Imagem: Nobel Prize

Annie Ernaux

“Escrevo essa cena pela primeira vez. Até hoje, me parecia impossível fazer isso, mesmo num diário. Como se fosse uma ação proibida que traria um castigo.”

Obra: A Vergonha. Fósforo, 2022, São Paulo. Tradução de Marília Garcia. De Annie Ernaux (France/(Lillebonne, 1940).

A Vergonha logo prendeu minha atenção pela forma como a vencedora do Nobel de Literatura de 2022, Annie Ernaux, rememora com serenidade o primeiro fato marcante de sua infância, ocorrido em 1952, quando tinha 11 anos de idade:

Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde” (p. 5).

Ela assim abre a descrição da cena da briga dos pais que marca o ponto central de sua obra e me passou a sensação de que fora um ato de quem conseguiu ressignificar: é direta, sem emocionalismo, livre de apelo ao vitimismo, desprovida de ressentimentos, sendo firme na linguagem e precisa no roteiro, contudo sem se lembrar de pormenores e centrada na atmosfera da cena marcante e do pós mais breve (p. 7).

Annie Ernaux narra o que pode ser conhecido por muitos que presenciaram algo do tipo no ambiente familiar, quando então a vida, de alguma forma, seguiu como se nada tivesse ocorrido; após o choque, pai, mãe e filha saíram para andar de bicicleta nos arredores (p. 6). Quando contava para seus namorados, ela percebia o peso de sua experiência mediante a constatação de que não estavam preparados para escutá-la, e quando decidiu escrever sobre a questão, notou que nada terrível lhe sucedeu, além da sensação de que se trata até mesmo de algo banal em muitas famílias (p. 7). o que me faz pensar novamente na ressignificação.

Interessante achei a lembrança de fatos, costumes, valores, assuntos, códigos e regras que regiam os círculos pelos quais estava envolvida (p. 66), e outras coisas típicas do ano em que passou pelo evento tão marcante, dando ao fato a posição de ponto de partida para um fio condutor onde reconta sua vida no tempo em torno. Pensei em quanto também gosto de recordar minha percepção do mundo em anos importantes de minha vida. Isso posto, apesar da referência resignada da psicanálise feita pela escritora (p. 16), quando passei debutante em terapias entre 1997 e 1999, entendi a importância de não ficar preso em ciclos tomados por danos e emoções do passado.

No mais, ter passado pela experiência deixou aquela menininha sob a descoberta da vergonha, penso no sentido de uma percepção de não pertencer mais ao território da “excelência e perfeição” nas aparências da vida social, quando então afirma:

“A pior da vergonha é que achamos que somos os únicos a senti-la” (p. 66).

E como o fato pareceu iniciar uma corrente que dava sentido constrangedor a outras ocorrências desagradáveis na família, nas dificuldades financeiras e nos conflitos entre outros familiares, fazendo com que uma vergonha fosse superada por outra pior a cada evento (p. 68). “A Vergonha é só repetição e acumulação”, sintetiza (p. 79).

O que Annie Ernaux sentiu está guardado, não foi apagado, e ela descreve sem amargura enquanto reconhece que não guarda nada em comum com a menina que presenciou o fato e a fez escrever esta obra (p. 81).

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