A terapia literária de Maio em Uma leitura ao dia é aberta com a Sexta Sinfonia (1808) de Ludwig van Beethoven (Alemanha/Boon, 1770-1827), a “Pastorale” aqui interpretada pela Bavarian Radio Symphony Orchestra sob a direção de Mariss Jansons (Letônia/Riga, 1943-2019).

Imagem: ABL

Machado de Assis

Era uma mosca azul, azas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão,
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada,
Em certa noite de verão.

E zumbia, e voava, e voava, e zumbia
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua, — melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.

Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
«Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que t’o ensinou?»

Então ella, voando, e revoando, disse:
— «Eu sou a vida, eu sou a flor

«Das graças, o padrão da eterna meninice,
«E mais a gloria, e mais o amor.»

E elle deixou-se estar a contemplal-a, mudo,
E tranquillo, como um faquir,
Como alguem que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem reflectir.

Entre as azas do insecto, a voltear no espaço,
Uma cousa lhe pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço
E viu um rosto, que era o seu.

Era elle, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o collo nú
Um immenso collar de opala, e uma saphyra
Tirada do corpo de Vischnu.

Cem mulheres em flôr, cem nayras superfinas,
Aos pés delle, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
E todo o amor que tem lhe dão.

Mudos, graves, de pé, cem ethiopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios,
Voluptuosamente nus.

Vinha a gloria depois; — quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triumphaes

De trezentas nações, e os parabens unidos
Das coroas occidentaes.

Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em agua que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.

Então elle, estende a mão callosa e tosca,
Affeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.

Quiz vel-a, quis saber a causa do mysterio.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que alli tinha um imperio,
E para casa se partiu.

Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa occupação
Miudamente, como um homem que quizesse
Dissecar a sua illusão.

Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ella,
Rota, baça, nojenta, vil,
Succumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquella
Visão fantastica e subtil.

Hoje, quando elle ahi vae, de aloé e cardamomo
Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu, e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azu
l.

Obra: A Mosca Azul. Em Poesias Completas. H. Garnier Livreiro-Editor, 1901, Rio de Janeiro-Paris. De Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro/Rio de Janeiro, 1839-1908).

A edição me conecta com a ortografia do início do século XX, o que sempre me atrai e permite apreciar in natura a genialidade de Machado de Assis.

Penso em quão curioso me parece o fascínio que indivíduos tão politizados têm pelo poder enquanto, concomitantemente, são críticos refinados no reconhecimento daquilo que Lord Acton eternizou: “Todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe de maneira absoluta”, icônica frase que abre o igualmente icônico capítulo 10 de O caminho da servidão, de Hayek [350], que marcou um tempo em que a descrença nos sistemas políticos começou a se desenvolver em meus pensamentos. Neste aspecto, penso aqui no oitavo capítulo do primeiro volume de O país dos privilégios de Bruno Carazza: “o poder vicia e é por isso que, uma vez picado pela mosca azul, ninguém quer mais larga-lo” [351], em alusão a abertura de A mosca azul: Reflexão sobre o poder, de Frei Beto.

Entre os que conheci encantados com a danada da “mosca azul”, penso no caso de um senhor que, ao ingressar na “vida pública”, a primeira mudança concreta e significativa que realizou foi em si mesmo: negou o ateísmo que abraçara desde o início da juventude e se declarou “católico”, depois se aliou ao grupo político que até então enojava para ter condições de seguir nos degraus do poder, e assim foi se transformando de maneira que ficou irreconhecível quando comparado com as coisas que defendia no início da carreira. Em outra ocasião estava com ZW quando comentávamos acerca do que ouvimos de um professor de direito que tinha acabado de anunciar a aposentadoria da “vida pública”, após alguns mandatos, quando o velho libertário sumarizou: “o doutor encontrou um antídoto para o veneno da mosca azul”; risos.

A picadura da “mosca azul” tem um poder de transformação sobre-humano, não apenas do ponto de vista de quem exerce o poder, mas também sobre os que se submetem incondicionalmente a quem o exerce em troca de proteções e/ou privilégios, e aqui penso no dito popular “eu tenho amigos poderosos!”, não raramente expresso para intimidação. Uma variante desse fascínio clientelista pode ser verificada entre pessoas que se ufanam de líderes de regimes autoritários, o que é um fenômeno comum entre progressistas e os que se consideram “conservadores” e “tementes a Deus” quando desprezam violações em favor da crença que possuem no líder face a ao que entendem sobre os supostos benefícios coletivos.

A insaciabilidade que caracteriza o espírito humano é uma vertente de sedução da “mosca azul”, contudo, entre diversos efeitos, penso que não consigo me lembrar de alguma pessoa conhecida, ao longo dos meus quase 35 anos de vida profissional que após adentrar na política tenha melhorado em aspectos éticos de relacionamento nos negócios, pelo contrário, demonstrou a frequência de alguma conduta controversa, para usar um eufemismo, até então desconhecida. Disseram-se quanto a isso que o poder “muda as pessoas”; talvez, penso, o “poder” seja apenas um incentivador que age em prol de revelar certas linhas do caráter até então ocultas. Assim em parte se explica minha restrição de trabalhar com pessoas politicamente expostas. Afirmo “em parte” porque o problema maior que penso aqui não é o do sujeito “politicamente exposto”, e sim o que o poder em geral provoca no ser humano nos âmbitos estatal e privado quando em elevada concentração em um ou poucos. Fora da política dita “pública” lido com pessoas com algum relativo poder e, no entanto, sendo do meio privado, ao mesmo tempo percebo um delimitador natural de danos que podem causar, nada comparável com o poder exercido por meio de um aparato estatal coletivista social que o sábio Mises tão bem definiu como sendo de “compulsão e coerção”, e que se torna a mais destrutiva instituição quando deslumbrados com a “mosca azul” não promovem o que o mesmo Mises define como “a preservação de relações pacíficas entre os homens” [352].

350. 22/02/2022 23h30

351. Companhia das Letras, 2024, São Paulo, p. 235, e 20/12/2024 21h57

352. Ação Humana, Mises Brasil, 2010, São Paulo, p. 189.

Imagem: LVRJ

Howard Hughes

““No. I don’t think I will try.”.”

Obra: Howard Hughes: his life and madness. Chapter 5. The Senate Investigation. W. W. Norton & Company, 1979, London. De Donald L. Barlett e James B. Steele.

Howard Hughes, o lendário bilionário americano-maluquinho, apaixonado por cinema e aviação, na ocasião investigado pelo Senado em um típico caso de corrupção em “parceria” entre o Estado e a iniciativa privada. O Comitê Especial do Senado analisava contratos da companhia de Hughes para fornecimento de hidroaviões e aviões de foto-reconhecimento durante a Segunda Guerra.

No trecho (p. 189) desta Leitura, Hughes em 6 de agosto de 1947 em resposta ao até então pouco expressivo senador Homer Ferguson sobre se traria novamente o seu colaborador John W. Meyer (p. 193) para a audiência da subcomissão do Comitê de Investigação de Guerra do Senado (p 186). Durante a audiência, Hughes explorou o temperamento do senador. A audiência foi marcada por risadas do público nas respostas de Hughes que pareciam expor ao ridículo a inteligência do senador. Dei risadas na leitura e ao assistir à brilhante interpretação de Leonardo DiCaprio em The Aviator (2004).

O Comitê tinha passado ao controle do Partido Republicano e seus pares estavam “ansiosos por expor os pecados de quase uma geração de governo democrata, e assim a maioria republicana do comitê viu o relacionamento próximo de Hughes com o governo Roosevelt como um provável ponto de partida. Hughes havia recebido mais de US$ 40 milhões dos contribuintes para dois projetos de aeronaves militares, nenhum dos quais estava nem perto de ser concluído ao final da guerra. De fato, nem o hidroavião nem o XF-II haviam voado com sucesso” (p. 183). Graves acusações somadas à suspeita de que John Meyer – objeto das respostas de Hughes no início de sua participação na audiência – teria gasto “US$ 169.661 entretendo oficiais da Força Aérea durante a guerra. O dinheiro fora usado em excursões a casas noturnas e restaurantes de Los Angeles e Nova York, e em festas particulares onde grupos de jovens beldades de Hollywood circulavam livremente entre militares” (p. 185).

A história de Hughes versus Comissão do Senado se entrelaça com a guerra dos lobbies no Congresso. Um projeto de lei em 1946 estabelecia um monopólio a Pan American Airways (Pan Am) cujo autor “foi um senador republicano do Maine, frio e um tanto pomposo, Ralph Owen Brewster, a quem Drew Pearson certa vez chamou de ‘senador fixo’ da Pan Am, contudo, um vigoroso esforço de lobby da TWA (de Hughes) e de outras companhias aéreas, conseguiu bloquear a aprovação”(p. 184).

O episódio ilustra a cultura do lobby, penso, um conceito na política americana para fazer a corrupção ter aspecto de coisa legal. Eis um caso para também ilustrar que os políticos ianques podem ser tão ou mais imundos que os tupiniquins.

Imagem: Vaticano

Papa Paolo VI

“‘De tal modo’, continua Paulo VI, ‘os homens querendo evitar as dificuldades individuais, familiares e sociais que se encontram na observância da lei divina, chegariam a deixar à mercê da intervenção das autoridades públicas o setor mais reservado e pessoal da intimidade conjugal’.”

Obra: Paulo VI: O Santo da Modernidade. XXII. “Não à Pílula”. Paulus, 2016, São Paulo. Tradução de Paulo Ferreira Valério. De Domenico Agasso Jr. (1979) e Andrea Tornielli (Italia/Chioggia, 1964.

1968, tempo em que muitos, penso, acreditavam em revoluções, e no meio do caldeirão global estava a Igreja no pontificado de S. Paulus PP. VI, Paolo VI (1963-1978, Giovanni Battista Montini (Italia/Concesio, 1897-1978).

No trecho (p. 173) desta Leitura, um dos argumentos usados pelo Papa Paulo VI para recusar qualquer defesa do uso da pílula anticoncepcional, sobretudo, voltada ao rebanho católico romano. O pontífice parte do pressuposto de que a liberação do método por meio artificial daria oportunidade para governos imporem controle de natalidade, adentrando em questões privadas, de família.

Escutei o argumento onde suscita que a “proibição” da Igreja à regulação artificial de nascimentos também seria uma forma de intromissão em questões privadas. Perguntei-me se há alguma diferença substancial entre proibir diretamente, por meio de legislação, e declarar “que é absolutamente de excluir, como via legítima para a regulação dos nascimentos, a interrupção direta do processo generativo já iniciado, e, sobretudo, o aborto querido diretamente e procurado, mesmo por razões terapêuticas “[346]. Então pensei: por uma questão de fé, todo católico romano deve obediência ao papa e, na prática, ao declarar ilegítimo o controle artificial, entendo, de certa forma a Igreja exerce determinada influência em seus fiéis, o que pode ser qualificada como intromissão em questão de ordem privada, pois não se trata de uma recomendação, onde fica claro que compete a cada indivíduo, na relação conjugal, decidir, mas isso não tira a importância do alerta de Paulo VI acerca do uso do método artificial para fins invasivos por meio de “políticas públicas” em aparato estatal, o que está relacionado, conforme o Papa desenvolve na Humanae Vitae, com o problema dos poderes públicos participarem de uma forma “sábia”, entenda-se, a contribuir para a solução do problema demográfico com uma “política familiar providente”, em favor da “educação das populações, que respeite a lei moral e a liberdade dos cidadãos” [347]. Aqui, penso, é preciso ter muita fé para crer que governos possam ter tais aptidões. E fé por fé, prefiro a que se direciona a Deus.

Quando a Humanae Vitae foi publicada, Paulo VI talvez estivesse sob certa pressão, eis o que entendo sobre as “circunlocuções sapientes” (p. 171). Havia alguma expectativa que pudesse sair, segundo os autores desta bela obra, alguma “brecha” para um controle artificial visando dar uma resposta a “católicos sinceros, decididos a viver juntos o amor conjugal e o amor de Deus” (p. 171). Contudo, o Papa foi objetivo e rigoroso: são lícitos os métodos terapêuticos voltados para tratamento de doenças que provoquem o efeito de impedir a procriação, além do uso dos períodos infecundos para regular a natalidade, “que derivem ou das condições físicas ou psicológicas dos cônjuges, ou de circunstâncias exteriores” [348].

A recepção à época não foi agradável em muitos ambientes. A começar de bispos e cardeais que alegaram que o convencimento de fiéis a seguirem a encíclica seria “extremamente difícil”, apesar de Humanae Vitae não ser ex-cathedra, penso. Metade do clero de diocese de Washington rejeitou o documento e uma pesquisa entre freiras nos Estados Unidos identificou que 57% admitiram que um controle de natalidade seria necessário. teria sido uma “sexofobia inaceitável” e entre teólogos e sexólogos católicos franceses se escutou que “as palavras do Papa crucificaram-nos”, além da acusação de que o Papa teria criado “um novo caso Galilei”. Até na Bolsa de Nova York ocorreram acusações contra a encíclica em meio a uma interrupção do ciclo de alta das ações de companhias farmacêuticas produtoras de anticoncepcionais (p. 176).

Em Teologia do Corpo, João Paulo II também aborda o tema [349], expandindo-o na linha de Paulo VI. A complexidade é imensa e diz respeito a um debate de crentes e não crentes, como interpretam Agasso Jr. e Tornielli. Penso sobre quantos católicos de fato evitam a pílula, o preservativo ou outro método artificial, em observância ao ensinamento da Igreja. Mas também penso no problema da intromissão estatal no planejamento privado, assim como penso em outros possíveis interesses espúrios, em torno do incentivo à libertinagem sexual com a “garantia” de fecundidades indesejadas, entre os quais pode se situar o do desmantelamento da prática de valores na base da organização familiar a respeito da fidelidade na vida conjugal.

Por fim, o que extraio do legado de Paulo VI na apreciação desta obra é de que a Igreja tem uma independência robusta, fortíssima, quando lida com mudanças profundas que correm pelo tempo. O Papa da Humanae Vitae é o mesmo que confirmou a infalibilidade papal (p. 167), dogma resultante de um longo período de discussões, em torno do ex-cathedra, não raramente mal compreendido até por católicos, quando não distorcido por protestantes. Tal independência que percebo na Igreja, ao longo de seus dois milênios, também me indica que os eleitores no próximo conclave não estão necessariamente fixados em uma agenda política específica, seja para agradar uma maioria, pois não é uma democracia, sobretudo no tocante ao politicamente correto, seja por uma linha mais conservadora, reacionária, ou seja em favor de alguma linha mais progressista em apelo ao legado do Papa Francesco. A Igreja tem seus próprios caminhos.

346. Humanae Vitae. vatican.va, 1968, 14.

347. Ibid., 23.

348. Ibid., 16.

349. 19/09/2023 23h34

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