A terapia literária de Maio em Uma leitura ao dia é aberta com a Sexta Sinfonia (1808) de Ludwig van Beethoven (Alemanha/Boon, 1770-1827), a “Pastorale” aqui interpretada pela Bavarian Radio Symphony Orchestra sob a direção de Mariss Jansons (Letônia/Riga, 1943-2019).

Imagem: LVRJ

Howard Hughes

““No. I don’t think I will try.”.”

Obra: Howard Hughes: his life and madness. Chapter 5. The Senate Investigation. W. W. Norton & Company, 1979, London. De Donald L. Barlett e James B. Steele.

Howard Hughes em 6 de agosto de 1947 (p. 189) a enervar o até então pouco conhecido senador Homer Ferguson sobre se traria novamente o seu colaborador John W. Meyer (p. 193) para a audiência da subcomissão do Comitê de Investigação de Guerra do Senado (p 186). O temperamento explosivo do senador facilitava a tarefa de Hughes. As risadas dei na leitura e ao assistir à brilhante interpretação de Leonardo DiCaprio em The Aviator (2004).

Hughes, o lendário bilionário maluquinho, apaixonado por cinema e avião, na ocasião investigado pelo Senado em uma história que muitos, inadvertidamente, pela síndrome de vira-lata tupiniquim, associariam logo à política brasileira no típico caso de corrupção em “parceria” entre o Estado e a iniciativa privada. O Comitê Especial do Senado tinha aberto uma investigação sobre os contratos da companhia de Hughes para fornecimento de hidroaviões e aviões de foto-reconhecimento durante a Segunda Guerra.

O Comitê tinha passado ao controle do Partido Republicano e seus pares estavam “ansiosos por expor os pecados de quase uma geração de governo democrata, e assim a maioria republicana do comitê viu o relacionamento próximo de Hughes com o governo Roosevelt como um provável ponto de partida. Hughes havia recebido mais de US$ 40 milhões dos contribuintes para dois projetos de aeronaves militares, nenhum dos quais estava nem perto de ser concluído ao final da guerra. De fato, nem o hidroavião nem o XF-II haviam voado com sucesso” (p. 183). Graves acusações somadas à suspeita de que John Meyer – objeto das respostas em Hughes expôs o senador ao ridículo – teria gasto “US$ 169.661 entretendo oficiais da Força Aérea durante a guerra. O dinheiro fora usado em excursões a casas noturnas e restaurantes de Los Angeles e Nova York, e em festas particulares onde grupos de jovens beldades de Hollywood circulavam livremente entre militares” (p. 185).

A história de Hughes versus Ferguson se entrelaça com a guerra dos lobbies no Congresso. Um projeto de lei em 1946 dava monopólio a Pan American Airways (Pan Am) cujo autor “foi um senador republicano do Maine, frio e um tanto pomposo, Ralph Owen Brewster, a quem Drew Pearson certa vez chamou de ‘senador fixo’ da Pan Am, contudo, um vigoroso esforço de lobby da TWA (de Hughes) e de outras companhias aéreas, conseguiu bloquear a aprovação”(p. 184).

Lobby, um termo da política americana para fazer a corrupção ter aspecto de coisa legal. Eis um caso para ilustrar que a política nos Estados Unidos pode ser tão ou mais imunda que a brasileira.

Imagem: Vaticano

Papa Paolo VI

“‘De tal modo’, continua Paulo VI, ‘os homens querendo evitar as dificuldades individuais, familiares e sociais que se encontram na observância da lei divina, chegariam a deixar à mercê da intervenção das autoridades públicas o setor mais reservado e pessoal da intimidade conjugal’.”

Obra: Paulo VI: O Santo da Modernidade. XXII. “Não à Pílula”. Paulus, 2016, São Paulo. Tradução de Paulo Ferreira Valério. De Domenico Agasso Jr. (1979) e Andrea Tornielli (Italia/Chioggia, 1964.

1968, tempo em que muitos, penso, acreditavam em revoluções, e no meio do caldeirão global estava a Igreja no pontificado de S. Paulus PP. VI, Paolo VI (1963-1978, Giovanni Battista Montini (Italia/Concesio, 1897-1978).

No trecho (p. 173) desta Leitura, um dos argumentos usados pelo Papa Paulo VI para recusar qualquer defesa do uso da pílula anticoncepcional, sobretudo, voltada ao rebanho católico romano. O pontífice parte do pressuposto de que a liberação do método por meio artificial daria oportunidade para governos imporem controle de natalidade, adentrando em questões privadas, de família.

Escutei o argumento onde suscita que a “proibição” da Igreja à regulação artificial de nascimentos também seria uma forma de intromissão em questões privadas. Perguntei-me se há alguma diferença substancial entre proibir diretamente, por meio de legislação, e declarar “que é absolutamente de excluir, como via legítima para a regulação dos nascimentos, a interrupção direta do processo generativo já iniciado, e, sobretudo, o aborto querido diretamente e procurado, mesmo por razões terapêuticas “[346]. Então pensei: por uma questão de fé, todo católico romano deve obediência ao papa e, na prática, ao declarar ilegítimo o controle artificial, entendo, de certa forma a Igreja exerce determinada influência em seus fiéis, o que pode ser qualificada como intromissão em questão de ordem privada, pois não se trata de uma recomendação, onde fica claro que compete a cada indivíduo, na relação conjugal, decidir, mas isso não tira a importância do alerta de Paulo VI acerca do uso do método artificial para fins invasivos por meio de “políticas públicas” em aparato estatal, o que está relacionado, conforme o Papa desenvolve na Humanae Vitae, com o problema dos poderes públicos participarem de uma forma “sábia”, entenda-se, a contribuir para a solução do problema demográfico com uma “política familiar providente”, em favor da “educação das populações, que respeite a lei moral e a liberdade dos cidadãos” [347]. Aqui, penso, é preciso ter muita fé para crer que governos possam ter tais aptidões. E fé por fé, prefiro a que se direciona a Deus.

Quando a Humanae Vitae foi publicada, Paulo VI talvez estivesse sob certa pressão, eis o que entendo sobre as “circunlocuções sapientes” (p. 171). Havia alguma expectativa que pudesse sair, segundo os autores desta bela obra, alguma “brecha” para um controle artificial visando dar uma resposta a “católicos sinceros, decididos a viver juntos o amor conjugal e o amor de Deus” (p. 171). Contudo, o Papa foi objetivo e rigoroso: são lícitos os métodos terapêuticos voltados para tratamento de doenças que provoquem o efeito de impedir a procriação, além do uso dos períodos infecundos para regular a natalidade, “que derivem ou das condições físicas ou psicológicas dos cônjuges, ou de circunstâncias exteriores” [348].

A recepção à época não foi agradável em muitos ambientes. A começar de bispos e cardeais que alegaram que o convencimento de fiéis a seguirem a encíclica seria “extremamente difícil”, apesar de Humanae Vitae não ser ex-cathedra, penso. Metade do clero de diocese de Washington rejeitou o documento e uma pesquisa entre freiras nos Estados Unidos identificou que 57% admitiram que um controle de natalidade seria necessário. teria sido uma “sexofobia inaceitável” e entre teólogos e sexólogos católicos franceses se escutou que “as palavras do Papa crucificaram-nos”, além da acusação de que o Papa teria criado “um novo caso Galilei”. Até na Bolsa de Nova York ocorreram acusações contra a encíclica em meio a uma interrupção do ciclo de alta das ações de companhias farmacêuticas produtoras de anticoncepcionais (p. 176).

Em Teologia do Corpo, João Paulo II também aborda o tema [349], expandindo-o na linha de Paulo VI. A complexidade é imensa e diz respeito a um debate de crentes e não crentes, como interpretam Agasso Jr. e Tornielli. Penso sobre quantos católicos de fato evitam a pílula, o preservativo ou outro método artificial, em observância ao ensinamento da Igreja. Mas também penso no problema da intromissão estatal no planejamento privado, assim como penso em outros possíveis interesses espúrios, em torno do incentivo à libertinagem sexual com a “garantia” de fecundidades indesejadas, entre os quais pode se situar o do desmantelamento da prática de valores na base da organização familiar a respeito da fidelidade na vida conjugal.

Por fim, o que extraio do legado de Paulo VI na apreciação desta obra é de que a Igreja tem uma independência robusta, fortíssima, quando lida com mudanças profundas que correm pelo tempo. O Papa da Humanae Vitae é o mesmo que confirmou a infalibilidade papal (p. 167), dogma resultante de um longo período de discussões, em torno do ex-cathedra, não raramente mal compreendido até por católicos, quando não distorcido por protestantes. Tal independência que percebo na Igreja, ao longo de seus dois milênios, também me indica que os eleitores no próximo conclave não estão necessariamente fixados em uma agenda política específica, seja para agradar uma maioria, pois não é uma democracia, sobretudo no tocante ao politicamente correto, seja por uma linha mais conservadora, reacionária, ou seja em favor de alguma linha mais progressista em apelo ao legado do Papa Francesco. A Igreja tem seus próprios caminhos.

346. Humanae Vitae. vatican.va, 1968, 14.

347. Ibid., 23.

348. Ibid., 16.

349. 19/09/2023 23h34

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