29/05/2025 22h12
Imagem: Cultura Animi

“The material conditions under which a nation lives are the product of conquest: […]”
Obra: ON POWER: The Natural History of Its Growth. VI The dialectic of command. 9. Formation of the Nation in the Person of the King. Liberty Fund, 2020, Indianapolis. Traduzida para o inglês por J. F. Huntington. De Bertrand de Jouvenel des Ursins (France/Paris, 1903-1987).
Outra obra de referência em minha despretensiosa busca de uma melhor compreensão sobre as origens do poder.
O que hoje fazem Trump e Putin, o primeiro em relação ao Canadá e à Groelândia, e o segundo com a Ucrânia enquanto ameaça outros países no leste europeu, refletem, de forma bruta, o que está no DNA do poder mediante a ideia do “espaço vital”. Roma se expandiu e se tornou um império sob esse mesmo DNA, precedida por macedônios, persas, assírios, egípcios, babilônios… Assim também foram Carlos Magno, Napoleão, os britânicos e Hitler…
Mas é preciso, penso, mergulhar um pouco mais profundo para entender como as primeiras nações se deram como expressão de um resultado político na expansão do monopólio territorial. Nações estão relacionadas na produção de conquistas, mas a tomada do controle territorial em si não explica, não basta; é preciso um elemento especial para unir grupos em pontos de convergência em seus sentimentos diversos e vidas separadas: “a resposta é o monarca” (p. 119). O rei expressava uma convergência de crenças, anseios, propósitos, gerava uma submissão na exploração dos sentimentos dos dominados. Eis uma forma de submissão mais sofisticada.
Quando me refiro ao que Trump e Putin fazem atualmente como coisa “bruta”, é porque lhes falta essa capacidade sutil de agregação no legítimo apoio aos pontos comuns que se dão nos interesses de anexação, e isso se evidencia em torno de sentimentos predominantes nos grupos que se pretenda governar a se tornarem voltados ao que o comandante central significa como coisa atrativa. Trump e Putin querem se impor tão-somente pela força bruta de seus aparatos beligerantes, seja do ponto de vista financeiro, com ameaças de extensão ao militar, como se dá no caso dos Estados Unidos, o império em decadência da atualidade, seja tão-somente no militar propriamente dito, pela escalada russa.
Hitler e Napoleão foram parecidos nesse expansionismo baseado tão-somente na guerra. Os britânicos também foram, de forma mais cínica, e até hoje o mundo sofre com os problemas mal resolvidos em sua retirada das províncias. Exemplos: a Palestina e a região da Caxemira. O Império Romano, a princípio, pode parecer um arranjo similar, meramente belicista, devastador; em muitas ocasiões, de fato representou o poderio militar que promovia o terror, contudo havia também uma visão que pode parecer paradoxal, enquanto expressa a inteligência do pragmatismo romano que dava liga entre dominados e envolvia a conquista, o divide et impera, com a concessão de privilégios entre dominados de forma mais pulverizada, e a promoção do poder central no papel de estabelecer uma convergência, uma ordem que trazia uma sensação de segurança para os anexados, a Pax Romana.
Trump parece ser uma caricatura do que fora a mentalidade romana, e Putin também, porém o ex-KGB está em outro contexto, no saudosismo da “Mãe Rússia”, um apelo aos antepassados que é na verdade uma tentativa de trazer de volta o mesmo esquema imperialista que estabeleceu a União Soviética.
28/05/2025 21h52
Imagem: Mises Institute

“A primeira fase compreende roubos e mortes em lutas de fronteira, combates intermináveis interrompidos nem pela paz nem pelo armistício. É marcado pela matança de homens, rapto de crianças e mulheres, pilhagem de rebanhos e queima de residências.”
Obra: O Estado: Sua História e Desenvolvimento Vistos Sociologicamente. I A Gênese do Estado. (d) A Gênese do Estado. Konkin, 2023, São Paulo. Tradução e Revisão de Alex Pereira de Souza, Gabriel Camargo, Hiel Estevão, José Aldemar e Vitor Gomes. De Franz Oppenheimer (Deutschland)/Berlin, 1864-1943).
Lá pelos idos de 2017 finalizava uma trivial abordagem sobre o Sped para alunos de um curso de graduação em ciências contábeis. Durante a apresentação fui provocado a dar uma opinião sobre uma fotografia da escultura Survival Of The Fattest de Jens Galschiøt e Lars Calmar, inserida em um dos slides para ilustrar o impacto do sistema tributário brasileiro e de todo aparato da burocracia nas costas do meio produtivo. Respondi que a imagem foi colocada apenas para reflexão dos ouvintes e que, sendo assim, não faria comentários a respeito. Estava acompanhado do coordenador do curso que parecia insatisfeito com a minha apresentação. Percebi que sua linha de pensamento considerava o Sped como marco de grande inovação do fisco para promover oportunidades a estudantes e contadores recém formados. Talvez esperasse uma propaganda, tão comum em palestra de empresa de TI para o infantilizado publico contábil, e não uma análise técnica do objeto, mesmo que introdutória. Lembro-me de um momento espirituoso, cujo semblante do coordenador indicou irritação, quando um aluno do segundo período pediu a palavra e disse que a palestra estava lhe ajudando a tomar uma importante decisão em sua vida: “mudar de curso”, o que provocou risos entre colegas.
Quando pensei que tinha acabado, um jovem me surpreendeu ao mencionar a quase imperceptível “#taxationistheft” no rodapé de cada slide. Era minúscula, apenas ele tinha notado. Talvez tenha sido obra do pastor Abdoral, não sei… A referência se ligou a pergunta que fez sobre a origem dos impostos. Não conseguia imaginar que no meio de uma turma de estudantes de contábeis poderia encontrar alguém com esse tipo de curiosidade; foi como um milagre. A decepção do coordenador contrastou com o meu sorriso quando pedi que tomasse nota de O Estado, de Oppenheimer.
A gênese do tributo pode ser abordada a começar da pilhagem, na linha de pesquisa do autor, cujo embrião dos impostos entre antepassados teria se dado pela sujeição “de um povo camponês a uma tribo de pastores ou a nômades do mar” (p. 51), mais eficiente no combate, impondo-se pelo terror, o que caracterizou a primeira etapa histórica na visão do sociólogo alemão (p. 52). São seis etapas, mas não se trata de um enredo; há estados que se desenvolveram pulando estágios. Entre constantes visitas de saqueadores, “o camponês, através de milhares de tentativas frustradas de revolta, aceitou seu destino e cessou toda resistência” (p. 56), estabelecendo-se uma submissão pela trégua. Dá-se a terceira fase “quando o “excedente” obtido pelo campesinato é levado por eles regularmente às tendas dos pastores como “tributo”, uma regulamentação que oferece a ambas as partes vantagens autoevidentes e consideráveis” (p. 59).
Eis o “piloto” dos impostos. Dessa relação de tributos por submissão, seguem o compartilhamento territorial onde os diversos grupos se aproximam, o que enseja no monopólio de regulação para controle dos submetidos para finalmente se alcançar o status do Estado, a última etapa.
27/05/2025 23h13
Imagem: Yale University

“If a common rationality could be so elusive in peacetime, what prospects would there be for it in the chaos of a nuclear war?”
Obra: The Cold War: A New History. XI. The Penguin Books, 2005, London. De John Lewis Gaddis (1941).
Uma questão central na crise dos mísseis em Cuba e que retorna pelo contexto atual no aumento da tensão entre os presidentes de dois Estados que ostentam o maior arsenal nuclear. Naqueles dias se perdeu a convicção do então Secretário de Defesa dos Estados Unidos, Robert McNamara (1916-2009 de que poderia haver uma guerra nuclear limitada, controlada (p. 80).
Aponta Gaddis, “o que impediu a eclosão da guerra, no outono de 1962, foi a irracionalidade, de ambos os lados, do puro terror” (p. 80). Então, caíram algumas perguntas na medida em que meditei sobre a explicação do professor de como a Guerra Fria foi, em certo sentido, um meio de impedir a aniquilação total. Essa “irracionalidade”, diante de um caos certo no advento de um conflito nuclear, hoje estaria presente em Putin e Trump? Diria, dois indivíduos cuja autenticidade é digna de um reality show…
A garantia da devastação pelas armas de destruição em massa, da doutrina de Eisenhower (p. 81), ainda é a melhor forma de evitar a eclosão de qualquer guerra nessa escala? A vulnerabilidade na perspectiva de aniquilação instantânea pode ainda ser a base para um relacionamento americano-russo ou, de uma forma mais ampla, Estados Unidos/Europa versus Rússia/China/Coréia do Norte?, parafraseando o contexto analisado pelo professor no auge da Guerra Fria, penso, há motivos de esperança (p. 82) em torno do medo de uma guerra nuclear ser maior do que todas as diferenças que separam o Ocidente no cabresto da Casa Branca, do Oriente no eixo dos regimes sino-russo-norte coreano?
O cenário atual impõe pesos de agentes diferentes em comparação com os tempos da Guerra Fria. A multipolaridade, muitas vezes vista como um benefício na geopolítica contra os velhos e os novos imperialismos, penso, também pode ser um vetor de variáveis com potencial de anular a visão esperançosa de que o medo da destruição total é o que basta para impedir uma guerra nuclear.
26/05/2025 22h14
Imagem: Grattacielo Intesa Sanpaolo

“Nel fenomeno crociato ci sono due aspetti paralleli e che anzi si rispecchiano l’uno nell’altro: la nascita dell’idea di guerra santa nella cultura cristiana e l’evoluzione del concetto di jihad nella cultura islamica.”
Obra: Benedette guerre. Crociate e jihad. 3. FRA GUERRA SANTA E “JIHAD”. I Libri di Festival della Mente Fondazione Eventi – Fondazione Carispe, 2013. De Alessandro Barbero (Italia/Torino, 1959).
Deus mandou matar? Parte I
O Festival da Mente, maravilha cultivada na Itália que gostaria de ver uma versão no Brasil. Penso então no professor Barbero e em seu dom de saber iniciar uma abordagem com maestria sobre o que vai desenvolver, e destarte acerca das “guerras benditas” entre cristãos e muçulmanos afirma que “há dois aspectos paralelos no fenômeno das cruzadas e que se espelham um no outro: o nascimento da ideia de guerra santa na cultura cristã e a evolução do conceito de jihad na cultura islâmica” (p. 34). Por isso, penso, o professor de Torino consegue despertar grande atenção logo no início da abordagem seja para o leitor, bem como ao público que escuta suas lições.
O tema das cruzadas com a jihad desponta duas religiões monoteístas em determinadas dimensões interpretativas de seus textos sagrados, primeiro fator que o professor aponta para uma compreensão histórica do fenômeno de se guerrear em nome da fé (p 34) ou, sendo mais direto, pela ideia que apetece o fanatismo religioso mais extremo: Deus mandou matar e, nesta primeira leitura, mediante uma concepção cristã católica medieval.
Lembra Barbero a resistência dos primeiros cristãos ao envolvimento com guerra; “entre os primeiros cristãos, na época das perseguições e catacumbas, há diversos casos de recusa de serviço militar; o que foi, na verdade, uma das razões pelas quais foram perseguidos” (p. 35), somando-se ao problema de que soldados quando se convertiam a então nova fé, passavam a ter o desejo de deixar os serviço militar, isso em uma sociedade baseada no militarismo. Então pensei: como se deu então o caminho de uma fé pacifista em seus primórdios, para uma fé militarizada, de combatentes nas cruzadas? Insiro outra questão: quão “apostólica” foi a fé cristã medieval dos cruzados?
Foi a política… Constantino, eis uma chave, assim entendo por esta experiência de Leitura, pois “no império do primeiro imperador considerado cristão, ainda que para a abolição oficial do culto pagão se deu com Teodósio no final do século (IV), os cristãos até então resistentes ao serviço militar, mudam de atitude”, e segue o professor: “Existem atos de conselhos em que se declara que, como o imperador é cristão, não se pode recusar em ajudá-lo quando ele precisar” (p. 37). E no início do século V, o império está cheio de soldados cristãos. Barbero cita uma curiosa resposta dada por Agostinho de Hipona a um soldado, aparentemente em crise de fé no exercício militar: “Não se pode pensar que Deus aprove quem serve no exército a porta armas”, e segue o professor no argumento de Agostinho, “mas Davi também carregava armas e muitos outros homens justos daquela época” (se bem que o bispo de Hipona deve ter passado por dificuldades para encontrar um exemplo nos Evangelhos e nos demais textos canônicos da fé cristã, ponto inclusive lembrado pelo professor Barbero), e prossegue: “Agostinho; depois disso, passa a um raciocínio sobre este tema para terminar com uma solução que ainda hoje diz respeito à tese do “‘menor dos males’ quando se afirma que em certos casos, é necessária a guerra para se alcançar a paz” (p. 38).
No medioevo em que as cruzadas ocorreram, havia uma ideia de penitência pública à semelhança da confissão feita à comunidade. É neste contexto que o problema ganha novos contornos no cultivo da penitência, em meio às interpretações que iam da antiga resistência ao ato de matar aos que entendiam que em alguns casos é necessário combater militarmente pelo que se entende do bem, quando o conflito é legítimo (p. 39), e no caso das cruzadas, a retomada da Terra Santa se encaixou bem com a visão então moderna à época, o que incentivou o movimento então debutante: “para os nossos antepassados do alto medioevo, os que matavam na guerra eram impuros: talvez não o sentissem como tal, sendo uma falta, mas ainda faziam penitência, contudo, podemos então compreender o ponto de viragem que representa a Primeira Cruzada, quando começou a circular a ideia de que matar não só já não é pecado, mas é sacrossanto” (p. 40).
25/05/2025 19h29
Imagem: The New York Times

“Não conseguimos escapar da ‘mercantilização’ da vida que a prosperidade nos trouxe naturalmente. Podemos, no entanto, lutar para discipliná-la pelo bom gosto, pelo amor à beleza e pelo senso de decoro.”
Obra: Como ser um conservador. Capítulo 5 – A verdade no capitalismo. Record, 2017, Rio de Janeiro. Tradução de Bruno Garschagen. De Roger Vernon Scruton (Inglaterra/Lincolnshire, 1944-2020).
Eis a sugestão de Scruton para um problema, penso, muitas vezes subestimado entre os que fazem do capitalismo uma bandeira ideológica ou o romantizam. Não penso aqui em utilitaristas porque nessa visão não se trata de um problema e sim de algo integrante, normal.
“Não há alternativa à economia de mercado”, aponta no parágrafo anterior (p. 104). Qual seria o sentido? Primeiro, penso no que lembra na abertura do capítulo face ao meu herói da adolescência, Carlos (1818-1883), que se apropriou (p. 89) do termo “capitalismo” forjado por Saint-Simon (1760-1825). Na visão de Scruton, a verdade no capitalismo consiste nas trocas voluntárias e na propriedade privada (dos meios de produção, onde Carlos construiu sua célebre vida de pensador) como características de qualquer economia de grande escala que dão liga à coordenação econômica, pontos rejeitados na crítica socialista (p. 90) que insere uma concepção de distribuição de meios que enseja em planejamento mediante autoridade central (p. 91). Neste ponto, Scruton insere as críticas de Ludwig von Mises e Friedrich Hayek sobre o socialismo como destruidor do conhecimento econômico que, pelo sistema de preços livremente formados, é o sinalizador da escassez e da dimensão da demanda (p. 91). Em outras palavras, a referendar também Adam Smith, Scruton lembra que livre mercado “é uma economia de seres livres” (P. 96), ou seja, que interagem em uma cooperação que forma a base de dados da realidade econômica. Quanto a esse ponto, penso aqui na obra O Cálculo Econômico sob o Socialismo [375], de Mises, como referência maior para um problema não superado pelas experiências socialistas e que, ao considerar o contexto histórico em que foi escrita, chega a ser profética por apontar a inviabilidade do planejamento central cerca de sete décadas antes do colapso da União Soviética.
Quanto a Hayek, Scruton lembra de um ponto importante sobre o mecanismo de preços livres como transmissor do conhecimento econômico, no entanto essa produção na ordem espontânea se dá por trocas voluntárias e costumes duradouros (p. 93), ou seja, Hayek insere as tradições, as instituições e as leis na dinâmica da sociedade de trocas voluntárias e quanto isso, penso na obra Os Erros Fatais do Socialismo. Por que a teoria não funciona na prática [376]. De certa forma, Hayek faz uma releitura dos clássicos quanto ao que Scruton aponta acerca da confiança que tinham “nos limites espontâneos dados ao mercado pelo consenso moral da comunidade” (p. 94), o que elimina o economicismo, aqui em um sentido pautado tão-somente pela “visão de mercado”, o que não passa, penso, de uma abordagem superficial da sociedade na tentativa de explicá-la de forma restrita a interesses econômicos.
A visão de Hayek em abranger livre mercado e moralidade na ordem espontânea é uma resposta a uma problema legítimo suscitado por socialistas, entendo. Porém, é incompleta. Neste aspecto, afirma Scruton, mesmo na consideração de que livre mercado e moralidade compõem a ordem espontânea, isso não significa que os dois elementos não entrarão em conflito e o filósofo britânico sintetiza a questão em uma frase: “é sagrado o que não tem preço”, onde se insere a visão conservadora do mundo (p. 95). Nem tudo se define pelo mercado; há coisas que entram em conflito com a visão “mercantilista” por princípios e valores. Isso ocorre quando um agente econômico diz “não” para um negócio proposto que lhe retornará mais lucros, por razões morais e/ou de fé, entre outras situações.
Por outro lado, penso, socialistas apontam desigualdades que se agravam pela concentração de renda, entre outras externalidades de mercado, compondo um tema essencial, legítimo, cuja complexidade encerra todos em debates longevos e muitas vezes enfadonhos por causa de interesses políticos de legitimidade duvidosa em meio a paixões ideológicas.
Talvez um desarme ideológico de ambos os lados seja uma chave para que a humanidade cresça no debate econômico, e assim encontre meios de não sucumbir na mera visão mercantilista das coisas, o que tem o potencial de destruir nossa humanidade e nosso habitat, assim como supere, de uma vez por todas, crenças no socialismo, pelo menos no sentido em que promove concentração de poder político e planejamento central, e quanto a esses dois problemas, imagino que não é preciso fazer muito esforço para compreender as debilidades de suas experiências que correram e ainda correm pelo mundo.
375. 10/05/2022 22h20
376. 27/04/2022 22h32
24/05/2025 21h36
Imagem: Wikimedia Commons

Eugène Delacroix
(France/(Saint-Maurice, 1798-1863)
“Si les impôts de l’ancien régime n’étaient pas excessifs, ils étaient vexatoires, étant essentiellement des impôts sur le revenu: la taille sur le revenu global, les vingtièmes sur les cédules. C’est même une chose curieuse que, sous prétexte de fiscalité démocratique, on ait rétabli ce système universellement abhorré un siècle et demi plus tôt. […]”
Obra: La Revolution Française. CHAPITRE II – l’état pauvre a dans le pays riche. Arthème Fayard, 1928. De Pierre Gaxotte (France/Revigny-sur-Ornain, 1895-1982).
Anotei porque me pareceu parcialmente incompreensível na ocasião: “Ocorreram duas tragédias na Revolução Francesa: a primeira, a do banho de sangue, e a segunda, a que desvirtuou as ideias contrárias ao desespero tributário no final do ancien régime“, e prosseguiu ZW, “nos dois casos, a Revolução resultou em regimes desastrosos que conservaram problemas que os revolucionários afirmavam combater”.
Quase 30 anos depois, no Louvre, foi a primeira lembrança que me veio diante de La Liberté guidant le peuple. A obra é de um período em que Eugène Delacroix marca a celebração do fim do reinado de Carlos X em um contexto onde pude perceber um das coisas desvirtuadas no contexto de uma revolução já distante um pouco mais de 40 anos. Quando ouvi ZW, lá pelos idos de 1994, eu não tinha condições de entender razoavelmente o que aquele estranho senhor estava a dizer sobre a mentalidade antitributária em conflito com um regime cada vez mais glutão da riqueza alheia, além do “banho de sangue”, pois até então ingenuamente entendia que era o único problema grave que a Revolução tinha provocado. Ter vivido um tempo em uma república parisiense, na juventude, e por isso dominar tão bem a língua francesa, eram fatores nele que me provocavam a uma busca. Quando olhava para aquele senhor, dizia em meu íntimo que gostaria de, caso chegasse a sua idade (estava no final do sexagenário), antes de partir, gostaria de ter o mesmo espírito de maturidade intelectual, uma humanidade e uma consciência análogas no sentido da vida, junto com o mesmo amor à sabedoria e, por último, ter visitado a França (ele sempre me cobrava, “não deixe de ir”). Tinha chegado havia três dias, mas foi apenas quando entrei no Louvre que meus olhos lacrimejavam na medida em que me dava conta de ter realizado o terceiro desejo.
Do banho de sangue à bancarrota da monarquia, cheguei até a crise política agravada pelos impostos que “não eram excessivos, eram vexatórios”, conforme afirma Gaxotte no trecho (p. 51) desta Leitura. Eis exatamente o ponto não mencionado pelo professor lá pelos idos de 2010, registrado em minhas memórias do último dia 20, que passou um entendimento curioso de que o fenômeno de aversão aos impostos surgiu no advento do estado moderno. Na verdade, de forma irônica, no estado moderno, não raramente associado aos ideias da Revolução Francesa, foi ampliado um problema que estimulou os movimentos nos estados contra a monarquia que fizeram a Revolução francesa eclodir. Gaxotte chega a afirmar no mesmo parágrafo: “é até curioso que, a pretexto da tributação democrática, restabelecemos esse sistema universal. recentemente abominado um século e meio antes”. Tributação era um assunto tratado em pequenas cidades nas assembleias gerais de moradores “após a missa” se reuniam “para escolher os cobradores de impostos, deliberar sobre corveia, estradas e impostos” (p. 22). La taille, “imposto rural por excelência”, segue o autor, “era um imposto de renda distribuído aproximadamente de “conforme sinais exteriores de riqueza”, e havia o problema de não transparecer tais sinais diante de cobradores: “Ai do cortador exato e sincero! Sobre ele recairá todo o fardo” (p. 22). O contribuinte do antigo regime é definido pelo historiador francês como “teimoso, reservado e rancoroso” (p. 34). Os impostos estavam no olho do furação político de um Estado monárquico endividado e inflacionista diante de uma sociedade cada vez mais revoltada.
Penso quão também é curioso o funcionamento das lembranças. Enquanto não consigo recordar de uma infinidade de coisas que vivenciei em 2010, vieram-me os ditos do professor em duas ocasiões. Diante do La Liberté guidant le peuple, e ao passar em frente ao Palais Bourbon.
Como explicar o estado moderno no deslumbre de quem o defende enquanto amplia a carga tributária? Penso aqui em como a política se notabiliza pela capacidade de canalizar sentimentos da massa para direcioná-los a interesses próprios e não raramente diversos, espúrios, enquanto na arte de confundir, preserva a narrativa do “bem comum”.
23/05/2025 22h44
Imagem: TV5 Monde

“Eu estava atrás do planeta puro, o que tinha de mais protegido”
Obra: Genesis. CCBB Educativo. Curadoria e Cenografia de Lélia Wanick Salgado. Textos de Textos Daniela Chindler e Marili Serafini. Exposição de 3 de setembro a 20 de outubro de 2014. De Sebastião Ribeiro Salgado Júnior (Brasil/Minas Gerais/Aimorés, 1944-2025).
“Grande testemunha da condição humana e do planeta, o fotógrafo franco-brasileiro Sebastião Salgado, conhecido por suas grandes imagens em preto e branco de pessoas desfavorecidas e da floresta amazônica, morreu nesta sexta-feira aos 81 anos em Paris”, noticia o Le Monde (referência da imagem desta Leitura). Enrico Mentana, com sua habitual elegância de âncora, na edição das oito do telejornal italiano La7, refere-se a Sebastião Salgado como “talvez, o maior fotógrafo do nosso tempo” [372].
Entre as fotografias da exposição Genesis, o homem e o menino da Etiópia (2008), vista do vale que se estende de Lalibela a Makina Lideta Maryan, foi a que me deixou mais pensativo, sobretudo, penso, em relação ao que Sebastião Salgado resume acerca de sua busca de uma pureza que amalgama o ser humano à Terra em um mistério de unidade na diversidade.
“Sandálias nos pés, mantos que cobrem o corpo, o cajado que está ao lado encostado ao tronco, a paisagem montanhosa […] Lá, as bíblias e os documentos ainda são escritos em peles de animais […] essa foto tem grandes proporções, provavelmente o menino vai olhá-lo nos olhos.”
Em Da minha terra à Terra, sinaliza traços do DNA de sua genialidade em saber olhar o ser humano no estado que Nietzsche um dia sintetizou como “demasiadamente humano” e assim marcar seus momentos essenciais quando afirma que “cada espécie tem sua própria racionalidade. O importante é dedicar tempo suficiente para compreendê-la” [373]. Também entrou para o rol de gênios que se frustraram com o comunismo quando escutou um refugiado na Tchecoslováquia [374]
Sebastião Salgado foi um além-do-homem, antítese da inquietação humana que superou a ideia de nacionalismo abordada na Leitura de ontem, sob a crítica de Olavo de Carvalho. Homem originalmente da economia política e da sociologia, verteu-se para uma trajetória na fotografia que melhor ilustrou o dito do fotógrafo e crítico americano Allan Sekula (1951-2013): Uma fotografia não vale mil palavras, mas vale mil perguntas.
372. Edizione delle ore 20.00 del 23/05/2025
373. 1. Para começar: “Gênesis. Paralela, 2013, São Paulo. Título original: De Ma Terre à la Terre. Tradução de Júlia da Rosa Simões.
374. Ibid, Jovem militante, jovem fotógrafo.
22/05/2025 22h42
Imagem: flickr

“O nacionalismo que orienta e inspira a nossa cultura é simplesmente a propensão de julgar as obras e ideias de brasileiros menos pelo seu valor intrínseco do que pela sua maior ou menor brasilidade típica. É a elevação da nacionalidade, enquanto tal, a supremo critério de valor.”
Obra: O Imbecil Coletivo. Nacionalismo e demência. Record, 2018, São Paulo. De Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (Brasil/São Paulo/Campinas, 1947-2022).
O filósofo brasileiro entende que essa tendência é tão profunda e arraigada que a história da cultura brasileira poderia ser resumida “sem qualquer exagero ou mutilação”, a uma linha “coerente a única de desenvolvimento que é a ascensão e vitória final desse critério sobre todos os outros” (p. 185), ou no que define a brasilidade como soberana no juízo de valor sobre si mesma (p. 188), tendo sua singularidade um possível “truque ideológico, uma profecia autorrealizável, um wishful thinking retórico que não pretende descrever a realidade que existe, mas criar uma que não existe”. Essa “auto celebração da divina brasilidade”, expressão que encontrei para sintetizar a crítica de Olavo de Carvalho, poderia, torno à visão do autor, cobrar o preço do seu isolamento, da sua irrelevância na História mundial (p. 189)
Lembra Olavo de Carvalho uma curiosa relação oportunista do nacional-comunismo mediante a união do Partido Comunista com Getúlio, algo que teria durado até os anos 1970, onde “ser alheio a temas brasileiros era o mesmo que ‘ser reacionário'” (pp. 186-187). Cita neste contexto o rompimento de Glauber Rocha com o nacionalismo de esquerda a causar, penso, o que hoje atende pelo nome de “cancelamento”, e aponta uma explicação para o sucesso de Oswald de Andrade, associado a uma “pseudofilosofia tupiniquim”, assim define (p. 187).
Pensei então em Ariano Suassuna, não citado no texto, quanto à defesa da cultura popular, no entanto, o problema suscitado por Olavo de Carvalho não o encerra nessa linha pois, entendo que Suassuna, enquanto defendia a cultura popular, também foi um critico que repeliu a arte vulgar, banal, superficial, pobre de conteúdo e meramente mercadológica. Olavo de Carvalho aponta a essência do problema: “antes de se pedir a um romance, por exemplo, que seja belo, profundo ou verdadeiro, exige-se que seja ‘nacional’ na linguagem e nos temas” (p. 186). Ora, um romance brasileiro ou qualquer forma de arte nacional popular que não seja bela (o termo aqui é complexo), profunda, verdadeira, seria tão questionada por Ariano Suassuna quanto a produção estrangeira importada e de mau gosto.
21/05/2025 21h28
Imagem: Students for Liberty

“A falha em utilizar dinheiro dos contribuintes para financiar aquilo que o pagador de impostos não gosta é rotineiramente chamado de “censura”.”
Obra: Os Ungidos. As fantasias das políticas sociais progressistas. Capítulo 5. Os Ungidos versus Os Ignorantes. Conhecimento e Sabedoria Diferenciais. LVM Editora, 2022, São Paulo. Tradução de Felipe Ahmed. De Thomas Sowell (EUA/Carolina do Norte, 1930).
O tema era “melhoria de gastos públicos” e quando questionei a legitimidade de shows pagos pela prefeitura os quais como “contribuinte” sou obrigado a bancar, não importando o gênero artístico, descobri um ungido local: sobrou-me do rapaz o que Sowell aponta no trecho (p. 185) desta Leitura. Além de “amante da censura”, rapidamente associado a um certo político da direita que o rapaz parecia ter algum tipo de fixação por constantemente amaldiçoar, eu também seria um sujeito “insensível” e “desprovido de conhecimento da arte popular”, uma forma sutil de me definir como “ignorante”, no caso em relação a um evento de grupos de funk e ritmos aproximados em praça pública.
Sowell é cirúrgico ao apontar o uso forçado do termo “censura”: “aparece apenas de forma seletiva para descrever as escolhas e valores do público diferentes das escolhas e valores dos ungidos” (p. 186). Nem quis entrar no mérito musical; poderia ser um recital de Beethoven, a questão é outra: obrigar todos a pagarem por entretenimento, festa, lazer e coisa do tipo em favor de um determinado grupo conforme alguma força de política pública. Pensei em uma situação hipotética de um prefeito que decide contratar uma orquestra para um concerto de Bach e assim agradar um pequeno grupo de moradores em uma cidade onde o gosto popular é inclinado ao brega sertanejo. Eu também seria contrário, apesar de ser um apreciador das peças de Bach. Também não entendo que seja uma questão resolvida pela democracia; o problema reside na imposição de gosto alheio bancado por impostos ou, penso, quem quiser fazer festa, que pague do próprio bolso ou encontre alguém livre para bancar e sendo assim, faça, desde que não provoque danos a terceiros, simples assim. Por exemplo, o funk na praça em si não é um problema, desde que seja bancado com recursos privados, não incomode a vizinhança que precisa de repouso, não promova o consumo de coisas ilícitas, nem a corrupção ou violação de vulneráveis. Tais pontos críticos, entendo, podem ser considerados para qualquer atividade em espaço comum.
Um tempo depois o mesmo interlocutor me perguntou sobre a censura em uma peça que tinha personagem central um Jesus transexual [371]. A peça foi custeada pelo dito “dinheiro público”?, indaguei. Caso afirmativo, temos um problema com o dinheiro tomado de contribuintes, pois certamente muitos católicos e protestantes não gostariam de ver seus impostos gastos com o que pode ser entendido como extremamente ofensivo ao que têm como sagrado. E se for um espetáculo bancado com recursos privados? Não vejo legitimidade da justiça em proibir, o que deixou meu interlocutor um tanto perplexo. Então prossegui a argumentar que a arte pressupõe um pleno exercício livre e a fé religiosa pode ser um objeto entre tantos outros. Se alguém decide fazer arte com recursos próprios ou adquiridos de forma voluntária, sem recorrer aos “cofres públicos”, impedi-lo é censura, mas isso não tira o peso do sagrado para quem o utiliza como elemento em uma construção artística. Se tenho liberdade para me expressar sobre elementos sagrados, devo entender também que minha atividade de liberdade pode gerar sérias consequências mediante reações na sociedade, organismo vivo, temperamental, assim como minha disposição diante da liberdade que entendo ter. Em outras palavras, empresas que patrocinam um evento considerado polêmico, tal como a peça com o Jesus trans, são livres para isso, da mesma forma que as igrejas católica e protestantes também são livres para orientarem seus fiéis a boicotarem as marcas associadas ao evento em questão, o que, à mon avis, é belo e moral.
Então me parece inteligente se o artista também considerar a importância de avaliar riscos em abordar algo tão massivo e sensível no seio popular. Isso não significa, de imediato, que estará refém de si mesmo em uma autocensura, mas em um exercício de análise proativa envolvendo responsabilidades em coisas que possam soar como muito ofensivas. Decidir fazer ou não algo é tão somente de competência do artista, e ter alguma ciência dos possíveis desdobramentos, é outro problema que pode ser abordado com relevância. Quem exerce liberdade de expressão, que a torne manifesta, sabendo que deve estar também disposto a aceitar reações que são formas de liberdade de expressão. Acontece que, não raramente, muitos querem exercer liberdade de expressão sem observar tais consequências, quase sempre de maioria imprevisível. Aqui é preciso se guiar com muita prudência e moderação, pois em nome da defesa do sagrado há quem recorra a formas variadas de reação violenta muitas vezes em tom desproporcional em relação ao suposto dano causado pela liberdade de expressão entendida como ofensa. Nenhuma dessas questões que brevemente suscitei anula a relevância do valor que há no sagrado, na liberdade de expressão e na responsabilidade na aplicação desses exercícios; tudo deve ser posto em um debate franco, coisa raríssima de se ver na contemporaneidade.
371. Sesc recorre de decisão que cancelou apresentação de peça com Jesus como uma transexual
20/05/2025 22h50
Imagem: Mises Institute

“Thus taxation, when not intended as an engine of national depression and misery, must be proved indispensable to the existence of social order; every step it takes beyond these limits, is an actual spoliation; for taxation, even where levied by national consent, is a violation of property; since no values can be levied, but upon the produce of the land, capital, and industry of individuals”
Obra: A Treatise on Political Economy. CHAPTER XIV. OF THE RIGHT OF PROPERTY. Augustus M Kelley, 1971, New York. Traduzido para o inglês por C. R Prinsep. De Jean-Baptiste Say (France/Lyon, 1767-1832).
A ideia do imposto como “espoliação” no trecho (p. 130) desta Leitura foi uma lembrança em relação ao mesmo docente que em 2010 definiu a Escola Austríaca como “primária” e “irrelevante” [371]. Até este ponto, nenhum problema em se expressar na forma de juízos no campo das ideias em política e economia, por mais desagradáveis que possam ser a quem tem apreço pela linha de pensamento questionada.
Problema mesmo ocorreu quando o nobre insegnante apontou a ideia de imposto como algo ilegítimo sendo de origem recente, no estado moderno, e associada à EA, especificamente, à ala libertária durante o século XX, “formada por marmanjos que nunca saíram da quinta série”, assim se expressou. Também não entendo como um problema considerar assim quem entenda na contemporaneidade que imposto é coisa ilegítima ou “roubo”, de forma mais direta na concepção austrolibertária. Contudo, fiquei perplexo ao ouvir isso de um professor de história política; é uma abordagem que parece ignorar ter sido a tributação, no longo período medieval, assunto delicado para as aristocracias, no sentido de que reis costumavam tratar com relativo cuidado entre seus súditos, tendo sido também uma das causas do estopim da Revolução Francesa.
Jean-Baptiste Say então expressa uma das principais linhas de pensamento á época, que hoje se elenca como “clássico”. É verdade que os libertários da EA no século XX, cujo ícone é Murray Rothbard (1926-1995), foram mais adiante ao refutar o que está no contexto da afirmação de Say: “a tributação, quando destinada a ser um motor de depressão e miséria nacional, deve ser provada como cosia indispensável à existência da ordem social; cada passo que ela dá além desses limites é uma verdadeira espoliação”.
No entanto, ao perceber o problema de cunho historiográfico do professor, entrei mudo e saí calado pensando se o equívoco se deu por mero desconhecimento ou outra coisa. Pensei em pedir um um momento para uma conversar particular, mas o nobre docente era muito concorrido e um tanto avesso a contestações, mesmo que de forma discreta, privada.
19/05/2025 23h00
Imagem: Instituto Santos Dumont

“Embora eu não duvide por um segundo sequer que encarnações altamente sofisticadas de máquinas inteligentes surgirão no futuro, qualquer criador dessas maravilhas tecnológicas enfrentará pelo menos um obstáculo insuperável em sua saga em busca da obsolescência da mente humana:”
Obra: Muito além do nosso eu. Capítulo 13. De volta para as estrelas. Planeta, 2017, São Paulo. De Miguel Angelo Laporta Nicolelis (Brasil/São Paulo/São Paulo, 1961).
Fala-se abundantemente sobre Inteligência Artificial (IA), tema que vejo o doutor Nicolelis em um grupo muito especial. Isto posto, no meio de TI desconfio que há uma infinidade de “experts” um tanto perdidos quanto ao que superestimam em relação ao que entendem sobre IA: imensas bases de dados sob heurística na aplicação de produção de conteúdo parecem confundidas com a inteligência no padrão humano, penso, a considerar o contexto desta Leitura.
O “obstáculo insuperável” apontado pelo chefe de pesquisa em Neurociência da Universidade Duke: reproduzir por algoritmo ou programa, a sequência exata de eventos que determinaram a contingência histórica, em cada indivíduo ou da evolução da espécie humana, “que conspirou para o surgimento do cérebro nosso de cada dia” (p. 512). Especificamente se refere ao problema da construção de um dispositivo similar à mente humana (p. 513), a citar o “replay da fita da vida” de Stephen Jay Gould (1941-2002) em Vida maravilhosa sobre a diversidade de rotas na consolidação da inteligência a sugerir, conforme explicação de Nicolelis, que “a consciência baseada em silício, se ela algum dia surgir, certamente se manifestará de formas muito distintas daquelas exibidas pela versão humana” (p. 514).
A engenharia reversa da inteligência humana é tida como inviável no entendimento de Nicolelis. Em outras palavras, penso, o programa de inteligência do cérebro humano tem uma proteção insuperável contra algum “Valquíria” que possa extrair seus fontes. Sob o prisma do legado da histórica da construção do cérebro, impresso em seus circuitos, há uma “imunidade mais poderosa contra possíveis tentativas de copiar ou reproduzir seus mais íntimos segredos e arte”, afirma (p. 514). Não se trata da impossibilidade de dispositivos com IA atingirem um elevado nível capaz de substituir o homem em tarefas altamente complexas hoje ainda não alcançadas por dispositivos, mas de sua elaboração a convergir em uma consciência similar a que se tem pelo cérebro humano.
Quanto à possibilidade de máquinas com IA se voltarem contra a espécie humana até mesmo para exterminá-la, Nicolelis entende que existem outros fatores bem mais ameaçadores: guerra nuclear, fome, desabastecimento de água, pandemias, aquecimento global… até mesmo uma invasão alienígena teria maior probabilidade em comparação com uma rebelião de máquinas (p. 515).
18/05/2025 12h33
Imagem: marxists.org

“[…] o capitalismo só se transformou em imperialismo capitalista quando chegou a um determinado grau, muito elevado, do seu desenvolvimento, quando algumas das características fundamentais do capitalismo começaram a transformar-se na sua antítese […]”
Obra: O Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo. VII – O imperialismo fase superior do capitalismo. FE/UNICAMP, 2011, Campinas. De Vladimir Ilyich Ulianov (Rússia/Ulianovsk, 1870-1924), pseudônimo Lenin.
Lá pelos meus 14/15 até os 17 anos, quando lia O Capital na versão resumida por Julian Borchardt (1868-1932), assistia a filmes sobre a União Soviética (URSS) e torcia pelos times e atletas da foice e do martelo nas olimpíadas, sobretudo contra os Estados Unidos, confesso que me dava medo alguma coisa nas imagens do então camarada Lenin. Lembro que isso não incomodava minha fé de adolescente, mas sinalizava algo obscuro, incompreensível.
A fé marxista somente seria abandonada quando comecei a ler os clássicos em economia e política quase em meados dos anos 1990, um pouco depois de ter entrado na faculdade de economia, e não foi por influência da maioria dos professores, quase todos neodesenvolvimentistas, inevitavelmente dados à militância de esquerda, e sim por ter sido provocado constantemente pelo impagável senhor ZW, o estranho docente que salvou minha vida de leitor me ensinando a ler tudo de forma desarmada para ter chance de aprender alguma coisa.
O Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo foi um dos textos que não consegui ler na íntegra durante aquele tempo de crente marxista. A grande referência bibliográfica à época foi O Estado e a Revolução [368], adquirida em um sebo no centro do Recife. Lembro-me como a devorei em uma tarde parecendo um Padawan em uma aula de um Mestre Jedi. Concebia o socialismo marxista como sendo o lado dos “bons rebeldes” de Star Wars, dos “mocinhos” que salvariam a galáxia da tirania do Império, e o capitalismo era o time dos “bandidos”, do malvado Imperador e do perverso Darth Vader. Ah, os anos 80…
Não sinto vergonha, fez parte do meu desenvolvimento. Abandonei a crença no socialismo marxista porque identifiquei suas contradições (aqui uso uma terminologia familiar aos camaradas). Tomei ciência das consequências de seus gravíssimos problemas de concentração de poder, em especial pela planificação econômica e estatização de meios produtivos, que fomentaram regimes brutais pelo mundo, ironicamente sendo o que seus inadvertidos seguidores ainda afirmam combater. Hoje como autrolibertário, paradoxalmente considero alguns pontos da crítica social de Marx para não ficar insensível às externalidades de mercado, atreladas ao problema da insaciabilidade humana (infelizmente, muitos liberais e austrolibertários fingem que isso não é grave) e do relacionamento de seu compadrio com a política no Estado (onde o cinismo da esquerda socialista se sustenta junto com o neonazi-fascismo), fatores que provocam muitas guerras e dramas humanitários.
Em 1995 fui incumbido de apresentar o tema “Imperialismo e Capitalismo”, e consegui ler vários trechos deste livro que Thomas Sowell considera como “obra-prima na arte da persuasão” [369], cuja acesso a uma edição integral seria possível apenas 20 anos depois. Afirma Lenin que o imperialismo é a “fase monopolista do capitalismo” (p. 217); “surgiu como desenvolvimento e continuação direta das características fundamentais do capitalismo em geral”. O ponto principal nesse processo, sob ponto de vista econômico abordado por Lenin, “é a substituição da livre concorrência capitalista pelos monopólios capitalistas” (p. 216), o que, penso, lembra uma das consequências do arranjo político no que tange à “tentativa de fusão entre capitalismo e socialismo” que Olavo de Carvalho chama de “economia fascista” [370].
Torno a Lenin que, ao ver o monopólio como “transição do capitalismo para um regime superior” (p. 217), insere o problema do imperialismo como movimento divisor na história do capitalismo, resultante de monopólios que se uniram ao capital bancário para viabilizar a “exportação de capitais” que visa a “partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes” (p. 218). Claramente, Lenin olhou para os impérios no contexto da primeira revolução industrial, na junção que hoje é chamada de “capitalismo de Estado” ou de “laços”, e notou diferenças que afastaram o capitalismo de suas origens na visão clássica, do livre-mercado, com o capitalismo em nova fase, via ordens imperiais. O instrumental marxista lhe deu meios para isso, penso, de discorrer um fenômeno que, um pouco mais adiante, ganharia uma versão remodelada na queda de monarquias na Europa ao final da Primeira Guerra, e na ascensão do fascismo no início dos anos 1920, e do nazismo (no início dos anos 1930), onde em ambos o espírito imperialista de anexação se renovou para compor a base, o que se alinha com o que define como resumo (p. 220), no contexto pré-nazifascista, a partir de sua crítica negativa acerca do conceito de imperialismo pelo teórico marxista Karl Johann Kautsky (1854-1938), a qual define como “ocas divagações” (p. 225) sobre o “ultraimperialismo pacífico” (p. 227).
Lenin separou as naturezas políticas para esmiuçar o que estava a ocorrer com o capitalismo a partir de um olhar dialético para o passado recente e assim entendeu o presente de expansão de capital onde não era conveniente tal leitura, pelo lado do cinismo de apologistas a serviço dos impérios à época. Imagino que, talvez, o surgimento do nazi-fascismo deve ter provocado enorme impacto de coisa profética, entre os que leram esta obra nos anos 1920. A migração do capital excedente das nações mais industrializadas para as mais carentes e não industrializadas, onde os retornos lucrativos eram bem mais vantajosos, teria permitido até mesmo uma transferência de riqueza para os assalariados, algo que produziu uma pequena melhoria na qualidade de vida nas classes trabalhadoras, explicando o retardamento da profetizada revolução do proletariado nesses países.
Tudo parece se encaixar perfeita e exclusivamente entre o capitalismo em sua fase mais aguda, expansionista, e a ideia de império, porém, o que dizer sobre a validade deste conceito, enquanto restrito ao capitalismo, quando se olha para o mapa da URSS? O que representou a URSS? O que ocorreu após a Segunda Guerra no Leste Europeu? E como se deu a Guerra Fria? Enfim, seria o imperialismo um produto cuja autoria é exclusiva do capitalismo?
368. 15/03/2022 23h00
369. Fatos e Falácias da Economia. Capítulo 7 – Fatos e Falácias do Terceiro Mundo. Record, 2017, Rio de Janeiro, p. 269.
370. 29/04/2022 22h29
17/05/2025 14h13
Imagem: TVU Espanha

“Dizemos que uma pessoa é assertiva quando é capaz de exercer e/ou defender os seus direitos pessoais, como, por exemplo, dizer ‘não’, expressar discordâncias, dar uma opinião contrária e expressar sentimentos negativos sem se deixar manipular […]”
Obra: O direito de dizer não! Primeira parte. Entendendo a assertividade. O que significa ser assertivo? L&PM, 2023, Porto Alegre. Tradução de Marlova Aseff. De Walter Riso (Italia/Napoli, 1951).
No parágrafo seguinte, o terapeuta e professor italiano que vive entre a Europa e a América Latina, afirma que a assertividade se situa entre o “extremo nocivo dos que pensam que o fim justifica os meios e a queixa chorosa dos que são incapazes de manifestar os seus sentimentos e pensamentos” (p. 21).
Lembra Walter Riso que a não assertividade está um pouco presente na maioria das pessoas (p. 23). Indica o não assertivo em quatro pontos (p. 22): (1) pensa que os direitos dos outros importam mais que os seus; (2) entende que não se deve ferir os sentimentos dos outros, nem ofendê-los, mesmo que se tenha razão e lhe seja prejudicial; (3) ao expressar opiniões, estima que será criticado ou rejeitado e (4) acredita que não sabe o que dizer nem como, pois não é bom em expressar suas emoções. A submissão que o caracteriza faz com que aproveitadores não o respeitem.
A assertividade é uma “ferramenta de comunicação”, para a defesa pessoal com inteligência (p. 31); fortalece o amor-próprio e a dignidade (p. 37), permite relações mais funcionais, diretas e autênticas, tendo a honestidade e a transparência como fatores determinantes (p. 45), no entanto, carece de calibragem entre os que tentam superar o problema da submissão, para que não se verta à agressividade (p. 27).
Quanto à “ferramenta de comunicação” e sua funcionalidade, lembro-me de uma situação um tanto comum onde precisei ser mais incisivo, um tanto análoga ao caso do psicólogo ilustrado no livro: o principal atendimento no suporte de TI e investimentos é realizado sempre por hora marcada em vídeo conferência no Zoom, o que denota uma disciplina de agenda em compromissos sucessivos. Não é rara a situação em que um cliente chega atrasado. Quando dentro da tolerância de 15 minutos, o atendimento é realizado. Um cliente então se apresentou com 45 minutos de atraso e solicitou atendimento imediato e sua prorrogação para o horário seguinte. A robô Gioconda encaminhou minha resposta com a negação dos dois pedidos porque tinha ultrapassado a tolerância de espera e o próximo horário estava reservado para outro cliente. Foi-lhe oferecido um horário de reserva dois dias depois. O cliente decidiu insistir alegando que em seu escritório “é diferente, quem sempre manda é o cliente e não quem presta serviço”, para em seguida afirmar: “aqui amarramos o burro onde o dono manda”. Mantive as duas negativas e restando cerca de 10 minutos para o encerramento do horário agendado, abri o Zoom para apresentar as ponderações abaixo:
1. Cumprir com rigor a obrigação de estar à disposição no horário conforme combinado, faz parte de meu código de ética no atendimento que preza pela seriedade, o que exige pontualidade e previsibilidade e respeito às normas de relacionamento com clientes;
2. O item 1 se aplica a todos os clientes por um princípio de isonomia que dá base de sustentação à disciplina do trabalho de suporte e ao efetivo cumprimento da agenda;
3. Em situação atípica, fora do meu controle, pode ocorrer atraso justificável, mas se estou operacional e dentro do horário marcado, isso não se aplica. Fere o código de ética de atendimento ocupar de forma unilateral o próximo horário destinado a outro cliente, por conta do que chegou atrasado na faixa anterior e exige ser atendido. Aceitar essa solicitação geraria mais um problema sobre algo que não fui o causador, prejudicando um terceiro que não tem nada a ver com o atraso ocorrido no horário anterior;
4. É razoável presumir que um cliente espere que o atendimento planejado seja iniciado na hora marcada, a considerar que certamente tem outros compromissos no dia. Então, atrasar de forma unilateral e sem justo motivo, seria prejudica-lo em favor do descumprimento alheio;
A insistência continuou: escutei um “você é rigoroso demais”, além de um “até parece que foi militar”. A pauta da reunião previa uma questão técnica de integração contábil que normalmente consome entre 45 e 60 minutos. Restavam cinco minutos para o próximo horário e o cliente ainda acreditava que eu poderia cancelar o agendamento próximo para atendê-lo. Foi então que, para encerrar a conversa, aproveitei o seu hábito de fazer propaganda da igreja neopentecostal em que é membro, para o último e mais precioso “não” com a Regra de Ouro do Sermão da Montanha:
Tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós a eles, porque esta é a lei e os profetas. (Mateus 7:12)
Então deixei para a reflexão do cliente:
Você gostaria de estar no lugar da pessoa que tinha um compromisso de hora marcada mas não foi cumprido porque a outra parte, este que vos fala, decidiu unilateralmente atender outra pessoa no lugar?
16/05/2025 23h08
Imagem: Perfil oficial no X

“[…] o frágil deverá desaparecer, ou perder força. Mas o que é o frágil?”
Obra: Antifrágil. Livro VI. Capítulo 20. Tempo e fragilidade. O que deverá desaparecer. Edição best. business, 2017, Rio de Janeiro. Tradução de Eduardo Rieche. De Nassim Nicholas Taleb (Líbano/Greater Amyoun, 1960).
Da pergunta que encerrou a Leitura do último dia 13, o estranho rapaz se viu como se estivesse naquele meme em que o jovem questionador acaba atirado pela janela sob a ira do chefe, mas não se intimidou e seguiu em sua santa vocação de ser inconveniente.
Os criptoativos são apenas um ponto em uma guerra mundial ou outro evento global que neutralize ou comprometa a maioria dos provedores de internet no mundo, de maneira que impossibilite uma mínima estabilidade de sistemas financeiros, bancários e de investimentos. Em um cenário assim, o que faremos com os ativos em contas correntes, fundos de investimentos, títulos do Tesouro, ações na Bolsa, entre outros?
Em uma guerra mundial ou até mesmo regional, um ciberataque é algo sempre considerado. Então, estou falando de um cenário improvável? O estranho rapaz martelou o grupo até que falaram sobre um cabo que está no fundo do Mediterrâneo, entre outros, que poderiam ser alvos de operações militares. O rompimento derrubaria várias conectividades na Europa. Pensei no Oreshnik sobre datacenters e plantas industriais. Com bancos e caixas eletrônicos fora do ar, a retomada, ainda que mínima, dependeria da reatividade dos agentes econômicos.
Em seguida pensei na desinformação em massa. Veio-me o canto de Gonzaga “sem rádio e sem notícia da terra civilizada”, tão sublime, poético, agora entoado em um estado de amargura pelo caos generalizado: além do apagão nos provedores, e consequentemente dos serviços online e das redes sociais, a malha de telefonia seria comprometida e a maioria dos meios de transporte de massa, inviabilizados. Uma interrupção nos sistemas integrados atingiria companhias de redes elétricas com seus sistemas digitais de gestão de dados. Comunicações via satélite restariam, no entanto, há muitos sistemas hospedados em serviços que dependem de uma conectividade da internet que teria que ser redirecionada, ocasionando em um trabalho gigantesco de TI. Achou pouco meu estranho amigo e então pensou: quem garante que os satélites não militares de serviços estariam imunes a mísseis ou algum tipo de arma ? Neste caso, o bom e velho rádio mostraria seu valor, respondi.
O estranho rapaz parou e percebeu que o ser humano, deveras passivo de tecnologias cibernéticas, vive no fio da navalha e rapidamente regrediria a meados do século XIX e não tardaria para chegar à Idade Média. Pensei que o homem do campo sofreria menos. Contudo, de repente, muitos que se consideram entre os mais poderosos nada poderiam fazer com seus computadores, iphones, sistemas e outras bugigangas. Em um certo sentido haveria uma igualitária condição de pobreza abrupta imposta, ressalvando-se os detentores de ativos tangíveis (dinheiro em espécie, ouro e insumos essenciais) que, para sobreviverem, teriam que lidar rapidamente com o problema da insegurança na forma de constantes ameaças de invasões e saques.
Eu e o “estranho rapaz” seguíamos nesta apocalíptica caminhada pelo jardim das aflições um tanto olavianas. Da pergunta, lembrei-me do exercício de futurologia que a revista The Economist, em 2010, solicitou ao senhor Taleb no contexto do trecho (p. 421) desta Leitura. O que é o frágil? É curioso que ele tenha sido consultado, no entanto, The Economist queria um contraponto.
A superdependência da tecnologia é um problema de fragilidade dos mais letais e subestimados. Conheci um programador que parecia acreditar mesmo ser uma espécie de “senhor do universo”, pela forma de entender o mundo, garantindo-se totalmente por dominar diversas linguagens de programação e modelos de blockchains. Ele ficou irritado com meu questionamento sobre essa vulnerabilidade no cenário hipotético aqui discorrido. A irritação, penso, deu-se pela contrariedade à (ilusória) crença de “estar no controle”. Gestores de estruturas imensas passam por isso proporcionalmente e seriam os mais devastados: teriam que encontrar rapidamente meios de restabelecer redes de comunicações de dados sob pena de entrarem em colapso. Taleb indica que pequenos arranjos de poder e empresas enxutas, poderiam encontrar com menos dificuldade, formas de adaptação; “as empresas que são grandes hoje em dia deverão desaparecer” (p. 421); banco central e estado-nação poderiam sobreviver, porém com muito menos poder, aponta (p. 422).
Por fim, ao pensar nessa fragilidade, sentiria falta deste blog, no entanto, para continuar minha terapia pela leitura, poderia recorrer ao lápis e ao papel… menos mal… e dizem que escrever a punho faz muito bem… além do mais, teria os livros físicos e os salvos no Kindle, este último enquanto tiver baterias para recarregá-lo. Pelo menos isso me trouxe um pouco de esperança…
15/05/2025 22h58
Imagem: Pamięci Narodowej

“According to Krivitsky, when the German-Soviet trade-credit agreement was concluded in April 1935, Stalin said that Hitler could not make war on the USSR—because German business circles were too powerful to allow it.”
Obra: The Nazi-Soviet Pact of August 23, 1939: When Did Stalin Decide to Align with Hitler, and Was Poland the Culprit?, Ideology, Politics and Diplomacy in East Central Europe, 2003. De Anna Maria Cienciala (Cidade Livre de Danzigue, 1929-2014).
Interessante artigo da historiadora polonesa Cienciala. Uma biografia de Ribbentrop é outra Leitura que também me foi muito proveitosa sobre o Pacto Ribbentrop-Molotov de 23/08/1939 [366].
Estava recentemente a escutar um programa de debate francês quando um dos convidados falou sobre o “impressionante cinismo” de Trump em se aproximar de Ahmad al-Sharaa, um extremista que agora está paramentado com roupa de grife e governa a Síria após a queda de Bashar al-Assad em dezembro passado. Quem diria que o país que combate o terrorismo no mundo um dia teria uma política externa assim? Este tipo de cinismo é o mesmo que um dia ajudou a fomentar grupos de mujahideen afegãos na Guerra Fria para fazer a União Soviética ter o seu “Vietnã”. Um cinismo de psicopatas… Dentre os guerrilheiros extremistas bancados pelos pagadores de impostos dos Estados Unidos nos anos 1980, havia um tal de Osama bin Laden [367]…
Cinismo por cinismo, nada superou ainda, penso, o pacto entre nazistas e comunistas às portas da Segunda Guerra. Ribbentrop-Molotov em si bastaria para arrasar a fé de muitos na política como coisa que deva ser levada a sério quanto à coerência. Políticos precisam da irracionalidade e da paixão de quem os suporta. A coerência não passa de uma narrativa de primeira camada, usada para alienar seguidores.
Ribbentrop-Molotov foi o ponto final de um processo, algo que fica mais perturbador quando se analisa como resultado de uma relação que começou com um acordo de crédito comercial, concluído em abril de 1935 (p. 161). Quem poderia um dia imaginar que nazistas e comunistas, irmãos do totalitarismo, unidos muito além de um acordo de não agressão militar? Suas cúpulas estavam envolvidas em negócios, não apenas para um acordo comercial em 1935, mas de outros, que se deram entre idas e vindas que costumam ocorrer em tratativas do gênero. As tratativas germano-soviéticas seguiram para um novo acordo de crédito comercial em dezembro de 1938, com a assinatura que envolvia uma disposição sobre métodos de pagamento. Na virada de 1938 para 1939, “a imprensa alemã amenizou seus ataques a URSS e a imprensa soviética retribuiu”, afirma a historiadora (p. 163). As negociações comerciais prosseguiram em janeiro de 1939, mas foram suspensas pelos alemães no final daquele mês, e seriam retomadas em julho de 1939 e, desta vez, abririam caminho para o pacto Ribbentrop-Molotov.
366. 06/06/2023 22h20
367. 10/03/2022 23h12
14/05/2025 22h45
Imagem: Câmara dos Deputados

“Nunca entenderam isso no bloco socialista e por isso perderam.”
Obra: Uma ovelha negra no poder: confissões e intimidades de Pepe Mujica. Bertrand Brasil, 2015, Rio de Janeiro. Tradução Luís Carlos Cabral. De Andrés Danza e Ernesto Tulbovitz.
Eis então uma biografia de José Alberto Mujica Cordano (Uruguai/Montevideu, 1935-2025), “Pepe” Mujica, que ontem partiu e deixou uma história que merece ser conhecida e refletida.
Quando passei por este trecho (p. 75), parei e pensei acerca do Mujica anarquista, pautado na defesa da liberdade, algo curioso, e logo em seguida, meditei sobre o quanto é sintomático o fato de partidários de regimes socialistas tentarem fingir que não é fundamental o questionamento que ele fez em relação ao que observou quando jovem visitou Moscou. Sob o regime soviético, Mujica se decepcionou ao comparar o que era pregado pelos camaradas, com o que de fato acontecia: o socialismo estava em oposição à liberdade.
O regime que impedia a manifestação livre do pensamento crítico fora do policiamento ideológico do partido, com membros vivendo luxuosamente em meio à tristeza de operários nas fábricas, revelou um cenário que acabou como um choque de realidade para o jovem Mujica: “diz que foi naquele momento que aconteceu a queda do comunismo em sua cabeça” (p. 74). A partir daquela experiência, Mujica se afastou da esquerda majoritária, decidiu ler (pp. 75-76) e meditar mais sobre o socialismo e as visões de mundo: apreciou os clássicos, Confúcio, Maquiavel são citados. Carl von Clausewitz, Bebe Sandic, Rosa Luxemburgo, “a ovelha negra dos comunistas”, outros que o atraíram, no entanto, penso, aparentemente restrito; imagino uma abertura intelectual a envolver tudo, de forma desarmada.
O desapontamento com o socialismo da realpolitk não foi o bastante para marcar uma posição de ruptura: ao chegar à Presidência uruguaia, de fato Mujica se manteve um tanto afastado do socialismo majoritário do século XXI, sob a figura de Chávez, mas não deixou de ser um líder badalado pela esquerda latino-americana naquele cinismo que aliena admiradores e se relaciona com o que pensei na abertura desta Leitura. Mujica marcou distância do mainstream socialista, mas continuou sendo um líder de esquerda: “sentia apreço por eles, mas não comungava com suas práticas. Cuba era uma espécie de ‘velha namorada’ da adolescência”, afirmam os autores (p 77).
Não sei se é por ingenuidade ou outra questão mais complexa, entendo que não é preciso fazer muito esforço para constatar que um regime baseado na coletivização forçada de meios produtivos, inevitavelmente se tornará inimigo da liberdade, compulsivamente coercitivo e paulatinamente autoritário.
13/05/2025 23h32
Imagem: The Nobel Prize

“Muitas decisões estão baseadas em crenças relativas à probabilidade de eventos incertos, tais como o resultado de uma eleição, a culpa de um réu ou a futura cotação do dólar”
Obra: Rápido e devagar: duas formas de pensar. APÊNDICE A: JULGAMENTO SOB INCERTEZA: HEURÍSTICAS E VIESES. Objetiva, 2012, Rio de Janeiro. Tradução de Tássio de Arantes Leite. De Daniel Kahneman (Israel/Telavive, 1934-2024).
Formas distintas de se dizer a mesma coisa:
O investidor estava convicto de que tinha tomado a decisão técnica, correta, racional, em se desfazer de vários BDRs, após conferir dados impressionantemente dispostos no último relatório de sua corretora gourmet, no entanto, esqueceu de combinar a operação não com os russos, mas com o tal do Trump, que deu um passo atrás sobre a taxação aos produtos do tio Xing Ling. A reviravolta na cotação das BDRs o deixará no vermelho por, no mínimo, dois meses. Lembrou-se da icônica loja de departamentos, onde análises de fundamentalistas caíram por terra no escândalo da fraude contábil bilionária que varreu suas reputações e o patrimônio de um conhecido que, de tão revoltado, desacreditou do mercado e se filiou a um partido socialista. O ingresso do dito cujo o tornou referência para “testemunhos de conversão” a lembrar o que acontece quando um protestante de certo destaque se converte ao catolicismo romano e vice-versa.
O gerente foi incumbido de demitir um colaborador no setor cada vez mais desprestigiado de uma típica empresa contábil: o de contabilidade. Foi para cortar gastos, porém não esperava que a escolhida para a rescisão fosse a única que tinha capital humano compatível em um setor que até duas semanas depois não tinha segmentado na carteira de clientes: contabilidade de custos para agronegócios. A habilidade da jovem ficou oculta nas conversas que teve com os sócios e as pessoas de maior confiança na equipe. Quem poderia imaginar que haveria uma demanda assim tão inesperada? Lembrou de ter revisto o currículo dela e da menção a uma pós-graduação em agronegócios. Descobriu nas anotações que ela passou quase um ano em uma distribuidora do setor, além de uma observação do RH de que a então candidata foi dispensada no empregador anterior por causa de uma restruturação após a venda para outra empresa. Ao juntar os dados do currículo e as ideias que ela tinha deixado na empresa, com o novo dado do cliente agro que tinha acabado de entrar, viu que a decisão de demiti-la foi um grande erro. Ponderou que não tinha como prevê a demanda. Parecia uma decisão acertada: era a que tinha menos tempo na empresa e vivia a reclamar que não via perspectiva pela ociosidade do setor, questionado com salários um pouco maiores que os demais, além de ter dado a impressão de que estava de curta passagem a espera de outro emprego melhor. Apenas parecia… Quando tentou recontratá-la, descobriu que a moça já estava empregada em uma empresa… agro. Após descobrir que tinha perdido o melhor player de sua equipe, vendo a carência da expertise dos que tinha à disposição, o gerente teve que recorrer a uma consultoria especializada, cujo contrato exige um gasto mensal que corresponde quase ao triplo do salário da jovem à época, para não perder o “importante” cliente cuja lucratividade do contrato, para o escritório, está entre as menores… quase empatando.
O estranho rapaz ouviu atentamente a palestra sobre criptoativos, no entanto, quando abriram para perguntas, para não fugir da fama de destruidor de sonhos alheios, deixou em estado de “bug” o palestrante e os participantes libertarians da quinta série, todos empolgados com a capacidade antiinflacionária do bitcoin e a segurança dos modelos de blockchain:
– E se acontecer uma guerra que derrube a internet no mundo, o que faremos com todos esses criptoativos em blockchains?
12/05/2025 22h45
Imagem: Torino Today

“Pure strumentalmente, Putin traduce in gesti e parole il genio del luogo.”
Obra: Sotto la pelle del mondo. III. I russi restano russi. Giangiacomo Feltrinelli, 2024, Milano. De Dario Fabbri (Italia, 1980).
Torno a esta obra do analista de geopolítica italiano [363]. No parágrafo anterior, afirma que “milhões de russos desprezam Vladimir Putin. Conhecem há tempo sua ambiguidade moral, as numerosas famílias, o luxo do pós-trabalho, a fortuna oculta. Porém dão testemunho de um maciço consenso em seu favor. Por genuína convicção”, afirma (p. 60).
Putin, na visão de Fabbri, traduz o “gênio do lugar” e, apesar de seus problemas percebidos entre aqueles que o apoiam, prevalece o que ele atua por representar, e assim o analista sintetiza no início do parágrafo seguinte: “antiocidental, militarista, racista, defensor da unicidade russa. Em um lema, é imperial” (p. 60). O russo se define, não aceita definições sobre si, e Fabbri quanto a isso lembra um dito de Churchill (1874-1965): “a Rússia é um quebra-cabeça embrulhado em um mistério que está dentro de um enigma” (p. 55). Quanto a isso, penso de forma mais próxima dos meus afazeres: O que dizer de sua língua, a qual me tornei um sofrido aprendiz?
Na palestra Non chiamatela Guerra di Putin [364], Fabbri aborda a ideia de que o ex-agente da KGB com a batuta na mão, representa um espírito de coletividade de forma mais incisiva: “Não foi Putin quem criou a Rússia, mas foi a Rússia que criou Putin”, algo provocante para quem raciocina como se o conflito na Ucrânia seja fruto do pensamento de um líder que apavora o Ocidente ao criar embaraço para um acordo de paz, encabeçando um fenômeno de um grupo minoritário predominante e alheio ao sentimento do povo. Em sua “geopolítica humana”, Fabbri vê o líder russo como um produto de uma “psicologia coletiva”, o que me faz pensar no conceito de “inconsciente coletivo” [365] em Carl Jung (1875-1961). O povo o qual espelharia, seria mais messiânico que os judeus, em referência a Nikolaj Berdjaev (1874-1948, p. 65). Messiânico na ideia de que representa um papel de superioridade condutora da humanidade, não tendo um viés meramente religioso.
Por fim penso no curiosíssimo projeto “Ogas” (p. 65), que não saiu do papel: ilustra uma espécie de “proto-internet soviética”, concebida em 1963, voltada ao controle social pela burocracia, com ideias de “uma moeda eletrônica 50 anos antes do bitcoin”, o que parece se atrelar a um povo devotado por um propósito de se mostrar como condutor de vanguarda para o mundo. O projeto “Ogas” não prosperou por falta de fundos e mediante a competição interna, entre ministérios, a servir também de ilustração da “megalomania primordial” que marca os russos, segundo a análise de Fabbri.
A leitura de Fabbri sobre a psicologia coletiva russa, penso, pode ajudar a entender como um povo tão desafiador, para a compreensão ocidental, por seus mistérios culturais, passou sete décadas sob um regime brutal de restrição de liberdades; pagou para ver o socialismo que interpretou, caríssimo, até que foi à bancarrota em 1991.
363. 04/11/2024 00h01 e 12/04/2025 15h37
364. 12/11/2022 23h32
365. 23/02/2025 20h31
11/05/2025 18h33
Imagem: Vaticano

“A verdade é que só pode existir futuro no realismo, no bom senso, na concretude dos semeadores da paz e da esperança.”
Obra: Papa Francisco: Esperança. A Autobiografia. 21. O escândalo da paz. Fontanar, 2025, São Paulo. Tradução de Frederico Carotti, Iara Machado Pinheiro e Karina Jannini. De Papa Francesco, Franciscus (2013-2025), Jorge Mario Bergoglio (Argentina/Buenos Aires, 1936-2025).
Presente da esposa, uma das autobiografias mais impactantes que li.
Na abertura do capítulo (p. 290), Francesco me reconecta ao tema da terceira guerra mundial “fragmentada”, “a teia esgarçada”, o que também pode ser conferido, de forma breve, em Vida: A minha história através da História: A inspiradora autobiografia de Papa Francisco [361], diferentemente desta publicação feita pela editora Fontanar.
Francesco aponta uma das ilusões de nosso tempo sobre o “fim da história” mediante um mundo que “voltou a se espelhar no espectro da destruição nuclear”, por armas cuja posse “deve ser considerada imoral”. Na manhã seguinte à invasão da Ucrânia, de forma inédita na posição de pontífice, Francesco foi a embaixada russa: “Implorei pela interrupção dos bombardeios, preconizei o diálogo, propus uma mediação pela mão do Vaticano”. Francesco se ofereceu para ir a Moscou conversar com Putin. Em paralelo, ligou para o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky (1978) e se solidarizou com a dor e oferecer cooperação. Mais adiante a resposta russa veio do Ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov (1950), o qual informou que “não era o momento” (p. 291). Aqui, pensei, o trabalho em prol do diálogo foi uma das marcas do ministério de Bergoglio, creio, uma das maiores contribuições que deu ao nosso tempo: a contínua e disciplinada disposição para ouvir e promover a conciliação entre opostos. Lembro-me de uma de suas entrevistas que ele falou sobre a importância de saber escutar as pessoas e não interrompê-las, para então promover um diálogo saudável. Penso agora no traço deste diálogo quando, no segundo ano do pontificado, se reuniu com o então presidente israelense Shimon Peres (1923-2016), o palestino Mahmoud Abbas (1935) e o patriarca da Igreja Ortodoxa de Constantinopla, Bartolomeu, para plantarem uma oliveira em invocação a paz no Oriente Médio (p. 300)
A leitura avança e eis que vejo Francesco tocar em um assunto que, não raramente, provoca a ira negacionista de progressistas e comunistas saudosos do modelo soviético: o Holodomor, “causou milhões de vítimas”, afirma (p. 292), o que serve de exemplo para quem entende que Francesco tinha alguma amarração ideológica de cunho meramente político. Faz então um briefing dos esforços do Vaticano para ajudar as vítimas, em especial, as crianças, os feridos e os doentes (p. 292). A guerra é uma “irracionalidade criminosa” (p. 294); toda guerra “é um sacrilégio porque a paz é uma dádiva de Deus” (p. 304), “uma mentira” (p. 305), e neste ponto cita Liev Tolstói (1828-1910) sobre o “mal mais assustador do mundo, a hipocrisia […]”. Lembra que correm pelo mundo 59 conflitos bélicos a envolverem diretamente quase 1/3 das nações, às vezes chamadas “hipocritamente de ‘operações de paz'”. E a paz nesse mundo escravo de guerras é um assunto, não raramente, proibido ou inconveniente, como penso acerca do que aponta (p. 295).
O pensamento de Francesco se insere no rol dos que se envidaram como artesões da paz, uma renovação para o nosso tempo. Defende que na Palestina, o único caminho pacificador passa pelos acordos de Oslo (1993, p. 299); uma solução com dois estados tendo Jerusalém uma posição especial (p. 300). No entanto, a paz parece um escândalo diante de quem se pauta pela mentalidade belicista, a qual define como “psicose” (p. 295), e mesmo que a Igreja seja vox clamantis in deserto, em referência a Marcos (1:1-3), exorta que não deve desistir de “lançar as sementes da reconciliação” (p. 295). Vejo em alguns pontos do pensamento de Francesco, traços da filosofia da não agressão de Luther King Jr. (1929-1968), que foi encontrar inspiração no Evangelho e no exemplo filosófico de Gandhi (1869-1948), na Índia sob o jugo imperialista britânico. Essa linha percebo quando afirma que “a vida só pode ser construída com base em palavras e gestos de justiça que renunciem à humilhação do adversário” (p. 299), quando argumenta que “toda solução construída na base da vingança e na violência, seja onde for, nunca será paz e só espalhará sementes de ódio” (p. 300) e na última frase deste capítulo, trecho (p. 305) desta Leitura.
Quando se volta ao conflito em Gaza e à Terra Santa (pp 296-305), Francesco me faz pensar em quão devastadora é a dimensão das guerras e dos massacres, e que muitas vezes parece ser abstrata a quem não sofre na pele seus efeitos, no entanto, lembra que essa dimensão é retratada profeticamente pela arte, que nos ajuda a “colher a realidade mais profunda das coisas” (p. 296). Cita então Picasso, conceitualmente (“a arte é uma mentira que nos faz compreender a verdade”), para logo em seguida mencionar O grito, de Edvard Munch (p. 296). A começar pelo ataque do Hamas a Israel, passando pela reação do Estado israelense e pela escalada na Síria, no Irã, e no Líbano (p. 297), Francesco discorre, penso, sobre um ambiente berço da fé e, concomitantemente, permeado de conflitos que desafiam a crença na humanidade, porém, enquanto se pauta nas vítimas e na justiça pacificadora, o seu pensar, no lado dos mais fracos, frágeis, vulneráveis, indefesos, toma uma linha que me conecta às raízes da mensagem de Jesus Cristo. Entre os destaques, o convento franciscano de Tiro que virou refúgio para pessoas de várias etnias e credos (p. 297), a comovente invocação do pároco, dirigindo-se diretamente às armas (p. 298), os mísseis que devastam inocentes, assim como os franco-atiradores do exército israelense; o caso da mãe e filha (cozinheira na casa das crianças com deficiência), ambas mortas por um desses soldados de Israel (p. 297), foi a parte mais difícil de meditar.
“O Senhor pedirá contas de todas as lágrimas derramadas na Ucrânia”, adverte, quando torno a pensar no conflito que abriu o capítulo e penso, um clamor que se estende a todos os cantos do planeta, e segue: “civis indefesos, mulheres, crianças, vítimas cujo sangue inocente grita ao Céu e implora: ‘Chega! Chega dessa loucura'” (p. 293). Aqui penso no quanto Francesco, por meio de suas palavras e ações, inspirou-me a orar diariamente por vítimas de conflitos, refugiados e todos os que financiam e trabalham para socorrê-los.
Neste dia então, parei também para meditar sobre quão devastadora e insondável humanamente deve ser a dor de uma mãe que perdeu sua criança, e o que dizer das que sofrem essas perdas por causa de guerra?, na Ucrânia, em Gaza e em tantos outros lugares deste mundo? Por fim medito no brado das vítimas onde Francesco se une em coro: “Chega dessa loucura”, um clamor hoje repetido por outras palavras,: “Mai più la guerra!“, por Leão XIV, na oração do Regina Caeli [362].
361. 09/12/2024 20h01
362. Oração mariana do tempo pascal, Regina Caeli 11 de maio de 2025- Papa Leão XIV em https://www.youtube.com/watch?v=WnQIUROhKQ8
10/05/2025 21h14
Imagem: A Casa Humana

“O que mata a esperança não é saber-se mortal, mas sim perceber-se abandonado.”
Obra: A morte é um dia que vale a pena viver. A verdade pode matar? Sextante, 2019, Rio de Janeiro. De Ana Cláudia Quintana Arantes.
Torno [359] a este livro de utilidade pública, da doutora Quintana Arantes.
Falar a verdade sobre a gravidade da doença ao portador vai matá-lo antes do tempo. Então omitir detalhes da doença evitaria outro mal. Bem, a doutora Quintana Arantes entende que essa é “uma das maiores mentiras” que escuta com frequência (p. 104).
“A palavra que mata é a mal utilizada”, argumenta a doutora (p. 104), e aqui penso, inspirando-me a partir da diferenciação de Platão em Fedro (aqui uso em outro sentido): palavras são como um φάρμακον “pharmakon” (daí se deriva o termo farmácia), podem fazer bem como remédio, ou mal como veneno, depende da forma e da dosagem quando aplicadas.
Quintana Arantes aponta pesquisas a indicar que pacientes com menor expectativa de vida têm maior interesse em discutir prognóstico (p. 105). O problema é que pacientes com diagnóstico de doença grave e prognósticos de brevidade de vida costumam ser tratados como incapazes de lidar com a verdade e assim ficam impedidos por familiares e amigos de saberem a realidade médica em que se encontram. neste ponto, penso, o abandono no trecho (p. 104) desta Leitura, pode ser caracterizado também pela alienação do familiar enfermo da realidade, por parte de familiares e amigos. A doutora também menciona o inverso, quando o medico (é o caso dela) adota um diálogo aberto e claro com os pacientes, mas os mesmos, no trato do assunto com familiares e amigos, não apenas omitem, mas muitas vezes fantasiam a si mesmos com planos de festas, viagens, para dar a entender que está tudo bem (p. 106). Quanto a isso, lembrei-me de um caso parecido, porém a mentira foi usada em uma circunstância complexa, temporária [360].
Outro destaque nesta Leitura está no que a doutora define sobre sua conduta aberta para conversar sobre a gravidade de prognóstico com paciente: possibilita dar a chance de “aproveitar o tempo que lhe resta de maneira consciente, assumindo o protagonismo de sua vida, de sua história” (pp. 106-107) e que poupá-lo sobre a consciência do conhecimento e das urgências em torno de sua própria situação na enfermidade, não interrompe o processo da morte e sim o priva de viver em si mesmo (p. 107).
359. 01/10/2024 21h53
360. 12/10/2024 19h51
09/05/2025 23h06
Imagem: Jornal Opção

“[…] o ressentimento é o berço do falso messianismo […]”
Obra: Ensaios Reunidos. Volume I. 1942-1978. Origens e Fins. Segunda Parte: Justiças e Injustiças. Alfieri e a tragédia da Itália. Topbooks/UniverCidade, 1999, Rio de Janeiro. De Otto Maria Carpeaux (Áustria/Viena, 1900-1978).
A espiral dos vencidos – por pastor Abdoral Alighiero
Do alto da montanha tomei por empréstimo do meu amigo de infância os ensaios do intelectual austríaco mais brasileiro que tenho notícia.
Ora ora, nenhuma leitura faz sentido sem meditação e no silêncio do espírito com meus amigos silvestres, à baila o “messianismo falso”, dos “vencidos”, fenômeno peculiar no contexto do que ocorrera com o povo italiano, “o mais velho dos povos europeus e o povo mais europeu”, cuja “subalternidade” reflete “um povo humilde, muito velho”, onde reside sua verdadeira grandeza (p. 336), raiz pelo meu fascínio com sua cultura que vence estereótipos que meu infante camarada um dia acreditou de tanto ver filmes e clichês, o que felizmente se desfez nas visitas que realizou à península mais famosa do mundo.
Carpeaux aponta que a “subalternidade” tomou conta do próprio espírito italiano, “fê-lo adoecer, e criou o monstro paranoico da ‘superioridade racial’ onde, em minhas meditações, vieram-me imagens do que abarcou no oportunismo político em meio à clássica exploração do desespero dos bestializados, tomados por um saudosismo piegas acerca de entendimento distorcido do próprio passado. Esse saudosismo foi explorado pelo primo fascista Mussolini e atualmente está renovado pela ala extrema de bocós apoiadores da direita italiana que hoje se ufanam em intoxicar o mundo com o saluto romano. Os que abraçaram o fascismo, em certo sentido, foram movidos pelo mesmo espírito do falso messianismo que seduziu rebanhos de recalcados e disseminou espantalhos nos quatro cantos e assim alcançou multidões de brasileiros que abraçaram o Estado Novo getulista e, em um contexto não personalista, mas igualmente autoritário e imbecilizante, os que vibraram com o golpe de 1964, assim como em paralelo com o nascedouro fascista se deram os ingredientes desse sentimento coletivo reprodutor de trogloditas a conduzir massas de alemães para a elevação de Hitler, enquanto japoneses, vistos como tão serenos e inteligentes, alinharam-se ao eixo.
Mas entre os falsos messianismos, o que não dizer da versão gourmet, impessoal, na forma do socialismo marxista que, da promessa de justiça paradisíaca terrena, produziu ditaduras brutais no século XX e hoje, após a humilhação soviética, apresenta-se recauchutada com toques da economia de mercado, e assim posa disfarçada na China como coisa inteligente? Moral da história: a estupidez da massa é multicultural e sua forma democrática de ocupação é a mais eficiente inventada pela humanidade.
Parece pairar pela história esse espírito possessor de acéfalos em forma de espiral. A história não se repete; vive um eterno retorno. O glorioso passado da burrice exige que se defenda medonha tradição. Os arraiais do lulismo e do bolsonarismo no Brasil, do trumpismo nos Estados Unidos, dos movimentos neofascistas e neonazistas na Europa e o dos doutos em política econômica deslumbrados com o modelo chinês de partido único, comunista, intolerante à oposição e controlador da imprensa e das redes sociais, atestam essa trágica verdade pela dominância repetidora de traços ou variantes desse espírito de “fascismo eterno”, a tomar outro empréstimo de termo, desta vez na magistral meditação de Umberto Eco.
Poderoso, sedutor, embriagante, espírito de porco que aliena ressentidos, invejosos, incapazes e vencidos em um sentido amplo; vencidos pela compreensão estritamente ideológica da realidade, o que deriva a leitura manipulada dos fatos e de suas causas e, sobretudo, vencidos pela carência de discernimento das verdadeiras intenções dos políticos e dos regimes que idolatram.
08/05/2025 23h08
Imagem: Vaticano

“He insists that the remedy against the pest of socialism is not to be found ‘in the strong hand of the civil power, or in military force.'”
Obra: Pope Leo XIII. Public men of today. An International Series. Bliss, Sands & Foster, 1896, London. De Justin McCarthy. Editado por S. H. Jeyes.
O nome escolhido, as referências a Santo Agostinho e ao Papa Francesco em seu primeiro discurso… Ao pensar sobre Prevost hoje eleito, entre os sinais, voltei-me a esta obra sobre Leão XIII (20/02/1878-20/07/1903) Leo PP. XIII, Vincenzo Gioacchino Raffaele Luigi Pecci-Prosperi-Buzzi (Italia/Carpineto Romano 1810-1903), cuja encíclica Rerum Novarum [358] é essencial para entender as bases da doutrina social da Igreja.
No trecho (p. 94) desta Leitura, Leão XIII parece dar um profético alerta do que viria a ocorrer cerca de duas décadas após o fim de seu papado. O fascismo e o nazismo chegariam ao poder na Europa justamente como o remédio para o socialismo que não deveria ser tomado: “na mão forte do poder civil ou na força militar”. O que me chama a atenção é que cem anos depois, variantes do fascismo e do nazismo se destacam na Europa e nos Estados Unidos, novamente como remédio para variantes do socialismo na forma de progressismo.
No mundo de Leão XIII havia um caldeirão de militância socialista que assombrava a Europa. Inicialmente “marxiana”, logo foi transmutada por interpretações que a tornaram “marxista” e delas se derivariam o leninismo e depois o stalinismo como forças mais preponderantes. O ateísmo e o anticapitalismo estavam em alta no final do século XIX e foram crescendo na medida em que ideias totalitárias também cresciam. O papa condenou os princípios que foram assumidos por comunistas e niilistas. Defendeu a propriedade privada dos meios produtivos, pontuou o problema da “luta de classes” por outra visão: da negociação, sendo conciliadora, ordenadora, reguladora, o que me parece claro na Rerum Novarum. Além da advertência profética sobre reações autoritárias ou bélicas contra o socialismo, Leão XIII defendeu que o remédio estava em “aliviar a carga dos oprimidos” e “restabelecer os princípios da moralidade e da religião”(p. 94). Aqui, penso, uma pauta que torna ao tempo presente em meio às interpretações que parecem não ter encontrado um ponto para o diálogo construtivo, outro elemento que o papa defendeu. Penso que muitos liberais e libertários pró-mercado parecem ainda não ter aprendido com a história em torno da gravidade dos problemas sociais e do que pode ser promovido pela livre iniciativa. Não raramente, frustrados com a situação acabam por ingressar em fileiras que promovem modos socialistas que ampliam o raio de controle dos aparatos estatais, causando os problemas de intervencionismo que Leão XIII também apontou e advertiu, outro problema atualizadíssimo ao nosso tempo.
Dos estudos que promoveu sobre as questões sociais, atrelados ao espírito filantropo, acabou por conduzir a Igreja a um caminho que a desviou do comunismo enquanto a manteve atenta ao espírito evangélico de justiça e caridade em favor dos oprimidos, mediante sociedades sob efeitos de economias escaladas na revolução industrial. Leão XIII trouxe o debate dos problemas sociais para o centro da Igreja sem promover extremismo. Eis um sinal entre os sinais que o nome escolhido hoje me passou.
358. 08/03/2023 19h42
07/05/2025 22h17
Imagem: Yale University

– Se os senhores se permitissem pensar em Deus, não se deixariam degradar por vícios amáveis. Teriam uma razão para suportar as coisas com paciência, para fazer as coisas com coragem! Vi isso entre os índios.
Obra: Admirável mundo novo. Dezessete. Globo, 2014, São Paulo. Tradução de Lino Vallandro e Vidal Serrano. De Aldous Leonard Huxley (UK/England/Godalming, 1894-1963).
A citação de Rogers me fez revisitar este icônico romance que faz parte do trio das grandes distopias do século XX, ao lado de 1984, de George Orwell (1903-1950) e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1920-2012).
E ao revisitá-lo, a primeira lembrança alusiva me veio pela passagem desta Leitura. Estava com um pastor batista na saída de um culto, lá pelos idos de 2003. No protocolo tradicional à época (não sei se nos dias atuais, afinal dizem que as igrejas “tradicionais” mudaram bastante), findo o poslúdio, o pregador e o pastor da igreja local se dirigiam à saída principal do templo para os que queriam cumprimentá-los. Após o término deste último ato, o pastor então se virou e comentou discretamente: “mesmo se tudo isso aqui seja uma ilusão, um sonho (eu tinha pregado sobre o “sonho de Jacó”), faz um bem enorme às pessoas, ocupa as mentes delas com o que é bom”. Há coisas que ficam marcadas na memória; eis um caso. Não sei se o que eu disse no sermão despertou algo colateral ou se o pastor estava com alguma crise de pós-meia-idade, mas, sem dúvida, a homilia não tinha nada a ver com a descrição líquida, um tanto óbvia, utilitarista e pragmática, que tinha acabado de ouvir.
O pastor, sem querer, tinha me remetido a um argumento (p. 225) análogo ao do Selvagem no romance de Huxley. Um pouco antes, o Selvagem (p. 224) se mostra nominalista na fé, ao expressá-la como um “sentimento”, enquanto o Administrador (Mustafá Mond) me fez lembrar de Feuerbach (1804-1872) quando argumenta que os homens mudam e o conceito de Deus os acompanha (p. 221), no sentido de que o filósofo redefiniu o fenômeno de crença religiosa no ser humano que cria Deus à sua imagem e semelhança. O problema do argumento do Selvagem é que a fé pode ficar limitada a experiência tangível, de entretenimento, até mesmo meramente social, baseada na manipulação de sentimentos, a ignorar o transcendente e o teor atemporal que ensina interiormente sobre algo eterno, além do nosso plano existencial, capaz de nos dar sentido e que é possível interagimos com Ele mediante a fé. Sem essa consciência, a experiência religiosa corre o risco de ficar refém do sentimentalismo, além de ser confundida com práticas ou abordagens (coaches) voltadas a questões tão-somente de demandas materiais e emocionais; assim “Deus” não passaria de um rótulo de apelo de marketing usado para atrair clientes para palestras motivacionais e de prosperidade.
06/05/2025 22h33
Imagem: PSYCIENCIA

“Não será exagerado afirmar que o aumento das ciências sociais encerra dentro de si uma poderosa tendência para o controle social, para o controle de maioria por uma minoria.”
Obra: Tornar-se pessoa. Capítulo 10. Pessoa ou ciência? Um problema filosófico. WMF Martins Fontes, 2009, São Paulo. Tradução de Manuel José do Carmo Ferreira e Alvamar Lamparelli. De Carl Ransom Rogers (EUA/Illinois/Oak Park, 1902-1987).
Eis o momento da leitura (p. 244) em que parei para pensar mais intensamente: conheci poucos dispostos a este tipo de reflexão. O problema da instrumentalização ideológica das ciências, suscitado por Rogers, fez-me pensar, de forma mais objetiva e específica em outra ciência no bojo das sociais, em um apontamento que fiz de Darcy Ribeiro em relação à antropologia, no contexto brasileiro, onde o professor Frans Moonen estende o problema a outros países [357].
Torno a Rogers que afirma: “Quando todos são considerados objetos, o indivíduo subjetivo, o eu interior, a pessoa em processo de transformação, a consciência espontânea de ser, todo o labor interior da vida é enfraquecido, desvalorizado, ou destruído” (p. 244). A respeito, cita Walden Two, de Skinner e Admirável mundo novo, de Huxley. Isso ponto, penso em relação ao que um “experiencialista” (o terapeuta, p. 241) deve se preocupar, entre outras coisas, que a ciência, ao transformar as pessoas em objetos (entendo, o que é inerente ao estudo), incorre em outro efeito: leva à manipulação (p. 243), o que não implica automaticamente em um juízo de valor, pois “pode ser feita de um modo altamente ético” (p. 244). Lembrei-me aqui de ter perguntado a um professor acerca se conhecia algum trabalho relevante, em termos de pesquisa, sobre a ética no uso massivo de bases de dados compostas em pesquisas e que possam ter sido direcionadas para finalidades questionáveis, como em algoritmos delineados por marketing político. Ele respondeu que não, e completou que a questão (pela forma como a apresentei) daria uma “indigesta” linha de pesquisa.
No mais, pensei em outra questão muito interessante levantada por Rogers quando avalia suas proposições em terapia, “o mais pessoal, o mais completamente interior, o mundo mais particular”, diante do suprema fim da ciência quanto à “exploração objetiva dos aspectos mais subjetivos da vida”, e em seguida aponta que será preciso fazer uma escolha e pede para que se pense “longamente e com seriedade antes de abandonar os valores relacionados com ser uma pessoa, com a experiência imediata, com a vivência de uma relação […]” (p. 245).
357. 09/02/2023 23h30
05/05/2025 22h45
Imagem: IMDb

Monica and Jacob are collapsed together.
They cling to each other in tears, in a show of weakness and need for each other that he’s never seen.
Obra: Minari. Release, p. 94, deadline.com. De Lee Isaac Chung (EUA/Colorado/Denver, 1978).
O Encontro [355] – por Heitor Odranoel Bonaventura
Eu formo a luz
e crio as trevas;
faço a paz
e crio o mal [356].
Aos poucos dissipava
o desespero
nos versos que
ecoavam na escuridão.
Não entendiam…
e nem precisavam.
Abraçados e desolados
encerravam a solidão.
Não há razão que
suporte a sabedoria
que a dor ensina
pelo coração.
Não há lógica
àquele momento.
luz, trevas, paz e mal…
refeitos na destruição.
355. 24/11/2024 00h01
356. Isaias 45:7
04/05/2025 13h07
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“A luta não se estabelece entre a utilidade e a opinião: estabelece-se entre o valor venal pedido pelo que oferece e o valor venal que oferece aquele que procura. O valor cambiável do produto é, em cada caso, a resultante destas apreciações contraditórias.”
Obra: Miséria da Filosofia. I – Uma descoberta científica. 1 Oposição entre o valor de utilidade e o valor de troca. Mandacaru, 1990, São Paulo. Tradução de Luís M. Santos. De Karl Marx (Reino da Prússia/Renânia-Palatinado/Tréveris, 1818-1883).
Antes, uma confissão [353].
Torno ao meu herói ideológico da adolescência, época em que fui crente da União Soviética. Miséria da Filosofia marcou o final da juventude de Carlos, produzida entre 1846-47 (p. 9), e registra um momento interessante 20 anos antes do primeiro volume de Das Kapital. Em duas décadas muita coisa pode mudar, avançar, ou retroceder em nossos pensamentos, e Carlos, à mon avis, como todo mortal, não escapou desta possibilidade. É utópico, ingênuo e alienante, entendo, ler um determinado pensador sob a concepção de que ele teve uma linha rígida de pensamento, constante, exatamente idêntica, a partir do momento em que começou a pensar política, economia e sociedade, entre outras coisas, até o final de sua produção intelectual. Contudo, o posicionamento de Carlos em relação a Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), outrora seu amigo, com amizade desfeita a partir das críticas expostas neste livro, indica um núcleo de raciocínio que mais adiante se consolidaria em sua famosa crítica ao “capitalismo”.
Li esta obra em 1996 [354] e no trecho (p. 41) desta Leitura, expõe em pormenores (p. 40) a análise de Proudhon acerca do significado do livre-arbítrio no embate entre o comprador (demandante) e o produtor (ofertante); produção e consumo estão baseados em trocas individuais, onde é o consumidor que confere a utilidade de um bem ofertado (p. 42). Essa oposição descrita por Proudhon é interpretada por Carlos como tendo “qualidades puramente metafísicas” (p. 42) e, em oposição crítica, Carlos apresenta na página seguinte o que entendo como um ensaio (grifo) de um pensamento que iria se expandir ao longo de duas décadas até Das Kapital e ajuda a entender a essência de sua crítica:
“O consumidor não é mais livre que o produtor. A sua opinião assenta nos seus meios e nas suas necessidades. Uns e outros são determinados pela sua situação social, a qual depende, ela própria, de toda organização social. Sim, o operário que compra batatas e a amante que compra rendas, seguem, um e outro, a sua respectiva opinião. Mas a diversidade da suas opiniões, explica-se pela diferença de posição que ocupam no mundo, a qual é produto da organização social” (p. 43).
Aqui penso, consta o núcleo da principal contribuição de Carlos aos debates político e econômico. Sim, Carlos continua importante para mim, assim como os liberais clássicos, a linha miseana, a heterodoxia de Keynes e o modelo chinês que não consigo encontrar uma síntese para defini-lo.
Torno então ao núcleo que identifiquei em Carlos 20 anos antes de Das Kapital: ele viu, entendo, um simplismo de Proudhon em relação à função do livre-arbítrio no encontro da procura com a oferta )um simplismo parecido com a leitura da Escola Austríaca), em um mecanicismo rudimentar, sem ponderar fatores sociais que influenciam no comportamento dos agentes econômicos enquanto reconhece que a concorrência entre demandantes e ofertantes “forma um elemento necessário da luta” (p. 43), sendo este detalhe uma curiosidade diante do que marxistas fizeram ao adotar a planificação econômica no século seguinte. Adiciono a esta questão o problema da irracionalidade na tomada de decisões econômicas, o que, de certa forma, abre um questionamento para a praxeologia miseana, assim como para os que acreditam na planificação econômica. Em suma foi a partir desta experiência de leitura em 1996 que passei a entender melhor o que ZW queria dizer sobre o modelo soviético não ter sido “marxiano” e sim “marxista “, e de “quinta categoria”, quanto a diferenças fundamentais e, em paralelo, tentava chamar a minha atenção para o modelo chinês ainda em meados dos anos 1990.
353. Continuo a ler Carlos, Mises, Keynes, entre outros tão equidistantes, amados por uns, adiados por muitos. Leio-os com disposição análoga a cada visão de mundo que apresentam e tento aprender com suas obras; não estou nem aí com clubinhos de escola disso ou daquilo, ou interessado em saber quem tem mais razão. Uma razoável leitura do mundo só é possível, à mon avis, se eu estiver disposto constantemente a promover o encontro de ideias entre diversas e conflitantes linhas de pensamento. Quando afirmo que sou “austrolibertário”, é uma posição pessoal, em termos existenciais, diz tão-somente respeito ao que me compete no âmbito individual e não para o mundo e os outros. Quando alguém me diz que é “progressista ou de “esquerda”, isso nada significa além da questão que me vem em mente: o que podemos aprender juntos? Nada significam, em termos de posição política, as minhas posições em economia e sociedade. Não acredito que cabe a um ser pensante envidar esforços para convencer os outros disso ou daquilo, e sim de promover o intelecto em uma via dupla, além de que tentar conter ou explicar o “mundo” pelo que sou e acredito não passa de ilusão.
354. 31/07/2023 23h02, 22/10/2024 22h21, 08/03/2024 21h25, 02/06/2022 21h04
03/05/2025 14h16
Imagem: ABL

Era uma mosca azul, azas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão,
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada,
Em certa noite de verão.
E zumbia, e voava, e voava, e zumbia
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua, — melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.
Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
«Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que t’o ensinou?»
Então ella, voando, e revoando, disse:
— «Eu sou a vida, eu sou a flor
«Das graças, o padrão da eterna meninice,
«E mais a gloria, e mais o amor.»
E elle deixou-se estar a contemplal-a, mudo,
E tranquillo, como um faquir,
Como alguem que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem reflectir.
Entre as azas do insecto, a voltear no espaço,
Uma cousa lhe pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço
E viu um rosto, que era o seu.
Era elle, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o collo nú
Um immenso collar de opala, e uma saphyra
Tirada do corpo de Vischnu.
Cem mulheres em flôr, cem nayras superfinas,
Aos pés delle, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
E todo o amor que tem lhe dão.
Mudos, graves, de pé, cem ethiopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios,
Voluptuosamente nus.
Vinha a gloria depois; — quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triumphaes
De trezentas nações, e os parabens unidos
Das coroas occidentaes.
Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em agua que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.
Então elle, estende a mão callosa e tosca,
Affeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.
Quiz vel-a, quis saber a causa do mysterio.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que alli tinha um imperio,
E para casa se partiu.
Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa occupação
Miudamente, como um homem que quizesse
Dissecar a sua illusão.
Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ella,
Rota, baça, nojenta, vil,
Succumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquella
Visão fantastica e subtil.
Hoje, quando elle ahi vae, de aloé e cardamomo
Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu, e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.
Obra: A Mosca Azul. Em Poesias Completas. H. Garnier Livreiro-Editor, 1901, Rio de Janeiro-Paris. De Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro/Rio de Janeiro, 1839-1908).
Esta edição me conecta com a ortografia do início do século XX, o que sempre me atrai e permite apreciar in natura a genialidade de Machado de Assis.
Penso em quão curioso me parece o fascínio que indivíduos tão politizados têm pelo poder enquanto, concomitantemente, são críticos refinados no reconhecimento daquilo que Lord Acton eternizou: “Todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe de maneira absoluta”, icônica frase que abre o igualmente icônico capítulo 10 de O caminho da servidão, de Hayek [350], que marcou um tempo em que a descrença nos sistemas políticos começou a se formar em meus pensamentos. Neste aspecto penso aqui no oitavo capítulo do primeiro volume de O país dos privilégios de Bruno Carazza: “o poder vicia e é por isso que, uma vez picado pela mosca azul, ninguém quer mais larga-lo” [351], em alusão a abertura de A mosca azul: Reflexão sobre o poder, de Frei Beto.
Entre os que conheci encantados com a “mosca azul”, penso no caso de um senhor que, ao ingressar na “vida pública”, a primeira mudança concreta e significativa que realizou foi em si mesmo: negou o ateísmo que abraçara desde o início da juventude, o qual comentava apenas com os mais próximos, e se declarou “católico”, depois se aliou ao grupo político que até então enojava para ter condições de seguir nos degraus do poder, e assim foi “progredindo” para se transformar de maneira que ficou irreconhecível quando comparado com as coisas que defendia no início da carreira. Em outra ocasião estava com ZW quando comentávamos acerca do que ouvimos de um professor de direito que tinha acabado de anunciar a aposentadoria da “vida pública”, após alguns mandatos, quando sumarizou: “o doutor encontrou um antídoto para o veneno da mosca azul”; risos.
A picadura da “mosca azul” tem um poder de transformação sobre-humano, não apenas do ponto de vista de quem exerce o poder, mas também sobre os que se submetem incondicionalmente a quem o exerce em troca de proteções e/ou privilégios, e aqui penso no dito popular “eu tenho amigos poderosos!”, expresso para intimidação. Uma variante desse fascínio clientelista-alienante pode ser verificada entre pessoas que se ufanam de líderes de regimes autoritários, o que é um fenômeno comum entre progressistas e os que se consideram de direita, ditos “conservadores” e mais “tementes a Deus” que os outros quando desprezam violações em favor da crença que possuem no líder face ao que entendem sobre supostos benefícios do regime de estimação.
A insaciabilidade que caracteriza o espírito humano é uma vertente de sedução da “mosca azul”, contudo, entre diversos efeitos, penso que não consigo me lembrar de alguma pessoa conhecida, ao longo dos meus quase 35 anos de vida profissional que, após adentrar na política e se candidatado, tenha melhorado em aspectos éticos de relacionamento nos negócios, pelo contrário, demonstrou a frequência de alguma conduta controversa, para usar um eufemismo, até então desconhecida. Disseram-me quanto a isso que o poder “muda as pessoas”, assim como o dinheiro; talvez, penso, o “poder” seja apenas um elemento incentivador para revelar certas linhas do caráter até então ocultas. Assim em parte se explica minha restrição de trabalhar com pessoas politicamente expostas. Afirmo “em parte” porque o problema maior que penso aqui não se resume ao sujeito “politicamente exposto”, e sim ao que o poder em geral provoca no ser humano nos âmbitos estatal e privado quando em elevada concentração. Fora da política dita “pública” lido com pessoas com algum relativo poder e, no entanto, sendo do meio privado, ao mesmo tempo percebo um delimitador natural de danos que podem causar, nada comparável com o poder exercido por meio de um aparato estatal coletivista social, e aqui penso no que Mises definiu sendo de “compulsão e coerção”, e que se torna a mais destrutiva instituição quando deslumbrados com a “mosca azul” não promovem “a preservação de relações pacíficas entre os homens” [352].
350. 22/02/2022 23h30
351. Companhia das Letras, 2024, São Paulo, p. 235, e 20/12/2024 21h57
352. Ação Humana, Mises Brasil, 2010, São Paulo, p. 189.
02/05/2025 21h18
Imagem: LVRJ

““No. I don’t think I will try.”.”
Obra: Howard Hughes: his life and madness. Chapter 5. The Senate Investigation. W. W. Norton & Company, 1979, London. De Donald L. Barlett e James B. Steele.
Howard Hughes, o lendário bilionário americano-maluquinho, apaixonado por cinema e aviação, na ocasião investigado pelo Senado em um típico caso de corrupção em “parceria” entre o Estado e a iniciativa privada. Um comitê especial do Senado analisava contratos da companhia de Hughes para fornecimento de hidroaviões e aviões de foto-reconhecimento durante a Segunda Guerra.
A história de Hughes com o comitê se entrelaça com a guerra dos lobbies no Congresso. Um projeto de lei em 1946 estabelecia um monopólio a Pan American Airways (Pan Am) cujo autor “foi um senador republicano do Maine, frio e um tanto pomposo, Ralph Owen Brewster, a quem Drew Pearson certa vez chamou de ‘senador mantido’ da Pan Am, contudo, um vigoroso esforço de lobby da TWA (de Hughes) e de outras companhias aéreas, conseguiu bloquear a aprovação”, apontam os autores desta biografia (p. 184).
No trecho (p. 190) desta Leitura, Hughes na manhã de 8 de agosto de 1947 em resposta ao senador Homer Ferguson, que presidia a comissão, sobre se traria novamente o seu colaborador John W. Meyer (p. 193) para depor novamente na audiência da subcomissão do Comitê de Investigação de Guerra do Senado (p 186). Durante a audiência, Hughes explorou o temperamento do senador; “o republicano de Michigan, escolhido para presidir as audiências por conta de experiência em tribunais como promotor e juiz, não foi páreo para Hughes na confusão que marcou os cinco dias de Hughes no banco das testemunhas” (p. 190). Para desviar a atenção em torno do que estava em investigação, Hughes passou a provocar o senador Brewster nos dois primeiros dias, em torno do lobby pelo favorecimento da Pan Am, o qual tinha derrubado no Congresso. O episódio está no filme The Aviator (2004), contado de forma um tanto diferente, mas com a brilhante interpretação de Leonardo DiCaprio no papel de Hughes.
O Comitê tinha passado ao controle do Partido Republicano e seus pares estavam “ansiosos por expor os pecados de quase uma geração de governo democrata, e assim a maioria republicana do comitê viu o relacionamento próximo de Hughes com o governo Roosevelt como um provável ponto de partida. Hughes havia recebido mais de US$ 40 milhões dos contribuintes para dois projetos de aeronaves militares, nenhum dos quais estava nem perto de ser concluído ao final da guerra. De fato, nem o hidroavião nem o XF-II haviam voado com sucesso” (p. 183). Graves acusações somadas à suspeita de que John Meyer – objeto das respostas de Hughes no início de sua participação na audiência – teria gasto “US$ 169.661 entretendo oficiais da Força Aérea durante a guerra. O dinheiro fora usado em excursões a casas noturnas e restaurantes de Los Angeles e Nova York, e em festas particulares onde grupos de jovens beldades de Hollywood circulavam livremente entre militares” (p. 185).
O embate de Hughes com a comissão do Senado ilustra a hipocrisia extenuante da cultura do lobby, penso, um conceito na política americana para fazer a corrupção ter aspecto de coisa legal. Eis um caso para também ilustrar que os políticos e empresários-amigos-do-rei ianques podem ser tão ou mais imundos que os tupiniquins.
01/05/2025 12h22
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“‘De tal modo’, continua Paulo VI, ‘os homens querendo evitar as dificuldades individuais, familiares e sociais que se encontram na observância da lei divina, chegariam a deixar à mercê da intervenção das autoridades públicas o setor mais reservado e pessoal da intimidade conjugal’.”
Obra: Paulo VI: O Santo da Modernidade. XXII. “Não à Pílula”. Paulus, 2016, São Paulo. Tradução de Paulo Ferreira Valério. De Domenico Agasso Jr. (1979) e Andrea Tornielli (Italia/Chioggia, 1964.
1968, tempo em que muitos, penso, acreditavam em revoluções, e no meio do caldeirão global estava a Igreja no pontificado de S. Paulus PP. VI, Paolo VI (1963-1978, Giovanni Battista Montini (Italia/Concesio, 1897-1978).
No trecho (p. 173) desta Leitura, um dos argumentos usados pelo Papa Paulo VI para recusar qualquer defesa do uso da pílula anticoncepcional, sobretudo, voltada ao rebanho católico romano. O pontífice parte do pressuposto de que a liberação do método por meio artificial daria oportunidade para governos imporem controle de natalidade, adentrando em questões privadas, de família.
Escutei um argumento a suscitar que a “proibição” da Igreja à regulação artificial de nascimentos também seria uma forma de intromissão em questões privadas. Perguntei-me se há alguma diferença substancial entre proibir diretamente, por meio de legislação, e declarar “que é absolutamente de excluir, como via legítima para a regulação dos nascimentos, a interrupção direta do processo generativo já iniciado, e, sobretudo, o aborto querido diretamente e procurado, mesmo por razões terapêuticas “[346]. Então pensei: por uma questão de fé, todo católico romano deve obediência ao papa e, na prática, ao declarar ilegítimo o controle artificial, entendo, de certa forma a Igreja exerce determinada influência em seus fiéis, o que pode ser qualificada como intromissão em questão de ordem privada, pois não se trata de uma recomendação, onde fica claro que compete a cada indivíduo, na relação conjugal, decidir, mas isso não tira a importância do alerta de Paulo VI acerca do uso do método artificial para fins invasivos por meio de “políticas públicas” em aparato estatal, o que está relacionado, conforme o Papa desenvolve na Humanae Vitae, com o problema dos poderes públicos participarem de uma forma “sábia”, entenda-se, a contribuir para a solução do problema demográfico com uma “política familiar providente”, em favor da “educação das populações, que respeite a lei moral e a liberdade dos cidadãos” [347]. Aqui, penso, é preciso ter muita fé para crer que governos possam ter tais aptidões. E fé por fé, prefiro a que se direciona a Deus.
Quando a Humanae Vitae foi publicada, Paulo VI talvez estivesse sob certa pressão, eis o que entendo sobre as “circunlocuções sapientes” (p. 171). Havia alguma expectativa que pudesse sair, segundo os autores desta bela obra, alguma “brecha” para um controle artificial visando dar uma resposta a “católicos sinceros, decididos a viver juntos o amor conjugal e o amor de Deus” (p. 171). Contudo, o Papa foi objetivo e rigoroso: são lícitos os métodos terapêuticos voltados para tratamento de doenças que provoquem o efeito de impedir a procriação, além do uso dos períodos infecundos para regular a natalidade, “que derivem ou das condições físicas ou psicológicas dos cônjuges, ou de circunstâncias exteriores” [348].
A recepção à época não foi agradável em muitos ambientes. A começar de bispos e cardeais que alegaram que o convencimento de fiéis a seguirem a encíclica seria “extremamente difícil”, apesar de Humanae Vitae não ser ex-cathedra, penso. Metade do clero de diocese de Washington rejeitou o documento e uma pesquisa entre freiras nos Estados Unidos identificou que 57% admitiram que um controle de natalidade seria necessário. teria sido uma “sexofobia inaceitável” e entre teólogos e sexólogos católicos franceses se escutou que “as palavras do Papa crucificaram-nos”, além da acusação de que o Papa teria criado “um novo caso Galilei”. Até na Bolsa de Nova York ocorreram acusações contra a encíclica em meio a uma interrupção do ciclo de alta das ações de companhias farmacêuticas produtoras de anticoncepcionais (p. 176).
Em Teologia do Corpo, João Paulo II também aborda o tema [349], expandindo-o na linha de Paulo VI. A complexidade é imensa e diz respeito a um debate de crentes e não crentes, como interpretam Agasso Jr. e Tornielli. Penso sobre quantos católicos de fato evitam a pílula, o preservativo ou outro método artificial, em observância ao ensinamento da Igreja. Mas também penso no problema da intromissão estatal no planejamento privado, assim como penso em outros possíveis interesses espúrios, em torno do incentivo à libertinagem sexual com a “garantia” de fecundidades indesejadas, entre os quais pode se situar o do desmantelamento da prática de valores na base da organização familiar a respeito da fidelidade na vida conjugal.
Por fim, o que extraio do legado de Paulo VI na apreciação desta obra é de que a Igreja tem uma independência robusta, fortíssima, quando lida com mudanças profundas que correm pelo tempo. O Papa da Humanae Vitae é o mesmo que confirmou a infalibilidade papal (p. 167), dogma resultante de um longo período de discussões, em torno do ex-cathedra, não raramente mal compreendido até por católicos, quando não distorcido por protestantes. Tal independência que percebo na Igreja, ao longo de seus dois milênios, também me indica que os eleitores no próximo conclave não estão necessariamente fixados em uma agenda política específica, seja para agradar uma maioria, pois não é uma democracia, sobretudo no tocante ao politicamente correto, seja por uma linha mais conservadora, reacionária, ou seja em favor de alguma linha mais progressista em apelo ao legado do Papa Francesco. A Igreja tem seus próprios caminhos.
346. Humanae Vitae. vatican.va, 1968, 14.
347. Ibid., 23.
348. Ibid., 16.
349. 19/09/2023 23h34
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