É dezembro e entre os grandes compositores que partiram este ano para o plano superior, é o mestre nipônico Ryuichi Sakamoto (1952-2023) o que mais aprecio.  Bibo No Aozora, da obra cinematográfica Babel.

31/12/2023 09h33

Imagem: Vaticano

Cardeal Víctor Manuel
Fernández

31. Nell’orizzonte qui delineato si colloca la possibilità di benedizioni di coppie in situazioni irregolari e di coppie dello stesso sesso, la cui forma non deve trovare alcuna fissazione rituale da parte delle autorità ecclesiali, allo scopo di non produrre una confusione con la benedizione propria del sacramento del matrimonio. In questi casi, si impartisce una benedizione che non solo ha valore ascendente ma che è anche l’invocazione di una benedizione discendente da parte di Dio stesso su coloro che, riconoscendosi indigenti e bisognosi del suo aiuto, non rivendicano la legittimazione di un proprio status, ma mendicano che tutto ciò che di vero di buono e di umanamente valido è presente nella loro vita e relazioni, sia investito, sanato ed elevato dalla presenza dello Spirito Santo. Queste forme di benedizione esprimono una supplica a Dio perché conceda quegli aiuti che provengono dagli impulsi del suo Spirito – che la teologia classica chiama “grazie attuali” – affinché le umane relazioni possano maturare e crescere nella fedeltà al messaggio del Vangelo, liberarsi dalle loro imperfezioni e fragilità ed esprimersi nella dimensione sempre più grande dell’amore divino.

Obra: Dichiarazione “Fiducia supplicans” sul senso pastorale delle benedizioni del Dicastero per la Dottrina della Fede. III. Le benedizioni di coppie in situazioni irregolari e di coppie dello stesso sesso. Ed. online Press Vaticano, 2023, Città del Vaticano. De Víctor Manuel Fernández (Argentina/Córdoba/Alcira Gigena, 1962).

Assinam o documento o atual prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, cardeal Víctor Manuel Fernández, e o monsenhor Armando Matteo (Italia/Catanzaro, 1970). O nome do papa (Francesco) aparece logo abaixo e à esquerda em referência à audiência de 18 de dezembro deste ano.

Disponível em italiano, francês, inglês, alemão e espanhol.

Esta declaração, para ser lida razoavelmente bem, além de uma boa base teológica católica romana, exige alguns desarmes prévios acerca de viés ideológico, seja de linha progressista, conservadora, sedevacantista… Entendo que uma leitura orientada sob prioritário olhar ideológico não apenas atrapalha, mas também pode ensejar em distorções sérias ou em desonestidade intelectual.

A questão tratada na declaração, que envolve bênçãos a casais em situação irregular e a pessoas do mesmo sexo, tem origem, segundo o documento, em dúvidas apresentadas por cardeais ao papa Francesco (apresentação). O primeiro destaque que considero de maior relevância é a afirmação no documento sobre “perene doutrina do matrimônio” e de que “são inadmissíveis ritos e orações que possam criar confusão entre o que é constitutivo do casamento, como ‘união exclusiva, estável e indissolúvel entre um homem e uma mulher, naturalmente aberta à geração de filhos'”, para assim finalizar o parágrafo (em tradução livre):

Apenas neste contexto as relações sexuais encontram o seu significado natural, adequado e plenamente humano. A doutrina da Igreja neste ponto permanece firme (I).

Trata-se de uma compreensão do matrimônio dada pelo Evangelho, que a Igreja tem o direito e o dever de evitar qualquer rito que proporciona contradição, confusão, e encerra o parágrafo (em tradução livre):

Este é também o sentido do Responsum da então Congregação para a Doutrina da Fé, onde afirma que a Igreja não tem o poder de conceder bênçãos às uniões entre pessoas do mesmo sexo (I).

Consoante a este ponto, vejo clareza no documento em não autorizar benção a “casal” de pessoas do mesmo sexo. Cabe considerar nota da Arquidiocese de São Paulo a respeito de matéria do jornal Folha de S. Paulo [190].

Sobre o sentido das diversas bênçãos, em referência a instrução do papa, afirma-se que o ser humano é convidado a buscar, amar e servir fielmente a Deus e, do ponto de vista estritamente litúrgico, as bênçãos devem ser dadas conforme a vontade de Deus expressa nos ensinamentos da Igreja e que, reitera, a Igreja não tem o poder de concedê-las em forma litúrgica para união fora do conceito de matrimônio por ela ministrado, contudo, deve-se evitar reduzir o significados das bênçãos ao litúrgico, pois pode “ofuscar a força incondicional do amor de Deus sobre a qual funda o gesto de bênção” (II).

A seguir, o documento discorre sobre bênçãos na Escritura Sagrada. Cita casos de bênçãos nas Escrituras (Antigo e Novo Testamentos) para encerrar que o ministro ordenado em oração por aquelas pessoas que, “mesmo numa união que em nada se compara ao casamento, desejam confiar-se ao Senhor e à sua misericórdia, invocar a sua ajuda, ser guiados para maiores compreensão do seu plano de amor e de verdade” e, neste ponto, pode-se compreender a afirmação do parágrafo seguinte sobre “aqueles que, reconhecendo-se desamparados e necessitados da sua ajuda, não reivindicam a legitimação da própria situação, mas imploram que tudo o que é verdadeiramente bom e humanamente válido, que está presente em suas vidas e relacionamentos, seja investido, curado e elevado pela presença do Espírito Santo. Estas formas de bênção exprimem uma súplica a Deus para que conceda aqueles auxílios advindos dos impulsos do seu Espírito – que a teologia clássica chama de “graças reais” – para que as relações humanas possam amadurecer e crescer na fidelidade ao Evangelho, libertando-se das suas imperfeições e fragilidades e exprimem-se na dimensão cada vez maior do amor divino” (segunda parte do trecho destacado desta Leitura, III).

Abençoar duas pessoas que vivem juntas, independente da forma, para que procurem seguir o Evangelho, entendo como um ato belo e moral, no entanto, uma questão que me parece sensível aqui é se não haverá grande dificuldade entre os fiéis católicos sobre o significado da bênção como “união” concedida pelo padre cuja declaração do Vaticano menciona a condição de “situação irregular e ‘casal’ do mesmo sexo”?

Pela forma como o ponto III.31 está descrito, não teria o documento o potencial de provocar o que afirma evitar, confusão?

190. Esclarecimento sobre a Declaração Fiducia supplicans.

30/12/2023 15h22

Imagem: Nobel Prize

Friedrich August von Hayek

“Há três razões principais para que um grupo numeroso, forte e de ideias bastante homogêneas não tenda a ser constituído pelos melhores e sim pelos piores elementos de qualquer sociedade.”

Obra: O Caminho da Servidão. Capítulo X – Por que os Piores Chegam ao Poder. Instituto Mises Brasil, 2010, São Paulo. Tradução de Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. De Friedrich August von Hayek (Áustria/Viena, 1899-1992).

Torno a este capítulo da obra que marcou minha caminhada pelas leituras austríacas em 2007. Recentemente, um jovem na busca por entender a sensação de decepção na política, questionou-me sobre o que explicaria este ambiente tão insalubre Então o sugeri que apreciasse a leitura deste capítulo de O Caminho da Servidão.

Tinha registrado uma experiência de leitura no mesmo capítulo em 22/02/2022 23h30, com ênfase no primeiro ponto.

A política tem um fator de atração para os piores da sociedade e o que Hayek indica é uma explicação em um contexto de regimes totalitários, sobre como os mais deploráveis conseguem percorrer um caminho para chegarem ao topo.

Expando pessoalmente o tema: Quando se pensa em votar nos melhores, na verdade o raciocínio se baseia no juízo qualificado de eleitores, mas o mundo real é diferente. O eleitor que decide uma eleição está em uma linha de valores, ideias e crenças massificadas; é a multidão de idiotas que discute nas esquinas, nas mesas de bar, nos grupos de WhatsApp, nas igrejas, enfim, é a força de uma massa classificada como apta para escolher quem vai governar ao mesmo tempo em que é considerada inapta para cuidar de si mesma em vários aspectos onde as intervenções do Estado se fazem presentes. O Estado moderno, cada vez mais concentrando recursos, acaba também por atrair aqueles que almejam viver às custas dos pagadores de impostos enquanto se “empoderam” tornando a massa ignara cada vez mais dependente de suas “políticas públicas”. Penso aqui em um exemplo claro do que fora abordado por Paulo Freire, que tanto falou dos oprimidos sob as elites opressoras que não os querem esclarecidos, para assim mais facilmente dominá-los; acontece que as “elites” que aparelham os estados, ironicamente, enquanto enriquecem com privilégios que concedem a si mesmas, costumam estar mais alinhadas com as preferencias ideológicas do venerado educador; trágica ironia.

Outro ponto que Hayek não aborda diretamente, mas que está no contexto do fascínio que o poder no Estado exerce sobre os piores, é que a democracia moderna é uma ferramenta estratégica, penso, por dar a maior legitimidade possível (a vontade do povo) na aplicação do caminho da servidão dos demagogos.

Torno ao texto de Hayek no contexto de quem vira o nazismo, o fascismo e o comunismo surgirem como expressões totalitárias. Os piores chegam ao poder pela força da maioria que concentra os padrões onde educação elevada e maior inteligência entre indivíduos atrapalham o processo de arregimentação. É na uniformização de pensamento onde residem os eleitores de padrões morais e intelectuais mais baixos; isso não significa que o povo, quanto à maioria, tenha necessariamente padrões inferiores, apenas indica que os piores levam vantagem pela força do grupo mais amplo cujo valores são semelhantes, são os menos independentes, a “massa” constituída por indivíduos que possuem padrões inferiores, argumenta Hayek (pp. 141-142).

O segundo ponto do caminho por onde os piores chegam ao poder está na obtenção do apoio “dos dóceis e dos simplórios, que não têm fortes convicções próprias mas estão prontos a aceitar um sistema de valores previamente elaborado, contando que este lhes seja apregoado com bastante estrépito e insistência” (p. 142). É um desdobramento do primeiro ponto, sendo fácil de ser identificado em grupos formados por pessoas com dificuldades de compreensão da realidade, sendo assim inclinadas a sistemas que apresentam promessas de “soluções” para o que as incomoda com uma linguagem que provoca forte atração pela forma simplista, rasa, com ideias vagas, ao mesmo tempo em que dissemina o ódio ao outro, tudo compatível com suas carências cognitivas. Durante as últimas eleições presidenciais isso ficou bem claro entre os dois principais grandes grupos de apoiadores.

O terceiro elemento indicado por Hayek está na capacidade do demagogo em formar fileiras de apoiadores; “um grupo coeso e homogêneo de prosélitos” (p. 142), neste aspecto, a militância política se assemelha a de grupos religiosos fundamentalistas que se pautam pelo exclusivismo em torno de suas crenças, com linguagem ofensiva, e pelo apoio incondicional ao líder. Mais uma vez, tal fenômeno pode ser observado nas últimas eleições pela ferocidade com que os grupos se apresentavam na defesa de suas ideias; “a antítese “nós” e “eles”, a luta comum contra os que se acham fora do grupo, parece um ingrediente essencial a qualquer ideologia capaz de unir
solidamente um grupo visando à ação comum” (p. 142), afirma o agraciado do Nobel de Economia de 1974.

29/12/2023 23h10

Imagem: The New York Times

Roger Scruton

“To understand beauty, therefore, we must gain some sense of the variety of our responses to the things in which we discern it.”

Obra: Beauty: A Very Short Introduction. Chapter 3. Natural beauty. The sublime and the beautiful. Oxford University Press, 2011, New York. De Roger Vernon Scruton (Inglaterra/Lincolnshire, 1944-2020).

Um dos principais pensadores do conservadorismo aborda que o termo “beleza” é usado tanto como um termo geral de elogio estético como, de forma mais estrita, a denotar um específico “tipo de graça e encanto pelo qual podemos ser extasiados” (p. 61).

No estético tende a metáforas, pois simplesmente não se descreve determinado objeto no juízo estético e sim um encontro entre sujeito e objeto onde “a resposta do primeiro é tão importante quanto as qualidades do segundo. Para entender a beleza, portanto, devemos ter alguma noção do variedade de nossas respostas às coisas em que as discernimos” (trecho desta Leitura, p. 61).

Em seguida menciona On the Sublime and Beautiful (1756) de Edmund Burke (1729-1797) sobre beleza em geral e beleza natural, uma originada no amor, outra no medo; quando somos atraídos pela harmonia, ordem e serenidade da natureza, para nos sentirmos ambientados e confirmados por ela, podemos experimentar sua vastidão, seu poder, sua “majestade ameaçadora”, por exemplo, ao sentirmos o vento em um penhasco de montanha mediante nossa própria pequenez como uma resposta, onde poderíamos também falar sobre o sublime nessa experiência. Ambas respostas são edificantes, indica o autor, pois “nos tiram do comum, de pensamentos utilitários que dominam nossas vidas práticas, ambas envolvem o tipo de contemplação desinteressada que Immanuel Kant (1724-1804) mais tarde identifica como o núcleo da experiência estética”, cuja distinção por juízos entre o sublime e o belo é, na concepção kantiana, fundamental, argumenta (p. 61) a trazer um impacto pela admiração que se experimenta na contemplação do poder do natural e como seres livres, de estarmos à altura enquanto reafirmamos nossa obediência à lei moral, que ninguém a força natural poderia vencer ou anular” (p. 73).

A obra é um exemplo da erudição do autor onde Kant tem destaque, em especial neste capítulo. Scruton me faz pensar no belo intrínseco na harmonia do juízo diante do natural e como este ponto é importantíssimo para o senso de humanidade. A partir do momento em que o ser arroga determinar não somente o juízo do belo (cuja subjetividade é evidente), mas os desígnios da ordem natural das coisas, então entrará em um mundo perdido da referência de si mesmo pois o ser humano estaria a negar que se compõe e está sujeito à natureza, onde o belo se origina, e o que lhe restará: um artifício em choque com a ordem natural e, neste embate, não imagino que o lado humano desconstruído venha a se sair bem.

28/12/2023 22h21

Imagem: ACTU AERO /// AAF

Antoine de Saint-Exupéry

“Il est bien plus difficile de se juger soi—même que de juger autrui. Si tu réussis bien tejuger, c’est que tu es un véritable sage.”

Obra: Le Petit Prince. X. Gallimard, 1999. De Antoine-Marie-Roger de Saint-Exupéry (France/Lyon, 1900-1944).

O pequeno príncipe dentro de nós – por pastor Abdoral

O mais nobre dos juízos.

Autocrítica: Quem a suportará?

O que a torna tão difícil?

Senso desproporcional de auto preservação? Fascínio pelo próprio ego? Carência de discernimento sobre o sentido da consciência à justiça? Um pouco destas questões e outras tantas insondáveis debilidades do espírito?

Diante da mulher adúltera, Jesus se volta ao campo de batalha: o coração humano. Eis que conclama a cada um examinar a si mesmo (que provocação em uma sociedade onde marmanjos adulteram e são acobertados pelo sistema religioso), antes de atirar a primeira pedra (João 8: 1-11). No Sermão da Montanha o “não julgueis” se relaciona novamente com a hipocrisia (de se enxergar a trave no olho alheio em contraste com a cegueira do cisco no próprio, Mateus 7: 1-5). Saber confrontar a si mesmo na consciência está na base para o sentido do juízo; o auto exame com sabedoria é a virtude-chave para quem se dispõe a se enveredar pelos difíceis caminhos da justiça.

O pequeno príncipe está em uma jornada de descobertas da universalidade da existência e o que percebe é que “as pessoas grandes são bem estranhas” (p. 45); é a lógica inocente de uma criança, desprovida de vícios comuns no espírito das pessoas grandes, que até reconhecem valores dessa pureza em momentos de lampejos, em um confronto da pureza humana contra a decadência da forma adulta adulterada com seus mecanismos de auto defesa que, na verdade, tentam esconder as fraquezas da alma e se desvencilhar do pequeno príncipe que está em cada um de nós ou, como se sugere na dedicatória, poucas pessoas adultas lembram que um dia foram crianças.

27/12/2023 22h19

Imagem: paul-tillich.com

Paul Tillich

“[…] ansiedade é a consciência de conflitos insolvidos entre elementos estruturais da personalidade […]”

Obra: A coragem de ser. 3 – Ansiedade Patológica, Vitalidade e Coragem. A natureza da ansiedade patológica. Paz e Terra, 1992, São Paulo. Tradução de Eglê Malheiros. De Paul Johannes Oskar Tillich (Alemanha/Starzeddel, 1886-1965).

Memórias de um seminarista amigo de infância em 2006, onde desenvolveu interesse pelo tema da ansiedade.

Três formas da ansiedade existencial são inicialmente trabalhadas pelo filósofo e teólogo protestante alemão; da morte (1), do vazio e da perda de significação (2) e da culpa e condenação (3, pp. 34-35); são formas existenciais pois lidam com questões da existencial como tal, enquanto a ansiedade patológica diz respeito a um estado anormal, seria a neurótica e psicótica ou “um estado de ansiedade existencial sob condições especiais” (p. 52).

Tillich indica (trecho desta Leitura, p. 51) um denominador comum em todas as teorias sobre a ansiedade, como impulsos inconscientes que tentam dominar o núcleo da personalidade, mediante conflitos onde apresenta o que entendi (minha concepção à época) estar sob forma de dialética; mundo imaginário versus mundo real, grandeza/perfeita versus pequenez/imperfeição, desejo de ser aceito versus experiência de ser rejeitado, vontade de ser versus desejo (oculto ou manifesto) de não-ser. Aqui penso na tensão de conflitos que deixa o ansioso sem ação efetiva, sem poder de controle para lidar minimamente bem com pressões, o que inviabiliza a definição de prioridades. No meu trabalho, percebo o quanto sou exposto a minha e a ansiedade de clientes, e saber identificar esses pontos de tensão é o início de um processo de superação de um determinado problema onde a ansiedade se situa como fator.

A obra foi publicada originalmente em 1952, extraída das Conferências Terry, pronunciadas na
Yale University. Isto posto, Tillich aponta problemas na teoria psicoterapêutica pela “ausência de uma distinção clara entre ansiedade existencial e patológica, e entre as formas principais de ansiedade existencial”, e como chave para solução deste problema indica uma “compreensão ontológica da natureza humana” (p. 52).

Interessante a abordagem que faz sobre a coragem na ansiedade; resiste ao desespero a tomando dentro de si, não a afasta, é autoafirmação “a despeito de” (não-ser). No neurótico, a coragem dá lugar a defesa pelo não-ser em um mundo imaginário que o faz viver em conflito com a realidade (p. 54). O neurótico se fecha em um mundo para tentar se proteger de uma realidade que o perturba.

26/12/2023 00h01

Imagem: Revista Bula

Cecília Meireles

Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verás, só de cinza franzida.
mortas intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aromas até nos meus espinhos,
ao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me, é que me vão lembrando,
por desfolhar-me, é que não tenho fim.

Obra: 4o. Motivo da Rosa. Cecília Meireles: melhores poemas. Seleção de Maria Fernanda. Global, 2002, São Paulo. De Cecília Benevides de Carvalho Meireles (Brasil/Rio de Janeiro, 1901-1964).

Um novo ciclo – dialética dos tempos – por Heitor Odranoel Bonaventura

O tempo havia parado,
desapareceu o presente,
o futuro e o passado
frente a frente.

De todo desejo sonhado
das faltas que lhe causei,
o futuro que virou passado
lamentava o que não realizei.

Veio-me então o passado
a acusar-me o que lhe causei,
nele em todo desejo guardado
pelo futuro que neguei.

Em cinza franzida à vida inerente,
eis o tempo que voa efêmero assim,
ao futuro e ao passado, ressurgiu o presente,
recomeçar é preciso, não temas o fim.

Dádiva divina, novo ciclo no tempo,
nos espinhos teu aroma, em vez de lamento,
a tudo dai graças em todo momento,
pois a pétala da vida é como sopra o vento.

25/12/2023 11h38

Imagem: palquest.org

Edward Said

“Heart of Darkness is another example. Marlow’s audience is English, and Marlow himself penetrates to Kurtz’s private domain as an inquiring Western mind trying to make sense of an apocalyptic revelation.”

Obra: Culture and Imperialism. CHAPTER TWO. CONSOLIDATED VISION. VI. The Native Under Control. Vintage Books, 1994, New York. De Edward Wadie Said (Jerusalém, 1935-2003).

Interessante crítica de Said à obra Coração das Trevas, de Joseph Conrad [189].

Argumenta o crítico palestino que o público de Marlow é inglês e o personagem penetra no domínio privado de Kurtz com uma mentalidade ocidental questionadora tentando dar sentido a uma revelação apocalíptica. Enquanto a maioria das leituras, corretamente, chama a atenção para o ceticismo de Conrad sobre o empreendimento colonial, raramente comentam que, ao contar a história da sua viagem africana, Marlow repete e confirma a ação de Kurtz: devolver a África à hegemonia europeia historicizando e narrando sua estranheza, e pensei aqui em uma perplexidade cínica com o lugar e os nativos, em sentido de uma concepção de que se está diante de uma cultura “inferior” (de nativos que devem ser colonizados) que então carece de ser “conduzida” por uma superior (colonizadores). Então, Said prossegue, no mesmo parágrafo, a apontar que “os selvagens, o deserto, até mesmo a loucura superficial de lançar conchas em um vasto continente – todas essas coisas reacendem a necessidade de Marlow em colocar as colônias no mapa imperial e sob a temporalidade abrangente da história narrável, não importa quão os resultados sejam complicados e tortuosos” (p. 164).

Said também aponta, no parágrafo seguinte, “equivalentes históricos” de Marlow: Sir Henry Maine e Sir Roderick Murchison, homens celebrados por eles por enorme trabalho cultural e científico, ininteligível, exceto no contexto imperial. Explica Said que o grande estudo de Maine, Ancient Law (1861), explora a estrutura do direito em uma sociedade patriarcal primitiva que concedia privilégios a determinadas pessoas de “status” e não poderia tornar-se moderno até que ocorresse a transformação para uma base “contratual”. Maine prefigura estranhamente a história de Foucault, em Vigiar e Punir, da mudança na Europa da vigilância “soberana” para a vigilância administrativa, compara (p. 164).

Essencialmente, esse cinismo carrega a mesma visão que os governos dos Estados Unidos têm sobre o papel do Estado de Israel na Palestina.

Em outra perspectiva, também fiquei com a impressão de que Said faria uma crítica de alinhamento similar em relação às obras Casa-Grande & Senzala e Sobrados & Mucambos, de Gilberto Freyre.

189. 19/04/2023 20h34.

24/12/2023 12h56

Imagem: Imperium Romanum

Sol Invictus

“[…] A festa do Natal tornou-se uma prática regular em meados do século IV, adotando-se a data de dezembro anteriormente usada pelos adoradores de Mitra.”

Obra: O cristianismo através dos séculos. Capítulo 15 – Desenvolvimento hierárquicos e litúrgicos. II O progresso da liturgia. Tradução de Israel Belo de Azevedo. Vida Nova, 1995, São Paulo. De Earle E. Cairns (Canada/Oak Lake/Manitoba, 1910-2008).

Lembro-me dos tempos do seminário onde vi olhos esbugalhados quando alguns descobriram, nas aulas de história do cristianismo, que a data final do período de celebração da Saturnália era em 25 de dezembro.

O conceito do domingo no calendário eclesiástico, instituído como “dia santo” cívico e religioso da semana, também se origina de uma determinação do imperador Constantino (306-327), aponta o autor (p. 129); cabe lembrar, de linha protestante, o que merece um cuidado maior por causa do viés, da mesma forma quando se consultam textos católicos de Roma.

Assistindo às lições do professor Alessandro Barbero, pude compreender melhor a relação de um sistema estatal civil-religioso do paganismo relacionado do culto ao deus sol. Dies Natalis Solis Invicti foi uma celebração a uma divindade persa assimilada pelo sistema religioso romano, incorporado aos adoradores de Mitra; Sol Invictus, celebrado na Roma Imperial em 25 de dezembro e tendo o domingo dedicado, também está no contexto de uma divindade protetora dos soldados do Império. Conta o professor Alessandro Barbero que Sol Invictus foi o patrono adotado por Constantino, embora tenha sido considerado o primeiro imperador cristão, o que pode ser verificado na moeda cunhada em seu governo [187].

Torno ao trecho da obra onde se afirma que o Natal em dezembro e o domingo, a substituir o sábado em uma religião nascida do judaísmo; seriam casos de elementos religiosos pagãos que acabaram cristianizados mediante influência política do Império Romano sobre a Igreja. teriam sido mesmo um processo lento, gradual, intensificado em meados do quarto século, sobretudo a partir da adesão de Constantino? Um problema é associar o sábado a Constantino, uma forma rudimentar de analisar a questão pois, há tradições bíblicas e das comunidades primitivas da fé onde o primeiro dia da semana passou a ser adotado, evidentemente, mais de 200 anos antes do imperador em questão. Os que criticam o culto aos domingos para evidenciar o sabatino ignoram um ponto fundamental: o domingo, como dia do Senhor, é bíblico neotestamentário e, obviamente, não foi Constantino que o consolidou na tradição.

Outra questão a se pensar aqui: foi o paganismo de certa forma cristianizado ou a fé cristã católica de oram romana invadida pelo paganismo? Vi católicos na primeira hipótese, enquanto protestantes e afins, na segunda ou, cada um interpreta conforme suas conveniências…

A apreciar outra obra, de G. Filoramo, E Lupieri e S. Pricoco [188], vi que essa união consolidada entre o Estado Romano e a Igreja Romana aparentemente mudou o paradigma do poder eclesiástico, pois o clero passou a gozar de privilégios tributários e judiciais, dada a aliança política com o sistema de poder romano, e apesar de ser um indicativo de um jogo de interesses, isso não me parece substancial ao processo para saber quem influenciou mais.

Celebrar o Natal de Jesus em dezembro não me soa como algo tão-somente ligado ao paganismo romano, e sim de que 25 de dezembro foi uma data também relacionada ao paganismo romano, e que isso não quer dizer que a fé católica a tenha adotado. Muito do atual calendário festivo cristão no ocidente pode ter relação com a união do Império com a Igreja Romana, o que acabaria por trazer para dentro da liturgia e das festividades a imensa carga de agenda de celebrações em cultos pagãos do panteão romano, mas, penso, é algo apenas por suposição.

Em minha caminhada como seminarista, vi alguns no entendimento de que esse fenômeno representou uma vitória da fé ao cristianizar elementos do paganismo, outros com uma certa irritação quando tais questões são suscitadas ao perceberem que se chocam com suas crenças sobre as origens da igreja como instituição criada com suas lideranças e seus ritos legitimados por Jesus, enquanto outros apenas viam razões para desqualificá-la. É um assunto para uma vida de estudos e pesquisas que muitos, inadvertidamente, tentam explicar.

187. Costantino: Il vincitore. p. 43. Salerno Editrice, 2016, Roma. De Alessandro Barbero (Italia/Torino, 1959);

188. Storia del cristianesimo, p. 303. Laterza, 2006, Roma-Bari. A cura di G. Filoramo e D. Menozzi;

23/12/2023 19h59

Imagem: Chiesa di Milano

San Francesco d’Assisi

“Fece preparare una mangiatoia, vi fece portare del fieno e fece condurre sul luogo un bove e un asino.”

Obra: Fonti Franscescane. Incomincia il trattato dei miracoli di san Francesco. Capitolo X. AMORE PER LA VIRTU` DELL’ORAZIONE . 1186. Nova edizioni. Editrice Franscescane, 2004, Padova. a cura di Ernesto Caroli (Italia/Palazzuolo sul Senio, 1917-2009).

O Natal de São Francisco de Assis – por pastor Abdoral

Narram as Fontes Franciscanas, obra fluvial com mais de 2.300 páginas, que três anos antes de sua morte, o frade Francisco de Assis (Italia/Assisi, ?-1226) decidiu celebrar a memória do nascimento de Jesus perto da aldeia de Greccio, com a maior solenidade possível, para reavivar a devoção. Mas, para que não gerasse polêmica com a novidade do que iria promover, ele pediu permissão ao papa (p. 674).

Que novidade seria? Francisco de Assis trazia consigo uma manjedoura, um pouco de feno, um boi e um burro, conduzidos até o local. Os frades foram convocados junto com a população para contemplarem a obra que se tratava de uma cena do presépio que montara, eis a novidade iniciando assim uma tradição. Francisco de Assis ficou diante da manjedoura e começou a chorar, “transbordando de alegria” (p. 675), diz o texto. Então, o frade celebrou o sacrifício acima da manjedoura, com cânticos e uma reflexão sobre a chegada do rei menino na pobreza.

Esta história faz parte do capítulo que versa sobre os milagres de Francisco de Assis; conta-se que Giovanni di Greccio afirmou ter visto, dentro da manjedoura, um lindo menino dormindo, que o Beato Francisco, abraçando-o com os dois braços, parecia acordar do sono. Também se conta que o feno da manjedoura, guardado pelo povo, tinha o poder de curar animais doentes (p. 675).

Penso que o Natal pode ter diversos sentidos no mundo que se declara cristão no ocidente. Para muitos, um momento de confraternização entre familiares e amigos, em meio a trocas de presentes em uma correria um tanto frenética que agita o comércio o que, para tantos parece ser a parte mais importante, não menos que o consumismo e a ostentação em festividades acompanhadas com bebidas e muita comida; às vezes, e não raramente, torna-se uma curiosa festa que rompe a madrugada onde o aniversariante não é mencionado. Alguns preferem a reclusão, quem sabe em uma viagem ou retiro, talvez em favor de uma quebra de ritmo intenso do que pode ter experimentado no ano.

Entre tantos sentidos para o Natal, deixo-vos com o que significava para São Francisco de Assis: um momento profundo de espiritualidade em oração e gratidão a Deus pela vinda de Jesus Cristo.

22/12/2023 22h54

Imagem: Frei Gilvander Moreira

Leonardo Boff

“A opção pelos pobres e contra a pobreza constitui a marca registrada da teologia da libertação.”

Obra: A força da ternura. Parta 6. Libertação. Sextante, 2006, Rio de Janeiro. De Genézio Darci Boff (Brasil/Santa Catarina/Concórdia, 1938), pseudônimo Leonardo Boff.

Uma leitura ao dia, muitas vezes, é um exercício de reencontro e aqui, pela memória da leitura desta obra, estou diante do meu eu de 17 anos atrás e um eu ainda mais antigo. O primeiro, dos tempos do seminário e o segundo, dos anos 1990, quando a afinidade ideológica de socialista acabou por promover meu interesse em ler Leonardo Boff. No entanto, recordo-me que no ano em que essa obra foi publicada e por mim apreciada (2006), vivia os últimos ares de progressista. Noto que não perdi meu interesse pelos textos de Boff enquanto constato o quanto o autor incomoda muitos assim auto proclamados “conservadores”, dentro e fora da Igreja.

Face ao trecho, o meu eu de 2006 já conhecia a forma de apresentação dessa teologia, desde os anos 1990 onde me fascinava, afinal a opção pelos pobres e vulneráveis é um genuíno traço da fé cristã que, na visão daquele meu ser à época, convergia com os ideias socialistas que até então acreditava. Já o meu eu de 2006 leu esta obra com outro olhar, bem mais crítico, sem deslumbre, que também difere do meu eu de hoje. Em 2006 sofri com o vício de ler e, em paralelo, criticar de imediato sob a ótica de minha visão de mundo, o que passou a ser combatido pelo hábito do “silêncio mental” de deixar o autor simplesmente “falar”, e pontuar somente depois, bem depois, em uma visão plena do texto; reflito e, quem sabe, em um momento oportuno externo um entendimento.

Partindo da recordação do trecho, a conversão aos pobres é o ponto inicial das ideias narradas nessa teologia, e essa conversão significa um olhar para compreender a cultura (p. 69), o mundo real, os dilemas, os modos de ser das pessoas vulneráveis, sofridas, carentes, injustiçadas. Este é um ponto interessante que, notei, não foi muito considerado por críticas que li a seu respeito, que se pautam no problema seríssimo de sua instrumentalização política. Contudo, o termo “libertação” tem um sentido amplo ou “total” associado ao Reino de Deus; “libertação total para tudo o que é reto, bom, honesto e divino” (p. 72). Então se insere um elemento coletivista quando se associa a libertação dos oprimidos à importância de sua união “pela soma da força invencível dos pequenos em busca de sua libertação” (p. 73), contudo, aponta um comparativo entre o define como “as duas economias” dos bens terrenos e espirituais, e indica a maior relevância aos espirituais, que não se corrompem (p. 74), enquanto no plano terreno insere o problema do sentido e da destinação da riqueza sob a questão da insaciabilidade humana (p. 75) e propõe o “resgate do cuidado” (p. 76) com os semelhantes como gesto de amor para, em seguida (p. 77), indicar que, mesmo em meio a esse materialismo e busca da riqueza, há a religação do humano com a Terra, a grande casa comum de todos, a nave que nos hospeda pelo universo. Boff desenvolve um tema de integração pela paz , pelo respeito à casa comum e aos semelhantes e, neste contexto, fala em “economia política do suficiente e do decente para todos” (p. 79); neste ponto, penso, seu alinhamento com o socialismo pode ser verificado.

Por fim, no último parágrafo, no contexto da preservação da natureza, Boff separa o espírito da cooperação com o da competitividade, como se um anulasse o outro (p. 81). Reflito: esse raciocínio se baseia na visão negativa sobre o funcionamento da sociedade de economia de mercado, onde se considera apenas a competição (exatamente como pensava o meu eu dos anos 1990), no entanto, entendo que para participar dela é preciso que ocorra a cooperação de indivíduos entre si em processos produtivos que podem ser trabalhados eticamente sem apelo a um meio de coerção e sim pela educação. Em competição, agentes econômicos podem ser envolvidos e assim concorrerem mediante uma sociedade consumidora mais crítica e exigente acerca de normas de preservação ambiental. Cooperação e competição se complementam neste âmbito e podem ser fatores em favor do meio ambiente, entendo.

21/12/2023 23h26

Imagem: Vaticano

São João Paulo II

“Non mancano neppure pericolosi ripiegamenti sul fideismo, che non riconosce l’importanza della conoscenza razionale e del discorso filosofico per l’intelligenza della fede, anzi per la stessa possibilità di credere in Dio. Un’espressione oggi diffusa di tale tendenza fidistica è il ‘biblicismo’, che tende a fare della lettura della Sacra Scrittura o della sua esegesi l’unico punto di riferimento veritativo.”

Obra: Fides et Ratio. CAPITOLO V. GLI INTERVENTI DEL MAGISTERO IN MATERIA FILOSOFICA. Edição online, Vaticano, 1998. De Karol Józef Wojtyła (Polônia/Wadowice, 1920-2005), S. Ioannes Paulus PP. II (1978-2005), São João Paulo II.

Fé e razão não se excluem, não podem se destruir. A relação é de cooperação elementar e, a reproduzir o Concílio Vaticano I, o papa reitera que nunca poderá existir verdadeira divergência entre fé e razão, pois o mesmo Deus que comunica e revela mediante a fé, dispôs ao ser humano a luz da razão; se fé excluísse a razão e a razão excluísse a fé, sendo fé e razão dádivas divinas, seria como se Deus estivesse a negar a si mesmo (Capítulo V).

Se por um lado extremo há uma forma de se conceber razão como fator que exclui a fé, no mesmo capítulo V o papa adverte sobre o outro extremo que está no perigo de se excluir a razão para enaltecer a fé, ou o “fideísmo”, onde se situa o “biblicismo”, um problema mais comum em ambientes protestantes, seja pela dificuldade de crentes fanáticos em lidarem com questões onde a visão literal de textos sagrados apresenta dificuldade para dialogar com a razão, seja pela necessidade de negar o magistério vivo da Igreja como fonte da palavra de Deus. Esse fechamento radical na Bíblia implica também em um afastamento do teor especulativo da teologia e da filosofia clássica, como aponta o papa, o que, penso, também acaba por compor um traço marcante do fundamentalismo como vetor que aliena o crente, algo que pode ser verificado no desprezo a ciência, a intelectualidade e a consideração de que a revelação divina pode se dar por meio da análise racional acerca dos fenômenos da natureza e de diversos conhecimentos derivados do raciocínio lógico.

20/12/2023 20h42

Imagem: Princeton Theological Seminary

Karl Barth

“A graça dos deuses fictícios, imaginados pelos seres humanos, costuma adaptar-se às inclinações e tendências do coração humano.”

Obra: Introdução à Teologia Evangélica. 13a. Preleção – A Esperança. Sinodal, IEPG, 2003, São Leopoldo. Tradução de Lindolfo Weingärtner. De Karl Barth (Suíça/Basiléia, 1886-1968).

Torno a obra que fora a última preleção (1962) do teólogo protestante, talvez, mais importante do século XX.

Sob o tema da Esperança, este trecho me foi marcante na época do seminário; em meio ao que aponta como o triplo perigo que paira sobre a teologia (abertura da preleção, p. 92), onde deve aturar e suportar os assédios que podem desvirtuá-la de seus legítimos laços com a fé, argumenta que a esperança para a teologia vem da graça do Evangelho, que se dá a si mesma em liberdade, não sendo condicionada a ser merecida e adquirida pelo ser humano por meio de “obras supostamente boas” (p. 96), neste aspecto, o teólogo suscita um tema caríssimo à Reforma Protestante.

A teologia vive na pressão e não pode se eximir do juízo divino; caso se presuma com a prerrogativa de não estar sujeita a essa condição, voltando as costas para a palavra de Deus, “se transformaria em malabarismo mental e palavreado vazio”, ficaria isolada das pessoas e do mundo, imprestável para servir no encontro com a obra e a palavra de Deus; o juízo divino sinaliza o lugar do ser humano, e a teologia se insere neste contexto, então deve ser solidária com a comunidade, viver junto com ela na submissão a esse juízo, aponta (p. 94).

Na visão de Barth, a teologia é um saber que caminha no meio das pessoas em fé, enquanto é um suporte, vivencia igualmente a experiência da submissão a Deus, então penso o que este grande teólogo diria das atuais teologias que inserem o ser humano no centro das atenções e transformaram igrejas em sociedades de consumidores de produtos motivacionais de quinta categoria, dada a busca hedonista e insaciável de realizações de desejos na cultivação de valores que gravitam em uma ideia da vida resumida a prazeres do plano terreno, como se o seu sentido fosse restrito a ostentações materiais.

19/12/2023 00h22

Imagem: Câmara dos Deputados

Clodovil Hernandes

“Eu não tenho orgulho nenhum de ser gay, eu tenho orgulho de ser quem eu sou.”

Obra: Tons de Clô. Capítulo 15. Todos contra Clodovil. eBook Kindle, BestSeller, 2017, Rio de Janeiro. De Carlos Minuano.

Biografia de Clodovil Hernandes (Brasil/São Paulo/Elisiário, 1937-2009) cujo autor é um jornalista que se declara não especialista em moda, nem fã do estilista (Apresentação).

Talento para desenho de alta-costura, foi disputadíssimo entre socialites e teve uma infância marcada por uma experiência familiar complexa na descoberta da homossexualidade (Capítulo 2). Clodovil foi o gay midiático da minha infância. Mais jovem percebi que não era apenas um polemista querendo atenção; foi um homem inteligente, destemido na liberdade de expressão, independente em reflexões, homossexual assumido e, diria, um tanto conservador, senão vejamos: do trecho desta Leitura, quando deputado se declarou contrário à parada (o trecho refere-se ao evento) e ao casamento gay, assim como ao movimento homoafetivo brasileiro (Local 1595), desta forma desapontou colegas do parlamento envolvidos com a causa, refiro-me a Maria do Rosário e a Jean Wyllis (que o acusara de ter “homofobia internalizada”), além de passar a ser objeto de vaias, desprezo, dado o não alinhamento ideológico.

O homem Clodovil disse ter como grandes amores da vida a mãe e os cachorrinhos (Capítulo 17). discreto, não se ostentou na vida social perante a homossexualidade. Já o deputado Clodovil não poupou Brasília, da falta de ética como “reflexo do Brasil”, dos brasileiros que se vendem facilmente a políticos como os índios que se encantaram com “colares e espelhinhos” dos europeus, à fealdade ou da “breguice” (pensei aqui no nordestinês por achá-lo mais conveniente) da capital dos “acabamentos de quinta” (Capítulo 16). Realmente, Brasília é de um extremo mau gosto…

Esta biografia é oportuna como contraste para um tempo em que movimentos em defesa dos homossexuais mais parecem linhas auxiliares de partidos de esquerda, do que qualquer outra coisa.

18/12/2023 00h01

Imagem: Stanford Medicine

Anna Lembke

“A mudança de paradigma em torno da dor traduziu-se uma prescrição maciça de comprimidos de bem-estar [6]”.

Nota da autora: 6. Substance Abuse and Mental Health Services Administration, U. S. Department of Health anda Human Services, “Behavioral Health, United States, 2012”, HHS Publication, n. (SMA) 13-4797, 2013, http://www.samhsa.gov/data/sites/default/files/2012-BHUS.pdf

Obra: Nação dopamina: Por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar. Parte I. Capítulo 2. Vestígio, 2023, São Paulo. Tradução de Elisa Nazarian. De Anna Lembke (1967).

Da autora de Nação tarja-preta. Anna Lembke é professora e diretora médica de Medicina de Dependência da Escola de Medicina da Universidade de Stanford (EUA).

Afirma a psiquiatra, no contexto do trecho em destaque nesta Leitura, que a prática da medicina tem se transformado em favor de um mundo sem sofrimento, quando antes dos anos 1900, os médicos consideravam algum grau de dor como saudável. Uma curiosidade nesta leitura: cirurgiões de referência nos anos 1800 resistiam a anestesia geral em operações, pela crença de que a dor “acionava a resposta imunológica e cardiovascular, apressando a recuperação” (p. 43).

Então, houve a mudança de paradigma, médicos passaram a viver sob a expectativa de pacientes que, obviamente, desejam ser poupados da dor, não apenas pelo incômodo em si, mas também por se considerar que “incite o cérebro para uma dor futura, deixando uma ferida neurológica que nunca sara” (pp. 43-44).

E uma consequência dessa mudança se dá no aumento do uso de medicamento psiquiátrico pelo mundo; antidepressivos, estimulantes, sedativos, adictivos para compensar os estimulantes tomados (p. 44). Prescrições médicas aumentando e pessoas perdendo a capacidade de tolerar dores menos desconfortantes; “constantemente, procuramos nos distrair do momento presente, nos entreter” (p. 45), mas, sejam os comprimidos, seja pelo entretenimento, como tentativas de nos isolarmos do sofrimento, parece que tudo isso torna nosso sofrimento pior, indica (p. 49). Há inúmeras formas de entretenimento como método de fuga das dores, desde a mesa de bar ao culto religioso; certa vez, um seminarista espirituoso, hoje poeta eremita, dissera-me que igreja, muitas vezes, não passa de um Diazepam customizado para religiosos-ateus-praticantes.

Torna à autora: cita o Relatório de Felicidade Mundial e aponta que a dor física também segue aumentando (p. 49) e indaga sobre o que aparentemente indica maior infelicidade nas pessoas em meio a tanta prosperidade, liberdade, tanto progresso tecnológico e avanço médico; talvez, aponta, a infelicidade se explique porque “estamos dando duro para evitar sermos infelizes” (p. 50).

Penso, não seria a massificação de prescrições de medicamentos também resultante do oportunismo da indústria farmacêutica que aprende sistematicamente a aprimorar a exploração de um mercado, sobre a perspectiva de consumidores alienados, cada vez mais ávidos por alívios e estimulantes, onde se torna conveniente tratar os sintomas e não as causas, em meio ao lobby que seduz médicos estimulados financeiramente pela mesma indústria?

17/12/2023 14h53

Imagem: Casa Fernando Pessoa

Alberto Caeiro

Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à idéia
E não precisar de um corredor
Do pensamento para as palavras.
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.

Obra: Mensagem. XLVI. Alberto Caeiro. De O Guardados de Rebanhos (1911-1912). Martin Claret, 2005, São Paulo. De Alberto Caeiro (1889-1915) heterônimo por Fernando António Nogueira Pessoa (Portugal/Lisboa, 1888-1935).

O eterno retorno do Presépio – por pastor Abdoral

A menina de Gaza mutilada
tenta sorrir ao enfermeiro
enquanto na Al-Jazeera o repórter
narra sobre mais uma órfã da guerra.

Um pedinte menino a 10 mil km,
sem saber o que significa ter um pai, sorri enquanto
limpa para-brisas sob o sol escaldante
e o olhar da mãe com mais um irmão no ventre.

Centenas de milhões… de meninos e meninas
em botes do Mediterrâneo, multidões de refugiados…
em acampamentos da África e do Médio Oriente,
percorrem sinais do Brasil e as veias da América Latina,
as praças europeias e os campos da China.

Natal…
Eis o eterno retorno do Presépio…
vejo um feito de escombros a lembrar a guerra,
com um pastor luterano a contar
a maior metáfora de todos os tempos sobre a indiferença do mundo.

As palavras cessam e não bastam ao que sinto…
e o que sinto também não basta ao que sei que devo sentir.

16/12/2023 21h05

Imagem: Senado

Chico Xavier

“É lógico que o Senhor não espera por nossas rogativas para nos amar; no entanto, é indispensável nos colocarmos em determinada posição receptiva, a fim de compreender-lhe a infinita bondade.”

Obra: Nosso Lar. 7. Explicações de Lísias. FEB, 2011. De Francisco Cândido Xavier (Brasil/Minas Gerais/Pedro Leopoldo, 1910-2022).

O livro me foi mais interessante que o filme, muito bem produzido.

A obra cinematográfica trabalha pontos da doutrina espírita em uma linguagem soft, ainda mais simples e didática em comparação com a utilizada no livro; o filme Nosso Lar é uma adaptação ou uma releitura para alcançar o grande público que, de forma consciente ou não, dá a impressão de que pode ter sido considerado pela produção do filme como mais familiarizado em assuntos espirituais por influências teológicas cristãs, enquanto o livro Nosso Lar reflete peculiaridades de um saber que versa em modo lógico-racional, alguns diriam científico, acerca do mundo dos espíritos.

No entanto, entre diferenças, incluindo a ausência da fala de Lísias no trecho desta Leitura, penso, a de maior destaque está na visita de André Luiz aos seus familiares na terra. No livro (capítulos 49 e 50), André Luiz recebe um suporte de Clarêncio, que até me lembra o papel de um genuíno pastor no apoio espiritual em momentos difíceis, mediante a reação inicial de André Luiz, negativa, perturbadora, na descoberta de que sua esposa, Zélia, tinha se casado novamente, além da presença de Narcisa e mais oito entidades espirituais que atuam na cura de Ernesto, o marido de Zélia. No filme, a ênfase é total em André Luiz, que atua sozinho diante de descobertas no plano terreno cujos incômodos são superados em uma batalha de amadurecimento espiritual.

Quanto ao trecho desta Leitura (capítulo 7), lembra-me, de relance, um debate teológico entre partidários da reforma protestante e católicos em relação à fé e às obras (“obras” penso aqui em um sentido mais amplo para penitência, além de ações de caridade) na concepção cristã de “salvação”, enquanto no espiritismo o conceito é de evolução espiritual. André Luiz estava no Umbral em profundo sofrimento e orou “com tanta alma”, explica Lísias, que acabou resgatado para o Nosso Lar; neste ponto vejo a fé na atitude de se abrir para receber a dádiva divina sendo um elemento-chave no resgate, contudo, a doutrina espírita que se desenvolve no livro não se interessa por polêmica teológica e, penso, de forma mais sofisticada, caridosa, explica a importância da contrapartida humana em se colocar em “posição receptiva, a fim de compreender-lhe a infinita bondade”, e essa bondade deve ser real dentro de cada pessoa: a fé se manifesta por atos genuínos de clamor a Deus, e deste ponto pode se desenvolver outros elementos no amor, na caridade, nas boas obras, nos bons pensamentos, nas atitudes de bom coração como experiências internalizadas para que se possa compreender melhor a bondade divina e, neste aspecto, pode-se ver, acredito, um sentido mais refinado para a afirmação de São Tiago de que “a fé sem obras, é morta” (Tg, 2.17), “obras”, reitero, em um plano abrangente de experimentações do que Santo Agostinho apontou como “Supremo Bem” de forma concreta a partir das próprias ações que repercutem no mundo espiritual.

15/12/2023 22h18

Imagem: DW

Nietzsche

“Alguém quer descer o olhar sobre o segredo de como se fabricam ideais na terra?”

Obra: Genealogia da moral. Uma polêmica. Primeira dissertação. Cia da Letras, 1998, São Paulo. Tradução de Paulo César de Souza. De Friedrich Wilhelm Nietzsche (Reino da Prússia/Röcken, 1844-1900).

Irmão Nietzsche II – por pastor Abdoral

Não raramente será encontrada a conveniência de se evitar tal confronto. Preferível será no lugar comum o clichê da zona de conforto, dos lugares santificados em sistemas explicativos da vida, das fórmulas inefáveis que corrigem o que se pensa saber ou como disseras, irmão, as “muletas metafísicas”. Então, teu espírito perturbador prussiano pergunta:

Quem tem coragem para isso? (p. 37).

Quem tem ouvidos, ouça.

E nessa curiosidade perigosa, mórbida, arrisco-me a escutar o cinismo da fraqueza ser convertida em mérito (p. 38), de como ideias nascem das performances fraudulentas do que se tem por bem sucedido que encontram guarida para se camuflarem em arranjos; de valorações sociais enquanto abstratas, infladas de auto definições e vazias de autenticidade, que se consideram livres enquanto disseminam um coletivo delírio de uma submissão de incontestes logos tão eloquentes, a arte da política em transmutar discursos em sentidos diversos conforme as conveniências, não incomum materializados e inerentes ao senso de que sem essa santa hipocrisia não haverá “vida” que possa ser suportada.

14/12/2023 23h46

Imagem: Esquerda online

Nikolai Bukharin

Imagem: Wikipédia

Ievguêni Preobrajenski

“Em casos extremos, o governo operário não deve hesitar em usar o método do terror.”

Obra: O ABC do Comunismo. Uma explicação popular do Programa do Partido Comunista da Rússia. Traduzido da edição em inglês publicada pelo Partido Comunista da Grã-Bretanha em
1922. Tradução de Elita Medeiros. Elita de Medeiros, 2022, eBook Kindle. De Nikolai Ivanovich Bukharin (Rússia/Moscou, 1888-193) e Ievguêni Preobrajenski (Rússia/Bolkhov, 1886-1937).

Em tempos de celebração no Palácio por conta do primeiro (seria mesmo inédito?) ministro comunista (seria não enrustido?) na Suprema Corte, pensei nesta obra (de outras edições em tempos longínquos em que fui um jovem peripatético entusiasta progressista), afinal nada mais proveitoso de que o povo eleitor conhecer bem as bases de valores políticos que aparentemente apetecem o grande e amado líder da nação.

O ABC do Comunismo foi produzido por dois revolucionários bolcheviques da mais alta envergadura e com uma imensa ficha com serviços prestados à causa. Texto em uma linguagem simples, diria bem acessível aos úteis a partir de uma experiência concreta no maior fenômeno dessa categoria que se esforça para instrumentalizar o ódio em justiça, protagonizado no âmbito do que sistematizou o Partido Comunista da Rússia.

No prefácio (1919), os autores conclamam os camaradas a lerem por completo esta obra para “adquirir uma ideia dos objetivos e tarefas do comunismo”. E assim, penso no trecho desta Leitura, no grande embate da classe operária contra a burguesia, aquela tão malvada detentora dos meios produtivos pelos quais exploram os pobres operários que, ao chegarem ao poder no aparato estatal, devem ser “implacáveis” contra os tais exploradores do trabalho e resistentes do capital; “a principal tarefa do governo operário é esmagar impiedosamente essa oposição” (p. 64), e quanto mais vigorosa fora a resistência dos burgueses, mais dura deve ser a ditadura do proletariado e, em casos extremos, o governo sob o comando dos trabalhadores “não deve hesitar em usar o método do terror” (p. 65), explicam os autores (p. 64).

Bem, é o que consta neste clássico ABC comunista.

13/12/2023 22h51

Imagem: Editora Rocco

Clarice Lispector

“O que farei de mim? Quase nada. Não vou escrever mais livros. Porque se escrevesse diria minhas verdades tão duras que seriam difíceis de serem suportadas por mim e pelos outros. Há um limite de se ser. Já cheguei a esse limite.”

Obra: A descoberta do mundo. 1968. 9 de março. Rocco Digital, 2020, eBook Kindle. De Chaya Pinkhasivna Lispector (Ucrânia/Chechelnyk,1920-1977).

O grito de Clarice – por pastor Abdoral

O grito de Clarice me faz repensar o cansaço que olho dentro de meus pensamentos. Fadiga de tentar compreender a complexidade deste mundo e perceber minha pequenez, embora seja tentado a acreditar que entendo alguma coisa pela boa consideração de quem me estima.

Percorro o dia como quem tenta se manter firme sem pensar no abismo de minhas vulnerabilidades, embora pense que todos estejam assim, tão expostos ao imponderável sob o fingimento de que possuem algum controle.

No final de uma jornada vem um consolo pela mais sublime expressão das palavras em meu encontro com uma sombra do infinito que, por uma linguagem que não posso verbalizar, ler, nem escrever, mas que fala ao meu ser em outra sintonia do intelecto e é neste momento que sinto verdades que jamais poderia expressar à altura da profundidade em que se revelam.

12/12/2023 22h17

Imagem: DW

Karl Marx

“[…] o ateísmo e o comunismo não constituem uma fuga, uma abstração, uma perda, do mundo objetivo produzido pelos homens e pela objetivação das suas faculdades. Não são um empobrecimento que retorne de novo á simplicidade antinatural, primitiva. Constituem antes a primeira emergência real, a legítima atualização da natureza do homem como algo de real.”

Obra: Manuscritos Econômicos-Filosóficos. Capítulo 6. Terceiro manuscrito. O saber absoluto. O capítulo final da “Fenomenologia. XXX. Martin Claret, 2003, São Paulo. Tradução de Alex Marins. De Karl Marx (Reino da Prússia/Renânia-Palatinado/Tréveris, 1818-1883).

Lembrei-me que na acalorada discussão em 2016, sobre a curiosa obra de Rossiter, saiu do progressista indignado uma citação próxima a este trecho, feita então pelo jovem Marx nos manuscritos de Paris. Normalmente, movido por paixões ideológicas, indivíduos apelam para jargões e frases de efeito como se fossem fatos incontestes enquanto abstrações auto afirmativas.

No contexto, Marx faz uma análise da parte final da Fenomenologia do espírito, onde entende que Hegel, no tocante ao que considera como supressão do existente na filosofia, faz oposição tanto ao ser real como à ciência direta. Marx então aponta os “momentos positivos” da dialética hegeliana; a supressão que reabsorve em si a alienação onde apresenta uma analogia do ateísmo, como eliminação de Deus, com o comunismo, como eliminação da propriedade privada, atrelado ao que pensa sobre Hegel ter “equiparado o homem à autoconsciência” (p. 189), compreendido “o significado positivo da negação a si mesmo referida”, tendo concebido assim “a auto-alienação, a desapropriação do ser, a perda da objetividade” (p.188), sendo, à mon avis, pontos relacionados ao que discorre sobre a “reinvindicação da vida humana real como propriedade do homem” (p. 187); assim, Marx traça um paralelo dessa reinvindicação com o comunismo, como o que “constitui o humanismo obtido através da eliminação da propriedade privada” (p. 187) .

Infelizmente Marx não pode ver as desastrosas experiências políticas no século seguinte, face ao que entendia como “humanismo” aplicado ao seu conceito de comunismo, mediante a eliminação da propriedade privada e a coletivização dos meios produtivos. Os que pensam ideologicamente em seu favor, talvez aleguem que as tentativas, pelas quais me refiro, revelaram tão-somente incompreensões do pensamento de Marx. Neste aspecto, penso, o que Marx descreve neste trecho dos Manuscritos se sujeita a duas possibilidades: pode se relacionar com o problema de algo abstrato, teórico e ainda não comprovado, concomitantemente desqualificando as experiências políticas ocorridas em nome do comunismo ou, o que Marx aponta seria uma coisa irrealizável, inexequível, insustentável e com efeitos colaterais graves. Fato é que tal “humanismo” não se verificou, dadas as tentativas que produziram regimes totalitário em nome do comunismos, consoante às experiências ocorridas, problema que se versa em meio à complexidade da natureza humana. A constatação desse “humanismo” só pode ser apontada, entendo, por um ato de fé ideológica, em auto proclamações enquanto no mundo real, o comunismo significa a imposição por um aparato político da erradicação de liberdades dos indivíduos em prol da coletivização dos meios de produção.

11/12/2023 00h01

Imagem: Livro

Lyle H. Rossiter

“É um mundo utópico imaginado por adultos infantilizados que anseiam por benevolência, fraternidade, generosidade e amor universais, mas em suas proclamações retóricas e operações no mundo real a agenda é viciosamente hostil.”

Obra: A mente esquerdista. As causas psicológicas da loucura política. Capítulo 48. Integridade e tratamento. Avaliação e diagnóstico no esquerdismo moderno. Vide Editorial, 2016, Campinas. Tradução de Flavio Quintela. De Lyle H. Rossiter.

Obra do psiquiatra pela Universidade de Chicago, com PhD. Na ficha catolográfica, 1. Ideologias políticas 2. Desordens mentais. Na orelha do livro se informa que o Dr. Rossiter serviu dois anos no exercito dos EUA como psiquiatra e que é muito requisitado como psiquiatra forense por órgãos públicos, tribunais e advogados particulares.

Ouvi falar deste livro pela primeira vez em 2016 quando um colega progressista o mencionou como “pseudociência” a outro colega que se considerava de “direita” e lhe dissera em tom jocoso: “está vendo, bem que lhe avisei, esquerdismo é doença mental”. Tentaram-se incluir da discussão, mas como penso que dar opinião é algo irrelevante, preferi correr para uma livraria a entrar no debate.

A obra é um tanto longa (503 páginas) com exaustivo desenvolvimento de temas relacionados às fases da vida da infância a idade adulta madura, até chegar na Parte III onde discorre detalhes do que aponta sobre a patologia esquerdista. O autor define que o esquerdismo radical é uma “evidente neurose” por “suas distorções da natureza e do relacionamento humano” (p. 425); “em “sua retidão, arrogância e grandiosidade; em sua auto-piedade; em suas demandas por satisfação e isenção de responsabilidade; em suas reivindicações de direitos; no que ele dá e retém; e em seus protestos de que nada feito voluntariamente é suficiente para satisfazê-lo ” (p. 426), cuja agenda é neurose “transformada em manifesto” (p. 490).

O esquerdismo neurótico “parece-se bastante com uma desordem de personalidade” (p. 491), sustenta; caracteriza-se pela distorção das realidades nas relações humanas, pela transferência dos traumas dos anos de formação (entendo da personalidade) para as “arenas contemporâneas dos processos econômicos, sociais e políticos”. Uma doença que “predispõe à ansiedade, insegurança, desamparo, depressão, desespero, cinismo, vergonha, desgosto, despeito, ira, raiva, amargura, ciúme, ódio, culpa, mágoas, competitividade excessiva, sentimentos de inadequação, a dúvida sobre a própria amabilidade”, define (p. 492).

No contexto do trecho desta Leitura, o autor se refere à propaganda esquerdista como “um produto do pensamento fantasioso” que tenta transformar o mundo real em um mundo de ficções que “acalmarão a miséria neurótica do esquerdista” (p. 490). O autor indica, de forma sucinta, tratamento para essa neurose do esquerdismo moderno “através de uma combinação de técnicas psicanalíticas, cognitivas-comportamentais e educativas” (p. 493).

Sem entrar no mérito do que aponta o autor, por mera incompetência, penso que os milionários e bilionários que apoiam partidos e políticos de esquerda, inclusive os mais radicais, por este ato não me parecem neuróticos e sim cada vez mais ricos em função dos desdobramentos políticos governamentais deste apoio.

10/12/2023 12h47

Imagem: SWR

Stefanie Stahl

“[…] é importante permitir que nossa criança-sombra tenha a chance de falar para conseguirmos reconhecer onde estão nossos pontos fracos, os chamados gatilhos. […]”

Obra: Acolhendo sua criança interior. Capítulo 7. Como a infância molda o comportamento. A criança-sombra e seu sistema de crenças. Sextante, 2022, Rio de Janeiro. Tradução de Maurício Mendes e Vanessa Rabel. De Stefanie Stahl (Alemanha/Hamburgo, 1963).

Experiência de leitura na biblioteca da esposa psicóloga. Obra publicada em 30 países, mais de 2 milhões de exemplares vendidos, da psicóloga alemã especialista em fobia de compromisso.

Destaco quatro conceitos apresentados pela autora, para o contexto desta Leitura: (1) a criança interior, “metáfora para as partes inconscientes da nossa personalidade que foram cunhadas na infância”(p. 17), “um conjunto de impressões, tanto boas como as ruins que nos foram transmitidas na infância” (p. 14); (2) a criança-sombra, que “abarca nossos crenças negativas e os sentimentos opressivos que delas resultam, como tristeza, medo, desamparo e raiva” (p. 20), e derivam desses sentimentos as estratégias de “autoproteção” adotadas para evitar senti-los, entre as quais estão a agressividade, a dominação, o perfeccionismo, a obsessão por controle e harmonia; (3) a criança-sol, que diz respeito às influências positivas, os sentimentos bons, inerente às crianças felizes e, por fim, o (4) ego adulto ou “adulto interior”, instância psíquica que “abrange a parte sensata e racional da nossa mente, isto é, nossos pensamentos” (p. 17).

A criança-sombra atua de forma silenciosa, quase imperceptível a provocar problemas em adultos pelas influências negativas quando é acionada por “gatilhos” e tenta lidar com as mágoas e dores sofridas originadas na infância (p. 14). A autora ilustra (p. 15), para melhor compreensão, a história do casal Miguel e Selma: Miguel tem acessos de raiva com Selma quando ela esquece algo que ele considera importante, no exemplo, um refrigerante nas compras do mercado. Uma banalidade vira motivo para uma briga intensa de casal pois a “criança interior” de Miguel se manifestou, perturbada pela “criança-sombra” que acionou seus sentimentos antigos (de suas lembranças ruins da infância), no caso, de sua mãe que não levava a sério seus desejos naquela fase inicial da vida. Sem querer Selma acionou um gatilho no marido, enquanto a reação raivosa dele também acionou um gatilho nela, pois quando criança, Selma sofreu com pais que foram muito críticos que tinha expectativas muito altas e exigiam demais dela (p. 43). Então, a autora aponta que “se cada um entendesse os desejos e as dores de sua criança interior, seria mais fácil expressá-los em vez de discutir” (p. 15) por coisas, muitas vezes, penso, banais.

A “criança-sombra” é real, quer atenção, se não recebê-la, vai insistir ainda mais, se for dado a ela tratamento devido, “fica satisfeita e vai brincar sozinha um tempo” (p. 42). A autora aponta que em sua experiência, a criança interior não se restringe às emoções, ela “também é moldada pelas crenças internalizadas que costumam ser as precursoras das emoções” (p. 43).

Então, penso, a busca por uma melhoria do comportamento em interação com o ego adulto, passa por um melhor auto conhecimento, que passa pela melhor identificação de elementos internos que são capazes de acionar sentimentos ruins antigos, originados da infância, que incitam a ações aparentemente irracionais, muitas vezes agressivas ou hostis, em relacionamentos na vida adulta, e saber identificar tais pontos críticos requer conhecimento da criança interior que todos carregam dentro de si, sendo este o primeiro e mais importante passo para se conseguir lidar com os gatilhos da criança-sombra e neutralizar seus efeitos nocivos.

09/12/2023 20h17

Imagem: Chiesa di Milano

San Francesco d’Assisi

“Frate lupo, poichè ti piace di fare e di tenere questa pace, io ti prometto ch’ io ti farò dare le spese continuamente, mentre tu viverai, dagli uomini di questa terra, sicchè tu non patirai più fame; imperò che io so bene che per la fame tu hai fatto ogni male. Ma poich’ io t’ accatto questa grazia, io voglio, frate lupo, che tu mi imprometta che tu non nocerai mai a nessuna persona umana nè ad animale: promettimi tu questo?”

Obra: I Fioretti di San Francesco. Del santissimo miracolo che fece santo Francesco, quando convertì il ferocissimo lupo d’ Agobbio. Le Fonti Francescane. Riveduti su un nuovo Codice da P. B. BUGHETTI. Collegio San Bonaventura, 1926, Quaracchi. Notas de Feliciano Olgiati. Das fontes franciscanas. Histórias de Francesco d’Assisi (Italia/Assisi, ?-1226).

I Fioretti vêm de uma tradição auricular. O Centro Franciscano de Espiritualidade tem uma excelente matéria sobre a obra [185].

Após minha passagem por Assis em 2018, da emoção na tumba, senti uma forte atração por conhecer mais as obras do Padroeiro da Itália, à mon avis, a personalidade cristã medieval mais importante e o maior reformador católico romano em uma era onde a Igreja viveu o auge de um poder político que a distanciou do Evangelho.

A história da conversão do lobo feroz é uma tentação para quem se apetece por uma crítica com base em uso de figuras de linguagem, afinal há muitos especialistas em dar explicações racionais para textos com relatos miraculosos. Isto posto, relata o texto que o então frade Francisco se dirigiu a um lobo “terrível e feroz” (p. 27) que tirava o sossego dos moradores de Agobbio. A fera de boca aberta, pronta para atacá-lo, foi recebida com o sinal da Cruz e o frade a lhe dizer:

“Venha aqui irmão lobo, da parte de Cristo eu te ordeno a não me machucar, nem a qualquer outra pessoa” (tradução livre, p. 27).

O lobo ficou manso, como um cordeiro, e então Francisco iniciou um diálogo com o mais novo irmão que encontrou na natureza (foram tantos, incontáveis). Entendo o sentido de “irmão”, usado na tradição em torno de Francisco, como um sinal de ligação profunda do espírito humano diante de toda criação divina e espírito franciscano, penso, hoje se torna ainda mais importante quando se medita acerca dos problemas causados pelo ser humano à natureza, mas, tornando ao texto, Francisco conversa com o lobo, fala sobre os danos que ele causou, bem como de suas necessidades; a conversa se desenvolve em uma relação fraterna para ser finalizada com uma proposta de paz, em nome de Jesus Cristo, entre a fera e os habitantes da cidade. O lobo inclina a cabeça; de corpo, cauda e orelha sinaliza concordar com Francisco. Então o acompanha como um animal domesticado pela cidade, sob o olhar de espanto dos moradores (p. 28); passou a ser alimentado como um compromisso de todos na localidade e morreu de velhice como um pet muito amado.

Encerro com os 10 mandamentos do encontro em uma reflexão [186] do Frei Emerson Aparecido Rodrigues:

1- A disposição de ir ao encontro do outro, ignorando os pressupostos e preconceitos adquiridos. Conhecer o outro a partir dele e não de idéias pré-concebidas, ou do que outros disseram.
2- A coragem de se desarmar para o encontro. Tirar a armadura.
3- Colocar-se no lugar do outro e procurar compreendê-lo, no seu contexto vital, entendendo por que age de determinada maneira. Calçar as sandálias do outro, pisar o mesmo chão.
4- Confiar na Paternidade de Deus e sentir-se irmão.
5- Tomar a iniciativa de ir ao outro como irmão. Não se importando com a reação e a disposição do outro. Vencendo assim suas resistências.
6- Colocar-se na atitude de acalanto, acolher o outro, aceitá-lo incondicionalmente como ele é.
7- Ter a disposição de ouvir o outro. Deixando que o outro seja o outro e não um espelho de minhas projeções.
8- Ter coragem de criar laços libertadores; relações de amizade e fraternidade.
9- Partindo do encontro, fazer uma proposta de um caminho juntos que transformem as relações.
10- Dar ao outro o direito de aceitar ou não as proposições.

185. I Fioretti di San Francesco – Introdução

186. O encontro de São Francisco e o lobo

08/12/2023 18h50

Imagem: IEA USP

Luiz Felipe Pondé

“[…] ser politicamente correto fere a inteligência ou revela mau caráter. […]”

Obra: Guia politicamente incorreto da filosofia. As religiões correm o risco de virar uma mistura de Hopi Hari, fanatismo brega e dieta balanceada. Leya, 2013, São Paulo. De Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé (Brasil/Pernambuco/Recife, 1959).

E segue Pondé: “Não conheço ninguém que adote o politicamente correto e não seja mau-caráter, fora aqueles que têm idade mental de 10 anos” (p. 64). No contexto, aborda a questão sobre o ato de se criticar o islamismo ser visto como politicamente incorreto a citar inicialmente as “cheerleaders da esquerda”, as quais define como “os intelectuais que babam em cima de tudo que lhes parece antiamericano”(p. 63) e que não conhecem muito bem o mundo árabe, aponta no mesmo parágrafo.

Influenciadores de esquerda que defendem movimentos islâmicos no Oriente Médio parecem ignorar que estão a simpatizar com grupos antidemocráticos, com propósitos de impor a sociedade uma visão religiosa ditatorial cuja interpretação retroalimenta diversos preconceitos, baseada no Corão, o que dizem combater no Ocidente em relação a grupos cristãos ditos “conservadores”. Neste ponto, penso, seriam realmente pouco versados nesses movimentos claramente autoritários no Islã ou os defendem simplesmente porque são antiamericanos? As “cheerleaders da esquerda” seriam ingênuas pela carência de conhecimento daquilo que defendem de muçulmanos ou estariam regidas por um mau-caratismo? Quem sabe um pouco das duas coisas.

A leitura desta obra me foi muito proveitosa para refletir sobre o problema do desenvolvimento da estupidez no viés ideológico, fator que alimenta a cultura do politicamente correto para tomar proveito dela como ferramenta de manipulação. O politicamente correto atrapalha o livre pensamento a ponto inviabilizá-lo. Em grupos disso e daquilo funciona como prumo para um sistema onde crenças determinadas não devem ser colocadas em discussão, pois são a base para sedimentar a obediência dos seguidores bestializados em favor dos líderes; indivíduos que se fecham em dogmas em seus pensadores preferidos, livros recomendados por “gurus” e formadores de opinião onde todo tipo de produção de pensamento se enrijece no alinhamento com suas crenças, e quando buscam saber mais sobre outras formas de abordagem, normalmente se pautam mais na crítica de seus influenciadores do que na leitura direta do que pensa o autor contestado.

Durante os anos 1990 li críticas de progressistas sobre pensadores de economia liberal enquanto não tinha despertado para ir direto às fontes de quem tanto desprezava; libertei-me deste cabresto de policiamento ideológico quando me afastei do ensino formal (2007) e passei a trilhar um caminho alternativo onde todos passaram a ser lidos, sem restrições. Durante essa experiência, notei que em grupos onde seus adeptos se consideram de “direita”, “conservadores”, defensores da “liberdade econômica”, acontece o mesmo, e como já tinha vivenciado esse domínio ideológico entre progressistas, a “vacina” funcionou e não me deixei levar pelo dogmatismo do outro lado ou, aprendi que este problema de viés ideológico na política é corriqueiro e danoso não apenas em grupos de esquerda; se de um lado o extremismo socialista leva a crenças pelo comunismo, na outra ponta do radicalismo, na medida em que se dizem liberais e defendem coerção estatal com seus vícios de poder, abre-se uma via para neofascismo e neonazismo, ou quando isso não ocorre, pela falta de sensibilidade com problemas sociais, quando não há uma formação espiritual em torno do voluntariado, a ênfase exacerbada no econômico acaba por reforçar o desprezo por um senso existencial que nos torna mais humanos. Além do mais, é preciso ter cuidado também com o meio, pois com a máscara da moderação muitas raposas alienam os mais simples para um dos lados, enquanto costumam mudar de posição onde coerência é a última coisa que lhes interessa. Isto posto, não que ter crenças políticas seja um problema em si, mas o fechamento em ideias sistematizadas determina certos limites de reflexão, da apreciação da dúvida e da construção do saber, e assim o que se espera de ciência tornar-se-á uma porta fechada para a busca de um conhecimento menos rústico, mais depurado, que possa resultar na superação de algumas situações incomuns.

Quem pensa apenas ideologicamente se anula no legítimo exercício da inteligência. Neste aspecto, não vejo diferença, em termos de “ideolatria” ( idolatria das crenças), entre grupos religiosos fundamentalistas e grupo de militantes de esquerda ou direita.

07/12/2023 23h30

Imagem: BBC Radio 4

Napoleão Bonaparte

“My policy is to govern men as the greatest number wish to be governed. … I carried on the war of Vendee by becoming a Catholic; I established myself in Egypt by becoming a Mussulman; I won over the priests in Italy by becoming Ultramontane. If I governed Jews I should reestablish the temple of Solomon. . . . It is thus, I think, that the sovereignty of the people should be understood.”

Obra: Life of Napoleon. McClure, Phillips & Co., M. CM. V., New York. De Ida Tarbell Minerva (EUA/Pensilvânia, 1857-1944)

Em resposta ao Conselho de Estado, o pragmatismo de Napoleão: “Minha política é governar os homens como a maioria deseja ser governada”, argumenta, e assim diante da França católica, não priorizou pautas protestantes (pp. 120-121).

A religião e a política caminham juntas em Napoleão; a primeira é instrumento a serviço do poder que se exerce na segunda.

No Egito se estabeleceu “tornando-se muçulmano”, conquistou os sacerdotes na Itália agindo como ultramontano e se tivesse que governar os judeus, abraçaria o judaísmo, “restabeleceria o Templo de Salomão”, assim explica, e penso seria também afro, hindu, budista e em nosso tempo se passaria por espírita, ateu, pentecostal, conforme a necessidade, não importa, sua concepção de “soberania do povo” (p. 121) se voltava para consolidar um curso do poder onde a imagem do supremo líder deve ser associada e sedimentada por interesses populares, da maioria.

Políticos ateus indo à missa, ao culto, a um terreiro de candomblé, a qualquer ambiente sagrado onde expressam sinais de comunhão com a fé, não apenas como uma visita protocolar, de certa forma reproduzem similar espírito pragmático de Napoleão. Recordo-me de um indivíduo que me dissera ser ateu após uma conversa sobre livros condenados pela Igreja, mas em um programa de rádio em uma cidade do interior onde estava como candidato a prefeito, declarou-se como fervoroso católico romano praticante, e se estivesse como candidato em uma cidade de maioria protestante…

Então, no contexto do ambiente europeu, Napoleão trabalhou em favor do que chamava de “velha religião católica”, daí se deriva a Concordata que promoveu com a Igreja, a contrariar setores progressistas, pois entendia ser o caminho de algo embutido no coração dos governados para conciliar seus interesses (p. 123). No século seguinte, pela arte do possível dentro da mesma linha de pragmatismo, lembro-me de outro tirano, ateu militante anticlerical, o maior de todos os fascistas, Benito Mussolini, com a batuta do poder de primeiro-ministro, entraria em acordo com a Igreja Católica para celebrar o Tratado de Latrão.

A fé remove montanhas… de apoiadores.

06/12/2023 23h05

Imagem: Grattacielo Intesa Sanpaolo

Alessandro Barbero

“Ma come mai allora ricorre cosí largamente al linguaggio tradizionale che accosta l’imperatore agli dèi?”

Obra: Costantino: Il vincitore. Parte I · Adulatori e ideologi. Salerno Editrice, 2016, Roma. De Alessandro Barbero (Italia/Torino, 1959).

Obra fascinante do professor Barbero.

Aduladores e ideólogos, algo tão comum artistas promovendo idolatria a político, coisa tão antiga quanto a velha Roma imperialista; os poemas de louvor a Constantino (Impero Romano/Mesia/Naisso, 272-337) de Optaziano Porfirio (Impero Romano/Italia/Roma, ? – 333/337) que o digam.

Constantino anima todas as coisas mortais com sua “presença divina” e o poeta anseia pela graça de seu venerável imperador, menciona o professor acerca do teor dos poemas; “é evidente que Porfírio não percebe nenhuma contradição entre o uso desta linguagem e a fé cristã de Constantino”, aponta (p. 122). O imperador é chamado de “Sol”, neste ponto estudiosos consideram uma continuidade entre o culto solar do primeiro Constantino e sua abordagem posterior ao Cristianismo (p. 122).

Porfírio também foi senador e politicamente estava em situação delicada. Por volta de 325, na esperança de obter uma graça de Constantino, enviou-lhe um panegírico onde exaltava o Deus supremo em termos genericamente monoteístas, Cristo, o salvador do mundo, na esperança de sensibilizar o imperador “cristão”, mas tudo se misturava no paganismo e um exemplo está no que o professor menciona sobre um altar erguido a Apolo onde o poeta não se esquivou de assimilar Constantino ao Sol e a Júpiter (p. 123).

A deificação de imperadores pode parecer algo sem sentido da antiguidade, mas hoje políticos são tratados como simples mortais ou como seres dotados de capacidades especiais sobre-humanas? Não seria a fé que muitos depositam em políticos tão ou maior que a depositada em Deus?

05/12/2023 20h44

Imagem: University of Exeter

Ilan Pappé

“Towards the end of the 1980s a number of Israeli scholars, both inside and outside the country, wrote studies on aspects of both the past and the present Jewish society in Israel/Palestine which contradicted the conventional Zionistand official Israeli historical narrative. […]”

Obra: A History of Modern Palestine. One Land, Two People. CHAPTER 8. A Post-Zionist Moment of Grace? THE ACADEMIC DEBATE − THE POST-ZIONIST SCHOLARS. Second edition. Cambridge University Press, 2006, Cambridge. De Ilan Pappé (Israel/Haifa, 1954).”

Nos anos 1980 as “‘verdades históricas’ mais sagradas do sionismo” passaram a ser questionadas por “vários acadêmicos israelenses, tanto dentro como fora do país”, explica o professor (p. 315). O criticismo tinha se iniciado entre professores e escritores palestinos já na formalização do Estado de Israel, em 1948; eram “grupos marginais” que, após a guerra de 1967, com a expansão da ocupação israelense na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, “ganharam impulso dentro de Israel e assim se desenvolveram em duas vias: uma elitista dentro da esquerda sionista, e uma popular dentro da comunidade judaica de imigrantes do Norte de África e da comunidade árabe palestina minoritária” (p. 316) . Destaque para o movimento “Paz Agora” que surge em 1978, ativo durante a primeira Intifada (1987-1993), inativo, “praticamente silencioso” durante o governo liderado por Rabin (1993-1995). Cabe considerar que o criticismo pós-sionista é similar às posições adotadas por anos pelo partido comunista em Israel (p. 316).

As críticas acadêmicas se notabilizaram sobre o papel desempenhado por instituições de ensino de Israel na formação da “autoimagem sionista” e na sua representação frente à realidade palestina. Direta e indiretamente desconstruíram as obras daqueles que dominaram a produção acadêmica israelita acerca da história da Palestina e da sociedade judaica contemporânea a compor “um verdadeiro fenômeno cultural em Israel”, salienta o professor, de maneira que a mídia local os definiu como “pós-sionistas”, um termo que, mesmo não tendo sido bem recebido por alguns autores do movimento, ficou conveniente para descrever a essência do trabalho, aponta (p. 315).

Penso, a maior riqueza de um ambiente que se propõe a ser “intelectual” está na liberdade do espírito crítico para desafiar e questionar sobretudo a si mesma, sendo inversamente proporcional toda forma de alinhamento ideológico a que se submeta, em especial no que se pauta por interesses políticos privados e/ou de aparato estatal. O criticismo ao sionismo que surgiu dentro da academia israelense foi um sinal de esperança na vitalidade intelectual, ao mesmo tempo em que demonstrou como pode ocasionar em equívocos conceber a sociedade israelense como algo ideologicamente uniforme quanto ao Estado de Israel e aos problemas palestinos.

04/12/2023 00h12

Imagem: Estrategistas

Viktor Frankl

“Não era sem um certo abalo que os prisioneiros recém-chegados se surpreendiam com a vitalidade e a profundidade do sentimento religioso.”

Obra: Em busca de sentido. I. Em busca de sentido. A segunda fase: a vida no campo de concentração. Política e religião. Vozes, 2018,Petrópolis. Tradução de Walter O. Schulupp e Carlos C. Aveline. De Viktor Emil Frankl (Áustria/Viena, 1905-1997).

Penso nesta obra de Viktor Frankl como digna de estar em toda biblioteca residencial.

Quando leio os relatos do psicólogo prisioneiro no campo de concentração, entendo como a fé em Deus é imprescindível na vida para se percorrer um caminho trágico de muito sofrimento e este trecho me foi marcante.

Preces e cultos improvisados em um barracão ou em um vagão de gado escuro e fechado após mais um dia de trabalhos forçados (p. 51); tento imaginar a cena, assim como o caso do companheiro de Frankl que, ao perceber a proximidade da morte com a febre tifoide, tentou orar mas o delírio o impedia de articular palavras (p. 52). Além da celebração religiosa convencional, o autor relata o caso de uma sessão espírita no campo (p. 52). O primitivismo do lugar envolveu a todos, evidentemente, mas os sensíveis que cultivavam uma vida intelectual ativa antes da experiência, tendiam a se refugiar “num domínio de liberdade espiritual e interior”; eis a explicação que o psicólogo encontrou para o paradoxo dos mais delicados terem suportado melhor os flagelos (p. 53).

Relembrar a leitura deste livro me fez também refletir sobre o significado do flagelo de inocentes no contexto de minha indignação com o que o Estado de Israel faz nos bombardeios sobre palestinos civis. Penso também como é importante separar os judeus do aparato sionista para não cair no antissemitismo; culpar todo judeu pelos crimes de guerra do Estado de Israel é um absurdo similar a culpar todo cidadão de um país pelo que estão fazendo seus governantes. Percebi também como essa indignação com o flagelo dos palestinos também me envolve à indignação com os ataques terroristas a civis israelenses no 7 de outubro assim como me estimula a lembrar sempre o holocausto e também me remete à multidão de palestinos que foram mortos ou transformados em refugiados nos desdobramentos do sionismo na Palestina. Deixar-se envolver por preferência ideológica para enfatizar apenas um lado apenas trará mais desorientação e preconceito.

03/12/2023 14h19

Imagem: escritas.org

José Saramago

“Ora tu, José, que carpinteiro que estás saindo, que nem és capaz de fazer uma cama, agora que tens aí a mulher grávida.”

Obra: O evangelho segundo Jesus Cristo. Cia das Letras, 2005, São Paulo. De José de Sousa Saramago (Portugal/Azinhaga, 1922-2010).

Lembro-me que em 1992 parei para escutar Saramago no Roda Viva e como pude aprender sobre a arte deste gênio lusitano em produzir literatura em intenso diálogo com outras literaturas. O evangelho segundo Jesus Cristo é uma demonstração dessa qualidade. Em 1998 seria agraciado com o Nobel de literatura por obras “com parábolas sustentadas pela imaginação, compaixão e ironia que nos permite continuamente apreender uma realidade ilusória” [184].

Outra recordação desta obra se deu quando estava na biblioteca do seminário em 2007, a meditar sobre a narrativa que Saramago construiu sobre o “mendigo” e Maria, mãe de Jesus, em relação ao trecho destacado, e pude ver a péssima recepção de um colega apologeta. O fato do autor retratar uma personagem universal em um tema tão caro em termos religiosos e ser declaradamente ateu e marxista, visivelmente o incomodou. “Como um ateu comunista ousa falar de Jesus dessa forma, como um ‘evangelho’ e fazer de José motivo de chacota?”, retrucou. Lembro-me de ter indagado o que pode haver de polêmico em uma ficção a não ser que a fé não seja o bastante para saber tratar as coisas, embora Saramago discordaria aqui, penso: primeiro, é arte, tão-somente romance, não é história, não se trata de realidade, e sendo assim a aprecio como de fato é, um fruto da imaginação traduzida pelo autor, nada além disso, mesmo que o tratamento como ficcional não satisfaça tal incômodo, argumentei. O interlocutor preferiu manter sua inclinação a censura.

Um tempo depois (1993) do lançamento, Saramago decidiu deixar Portugal e ir para a Ilha da Lanzarote (Espanha/Canárias); foram críticas que se deram em meio a um veto sobre indicação de prêmio europeu, provavelmente por pressão da Igreja Católica portuguesa. Neste aspecto, da mesma forma que Saramago tem a liberdade de fazer arte com suas versões sobre temas do sagrado, religiosos também têm a mesmíssima liberdade de fazerem uso da crítica e do boicote. A arte é livre e não é imune à liberdade das pessoas em apreciá-la ou não, bem como rejeitá-la.

Torno a 2007, quando em paralelo me recordo que estava a apreciar outro romance ambientado no Evangelho: Entre todos os homens (1997), de Frei Beto, e, mais uma vez, percebi uma saraivada de olhares tórridos de reprovação de que acredita que Deus tem procuradores no plano mortal, sobretudo entre religiosos que condenam as opções políticas do autor.

Voltei então a pensar em Saramago sobre quais seriam as razões de muitos terem se incomodado tanto com a obra. Hoje compreendo que a arte influencia comportamentos e delineia a forma como se concebe a realidade, podendo assim ser um poderoso instrumento para interesses ideológicos diversos. Deste aspecto, relaciona-se o entendimento sobre vilipêndio entre religiosos; na obra, Saramago humaniza Jesus de maneira que o dessacraliza na intenção de discorrer sobre o “homem inteiro” que teria que experimentar as coisas dos homens; também suscita temas comuns em A Última Tentação de Cristo, filme lançado três anos antes, o que, por sinal, compromete a obra quanto à originalidade.

Creio que é preciso ponderar a relevância do aspecto do sagrado na perspectiva dos crédulos que se sentem ofendidos com obras que abordam personagens em uma concepção diversa da religiosa, enquanto a arte pode se integrar à percepção de realidade de quem a aprecia (“percepção” aqui em sentido kantiano), mas isso não justifica censura, tampouco anula considerar o que, aparentemente, ocorrem com muitos (longe de ser um problema exclusivo do ambiente religioso) que têm dificuldade de separar o ficcional do factual em gêneros e, talvez, neste aspecto se expliquem o poder da influência das artes em geral e certas confusões que ocorrem no trato da imaginação ficcional em interpretações de textos, desde os bíblicos mitológicos, não raramente tratados como história, no sentido científico, ao teor de romances, contos, fábulas e demais formas ficcionais que passam a ser tratadas como se fossem “reais”.

184. Ver The Nobel Prize in Literature 1998

02/12/2023 18h59

Imagem: Reza Tabandeh

Philip Hitti

“Qatar’s relation to the British government is similar to that of the shaykhdoms to its south and was regulated by a treaty signed in 1916. Al-Bahrayn’s status is practically the same. Tothe island’s world-famous but declining pearl-fishing industry wasadded in 1932 a much more remunerative industry—that of oil, whose operations have been conducted by the Bahrain Petrol- eum Company registered in Canada. Abundant oil has also been discovered in al-Kuwayt, whose shaykhdom was recognized by the British government as autonomous in November I9I4« The Kuwait Oil Company is Anglo-United States owned.”

Obra: History of the Arabs. From the earliest times to the present. PART VI. CHAPTER LI: EGYPT AND THE ARAB CRESCENT. Macmillan & CO LTD, 1904, London. 8a. edição. De Philip Khuri Hitti (Líbano/Shemlan, 1886-1978).

O Qatar, curioso Estado onde líderes funcionam como uma ponte de negociação de Israel com terroristas do HAMAS, remeteu-me à obra do professor que foi o primeiro nativo falante árabe a receber um doutorado nos EUA, responsável pela implantação do primeiro programa de Estudos do Oriente Médio na América em Princeton. Doutor Hitti afirma ter sido a relação do Qatar com o governo britânico (refere-se ao período do “mandato”) semelhante à dos shaykhdoms ao sul, tendo sido regulamentada por um tratado assinado em 1916. O Qatar surgiu entre lideranças árabes muçulmanas alinhadas com o esquema de poder inglês para a região; ficaram “dependentes em vários graus da Grã-Bretanha, a disporem da sua proteção” (p. 739).

Semelhantemente ao Qatar se deu a posição do Bahrein, pois estava em declínio a indústria de pesca de pérolas da ilha, e eis que foi acrescentada em 1932 a indústria do petróleo, “muito mais lucrativa”, lembra o professor (p. 740), com operações conduzidas pela Bahrain Petroleum Company então registada no Canadá (que coincidência, terra sob a Coroa britânica). O mesmo caso do petróleo abundante se deu al-Kuwayt (outro país curioso de onde décadas adiante sairiam expatriados para o corpo de lideranças da Irmandade Muçulmana na Jordânia, de onde se derivariam grupos de terroristas [183], cujo shaykhdom foi reconhecido pelo governo britânico e tornou-se autônomo em Novembro de 1914. E onde ficou a propriedade da Kuwait Oil Company? Anglo-americana, claro.

Em outras palavras, os britânicos assumiram a região e trataram de ficar com a parte mais lucrativa dos negócios, conservando o poderio de alguns líderes locais, desde que fossem bem articulados com seus interesses econômicos, mas como os palestinos não podiam oferecer muita coisa, com seus humildes agricultores, talvez neste ponto se explique parte da inclinação inglesa para remoção em favor dos sionistas, que tinham um fundo financeiro e um lobby forte entre países ocidentais.

183. Ver Jordanian Policy and the Hamas Challenge: Exploring Grey Areas and Bridging the Gap in Mutual Interests. The ‘Gentlemen’s Agreement’: Defining the Framework for the Movement’s Presence in Jordan. Friedrich-Ebert-Stiftung, 2009, Amman. De Mohammad Abu Rumman (Jordânia/Amã, 1974).

01/12/2023 22h12

Image: Site oficial

John Boyne

“e se eu também tivesse um par de pijamas listrados, aí eu poderia passar para o seu lado e fazer uma visita, sem que ninguém percebesse.”

Obra: O menino do pijama listrado. 18. Planejando a última aventura. Cia da Letras, 2012, São Paulo. Tradução de Augusto Pacheco Calil. De John Boyne (Irlanda/Dublin, 1971).

Belíssima literatura para crianças e adolescentes.

John Boyne construiu uma fábula maravilhosa, desprovida de interesses por polêmicas ideológicas (tão comuns em literaturas mais recentes), e assim brinda os leitores com a pureza do universo de inocência de duas crianças.

O judeu Shmuel no “pijama listrado”, preso com sua família no campo de concentração, e o alemão Bruno, filho de um oficial nazista que dirige o campo, à mon amis, representam a metáfora da esperança mais profunda que se pode ter na humanidade, pois se propaga pelo amor fraterno que, pela sagrada singeleza e ingenuidade, imune ao ódio e aos preconceitos, não carece de marcar divisões que nos desumanizam. Bruno e Shmuel venceram a cerca; metáfora de um mundo onde adultos se tornam animais políticos e, quando embriagados no poder em suas convicções, tornam-se monstros que arrogam a existência como um bem exclusivo.

A amizade dos meninos, contada de forma tão sublime neste livro, fez-me pensar no que Jesus Cristo deixou no Evangelho: é das crianças o Reino de Deus (Mt 19,13-15).

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