Uma leitura ao dia abre fevereiro com Jacob and the Stone, composição de Emile Mosseri, da trilha sonora do filme Minari (2021), dirigido por Lee Isaac Chung, obra de arte que renovou minhas esperanças no cinema. O arranjo e a produção desta versão são de Elijah Siegler.

Imagem: aeon

Jacques Derrida 

“A escritura, meio mnemotécnico, suprimindo a boa memória, a memória espontânea, significa o esquecimento.”

Obra: Gramatologia. 2. Linguística e gramatologia. O fora e o dentro. Perspectiva, 1973, São Paulo. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro. De Jacques Derrida (Argélia/El Biar, 1930-2004).

Lembra Derrida o que Platão afirma em Fedro quando compara a escritura à fala sendo hypomnesis à mneme ou “o auxiliar lembrete à memória viva”; a escritura dissimula da presença natural o sentido que está no logos (p. 45).

A palavra escrita, na funcionalidade de memória auxiliar, penso, é uma espécie de caricatura do logos, que se desenvolveu na nossa espécie que artificializou um modelo de memória auxiliar. Derrida a define como” matéria sensível e exterioridade artificial: uma ‘vestimenta'” (p. 42). Neste ponto, pensei, primeiro, na escrita como uma máscara que intenciona transmitir algo em relação ao logos como utilitário. Afirmo “algo em relação ao logos” porque a escrita pode ser um disfarce ou até uma contra informação em relação ao que contêm no logos, que diz respeito ao mais profundo do ser.

Depois pensei que a escrita, diante da crítica de Derrida, pode ser um esforço diante de uma experiência com o logos. Esse “esforço” consiste em traduzir em palavras escritas o que pensei e/ou senti, bem como falei espontaneamente, o que muitas vezes para mim se revelou como um produto frustrante. Em diversas ocasiões o que traduzi em escrita permaneceu aquém da experiência com o logos; é como se o texto escrito fosse algo bruto, distante, aqui a lembrar um pouco o que Derrida aponta como “violência originária” da escritura, embora seja rebuscada, parece mesmo uma fantasia de mau gosto em relação ao que trafegou pela razão e pelos sentidos, e isso me parece ainda mais constrangedor quando noto que a espontaneidade da fala possui uma dinâmica criativa que a palavra medida em um texto meditado também deixa a desejar, e aqui penso na escritura se tornando vestimenta da fala. Derrida menciona Ferdinand de Saussure (1857-1913) a considerar a escritura vestindo a fala como algo pervertido, desarranjado (p. 43).

Em seguida pensei no conceito de poema, como um esforço para um estágio mais elevado da escrita que tenta se aproximar da sofisticação do logos. Aqui penso no que Derrida fala como o poema e o canto sendo incompatíveis com a escritura (p. 327). É como se o espírito humano buscasse uma expressão digna para a intensidade do logos, talvez à semelhança de um escultor ou um pintor ao reproduzir uma paisagem e/ou pessoa no mundo real, mas permanecerá distante da pureza e da complexidade do mundo natural.

Imagem: WTO Blog

Ralph Ossa

“This assessment has to be revised entirely following the radical shift in US trade policy under President Trump. The most visible policy change is probably the trade war between the US and China, in which the US is now imposing special tariffs on over half of Chinese bilateral exports (Bown and Zhang 2019). […]”

Obra: Trade War The Clash of Economic Systems Endangering Global Prosperity. Part 2: The costs of trade wars. The costs of a trade war. CEPR Press, 2019, London. Editado por Meredith A. Crowley. De Ralph Ossa.

Este artigo do economista-chefe e diretor da Divisão de Pesquisa Econômica e Estatística da Organização Mundial do Comércio (OMC) está no contexto do governo Trump I. Ralph Ossa aponta no final que o envolvimento em guerras comerciais é prejudicial para todos os países participantes cujos danos terminam por afetar seus cidadãos (p. 48).

A retratar o Trump I, Ralph Ossa resume um cenário à época com a guerra comercial entre os EUA e a China, onde o governo americano impôs tarifas especiais sobre mais de metade das exportações bilaterais chinesas, incrementou medidas revisionistas de política comercial, incluindo a saída da Parceria TransPacífico (TPP), a imposição de tarifas especiais sobre o aço e o alumínio, a substituição do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), o anúncio para considerar tarifas especiais sobre as importações de automóveis da UE, e até mesmo a ameaça de saída da OMC (p. 45).

Os primeiros sinais do Trump II, penso, indicam que se trata de uma versão mais ameaçadora para o “livre” comércio mundial sob claros sinais de uma ofensiva mais ampla em torno de narrativas de expansão territorial, com a ideia de incorporação do Canadá, que passaria a ser 51o. estado, a tomada da Groelândia, além da retomada do canal do Panamá que está no contexto do protagonismo comercial chinês. Trump II desvela uma face medonha do quanto o imperialismo americano é essencialmente tão nefasto quanto o que se fala acerca dos planos de Putin de retorno da Rússia às proximidades do que fora a extinta União Soviética, e da gradual expansão global da China capitaneada por um regime autoritário de partido único dito “comunista”. A ideia de que os Estados Unidos possuem uma vocação bem intencionada para policiar o mundo, enquanto se demoniza a Rússia e a China, tenta esconder o óbvio: não existe imperialismo do bem.

O professor Ralph Ossa explica que uma guerra comercial surge quando todos os países se envolvem simultaneamente em políticas para empobrecer os vizinhos com tarifas aumentando em todos os lugares (p. 47). Este trecho me fez lembrar de uma lição que tomei do velho ZW em 1997 quando usava o termo “guerra comercial” em uma apresentação na cadeira de economia internacional. Um professor discordou, outro considerou “interessante” quando ZW falou que o correto seria chamar de “guerra estatal”, pois o fenômeno é de encarecimento de preços provocado por governantes que fazem uso de majoração de impostos sobre importação, o que prejudica produtores e vendedores externos junto com os consumidores que passam a enfrentar uma carestia forçada fora do mercado. Chamar de “guerra comercial” então é uma distorção cognitiva, em termos de definição e, ao mesmo tempo, uma afronta a empreendedores que, na verdade, competem nos mercados através do sistema de preços que fica distorcido, neste caso, por efeito exógeno de políticas estatais.

Hoje foi um dia que escutei bastante “trade war” e “guerra comercial”, de maneira que percebi o quanto ZW foi cirúrgico. Jornalistas, analistas de mercado…. todos em uníssono: “guerra comercial”. Então pensei o quanto o poder da distorção afeta a inteligência no pensamento econômico que se torna pífio para rotular um fenômeno que não é causado por mercados, e sim por políticos que se digladiam pelo poder, e mesmo que estejam a serviço de grandes empresários, ainda sim não se trata de um fenômeno de mercado, mas político em torno do capitalismo de laços que é uma corruptela do capitalismo como movimento histórico baseado na livre competição.

Imagem: Vaticano

Papa Francesco

“Fiquei alguns segundos paralisado, quase não acreditava no que meu interlocutor dizia ao telefone. […]”

Obra: Vida: A minha história através da História: A inspiradora autobiografia de Papa Francisco. XII. A Renúncia de Bento XVI. happer Collins, 2024, Rio de Janeiro. Tradução de Milena Vargas. De Papa Francesco, Franciscus (2013), Jorge Mario Bergoglio (Argentina/Buenos Aires, 1936).

Sobre o momento em que o então cardeal Jorge Mario Bergoglio tomou conhecimento da renúncia de Bento XVI, no dia 11 de fevereiro de 2013.

Enquanto assistia ao bom filme “Dois Papas”, chamaram-me mais atenção as cenas que envolvem os diálogos entre Bergoglio (interpretado por Jonathan Pryce) e o papa Bento XVI (interpretado por Anthony Hopkins) momentos antes do anúncio da renúncia papal. A primeira parte foi retratada em Castel Gandolfo (residência de verão), e a segunda na Capela Sistina. Ao compará-las com a experiência de leitura que tive desta obra autobiográfica, ficou-me claro que o filme apresenta uma narrativa ficcional, a considerar que o cardeal Bergoglio recebeu a notícia da renúncia em Buenos Aires, por telefone (p. 168) e a única coisa que confere é o espanto dele, perfeitamente compreensível para um fato tão incomum com precedente em mais de 700 anos

Nos diálogos, o diretor Fernando Meirelles (Brasil/São Paulo, 1955) promove um interessante encontro dialético de duas visões eclesiásticas bem distintas:

  1. O papa Bento XVI representa um viés conservador diante de transformações no mundo a influenciar a Igreja. Já o cardeal Bergoglio representa um viés reformador e carismático, diria uma visão da Igreja em constante transformação, aberta a um diálogo fraterno com o mesmo mundo que Bento XVI tem certo receio de se abrir. Chama-me atenção a tolerância de Bento XVI com Bergoglio em meio a uma grande discordância sobre vários temas. Neste ponto o diretor promove uma desconstrução da imagem inquisidora atribuída ao então papa enquanto aproxima Bergoglio de uma visão filosófica que concebe o ser humano de fé em constante movimento ou amadurecimento, o que implica em aceitar mudanças sem abrir mão de princípios, o que está em harmonia com a visão que o cardeal apresenta no livro sobre o discurso de despedida de Bento XVI, direcionado aos cardeais, onde cita Romano Guardini sobre a Igreja ser “uma realidade viva” e não uma instituição construída “em torno de uma mesa” enquanto “permanece a mesma, e seu coração é Cristo” (p. 171);
  2. A síntese desta tríade é belíssima ao retratar um desfecho poético de humildade de Bento XVI que, apesar de discordar de muita coisa argumentada por Bergoglio, de alguma forma entende que o cardeal argentino tem o perfil de liderança adequado para o momento da Igreja, entendimento que se relaciona no contexto de sua renúncia ao papado, entre outros fatores, sendo o principal, não se sentir mais na condição de ouvir a voz de Deus mediante o peso da consciência sobre seus pecados, sobretudo os que se relacionam com escândalos de pedofilia onde deveria ter tomado mais pulso para enfrentá-lo mediante a estrutura de comando entre seus bispos e cardeais;
  3. A cena final na capela Sistina se torna belíssima, à altura do cenário que tanto me comoveu quando o visitei, pois ambos se confessam; Bergoglio conta seus problemas na ditadura da Argentina quando foi acusado de fazer acordo com o regime para proteger padres da ordem, quando então o papa lhe ministra o perdão. O mesmo ocorre com o papa que começa a desabafar sobre os problemas que deveria ter dado mais atenção para, enfim, o cardeal jesuíta assumir a função sacerdotal em torno do perdão.

A ficção converte em narrativa eventos na vida real entre os dois personagens. Um exemplo no filme se dá quando o cardeal Bergoglio escuta de Bento XVI sobre escândalo na Igreja, tratando-se de uma conversa informal onde fica a impressão de que o papa estava na intenção de vê-lo como sucessor, enquanto no livro essa abordagem, feita de forma concreta por documentos sigilosos, é relatada pelo papa Francisco (já como sucessor) como um fato na formal passagem de insígnias do papa emérito Bento XVI (p. 173).

Imagem: .emanueleseverino.it

Emanuele Severino

“Nello Stato democratico, tolleranza e libertà non sono dunque principi” o ’’fondamenti”’ universali, il cui chiarimento abbia bisogno dell’autorità della filosofia, ma sono convinzioni che, attraverso un processo storico determinato, si sono consolidate nelle democrazie occidentali. […]”

Obra: La filosofia futura. XII Democrazia e Apparato. 3. “La priorità della democrazia sulla filosofia”. Rizzoli Libri, 1989, Milano. De Emanuele Severino (Italia/Brescia, 1929-2020).

Não me surpreende que um dos mais importantes filósofos do século XX não seja muito conhecido. Emanuele Severino foi professor de Umberto Galimberti (1942), outro filósofo italiano que se tornou referência em minhas experiências de leitura.

Severino menciona os filósofos John Rawl e R. Rorty, com visões alinhadas no contexto americano, sendo o segundo um intérprete do primeiro, de que a democracia no estado não tem necessidade de uma base filosófica, pois nela a liberdade e a tolerância não são princípios ou fundamentos, mas convicções, e assim essa concepção se dá por meio de um processo histórico determinado com a política social validada por um bem sucedido acordo entre indivíduos (p. 101). Assim a democracia, penso, ao refletir sobre a ideia central do ensaio A prioridade da democracia sobre a filosofia (tradução livre), do segundo filósofo mencionado, afasta-se definitivamente da visão clássica grega, pois faz de si mesma um aparato pelo qual as ideologias estarão subordinadas, conforme aborda Severino (p. 100).

A ideia de democracia como base construída por “convicções” me remete ao problema do relativismo nas crenças face aos temas suscitados. Considerando o modelo de democracia na análise e, estendendo às democracias atuais fora dos Estados Unidos, pelo que posso observar, é comum essa disseminação em evidência no processo político sobre “liberdade” e “tolerância” de acordo com o que se acredita nelas, ou seja, a democracia funciona como uma espécie de sistema de credos sobre pautas sociais e econômicas. Talvez seja por isso que o uso estrito da razão costuma entrar em choque na defesa de políticas públicas e os discursos de políticos sejam muito baseados em crenças do que propriamente em ciência, embora haja forte apelo pelo segundo termo. Os conceitos de liberdade e tolerância então estariam sujeitos ao que se acredita, a uma fé política, penso, determinada por quem está no poder, sobre o que significam sem qualquer interesse por uma consistência lógica e reflexão filosófica dela derivada no que Severino aponta ao analisar os dois filósofos mencionados que indicam que o descarte da filosofia, sempre bom frisar, no estado democrático, diz respeito a questões sobre a natureza universal racional e comum ou uma ordem antecedente ao ser humano.

O problema que encerra o parágrafo anterior aponta, penso, ao que se trata do fator de maior tensão na política atual que corre por baixo dos conflitos, muitas vezes sem a devida percepção e, não raramente, sob a proposital confusão feita por ambas as partes que arrogam para si o entendimento “justo” sobre problemas de liberdade e tolerância, enquanto rejeitam elevar o debate ao âmbito filosófico para não caírem em constrangimento perante uma crítica qualificada que destoa do público eleitor médio cada vez mais manipulado, entendo.

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