Realistes oi naïfs? Mise au point. Robert Laffont, 2024, Paris. De Elsa Vidal (1974).
Torno à recente obra da jornalista Elsa Vidal em um ponto que mais me deixou reflexivo. Enquanto na França e, penso, em boa parte do Ocidente, há muitas conjecturas e narrativas sobre Vladimir Putin e a Rússia, Vidal aponta que o governante do Kremlin tem um projeto político em andamento com duas frentes: no âmbito interno e para o exterior, e que não será interrompido por propostas “francas, diretas ou exigentes como um diálogo de diplomata”, o que Emannuel Macron tentou (pp. 402-403) e não deu certo. Pelo que entendi, será preciso fazer um esforço bem diferente e maior para tentar pensar como Putin e ver que se trata de um projeto de dominação tão nefasto quanto o que os Estados Unidos exercem no próprio Ocidente, algo que na França é tão explorado em narrativas de políticos que se odeiam (pelo menos aparentemente), mas concordam em contemporizar com a Rússia. Isso posto, entendi que seria preciso repensar estratégias pela realpolitik para lidar com a Rússia de Putin, em suma, inserir novas variáveis no tabuleiro das forças para tirar o ditador russo da zona de conforto em relação a um Ocidente com líderes previsíveis e assim bem manipuláveis.
Vidal, um pouco antes, menciona casos de análises de especialistas publicadas em jornais franceses que apontavam que Putin não invadiria a Ucrânia, um pouco antes de eclosão da guerra. Também menciona Heléne Carrére d’Encausse (1929-2023) que, afirma, por longo tempo exerceu influência na política francesa em relação à Rússia “em detrimento dos experts mais lúcidos” (p. 400), além de Alice Rufo, então conselheira do Palácio do Eliseu (p. 403), cuja análise passou distante da realidade em relação ao que entendeu em 2021 sobre o risco do conflito com a Ucrânia.
À semelhança do que ocorre na pátria mãe gentil, a chiquérrima França também não escapa da ilusão de conhecimento sobre a realidade entre os que se portam como mais esclarecidos, neste caso bem mais exponencial quando se pensa em termos geopolíticos, seja na forma de jornalistas e articuladores que emitem dissonância cognitiva aos seus ouvintes e seguidores, seja por “experts” e políticos dentro e fora do governo que erram grotescamente em suas previsões, o que se torna ainda mais bizarro quando se cogita que analistas, que Vidal chama de “pseudorealistas” (p. 403) não querem ver o projeto de Putin (para ela parece bem claro o que o ex-agente da KGB pretende com a “mãe Rússia”), além da suposta influência que correria por dentro dos bastidores políticos (no contexto da Assembleia Nacional), à mon avis, em favor do regime russo que Vidal classifica como “imperialista e vingativo” (p. 405).
Esta leitura me fez lembrar das análises que li antes da Segunda Guerra, incapazes de perceber a gravidade do então perigo que representava Hitler, crentes na doutrina do “appeasement”, além de ZW que me alertava nos anos 1990: sabemos pouquíssimo em relação à realidade no mundo político, muitas vezes nada, e por isso é melhor ficar calado e “matutar” para não passar vergonha, pois os que jogam neste tabuleiro logo aprendem a ter duas versões para contar a quem tenta entender o que estão fazendo: uma para os de dentro, do seu ciclo íntimo, extremamente restrito, e outra para os de fora, que muitas vezes desinforma e pode ser subdividida em várias, a depender da faixa de público que se deseja alcançar ou manipular.
01/01/2025 12h34
Imagem: ND+
“Todo maratonista planeja o melhor para sua corrida. Ele controla a respiração, calcula o trajeto, organiza-se com os melhores equipamentos […]”
Obra: Café com Deus Pai. Porções diárias de transformação. Edição 2025. 01 | JAN. Pronto para a maratona? Velos, 2024, Itajaí. De Junior Rostirola.
Neste alvorecer de 2025, penso em uma sabedoria ensinada neste belo livro, presente de minha esposa. Café com Deus Pai dispõe de uma devocional para cada dia do ano. A obra é do pastor Junior Rostirola.
Ao inserir na primeira devocional do ano uma metáfora em torno da visão de um maratonista, em comparação com o que compete a um corredor dos 100 metros rasos, Junior Rostirola me remete a uma ideia de planejamento que me é caríssima.
Em março do ano passado um cliente me comunicou um grave problema que precisava resolver com “urgência”: tinha recebido uma empresa que, após algumas semanas admitida na carteira de clientes, teve o CNPJ inativado pela Receita Federal por falta de declarações não entregues pelo escritório anterior. Quando li a primeira devocional, lembrei-me imediatamente da forma como esse problema foi resolvido.
Marquei um atendimento preferencial no Zoom no dia seguinte (08h00) para triagem. Pontuei as pendências e passei um cronograma de atividades com um prazo para cada tarefa e uma estimativa (preliminar) de 21 dias para atendimento pleno às pendências listadas na situação fiscal do eCac por ordem de prioridade: (1) DCTF, (2, ECD) Sped Contábil, (3, ECF) Sped Contábil Fiscal e (4) Sped Contribuições.
Em se tratando de uma empresa no lucro real, carecia de identificação dos impostos devidos no exercício em questão (o escritório anterior tinha realizado apenas essa parte, e com erros) para então declará-los na DCTF (faltava a maior parte dos meses de apuração). Em paralelo poderia concluir o livro diário e o encerramento do balanço (ao notar que o escritório anterior tinha feito apenas o livro caixa e apresentou balancetes rudimentares) para gerar e transmitir o Sped Contábil (em se tratando de uma empresa no lucro real), ação que é prerrogativa para resolver o problema seguinte: o Sped Contábil Fiscal. Em paralelo, o setor fiscal poderia enviar as declarações faltantes do Sped Contribuições, desde que tudo estivesse em harmonia com as bases da contabilidade, obviamente.
Atordoado, o empresário com o CNPJ inativo pressionava cada vez mais o meu cliente para resolver tudo “logo”; o leigo não é obrigado a entender o tempo necessário, o que deve ser explicado pelo contador, a autoridade em questão, mas não sendo devidamente esclarecido, passou a ligar várias vezes durante o dia, e o escritório fazia o mesmo comigo, adotando o que chamo de “estresse inútil”, e desta maneira esbarrou em minha filosofia de trabalho onde não atendo ligações para não interromper minhas tarefas programadas. Passo o dia em compromissos de hora marcada e quando estou em sessão no Zoom fico exclusivo com o cliente em atendimento. Não converso pelo WhatsApp e tudo o que faço é programado. Sendo assim, a distinta “senhora Gioconda”, com a sua peculiar eficiência, retornou mensagem o orientando a seguir o cronograma e aguardar a próxima reunião, que seria no dia seguinte às 08h00: quando tinha avaliado a gravidade na primeira conversa, inseri na programação de atendimento um pacote de seis agendamentos dentro dos 21 dias e três sessões diárias no Zoom das 08h00 às 08h15 para tratar de eventuais dúvidas. Seguimos com o plano de recuperação fiscal da empresa.
Na segunda sessão preferencial no Zoom o meu cliente parecia desesperado, pois o seu cliente estava sem condições de emitir nota fiscal e com valores retidos em conta corrente. Notei que ele tinha assimilado o desespero em vez de cultivar a calma e, irracionalmente, passou a buscar uma solução “imediata”, resposta: impossível. Havia notificações do fisco sobre a ausência de ECF e outra notificações com valores automaticamente apurados das bases de cartão de crédito/NF-e e NFC-e. Trata-se de um problema que exige planejamento de ações com sequenciamento lógico muito bem pensado. Destarte, para passar a tarefa 3 (o ponto crítico, ECF), tinha que resolver a tarefa 2 (ECD), e para resolver a tarefa 2 precisa encerrar o exercício contábil, e para encerrar o exercício contábil precisava resolver os problemas identificados nos balancetes em uma força tarefa que alimentava o sistema contábil. Ao notar que o cliente (escritório) não me escutava, ou seja, não estava levando a sério que o único caminho correto seria o de realizar as tarefas conforme cada estágio previsto, e que não havia como resolver o problema “imediatamente”, então usei uma metáfora com a figura do maratonista. “Estamos em uma maratona, colega”, afirmei, e “você precisa aceitar que não pode resolver isso correndo apenas alguns metros, como o seu cliente pensa de forma equivocada, pois são tarefas relativamente complexas que demandam perícia e tempo, e assim teremos 21 dias estimados, mas ela poderá ser finalizada antes, a depender de uma série de fatores, só não será possível resolvê-la agora, imediatamente, temos que ir passo a passo, vencendo cada degrau dessa escada e assim chegaremos lá no alto”. O desespero residia em ter que repassar essa informação ao cliente com o CNPJ inativado que, apesar de ter chegado ao escritório ciente dessas pendências, parecia exigir do escritório atual o que me pareceu injusto, improcedente. Então sugeri ao cliente refletir sobre “fazer um diagnóstico fiscal profundo de toda entidade antes de admiti-la na carteira de clientes e deixar isso bem claro em um termo de ocorrência com cobrança extra”, o que também demanda um planejamento que raramente é realizado em escritórios pela ânsia de conseguir novos contratos, e desta forma acabam aceitando tudo que aparece e eis que uma bomba pode ir junto e, infelizmente, no caso de meu cliente, veio e explodiu em seu colo.
Apliquei ao problema o mesmo que faço quando organizado o que chamo de “ordem do dia”; a lista diária de atendimentos programados. Neste modelo neutralizo imediatismos e sequencio tarefas por ordem de prioridades com foco na tarefa programada para o momento. Não é inteligente tentar realizar várias coisas ao mesmo tempo ou pensar que se tem o atributo divino da onipresença com os clientes, penso, pois caso contrário, o relacionamento com os clientes será infantilizado ou baseado em uma situação de promessas onde apenas os mentirosos podem satisfazê-los (aqui tomei de empréstimo um dito do economista Thomas Sowell, em relação ao que políticos fazem com problemas econômicos).
O pastor Junior Rostirola aplica a uma visão para o ano que se inicia, mas pode ser pensada para cada jornada ou problema específico conforma a gravidade. Com a mentalidade de “maratonista” no trabalho aprendi a:
1) mensurar a capacidade e dosar o ritmo dos atendimentos ou a “respiração”;
2) estabelecer uma ordem do dia ou a “calcular o trajeto”;
3) usar os “melhores equipamentos”, combinar o remoto eventualmente com vídeo conferência (em agendamentos e atendimentos da carteira C1) com opção de gravação e recursos pedagógicos, conforme o caso, o que me fez refletir para deixar o WhastApp e o e-mail com a Giocona (robô) e me concentrar em uma verdadeira conversa humana por vídeo e voz;
4) ter pausas para repouso na disciplina da ordem do dia ou a “tomar alguns goles d’agua para recuperar o fôlego”;
Aprendi a neutralizar o imediatismo de clientes, alguns com sinais de transtorno de ansiedade, onde a mentalidade de “corredor dos 100 metros” ilustrada pelo pastor é a regra que não funciona porque ignora a racionalidade, a tecnicidade, a perícia, a ação bem meditada, elementos que dão embasamento à definição de prioridade, seguida pela execução do sequenciamento de tarefas em um bojo de ações que são fundamentais para se chegar à linha final, à conclusão bem sucedida de qualquer trabalho bem feito em contabilidade.
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