Uma leitura ao dia embarca para mais uma viagem de memórias literárias com Habanera da ópera Carmem, “L’amour est un oiseau rebelle“, composição de Georges Bizet (France/Paris, 1838-1875) na interpretação icônica de Maria Callas (EUA/Nova York, 1923-1977).

Imagem: Revista Bula

Cecília Meireles

“[…] E viu-se a si mesma, de novo, no espelho, — mas uma outra, diferente da anterior, perdido aquele ar mais infantil dos cabelos esvoaçantes, onde a luz armava surpresas de claridade — mais séria agora, com os cabelos concentrados num tom mais escuro, parados, quietos, unidos, tristes.”

Obra: Olhinhos de Gato. Capítulo 13. Moderna, 1983, São Paulo. De Cecília Benevides de Carvalho Meireles (Brasil/Rio de Janeiro, 1901-1964).

Grande referência em minha forma de ver o exercício da leitura, Cecília Meireles. Nesta obra encontrei uma inspiração para desenvolver um empreendimento literário pela forma como narra em terceira pessoa sua autobiografia.

Olhinhos de Gato me convida para pensar com um requinte poético a partir da menina personagem em suas memórias e descobertas, quando então ao final em um corte de cabelo, onde perdeu seus cachinhos, se vê adiante um rito de passagem, com mudanças físicas que consegue perceber em si mesma, trecho (p. 169) desta Leitura.

De Olhinhos de Gato, aqui penso na própria Cecília menina, adentrei em um universo familiar com Boquinha de Doce, sua avó Jacinta que “conta-lhe muitas estórias prodigiosas. Conta-lhe que, no tempo em que Deus andava no mundo, um moço, que perdera sua mãe, foi pedir-lhe, chorando, para a botar de novo viva” (p. 25), em referência, penso, a Olhinhos de Gato ter perdido os pais e ter ido morar com ela, e Dentinho de Arroz, sua ama Pedrina que “dá-lhe a sopa, corta-lhe a carne. Espalha a comida no prato, para esfriar mais depressa. E conta-lhe histórias, para ela comer com mais vontade” (p. 37).

Cecília Meireles, penso, dá uma aula magistral de construção poética em torno da própria história de vida. Mais uma mulher-übermensch, brasileira, de uma belo orgulho por uma literatura cuja sofisticação a inclui no rol dos mais significativas na singular sonoridade da língua portuguesa.

Mais adiante penso no tipo feminino desenvolvido nos vislumbres de Olhinhos de Gato, a ensaiar uma visão ampla e ao mesmo tempo existencial, sublime, espiritual, além da concepção de gênero, amalgamada com a natureza, sentindo-se “cachorro, morcego, formiga, lesma”, “vegetal”, sob o encanto da vida como um filósofo que supera o cotidiano e se une ao poético, Olhinhos de Gato vai tomando ciência do quanto não é a mesma em cada instante, e eis que ficou “sentada, sorrindo, e enterrada, e acabada, misturada com as sementes, as formigas, as conchas”, “afrouxou suas moléculas, dispensou qualquer contorno, espraiou-se na fumaça das nuvens, dissipou-se indeterminadamente pelo céu, foi tudo e nada ao mesmo tempo, sem lado de cima, sem lado de baixo” (p. 176).

Imagem: Famiglia Cristiana

Santa Caterina da Siena

“Aprite, aprite l’occhio dell’intelletto; e non dormite più in tanta cecità. […]”

Obra: Le Lettere di Santa Caterina da Siena. Libro Quinto. CCCXVII – Alla Reina di Napoli. Edição online. ilpalio.siena.it. De Caterina di Jacopo di Benincasa (Italia/Siena, 1347-1380).

Retorno [309] à virgem de Siena que se consagrou como “serva e escrava de Jesus Cristo” e ditava suas cartas. Caterina não era letrada quando se tornou-se um fenômeno medieval que surgiu como se o espírito humano quisesse contrastar a sofisticação feminina com paradigmas de uma sociedade em que o espaço para a mulher se expressar praticamente não existia.

Quando visitei Siena (2018) pude conferir um pouco do seu legado espiritual; cidade importante no tempo em que sua ordem se destacou, no contexto de uma península Itálica de reinos que se rivalizavam sob uma única fé regida por uma Igreja em crise com a sede transferida de Roma para Avignon. A família de Catarina era ligada ao comércio e tinha boas condições econômicas. Ainda adolescente decidiu se casar com Cristo para o celibato e a vida na pobreza ao serviço pelos mais carentes. Não demorou para sua autoridade se tornar relevante, de maneira que passou a produzir cartas para papas, reis e outras autoridades civis e religiosas. Catarina não conhecia política no sentido intelectual, era analfabeta, e assim estava muito distante da formação tradicional dos doutores da Igreja à época. De personalidade forte, marcante, quando se firmou na ordem não tinha receio de questionar, exortar, advertir e até determinar ensinamentos da Igreja quando se remetia a pessoas poderosas e um exemplo que encontrei foi esta carta à rainha de Nápoles Giovanna I (1325-1382), onde, em meio a seu estilo devoto, simples e elegante de se expressar, dá uma demonstração do quanto costumava ser bem direta:

Abra, abra o olho do intelecto; e não durmas mais com tanta cegueira… nem te falo com reverência, porque vejo grande mudança em ti; como mulher se tornaste serva e escrava daquilo que não és, sujeitando-se à mentira… deixaste o seio da tua mãe da Santa Igreja, onde foste nutrida durante tanto tempo”.

A irmã Catarina se referia às decisões tomadas por Giovanna I, motivadas por conveniências políticas, quando não reconheceu Urbano VI eleito em Roma, envolto à crise contra Avignon que culminaria em papados simultâneos.

Talvez o mundo hodierno, pensei por um instante, careça do espírito de Catarina de Siena entre pessoas com o carisma de liderança, não necessariamente religiosas, que possam enquadrar poderosos dos tipos Trump, Putin…

309. 30/07/2023 14h30

Imagem: Picturing Golda Meir

Golda Meir

“[…] in the Middle East you cannot attain what you want and have to be satisfied with what is available […]”

Obra: Golda Meir: A Political Biography. 20 Everything Is Sinking (1974–1978). Yediot Aḥaronot, 2008, Sifre ḥemed. Publicado por De Gruyter Oldenbourg. De Meron Medzini (1932).

De volta [308] a esta oportuna biografia política da dama de ferro israelense.

Antes, pensei, quão benéfico para o exercício da leitura é estar despossuído de paixão ideológica para não tropeçar na pedra do viés de confirmação ou da posição partidária que impede a honestidade intelectual para uma melhor compreensão de fatos e personalidades.

Um sionista do tipo radical, expansionista e que não vê problema em matar dezenas de milhares de civis inocentes em Gaza para eliminar terroristas, paradoxalmente concordará com um militante progressista, de esquerda, que se acha “humano”, diria, esperto demais, e assim defende a erradicação do Estado de Israel e o apoio a islâmicos extremistas como “instrumentos” para seus interesses antiocidentais (a ignorar que os mesmos islâmicos radicais aniquilam quase tudo que tais progressistas defendem); refiro-me ao que ambos militam, em termos de intolerância ao espaço defendido pelo outro, e dessa forma categoricamente rejeitariam o argumento que Golda Meir utiliza no trecho (p. 665) desta Leitura.

A ironia é que a posição de Meir, na condição de ex-primeira-minista, foi negativa em relação aos termos aceitos por Israel face à tentativa de um grande acordo de paz no Médio Oriente em 1977, mediante o governo Jimmy Carter que emitiu uma declaração conjunta com a União Soviética sobre a retomada da conferência de Genebra; neste cenário Meir entendeu que a posição dos árabes radicais seria a dominante e se algo desse errado para finalizar o acordo, Israel seria culpado.

Então seria melhor, pelo que entendi na visão de Meir, negociar bilateralmente com os governos que intencionassem de fato pautas próximas de questões sobre fronteiras abertas, relações diplomáticas e comércio, ou seja, dentro de um realismo pois, assim entendo, quando afirma que “no Oriente Médio você não pode obter o que quer e tem que se contentar com o que está disponível”. Meir enfatiza uma via de mão dupla, um mútuo reconhecimento concreto d Israel e seus vizinhos dispostos a negociar, no entanto, no rascunho do acordo, as questões concretas não estavam consideradas, o que reforçou a tese da dama de ferro.

O imenso peso que Meir carregou em sua vida política pode ser sintetizado na confissão que ela fez ao seu amigo íntimo Yaʾacov Hazan em relação às suas primeiras decisões na Guerra de Yom Kippur (penso sobretudo nas perdas de militares israelenses): um ano depois em uma entrevista de rádio, Meir afirmou que nunca poderia se perdoar “até o dia da morte, que sua vida terminou” (ela não se referiu à carreira política) no advento da Guerra do Yom Kippur, pois ela, reconhece, não seguiu seus medos e sentidos, e decidiu aceitar conselhos de quem lhe assessorava. Meir confessou que sentiu o perigo enorme, mas deu ouvidos às “vozes calmantes e aceitou suas garantias”. Mesmo estando juridicamente em bases sólidas, isso não a interessava nem um pouco, e sim o fato de que sentiu o perigo e não foi fiel a si mesma naquela ocasião, preferindo seguir seus conselheiros, o que resultou em um grande fracasso, e mesmo sendo inocentada na Comissão Agranat, isso não a interessava (p. 604).

308. 13/11/2023 00h47, 02/01/2024 00h02, 27/10/2024 00h01

Imagem: The Nobel Prize

Malala Yousafzai

“[…] In the Quran it is written, God wants usto have knowledge. […]”

Obra: I am Malala. The Girl Who Stood Up for Education and was Shot by the Taliban. Epilogue. One Child, One Teacher, One Book, One Pen… Weidenfeld & Nicolson, 2013. De Malala Yousafzai (Paquistão/Mingora, 1997) e Cristina Lamb (UK/England/London, 1965).

Lá pelos idos de 2009 me deixou fascinado a história por trás do pseudônimo Gul Makai (13), nome da heroína de uma história folclórica (pashtun), em um trabalho promovido pela BBC para contar um pouco do cotidiano estudantil em meio ao extremismo do Talibã. Primeiro pelo contexto em que foi adotado, para preservar a identidade por conta de eventuais ameaças, e segundo pela idade da aluna e co-autora: 12 anos. O primeiro título do diário que Malala escreveu: TENHO MEDO. “A primeira anotação do meu diário apareceu em 3 de janeiro de 2009, sob o título TENHO MEDO: ‘Tive um pesadelo ontem à noite cheio de helicópteros militares e talibãs'”, conta (13).

Entre ameaças e o medo constantes, na tarde de 19 de outubro de 2012, Malala já estava na plenitude de sua vocação para se enveredar pela educação ameaçada por um sombrio mundo de extremistas, quando então foi alvejada com três tiros em um ônibus escolar; “Não tive a chance de respondê-los: ‘Quem é Malala?’ (20). Milagrosamente ela sobreviveu ao passar por complexas cirurgias de recuperação facial e de nervos (24).

Quando Malala foi agraciada com o Nobel da Paz em 2014, junto com Kailash Satyarthi (Índia/Vidisha, 1954), pensei, “justíssimo” e comentei com um colega que veio me convidar a entrar em um partido de “direita”. Ele parecia mais preocupado com o uso da história dela pelo que chama de “agenda global-progressista da ONU e dos comunistas”, e então pensei o quanto uma mente programada para politizar tudo, mediante paixão ideológica, acaba em um medonho complexo de disfunções cognitivas na leitura de fatos. Tirar algum proveito político do ocorrido com Malala é um problema óbvio a ser separado e que nada significa diante da grandiosidade de sua história de vida. A mente politizada fica no vazio quando, penso, não vivenciou o que Malala passou e ainda enfrenta, quando acredita que, ao “problematizar”, limitado à sua visão estrita de mundo, encontrará algum entendimento mais depurado das coisas enquanto não tem a menor noção sobre o que representa o movimento real daquilo que tenta abordar, onde se situam, por exemplo, as ameaças de morte e a violência brutal pela qual Malala foi submetida, sobretudo por uma causa objetiva e nobre, que não se supera com abstrações ideológicas de quem acha que pode melhorar o mundo dando opiniões.

Em duas ocasiões pude ouvir muçulmanos e pensar sobre o ponto destacado por Malala no trecho desta Leitura no epílogo assinado em agosto de 2013, em Birmingham. O primeiro foi em 2015 quando visitei a mesquita Omar Ibn Al-Khattab em Foz do Iguaçu, e ao ouvir o atendente, por sinal muito gentil, pude perceber a importância da educação ampla na fé islâmica, independente do gênero. A reverência e o silêncio foram pontos que me chamaram bastante a atenção na experiência, muito diferente do que ocorre, por exemplo, em muitos templos evangélicos. O segundo foi recente: sobre a Surata Al-Tawbah (9:71) quanto à igualdade de condições na educação para homens e mulheres no Corão, o que me remeteu às palavras de Malala: “O Islã afirma que meninos e meninas devem ir à escola. Deus deseja que tenhamos conhecimento”.

Estereótipos e clichês sobre muçulmanos são as coisas que mais comprometem um melhor discernimento dos problemas que Malala até hoje enfrenta em sua vida dedicada à defesa da educação universal, no contexto de sua sociedade bastante impactada por uma visão determinada da fé islâmica, embora entendo que seja uma questão cuja complexidade envolve o ponto de que a fé islâmica tem uma visão de sociedade de forma abrangente, onde a separação entre o laico e o religioso não faz parte do propósito. De qualquer forma, o radicalismo do Talibã representa um viés que se distancia bastante do que está pacificado no Islã em torno do tema.

Imagem: ABL

Fernanda Montenegro

“[…] na pré-adolescência lidei com o que considero uma das fases mais difíceis, mais traumáticas, pelas quais passei.”

Obra: Prólogo, ato, epílogo: memórias. Prólogo. Companhia das Letras, 2019, eBook Kindle. De Arlette Pinheiro Monteiro Torres (Brasil/DF/Rio de Janeiro, 1929).

Retorno [306] à autobiografia da maior dama da dramaturgia brasileira e escritora ocupante da cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras (ABL, ver link sobre a imagem). A expressão “orgulho de ser brasileiro”, à mon avis, ganha sentido quando me volto à sua história de vida.

Eis um briefing sobre o começo da trajetória da que seria a maior atriz da história do Brasil.

A menininha Arlette, brasileira, filha de imigrantes com raízes italianas e portuguesas, todos na esperança de que no Brasil sairiam da pobreza, aos cinco anos concluiu o primário e foi para o ginásio. No Brasil à época se estudava latim (uma disciplina que jamais deveria ter saído da grade, penso). No entanto, a carga de disciplinas para a garotinha foi demais e Arlette viveu uma depressão, transtorno mencionado no contexto do trecho desta Leitura; “Eu me sentia falida. Humilhada. Incapacitada” (p. 57). Os país entenderam e não forçaram, e aqui vejo uma importante primeira lição dada pelos pais da lenda para os pais da atualidade (e daqueles anos) quando exercem pressão para definir a carreira dos filhos sem considerarem o bem-estar físico e mental deles, o que para Montenegro talvez tenha sido a sua salvação no contexto (penso, econômico, da família), e então Arlette foi fazer um curso de secretariado da Escola Berlitz onde estudou “português, inglês, francês, datilografia, estenografia e correspondência comercial nas três línguas” (p. 57) onde poderia estar apta aos empregos de secretária e aeromoça, menciona.

Tornou-se professora na Berlitz e assim exercitou seu inglês e francês, no entanto, ainda aos quinze anos tinha escutado um anúncio na Rádio MEC sobre “Radioteatro da Mocidade” (p. 59). Arlette decidiu preencheu um formulário, recebeu um telegrama e foi sozinha à sede da rádio para fazer um teste: leu um “poeminha” e foi aprovada. Então, percebi outra lição dada pelos pais da lenda: eles não proibiram a Arlette de tentar a carreira na dramaturgia, ao considerar o contexto de uma sociedade, penso, bem mais pautada na tradição predominante que não considerava essa opção para as jovens sob o típico anseio do casamento.

No primeiro trabalho, Arlette foi escalada para um melodrama sobre a Revolução Farroupilha com personagens principais: Bento Gonçalves, Garibaldi, e Anita Garibaldi, muito familiar à raiz italiana de sua família, o que pode ter causado empatia. A adolescente Arlette fez um papel menor: deu voz à Manuela apaixonada por Garibaldi (p. 62). Lembrou que aos oito anos tinha interpretado “o menino sargento no teatrinho da igreja” e assim não ficou nervosa; “”não tremi. Senti que fui bem” (p. 60).

Na Rádio MEC, afirma, “por quase dez anos, fui uma aprendiz atenta a tudo que havia de importante na infraestrutura cultural da sua programação” (p. 63). Foi locutora oficial, participou de concertos de orquestra e assistiu às aulas da grande pianista Magdalena Tagliferro (1893-1986, p. 65) onde aprendeu “dramaturgia sonora”.

Arlette era a locutora, mas quando passou a assinar como redatora, adotou o nome “Fernanda Montenegro” (p. 67). O primeiro nome escolheu porque “tinha um clima de romance do século XIX”, e o segundo porque sempre ouviu falar, em relação a um médico de subúrbio que tratou da família e curou milagrosamente a avó (p. 68). Então, o nome real “Arlette” ficou restrito ao seio familiar e “Fernanda Montenegro” assumiu definitivamente como nome artístico.

E eis que Arlette, que se tornou artisticamente “Fernanda Montenegro”, assim vivia sendo professora de línguas na Berlitz e locutora/redatora na Rádio MEC e seu senso depurado começou a observar o teatro de amadores; entre diversos nomes do teatro que chamaram sua atenção à época, cita Ariano Suassuna (1927-2014) nas referências (p. 70); Alfredo Mesquita (1907-1986) e Pascoal Carlos Magno (1906-1980, p. 71). A dramaturgia a envolvia e assim, em 1949, com 19 para 20 anos, Fernanda Montenegro se submeteu a mais um teste: desta vez para uma versão em peça teatral da mesma Sinhá moça chorou, de Ernani Fornari (1899-1964), a mesma que tinha atuado aos quinze anos na rádio. O resultado foi diferente: não foi classificada (p. 78).

No ano seguinte Fernanda Montenegro foi convidada para a peça 3200 metros de altitude, de Julien Luchaire (1876-1962), intitulada no Brasil como Alegres canções na montanha, que tinha no elenco, entre outras atrizes que se tornariam famosas, Nicette Bruno (1933-2020) e Beatriz Segall (1926-2018). A peça “foi um fracasso” (p. 86), com a plateia composta por, basicamente, familiares dos artistas, no entanto, na condição de novata acabou sendo elogiada, junto com Fernando Torres (1927-2008). O destaque fez com que Fernanda Montenegro fosse convidada a fazer um sketch [307] para a então novíssima TV Tupi de São Paulo, o que lhe rendeu um contrato que a marcou como a primeira atriz contratada pela TV de Assis Chateaubriand (p. 86, 1892-1968).

306. 19/06/2023 00h02.

307. Um curta-metragem ou “cortina, como se dizia na época” (p. 86).

Imagem: NASA+

Katherine Johnson

“Yet my calculations had not only helped the Eagle land sucessfully, but they also helped it so sync backp up with the command and service module so that our guys could come back home.”

Obra: Reaching for the Moon: The Autobiography of NASA Mathematician Katherine Johnson. Chapter 7. Atheneum Books for Young Readers, 2020, eBook Kindle. De Katherine Coleman Goble Johnson (EUA/Virgínia Ocidental/White Sulphur Springs, 1918-2020).

O pai foi agricultor (p. 21), a mãe, tinha sido professora (p. 1) e passou a se dedicar a criação dos filhos; um casal afrodescendente com cinco crianças, eis a família Coleman de cristãos presbiterianos. Entre elas, a menina Katherine, que desde cedo gostava de contar e tinha intimidade com números (p.2, “eu amava os números e os números me amavam”). A garotinha Katherine teve uma vida escolar segregada (p. 7), à semelhança de toda criança de “cor” de um país onde o racismo fazia parte da legalidade com humanos de pele negra oficialmente tratados como seres inferiores (p. 7, cita Dred Scott decision, 1857), um exemplo clássico para ilustrar a obviedade de que nem sempre o que consta no ordenamento legal significa moralidade e justiça.

No condado onde Katherine tinha feito o ensino básico havia high school apenas para crianças brancas, então a família mudou de domicílio e tornou possível a continuidade da educação dos filhos e assim se determinaram no West Virginal Colored Institute (p. 39). Muito acima da média, a garotinha Katherine começou a high school com apenas 10 anos (p. 50), graduando-se na primavera de 1932, com 13 anos (p. 60). Aos 18 anos, Katherine terminava a graduação em matemática e francês na West Virginia State (p. 75).

Ao ler sua história de vida, pensei em licença poética: tão extremamente difícil e vitoriosa fora a trajetória de Katherine quanto seria a ideia de enviar seres humanos à Lua e trazê-los em segurança na mente de muitos americanos à época. A menina negra que veio da base da pirâmide social, amante dos estudos, dedicada aos números e ao aprendizado do francês, que sonhava em conhecer a França, conviveu com o racismo desde a infância, a segregação e o machismo no campo profissional, passou pelos pavorosos anos 1930 e 1940 do pós-depressão econômica e da Segunda Guerra, e com seus méritos extraordinários conseguiu ingressar na NACA (p. 124), que depois viraria NASA (p. 132), para fazer parte do time de matemáticos e analistas; foi a “mulher-computador” ou a “computadora” que analisava dados dos registros de voo, fez parte das maiores inovações tecnológicas de seu tempo em termos de aeronáutica, uso de computadores e exploração espacial. Seus trabalhos ajudaram o Eagle a pousar com sucesso na Lua, bem como a sincronizar o backup com o módulo de comando e serviço para que os astronautas pudessem retornar para casa (trecho desta Leitura, p. 236).

Imagem: Hibrida

Cristina da Suécia

“[…] Conosco ch’ io non offerisco a V. S. se non quello ch’ è suo; mà anche al Sgr. Iddio non possiamo offerire, se non chello ch’ è suo; e pure una tal offerta non suo vien’ gradita mà rimunerata da quella immensa Bontà com beni ineffabili ed eterni. […] “

Obra: Mémoirs concernant Christine reine de Suède, pour servir d’éclaircissement à l’histoire de son règne et principalement de sa vie privée […]. Tome Second. A Amsterdam et A Leipzig, MDCCLI, Chez Pierre Mortier. De Johann Arckenholtz (Finlândia/Helsinque, 1695-1777).

Memórias da rainha Cristina da Suécia (Castelo das Três Coroas, 1626-1689), obra publicada em francês.

A carta de 1687, 17 de fevereiro (p. 250) em italiano (com uma tradução para o francês em paralelo), foi escrita em Roma, endereçada ao papa (p. 249). Christine Alessandra tinha se convertido ao catolicismo após deixar o luteranismo em 1653, uma decisão que revela o primeiro traço importante de sua personalidade: a coragem de realizar mudanças de cunho pessoal mediante o contexto político que a pressionava a seguir determinada posição, no caso de viés religioso, visto que o ato tinha sérias implicações políticas em um tempo de conflitos armados entre protestantes e católicos; no ano seguinte, Cristina abdicou ao trono. No trecho em destaque da carta, menciona sua obediência ao papa face a problemas locais relacionados com moralidade; menciona “escândalos de bairro” (p. 249) em Roma e afirma que “não oferece ao pontífice senão aquilo que lhe pertence” da mesma forma que “não podemos oferecer ao Senhor Deus senão aquilo que é Seu” (p. 250).

A posição de Cristina da Suécia à fé e à Santa Sé se junta a uma história de vida um tanto curiosa quando se pensa que ela pode ter representado um exemplo de uma espécie de proto-LGBT do século XVII, dos tempos pró-modernos; quando nasceu teria sido considerada um menino nas primeiras horas de vida, mal-entendido que mesmo sendo esclarecido parece não ter impedido de ter sido criada como se fosse um homem. Poliglota, aprendeu esgrima, entendia bem de literatura e cavalos. Fora educada dentro de um rígido padrão típico da realeza para governar, enquanto havia rumores sobre sua sexualidade; teria sido lésbica [304]. Decidiu não se casar, o que para os padrões da época significava uma decisão difícil para uma pessoa pública da nobreza: não ter filhos.

Tinha inclinação pela filosofia, além das artes; fora uma conhecida colecionadora de obras. Há uma intrigante discussão dela com o filósofo René Descartes (p. 32). Cristina da Suécia parece ter experimentado uma tensão entre o racionalismo cartesiano que lhe fora apresentado e sua fé religiosa relacionada à escolástica (p. 34).

Outra curiosidade em torno de Cristina da Suécia está em seus comentários sobre um exemplar da tradução francesa de O príncipe, de Maquiavel, conforme registros de A. N. Amelot, Sieur de La Houssaye, cuja publicação se deu em Amsterdã [305].

Ao conhecer sua história percebi o quanto ela foi acima de seu tempo; desconstruiu muita coisa imposta no inconsciente coletivo de sua sociedade, sendo o rompimento com a fé luterana um sinal evidente, enquanto imagino sua possível heterodoxa vida sexual que não a desligou de uma fé mais tradicional que a de seus pais; sem dúvida, Cristina da Suécia foi uma grande personalidade do século XVII.

304. ‘A Girton Girl on a Throne’: Queen Christina and Versions of Lesbianism, 1906-1933”, Feminist Review, 46, London: Palgrave, 41-60, de Sarah Waters.

305. O príncipe. Edições do Senado Federal, 2019, Brasília. Tradução de Mário e Celestino da Silva, p.15. De Niccolò di Bernardo dei Machiavelli (Repubblica di Firenze, 1469-1527).

Imagem: worldhistory

Lívia Drusila

“ucciderà il corpo de un uomo e alienerà le menti degle altri.[…]”

Obra: Storia romana. Quarto Volume. Libro 55. Livia esorta Augusto a far uso de piu clemenza nel suo impero. 2022, eBook Kindle. Traduzido para o italiano por Nicoila Lembo. De Lucio Cassio Dione (Nicea, 155-235).

Atribuído pelo historiador romano Cassio Dione (Dião Cássio), o dito (p. 33) de Livia Drvsilla, Lívia Drusila (58 a.C-29 d.C), terceira e última esposa do primeiro imperador romano, Gaius Iulius Caesar Octavianus Augustus (Roma, 17 a.C.-14 d.C), mais conhecido por “Otaviano Augusto”.

Na medida em que avançava na leitura, que discorre em detalhes a conversa dela com o esposo imperador, fui percebendo sua inteligência mais sofisticada que a do marido. Lívia entrou para a história como uma mulher que trabalhou nos bastidores para conservar a sucessão de seu filho, Tibério, o que rende suspeitas sobre sua participação na morte dos enteados netos e do próprio marido. No entanto, no diálogo se mostra com uma sagacidade notadamente superior diante de um político que, à mon avis, foi um grande estrategista ao conduzir, alguns diriam com razão, “manipular”, uma estrutura de república em crise para um regime imperialista conservando o senado e o sistema jurídico enquanto concentrava poder em suas mãos.

Em um ambiente de tramas, conspirações, traições e vinganças, Lívia se dirige ao marido para exortá-lo a fazer uso de maior clemência no seu recente criado império (p. 24). O curioso diálogo narrado por Cassio Dione começa como uma conversa típica de casal na intimidade:

Lívia: o que é isso, marido? Por que não dormes?

Augusto: mulher, quem poderia estar isento de preocupações, se tem tantos inimigos e virou objeto de tramas da parte de um grupo de homens e de outros? Não vês que estão atacando minha soberania?”

A conversa se desenvolve com um Augusto bem diferente da imagem de líder divinizado; tenso, perturbado, a mencionar os bastidores de um mundo violento, implacável, que ameaça seu império, quando Lívia toma a palavra e argumenta que estar cercado de conspiradores não é coisa contrária a natureza humana (p. 24) o que, penso, seria em outras palavras: é coisa normal a ser enfrentada por quem lida com o enorme poder político que comanda. Sempre haverá insatisfeitos pois é impossível agradar a todos e um soberano, sendo justo, desagradará a muitos, pois os injustos são muitos mais numerosos que os justos, sendo assim impossível evitar o mal nas disposições daqueles que o praticam (p. 24), o que torna cabível proteger a soberania por meio de uma “vigilância severa” e não por punições (p. 25). Lívia percebeu que o marido não parecia precavido em considerar dispor de uma rede de inteligência na segurança que evitasse o avanço de planos de conspiração; Augusto aparenta não ter sido dado bastante à prevenção preferindo remediar ou punir.

O imperador não se convence de que uma vigilância severa, preventiva, será melhor do que a política de derramar sangue a todo tempo para impor medo, ao ponderar que entre os que são considerados amigos também pode haver tramas, o que é óbvio, mas não invalida o argumento proativo de Lívia que parte para abordar a importância de tentar resolver as coisas com gentileza e não com dureza, pois “a violência inflama todos os homens” (p. 29), não sendo justo prejudicar os que têm conduta correta; “os soberanos que mantêm uma ira inexorável não somente são detestados por quem tem o que temer, assim como causam desconforto sobre os outros” (p. 28) e que “afronta-se mais facilmente os grandes perigos pela persuasão”(p. 29), o que parece ensaiar um viés diplomático para o marido adotar, sendo importante saber diferenciar os casos mais graves dos menores para usar um sentido de proporção nos juízos e nas eventuais punições, cogitando a possibilidade do perdão (p. 29). Então lembra o marido que ele é líder de seres humanos e não de animais selvagens, sendo possível aplicar a persuasão para que o amem e assim possa angariá-los pela amizade (p. 31). Por fim, destaco a advertência que Lívia faz ao marido no contexto do trecho (p. 33) desta Leitura:

A espada não pode fazer tudo por ti, e seria uma benção se pudesse reviver os homens e persuadi-los ou também constrangê-los a amar alguém com afeto sincero: mas, em vez disso, matará o corpo de um homem e alienará a mente dos outros.”.

No final dessa longa conversa doméstica, Augusto se vê persuadido pela esposa de maneira que passou a rever sua política até então restrita a punições violentas, o que, segundo o historiador romano, fez cessar os problemas com conspiradores que o atormentavam (p. 33).

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