Uma leitura ao dia segue pela Graça em novembro com Wolfgang Amadeus Mozart (Áustria/Salzburgo, 1756-1791). Adagio do concerto de clarinete com a poetisa islandesa Arngunnur Árnadóttir, a Orquestra Sinfônica da Islândia e o maestro alemão Cornelius Meister (1980).

Imagem: Wikipedia

(David Bohrer – The White House)

Khaled Hosseini

“Quando você mata um homem, está roubando uma vida […] quando você mente, está roubando de alguém o direito de saber a verdade. Quando trapaceia, está roubando o direito à justiça.”

Obra: O caçador de pipas. Três. Globo Livros, 2021, Rio de Janeiro. Tradução de Cláudio Carina. De Khaled Hosseini (Afeganistão/Kabul, 1965).

Baba, que figura! Resolveu ter um conversa de “homem para homem” sobre a educação islâmica que Amir começara a receber de um mulá, na quinta série, para que não confundisse o que aprendia na escola com uma educação de verdade. Apesar de uma relação tão formal e um tanto distante de um afeto com o filho, Baba se revela a desconstruir estereótipos do homem oriental de maneira que me fez lembrar até do orientalismo, de Edward Said.

Temia que o Afeganistão caísse nas mãos dos religiosos, em meio a uma conversa sobre mulás que recitam versos do Corão escritos em uma língua que as vezes não entendem enquanto vivem de destilar regras. Pecado mesmo, ensinou baba, só há um: roubar, o resto é derivação… roubar vai muito além de posses… roubar a vida, a verdade, a justiça, a dignidade, o respeito, enfim, baba é um homem de negócios, obstinado enquanto pensante livre em um ambiente pesado com ideias sobre disciplina que flertam com hipocrisia e legalismo religioso; se há um Deus por aí, baba espera que tenha coisas mais importantes para se preocupar do que com bebidas e regras alimentares. A história de como construiu o orfanato ilustra uma materialização de sua irreverência.

Romance extraordinário por entrelaçar um drama pessoal enquanto me remeteu a acontecimentos no Afeganistão, da invasão soviética ao Talibã e, neste ponto, uma realização de um temor de baba.

29/11/2023 21h35

Imagem: France 24

Henry Kissinger

“As a historian, you have to be conscious of the fact that every civilization that has ever existed has ultimately collapsed. History is a tale of efforts that failed, of aspirations that weren’t realized, of wishes that were fulfilled and then turned out to be different from what one expected.”

Obra: Kissinger, a biography. THIRTY-ONE EXIT. Not with a Bang but a Whimper. Simon & Schuster eBook. De Walter Isaacson (EUA/Luisiana/Nova Orleans, 1952).

O falecimento de Henry Alfred Kissinger (Alemanha/Baviera/Fürth, 1923-2023) me fez lembrar um entusiasta da potência americana que conheci nos anos 1990, o tipo ingênuo (para usar um eufemismo) que acredita que na atividade política há um lado certo na história. Kissinger foi, à mon avis, o diplomata que melhor sintetizou a essência da política externa americana no auge da Guerra Fria, onde a ilustrou como uma tensão de uma “Atenas eficaz” (as forças da liberdade) diante de uma “Esparta vigorosa e disciplinada” (a União Soviética, p. 782), penso.

Personalidade inevitavelmente controversa; exaltada por uns, na Ásia por tiranos, comunistas e magnatas, agraciado com o conturbado Nobel da Paz de 1973 pelo cessar fogo no Vietnã, enquanto referência na América do Sul em ditaduras militares, fora também figura demonizada por tantos. Um judeu, semelhantemente a tantos que se tornaram icônicos, que teve que deixar a Alemanha por conta do nazismo, construiu uma extraordinária carreira na diplomacia, marcada por articulações que aproximaram os EUA da China para corroborar na abertura econômica do país que nos dias atuais, dizem, ainda é “comunista”.

Pragmatismo não passa de um clichê para começar a entender o pensamento de Kissinger; o biógrafo resume que para entendê-lo é necessário compreender os quatro Europeus que o fascinaram: Spengler, cujo sombrio determinismo histórico “o infectou emocionalmente”, mas o repeliu intelectualmente; Kant, cujo conceito de liberdade moral adotou como base para a política pela filosofia; Metternich, o ministro austríaco que montou uma base para o rquilíbrio europeu através de manobras diplomáticas hábeis; e Bismarck, o unificador alemão, cuja criatividade lhe permitiu ser ao mesmo tempo um conservador e um revolucionário (p. 72). Ele teve uma visão, entendo, muito realista (alguns diriam, pessimista) da história (trecho desta Leitura) e dos negócios políticos; à semelhança de Metternich, via o seu papel de suporte a uma potência mundial em desgaste, e torno ao biografo, “que só poderia ser mantida através de um sofisticado trabalho diplomático” (p. 781). Entendo “sofisticado trabalho diplomático”, jogar em um tabuleiro onde só termina cada partida quando sua “potência em desgaste” vence.

28/11/2023 23h01

Imagem: Wikipedia

Rashid Hussein

“I am against boys becoming
heroes at ten
Against the tree flowering explosives
Against branches becoming scaffolds
Against the rose-beds turning to trenches
And yet
When fire cremates my friends
my youth
and country
How can I
Stop a poem from becoming a gun?”

Obra: Opposition. Em The Palestinian People: a history. Havard University Press, 2003, London. Poema de Rashid Hussein Mahmoud (Palestina/Mandato Britânico/Musmus, 1936-1977).

The Palestinian People: a history, de Baruch Kimmerling (Romênia/Turda, 1939-2007) e Joel S. Migdal (EUA/Nova Jersey).

Um guerrilheiro do HAMAS com um fuzil acena para uma refém, que entra em uma ambulância da Cruz Vermelha; até pareceu uma despedida de amigos…

Dos horrores, nada mais me devasta do que as crianças de Gaza e Israel órfãs…

O poeta Rashid Hussein clama, “sou contra os meninos se tornarem heróis, contra canteiros de rosas transformados em trincheiras e ainda quando o fogo crema meus amigos, minha juventude e meu país. Como posso Impedir que um poema se torne uma arma?”

Das tribos cananeias aos hebreus; persas, sírios, judeus e romanos, gerações que se digladiaram… No vazio de poder do Império falido, árabes se estabeleceram e a Terra Santa seguiu a se encharcar de sangue, dos muçulmanos aos cristãos, de sinagogas e mesquitas queimadas por cruzados que depois foram à missa rezar, dos otomanos aos ingleses, e de sionistas que fizeram dos palestinos, refugiados; capítulo secular em milênios de um livro de conflitos sem fim.

Apenas mais um cessar fogo…

Trágica ironia…

Será a paz no centro da fé uma utopia?

27/11/2023 00h02

Imagem: “G. VANNUCCI” e Córdobapedia

Juan Mateos

Imagem: 21

Fernando Camacho

“Se Jesus respondesse que era lícito. ficaria desprestigiado diante do povo, impregnado de sentimentos fortemente nacionalistas.”

Obra: Jesus e a sociedade de seu tempo. Capítulo 5: O Conflito. Paulus, 2003, São Paulo. Tradução de I. F. L. Ferreira. De Juan Mateos (Espanha/Cidade autônoma de Ceuta, 1917-2003) e Fernando Camacho Acosta (Espanha/Cidade autônoma de Melilha, 1946-2018).

Os autores se referem a capciosa pergunta feita a Jesus por líderes religiosos sobre se era lícito pagar tributo ao césar romano (Mc 12, 13-17). Se Jesus respondesse sim, sofreria desgaste com o povo dado ao “sionismo” da época; se respondesse não, entraria em choque com autoridades romanas e seria preso.

Penso que os líderes judeus que provocaram Jesus se diziam favoráveis a retomada judaica sob poderio de Roma, mas tomavam proveito dos benefícios que recebiam do Império, face às concessões romanas aos líderes locais como parte de uma política para mantê-los sob controle, algo que verifiquei em Storia di Roma, de Theodor Mommsen, ou seja, lideranças judaicas eram demagógicas pois pertenciam a uma elite e gozavam de privilégios enquanto exploravam a boa fé do povo se passando por nacionalistas; eis o contexto em que Jesus foi envolvido.

Mateos e Camacho então explicam que a resposta de Jesus “Devolvei ao césar o que é de césar e a Deus o que é de Deus”, foi desconcertante (p. 113): “A primeira condição para a independência seria renunciar à vantagem econômica que tiram do domínio romano (‘Devolvei ao césar o que é do césar’), e em decorrência, ser fiéis a Deus restituindo-lhe o povo que é seu (‘e a Deus o que é de Deus’)”.

Fica evidente o conflito: de um lado Jesus de Nazaré a denunciar a demagogia que está no outro lado e explora o povo, cujo sistema legal político-religioso é usado em conluio com o que os autores apontam como “interesses dos círculos dirigentes” (p. 111).

26/11/2023 12h27

Imagem: Nobel Prize

Yasser Arafat

“Isn’t it better to die bringing down your enemy than to await a slow, miserable death rotting in a tent in the desert?”

Obra: Yasir Arafat : a political biography. 1. An Most Unlikely Leader. Oxford University Press, 2003, New York. De Barry Rubin (EUA/Washington, 1950-2014) e Judith Colp Rubin.

Argumento em 1968 de Yasser Arafat (Egito/Cairo, 1929-2004) nos tempos de jovem revolucionário, depois de fundar a Al Fatah (1965, Preface to the Paperback Edition). Combatente com desprezo por políticos e negociações; a Palestina, assim pensava, só poderia ser recuperada “com sangue e ferro; e sangue e ferro não tem nada a ver com filosofias e teorias” (p. 27, nota p. 292).

Do Arafat combatente em 1948, ao líder terrorista dos anos 1960 com afirmações contundentes sobre Israel, ao Arafat ambíguo, pode-se conferir uma longa e complexa jornada. Ele foi de quem “fazia do terrorismo a sua principal tática” (p. 40) para um político negociador, cujos esforços foram reconhecidos com o Nobel da Paz de 1994 em meio a ambiguidades quando se referia frequentemente ao PNC de 1974 como estratégia para alcançar o Acordo de Oslo (p. 147).

Quando defendia terrorismo fascinava esquerdistas revolucionários pelo mundo, mas desapontou a muitos quando sinalizou por negociação. A pobreza e o idealismo no mundo político pertencem aos românticos, são os instrumentos na esquerda e na direta extremistas, os preciosos “idiotas úteis” dos populistas, dizia meu colega judeu-ateu nos anos 1990… Creio que seja verdade, mas alguém desavisado pode acreditar facilmente que líderes radicais são idealistas de causas nobres que vivem na simplicidade de seus comandados; labutam na defesa de oprimidos e que só lhes resta lutar contra um opressor muito poderoso em uma batalha de “tudo ou nada”. O problema da Palestina se torna ainda mais complexo nas ilusões de tais ingênuos apaixonados que não enxergam o quanto esses mesmos “heróis” se tornam abastados política e economicamente e exploram a dramaticidade de problemas políticos na educação coletivista que receberam e por ela confundem os reais interesses de quem manda e de quem executa. De líderes da Al Fatah do jovem Arafat, aos do HAMAS e do Hezbollah, do Oriente Médio à Ásia e à América Latina, muitos que derramam sangue inocente e imensurável, por arrogo de “justiça social”, para trocar uma opressão alheia pelas suas, parecem ter um patrimônio e um glamour proporcional às mortes que promoveram e muitos hoje até podem ser vistos como bons velhinhos mais amados que o Papai Noel. Assim também penso sobre quantos da alta cúpula soviética se tornaram oligarcas na atual Rússia “capitalista” do nazi-fascismo de Putin e nas regalias de membros da cúpula dos partidos comunistas cubano, chinês e norte-coreano às custas de povos subjugados na miséria.

O jovem Arafat é um tipo na mente configurada em ideais revolucionários onde prevalece um relativismo dos fins que justificam os meios a promover empatia por assassinos, guerrilheiros, sequestradores e terroristas. Imagino então que o Arafat jovem comemoraria as atrocidades do HAMAS em 7 de outubro em kibutzim de Israel, enquanto o senhor Arafat que recebeu o Nobel lamentaria politicamente; não sei se também de forma genuína, visto que essa qualidade não é bem vista nesse ramo.

A reivindicação dos palestinos é justíssima; o custo do Estado de Israel foi imenso para os que foram violados com remoções em massa em diversos danos nessa criação, mas só mesmo uma mente doentia revolucionária para acreditar que os problemas serão superados com os “jovens Arafats” de hoje.

25/11/2023 19h37

Imagem: Vaticano

Benedictus XVI

“Mas no fim decide-se por não seguir Jesus. Ele permanece — como ele mesmo diz — no “Israel eterno” (p. 141).”

Obra: Jesus de Nazaré. Capítulo 4 – O Sermão da Montanha. 2 A TORA DO MESSIAS. Editora Planeta, 2007, São Paulo. Tradução José Jacinto Ferreira de Farias, SCJ. De Joseph Aloisius Ratzinger (Alemanha/Marktl, 1927-2022), Benedictus XVI (2005-2013).

Impressiona-me a lucidez de Bento XVI toda vez que revisito uma obra dele.

Quanto ao trecho, refere-se a Jacob Neusner (1932-2016) e à obra Um rabino fala com Jesus. O então papa Bento XVI conta a forma como o professor judeu universitário Neusner, que cresceu entre cristãos católicos e evangélicos, trabalha o diálogo com os ensinamentos do Sermão da Montanha; “ele se coloca entre a multidão dos seus discípulos no ‘monte’ da Galiléia. Ele escuta Jesus, compara a sua palavra com as palavras do Antigo Testamento e com as tradições rabínicas, tal como se encontram guardadas na Mischna e no Talmude: ele vê nestas obras tradições orais do início dos tempos que lhe oferecem a chave de interpretação para a Tora” (p. 102). Interage com os ditos de forma respeitosa e se sente tocado pela mensagem de Jesus, mas também “inquieto sobre a irreconciliabilidade última que encontra no núcleo do Sermão da Montanha” (p. 102). Do que se trata? Explica Bento XVI que Neusner entende que Jesus quer ensinar a não seguir mandamentos fundamentais na fé judaica (p. 103).

“Ele faz isto a partir de três mandamentos fundamentais, cujo tratamento por Jesus ele investiga: a partir do Quarto mandamento — o mandamento sobre o amor aos pais; do Terceiro mandamento — o mandamento acerca da santificação do sábado; e, finalmente, a partir do mandamento da santidade […]” (p. 103).

O papa discorre então acerca de “O conflito sobre o sábado” (pp 104-109) e “O Quarto mandamento: a família, o povo e a comunidade dos discípulos de Jesus” (pp 109-114), define o diálogo de Neusner como de “grande respeito” e que ao destacar a “dureza das diferenças”, enquanto as acolhe, “despede-se numa separação que não conhece nenhum ódio, mas no rigor da verdade mantém sempre presente a força reconciliadora do amor” (p. 103).

Neste capítulo de Jesus de Nazaré, ao pontuar de forma tão profunda e alegante sobre as respeitosas conclusões de Neusner, Bento XVI acabou também por deixar um notável exemplo de respeito com diferenças de pensamento. De fato, apesar de muitos religiosos indicarem o contrário, o ódio não faz parte dos genuínos recursos da fé cristã, e acredito que o mesmo ocorra na judaica.

24/11/2023 21h28

Imagem: EBC

Henry Sobel

[…] É uma pena que as divergências posteriores entre Igreja e Sinagoga tenham resultado num processo de obliteração das origens judaicas do cristianismo.”

Obra: Jesus e o Judaísmo (artigo). Em Jesus de Nazaré. Profeta da liberdade e da esperança. Unisinos, 1999, São Leopoldo. De Henry Isaac Sobel (Portugal/Lisboa, 1944-2019)

Mais um episódio da série Lembranças da biblioteca (2006).

Quando eu era menino, olhava para Sobel pela TV e achava que todo judeu era assim. Fascinava-me sua forma de falar, o sotaque americano e, sobretudo, a inteligência que prendia minha atenção. Estava a conferir também a biografia Henry Sobel – o rabino do Brasil,  EX LIBRIS, 2022.

Na época do seminário pude entender, de forma menos rasa, os ditos de Jesus de Nazaré como os de um judeu praticante (no artigo se aponta bem essa verdade) que em certo momento da vida de rabi, penso, versou por uma interpretação própria de uma determinada linha da fé judaica, ligada aos fariseus. Jesus foi um destaque em um ambiente de conflito teológico entre judeus.

Naqueles tempos também buscava conhecer melhor o problema do antissemitismo e o trecho desta Leitura (pp. 89-104) foi marcante. Incomodava-me ver um povo tão perseguido por séculos, inclusive por cristãos. Não entendia as brincadeiras de mau gosto feitas com um colega judeu em sala de aula.

Por que há tanto ódio contra judeus? Há muitos fatores, entre os quais a tensão citada pelo rabino Sobel. Penso aqui no que aprendi no seminário sobre o processo que fez do judaísmo de Jesus um movimento que se transformou em uma seita, passou por revisões (sobretudo pela interpretação de São Paulo) e depois alcançou o status de religião de Estado (Império Romano), com os vícios do poder, em meio a uma concepção de tradições em narrativas dos Evangelhos, onde se entende (erroneamente) que judeus tiveram a responsabilidade no juízo que condenou e executou a pena capital sobre Jesus. O erro de culpar os judeus sobre a morte de Jesus se agrega a outro ainda mais absurdo, o qual chamo de “coletivização universal da responsabilidade”, que se dá como se todo judeu tivesse que carregar a culpa pelo suposto erro de alguns líderes religiosos judeus que estavam submetidos à governança do Império Romano; é como se um povo inteiro fosse culpado por determinados erros de seus governantes em um certo ponto da história e o pior: essa culpa se estende por séculos, vai-se ao longo de toda sua existência. Isso está longe de explicar as causas do antissemitismo, mas é um ingrediente religioso que o mundo secular, em especial o da política, toma proveito para disseminar seus mecanismos de interesses manipulativos.

Um “cristão” se torna antítese de Jesus e da essência do Evangelho quando se deixa dominar pelo ódio, pela violência, pela espada de Pedro perante Malcon, ou tentando pagar com a mesma moeda o apedrejamento de Santo Estevão, e no caso do que atinge a judeus, em relação a quem possui outra visão de fé sobre as escrituras que, diga-se de passagem, são judaicas.

É mesmo uma pena que muitos cristãos não saibam ou não foram educados para compreenderem melhor as raízes judaicas de sua fé o que, entendo, é um passo inicial para a conquista de uma fraterna relação entre os credos; a fé cristã é filha de uma fé judaica, e as diferenças de interpretação da Lei não justificam a falta de interesse por uma sala comum, que também acolhe muçulmanos, onde se poderia conversar como irmãos crentes no mesmo Deus.

23/11/2023 23h14

Imagem: The Palestinian Return Centre

Nur Masalha

“The growing Palestinian resistance to Zionist aims, culminating in the 1936-39 Arab rebellion, was met by redoubled Zionist determination to implement the fundamental doctrine of separation between the Yishuv and Palestinian Arabs.”

Obra: Expulsion of the Palestinians. The Concept of “Transfer” in Zionist Political Thought 1882-1948. The General Approach toward the Palestinians in the Mandatory Period. Institute for Palestine Studies, 1992, Washinton D.C. De Nur ad-Din Masalha (Israel/Galileia, 1957).

Políticos ingleses costumam ser discretos quando falam sobre os problemas na Palestina, e para quem tiver a curiosidade, certamente o conhecimento sobre o que fizeram quando estavam à frente do “mandato” ajuda a entender um comportamento de quem passou pela região e deixou um imenso rastro de problemas enquanto fingem para o mundo uma seriedade como se nada tivessem a ver com isso; fato é que, após insuflarem os árabes contra o decadente Império Otomano na Primeira Guerra, a formalização da gestão britânica (1923) acabou por servir aos interesses sionistas.

Nada dava para ocupar uma terra do tamanho da palestina com 90% de não judeus apenas com base na aquisição imobiliária. Quando a Declaração Balfour foi emitida (1917), os judeus constituíam cerca de 10% da população da Palestina, e possuíam aproximadamente 2% das terras (p. 14), e assim o trabalho “governamental” britânico para colaborar com o sionismo acabou por ser estratégico desde a formalização do mandato enquanto a ocupação judaica tratava a segurança jurídica via JNF com terras inalienáveis ​​e o trabalho não-judeu proibido (p. 24) em propriedades adquiridas.

O historiador palestino aponta que a crescente resistência palestiniana aos propósitos sionistas culminou na revolta árabe de 1936-39, penso, onde as tropas inglesas adiantaram parte do serviço de extermínio ou remoção física dos indesejados. Torno ao autor: a revolta também marcou a típica reação firme sionista “redobrada em implementar a doutrina fundamental da separação entre o Yishuv e os árabes palestinianos” (p. 24).

22/11/2023 22h49

Imagem: Deutsches Ärzteblatt

Sigmund Freud

“[…] se Moisés era um egípcio e se transmitiu aos judeus sua religião, esta foi a de Akhenaton, a religião de Aton.”

Obra: Sigmund Freud. Obras Completas. Vol 19. MOISÉS E O MONOTEÍSMO: TRÊS ENSAIOS (1939 [1934-1938]) II. SE MOISÉS ERA UM EGÍPCIO… Cia das Letras, 2018, São Paulo. Tradução Paulo César de Souza. De Sigmund Freud (Tchéquia/Příbor, 1856-1939).

Meu colega judeu costumava dizer que seu ateísmo “só Freud explica” e apenas entendi a ironia quatro anos depois, na biblioteca do seminário. Moisés faz parte da “epopeia hebraica, é um belo mito”, dizia com sobriedade.

Ao apreciar este volume de ensaios do psicanalista judeu, e também ateu, mais famoso de todos os tempos, lembrei-me de como me foi apresentado o monoteísmo hebreu pela fé evangélica: como uma novidade no meio de uma imensidão de credos politeístas, claro, concepção baseada na narrativa do povo eleito, Israel. Causou-me surpresa então, em 2005, conhecer a possibilidade do monoteísmo judaico ter sido uma adaptação, e ao me deparar com esta obra, mais provocações, desta vez sobre a curiosa religião de Akhenaton, que promoveu um sistema de crença monoteísta revolucionário a combater a religião politeísta de massa, baseada em Osíris (deus dos mortos), disso meu colega ateu tinha apontado, só não entrara em detalhes como pode ter se derivado na religião judaica o “não admitir o Além e a vida após a morte”, o que aponta Freud, além de que a circuncisão também teria origem no Egito a citar Heródoto, confirmado “por achados feitos nas múmias e também por representações nas paredes dos túmulos” (p. 24).

O Êxodo pode ter sido pacífico, cogita Freud, penso assim em levas de enfadados no desfecho da religião monoteísta de Aton, então desprezada no Egito; Moisés seria então um idealista da nobreza, frustrado com o fim de um sistema de ruptura, que deixou o Egito para ter seu próprio povo em Canaã (p. 25); nesse processo teria sido transformado em mito para dar aos seus seguidores, os hebreus, a referência que representava para uma desvinculação com o Egito e uma “autenticidade”, contrariando as narrativas mosaicas.

21/11/2023 22h46

Imagem: Columbia University

Rashid Khalidi

“[…] what delimits the modern history of the Palestinian people from that of the Israelis, who over the past half century have come to dominate the country both peoples claim?”

Obra: Palestinian Identity. CHAPTER 2 Contrasting Narratives of Palestinian Identity. Columbia University Press, 2010, New York. De Rashid Ismail Khalidi (EUA/Nova Iork, 1948).

O professor palestino-americano de estudos árabes modernos da Columbia University abre o capítulo com a pergunta básica: Quais os limites da Palestina? E segue: Onde estão os limites dos povos que reivindicam o mesmo território? Outra pergunta para convidar o leitor ao tema central do livro:

O que na identidade palestina é específico e único?

Questão que entendi ser fundamental para categorizar as condições e avaliar melhor os dilemas entre os povos. Lembra o sociólogo britânico-jamaicano Stuart Hall (1932-2014) e outros que argumentaram que “a identidade é parcialmente a relação entre você e o Outro” (p. 9). Argumenta que a construção da identidade envolve opostos e ‘outros’ cuja atualidade está sempre sujeita à interpretação contínua e a reinterpretação de suas diferenças em relação ao ‘nós’, e sendo clara a relação entre a definição de si mesmo e do outro, torna-se uma característica marcante de muitos povos no Médio Oriente, e pelo mundo, com identidades transnacionais (sejam religiosas ou nativas), patriotismo local e afiliações de família e clã competindo pela lealdade.

Afirma o professor que “a atração de lealdades concorrentes tem sido consideravelmente mais forte para os palestinos do que para outros, de modo que estes múltiplos focos de identidade são traços característicos da sua história”, o que se relaciona com o fato de que, ao contrário da maioria dos outros povos do Médio Oriente, os palestinianos ou palestinos nunca alcançaram qualquer forma de independência nacional na sua própria pátria. Apesar de terem obtido algum sucesso na afirmação da sua identidade nacional dentro e fora da Palestina, os palestinos falharam consistentemente ao longo dos anos em criar para para si próprios um espaço de soberania. O “estado dentro do estado” palestino no Líbano (final da década de 1960 até 1982), em última análise “não foi uma experiência feliz para nenhum dos envolvidos”, aponta, pois dependia do suporte libanês que passou a vê-los como um fardo. Outra falha se dá na Autoridade Palestina na Cisjordânia e na Faixa de Gaza onde é “explicitamente negada a soberania no acordos de 1993 e 1995 entre a OLP e Israel ” (p. 10).

O professor faz uma interessante exposição de traços dessa identidade palestina com as questões sobre a soberania face a elementos políticos, históricos e religiosos que indicam contrastes das narrativas e o significado da identidade palestina, o que denota como o tema do conflito é complexo e, à mon avis, vai muito além da disputa territorial.

20/11/2023 00h06

Imagem: Mises Brasil

Ludwig von Mises

“Um grupo de pressão é um grupo de pessoas desejoso de obter um privilégio à custa do restante da nação. Esse privilégio pode consistir numa tarifa sobre importações competitivas, pode consistir em leis que impeçam a concorrência de outros. Seja como for, confere aos membros de um grupo uma posição especial. Dá-lhes algo que é negado, ou deve ser negado – segundo os desígnios do grupo de pressão – a outros grupos.”

Obra: As Seis Lições. Capítulo VI. Sexta Lição. 1 Política e Ideias. 7a. edição, Instituto Ludwig von Mises, 2009, São Paulo. Tradução de Maria Luiza Borges. De Ludwig Heinrich Edler von Mises (Áustria-Hungria/Leópolis, 1881-1973).

Uma pequena pausa em minhas leituras sobre Israel-Palestina… A eleição de Javier Milei neste domingo na Argentina me fez pensar nesta obra de Mises (também judeu).

Na Leitura de 27/05/2022 22h06, escrevi:

A história desse livro se dá a partir de uma série de conferências de Mises em 1958, na Argentina. Margit von Mises, esposa do fundador da Escola Austríaca, encontrou o manuscrito datilografado e os transformou em um livro indispensável.

Milei se declara “liberal libertário” e achei belo um dos seus amigos caninos se chamar Murray Rothbard [182], uma homenagem ao principal pensador da ala libertária da Escola Austríaca (EA). As ligações de Rothbard com Mises são profundas; Mises foi seu grande orientador desde os anos 1950. Porém, Mises não foi libertário; o pensador responsável pela minha mudança de mentalidade em 2007, a partir da obra Human Action, está mais próximo aos parâmetros de um liberal clássico em economia.

O presidente eleito da Argentina tem defendido ideias consideradas “ultra liberais”, posicionando-se pela extinção de grandes arranjos intervencionistas, entre os quais se destaca sua suposta intenção de acabar com o Banco Central. É dissonante qualquer associação dele ao “fascismo”, uma vez que um dos pilares fascistas reside no intervencionismo e outro no “capitalismo de compadres” ou “de estado”, o que também não combina com o que Milei tem apontado quanto a esses arranjos como grandes fontes de privilégios que prejudicam o povo, sobretudo os mais pobres. Um dia desses escutei, em um programa de política, um comentário de que Milei representa a “extrema-direita” (termo não raramente mal aplicado) que se apropriou recentemente de certos valores da esquerda relacionados ao combate contra privilegiados nas instituições estatais. Parece que se um movimento político não for reconhecido pela grande mídia como de esquerda se torna forte candidato ao rótulo de “extrema direita”. Outro detalhe que deve incomodar os dissonantes do progressismo é que Milei venceu um candidato do peronismo, com uma forte tradição de intervencionismo na Argentina que é o que se tem por lá de mais próximo de um (neo) Nacional Socialismo.

A EA – e não apenas esta escola entre as de linha de pensamento econômico liberal – sendo notadamente forte referência para Milei, tem tradição em estudar profundamente o intervencionismo estatal e seus nocivos efeitos na economia, em especial na concessão de privilégios a grupos de pressão, como se verifica no trecho selecionado desta Leitura (p. 93); não se trata, portanto, de uma pauta exclusiva da esquerda que, por sinal, notabiliza-se no mundo político exatamente pelo contrário, quando seus governos atuam na distribuição de privilégios onde, não raramente, nos “grupos de pressão” residem os mais ricos (e neste toma lá, dá cá, não é por acaso grandes empresários e investidores costumam apoiar políticos de esquerda). Ainda sobre As Seis Lições, nas palestras que o sábio Mises deu na Argentina, ele também falou um pouco sobre o Banco Central, como essa instituição tão defendida, inclusive por muitos “liberais”, costuma causar inflação (pp. 67-68), o que novamente, em certo sentido, conecta a EA com ideias defendidas pelo presidente argentino eleito.

Apesar de me reconhecer como “austrolibertário” (tenho reservas ao termo “anarcocapitalista”), vejo com enorme desconfiança todo sujeito que entra na política e se declara “liberal”, e o desconfiômetro aumenta quando se diz “libertário”, isso posto devido ao fato de que a Realpolitik se impõe pelo pragmatismo que é bem diferente dos discursos, sobretudo os de palanque eleitoral, no entanto, prefiro aguardar para ver como se sairá o assim auto declarado “liberal libertário” Javier Milei à frente do governo dos hermanos.

No mais, entre tantas coisas, um genuíno libertário da EA pode ser identificado em atitudes em favor da propriedade privada e da liberdade econômica mediante recusa a toda forma de intervenção política, seja de natureza econômica ou cultural; um libertário se notabilizará pela defesa de que indivíduos e organizações (arranjos coletivos baseados em livre associação) possam vivenciar seus valores, suas crenças e tradições sem serem importunados (uma forma de conservadorismo), desde que não provoquem danos aos outros (não agressão). Sendo assim, um libertário naturalmente será oposição a todo arranjo de poder baseado em compulsão e coerção, sendo o tipo estatal mais evidente, de governos públicos onde são impostas decisões que impedem o exercício dessa liberdade com responsabilidade, algo que só pode ser cultivado por indivíduos que cooperam socialmente em mútua concordância.

182. Javier Milei, site oficial.

19/11/2023 11h43

Imagem: Recanto do Poeta

Rumi

“I belong to the beloved, have seen the two
worlds as one and that one call to and know,

first, last, outer, inner, only that
breath breathing human being.”

Obra: Only Breath. The Essential Rumi. Castle Books, 1997, New Jersey. Traduzido para o inglês por Coleman Barks. De Maulana Jalaladim Maomé (Império Corásmio/Vakhsh, 1207-1273).

O Silêncio (inspirado em Only Breath de Rumi) – por pastor Abdoral

Há um momento
em que somente
o Senhor
pode estar comigo.

Humanamente ninguém…
Nem cristão, nem judeu,
nem muçulmano, nem hindu,
Budista, Sufi ou Zen.

Não há religião, cultura
filosofia, ciência,
nem tempo,
não há ocidente
nem oriente,
oceano, terra,
tudo se esvazia.

Findam-se as histórias,
encerram-se as palavras,
mitos, contos,
lendas, sabedorias,
tudo desaba,
não há vestígios,
sem corpo, nem alma.

Ele resplandece…
Chamado sou
pelo meu nome.
Sinto seu abraço…
Respiro com Ele…
E em minha humanidade,
na voz do silêncio
Ele me refaz.

18/11/2023 13h55

Imagem: flickr oficial

Olavo de Carvalho

“Ou elas aprendem a se amar umas às outros, a se compreender e a maravilhar-se na unidade da sua diversidade, ou então o Estado vai reduzi-las a relíquias sem serventia.”

Obra: O Imbecil Coletivo. Cirquinho miserável. Editora Record, 2018, São Paulo, 3a. edição. De Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (Brasil/São Paulo/Campinas, 1947-2022).

Contexto está em uma pergunta feita a Olavo de Carvalho em 1997, sobre qual a perspectiva dele para as grandes religiões tradicionais no próximo milênio, em entrevista ao Diário de Pernambuco em 2 de março daquele ano.

Um teste interessante: citar esta passagem da resposta sem informar o autor e pedir ao interlocutor, caso a desconheça, para sugerir a autoria. Olavo certamente não será lembrado. Certamente haverá dificuldade pela sofisticação de um pensamento que traz à baila a importância do diálogo ecumênico, algo simpático a um algum progressista moderado, por sinal, bucha de canhão na dialética política, enquanto que a parte final remete a uma crítica ao intervencionismo em torno do Estado como uma ameaça às grandes religiões.

Às vezes aprecio citar pensamentos de Olavo para alguns di sinistra e percebo que o resultado vai de um espanto (pela revelação do autor) a um “duvido que ele tenha dito isso, onde leu essa fake?”. Fato comum pelo desconhecimento de obras do autor, o que desqualifica quem assim se apresenta com olhar crítico, pois como emitir juízo sobre algo sem verdadeiramente conhecê-lo em uma razoável profundidade? Em outro caso, desapontei um progressista que me viu inicialmente como alguém com uma “boa formação humanista”, mas que caiu por terra ao ler meus comentários sobre pensamentos de Olavo. Claro, uma “boa” mente humanista vai ler obras “bem” recomendadas pela patrulha ideológica predominante. Então, há o desapontamento na descoberta de que sou um leitor de Olavo, e quando percebo tal coisa, noto o valor de uma boa risada por dentro, dada a sua natureza que impossibilita a revelação e, por conseguinte, o exercício “salutar” da tal patrulha. Dou graças a Deus por não conseguirem ler pensamentos…

Torno ao trecho desta Leitura e começo pelo tema do Estado como grande escopo do domínio e manipulação para anulação de valores tradicionais, algo marcante no pensamento de Olavo. Penso que O Jardim das Aflições seja uma peça riquíssima nessa reflexão. Na resposta, Olavo externa sua felicidade ao ver o papa João Paulo II, o qual define como “o homem mais assombroso deste século” (p. 393), chamar muçulmanos e budistas de irmãos (certamente, aquele amigo progressista lacrador que gosta de chamá-lo de “guru dos B” ficará ainda mais confuso com tamanha afirmação).

Olavo também lembra os esforços por uma fraternidade inter-religiosa por parte do rabino Henry Isaac Sobel (1944-2019) em São Paulo, e cita uma cena que testemunhou protagonizada por um xeque egípcio que ao ver uma moça adentrar na mesquita de São Paulo, teceu-lhe elogio “por ser cristã num mundo materialista” (p. 394). Por fim, lembra o filósofo italiano Enzo Paci (1911-1976), cuja advertência recai sobre o que a burocracia que domina o planeta pode fazer com os religiosos que não conseguem se entender com suas diferenças: vai explorar as divergências para assá-los como uma grelha (p. 394).

Então, sobre a questão palestina, embora a religião não seja o único ponto de debate, entendo que um fraterno diálogo inter-religioso é uma das chaves para a construção de uma paz sustentável para a região. Os radicalismos, seja muçulmano, judaico ou cristão, não podem ser usados como pretexto para inviabilizar essa discussão.

Por que leio Olavo? Porque foi um filósofo, e dos bons. Nada tem a ver com afinidade política ou religiosa.

17/11/2023 20h24

Imagem: CNN

Salman Rushdie

“Então me diga por que o seu Deus gosta tanto de destruir os inocentes”,

Osman rugiu. “Do que ele tem medo? Ele é tão inseguro que precisa que a gente morra para provar o nosso amor?”

Obra: Os versos satânicos. VIII A ABERTURA DO MAR DA ARÁBIA. Companhia das Letras, 1998, São Paulo. Tradução Misael H. Dursan. De Ahmed Salman Rushdie (Índia/Bombaim, 1947).

Confissões de um jovem leitor na biblioteca:

Que deus é esse que planta o medo pelo terror de uma vida condenada ao sofrimento entre humildes e iletrados aldeões (p. 396)?

Um deus que faz da vulnerabilidade um instrumento de dominação (p. 397).

Um deus inseguro que humilha, destroça e mata para ser “amado”.

Qual é a diferença entre os anunciadores desse deus e os ditadores que atravessaram a política?

Esse romance despertou a ira do aiatolá Ruhollah Khomeini (1902-1989) pelo anuncio da fatwa um ano após sua publicação, abençoando o muçulmano que matasse Salman Rushdie. Naquele jovem leitor provocou, entre 2003 e 2005, questões que estavam efervescendo em sua mente entre estudos comparativos de teologias do que ele fora educado a chamar de “Antigo Testamento” (AT) e do Novo Testamento (NT).

A divindade única retratada no AT está mais próxima ao que fora provocada na ousadia de Osman a vidente Ayesha. O que quero dizer é que o fundo teológico, nessa passagem de contexto muçulmano no romance, não é tão diverso quanto aparenta a um cristão. Isso posto, a divindade do NT é reinterpretada por Jesus Cristo no Sermão da Montanha, a substituir a educação pelo medo das punições pela educação baseada no amor que deve ser cultivado no coração do ser humano, mas isso não significou que essa releitura de Cristo seria conservada, e na cartas paulinas, petrinas e no apocalipse, tornaram alguns traços dessa divindade implacável que carece de explorar o sofrimento dos mais carentes. Dentro do NT vejo um conflito subliminar entre as releituras de Jesus Cristo e de seus seguidores, diga-se de passagem, judeus versados no AT dentro de um movimento que inicialmente, não por acaso, foi visto como uma seita judaica.

16/11/2023 00h12

Imagem: DW

Albert Einstein

“[…] Nós, judeus e árabes, temos de nos pôr de acordo entre nós acerca das linhas diretrizes de uma política de comunidade eficaz e adaptada às necessidades dos dois povos.”

Obra: Como vejo o mundo. Capítulo 4. Problemas Judaicos. Discurso sobre a obra de construção na Palestina. Nova Fronteira, 1981, Rio de Janeiro. Tradução de H. P. de Andrade. De Albert Einstein (Alemanha/Ulm, 1879-1955).

O que a política costuma fazer com sentimentos legítimos das pessoas não versadas em política? O carisma em torno da fama de Einstein, como cientista judeu, mesmo não sendo um praticante em termos religiosos, deve ser sido muito útil ao movimento sionista. Neste discurso me pareceu mais um caso de uma celebridade, certamente com boas intenções, que decide se envolver com um propósito político acreditando nas “boas intenções” de quem vive em um ramo onde os mestres sabem explorar muito bem o abismo entre o discurso idealista e a realidade dura e cruel.

O contexto é o mandato britânico da Palestina onde Einstein se mostra agradecido com “as últimas declarações do governo inglês” que denotavam “uma avaliação mais correta” da situação dos judeus sionistas, mas lembra que o problema sobre a região é de judeus e árabes e não dos ingleses (p. 53). Para Einstein, judeus a árabes devem buscar “uma solução honrosa, digna” das duas comunidades; eis a ideia, para em seguida citar o autor de O Estado Judeu, Theodor Herzl (1860-1904) para explicar que a Palestina, para os judeus, seria “um centro espiritual para manter o sentimento de solidariedade no momento da provação” (p. 53). Bem verdade não é preciso fazer muito esforço para perceber que o antissemitismo, ao longo dos séculos, deve ter impactado o juízo de Einstein que tinha motivos de sobra para defender um lar comum onde judeus pudessem se estabelecer, no entanto, a chave para se entender O Estado Judeu, penso, está na inegociável soberania na forma estatal, defendida pelo autor, como instrumento de proteção aos judeus.

Infelizmente, a realidade revelada na execução sionista passou tão distante quanto à ideia que o pacifista gênio da física teórica tinha sobre uso do conhecimento científico para fins bélicos. Em uma carta ao professor Dr. Hellpach (1877-1955), reconhece que se trata de “nacionalismo”, porém, “sem vontade de poder, preocupado pela dignidade e saúde morais” (p. 58). Infelizmente, foram ideias que decoraram uma propaganda que, na realidade dos palestinos nativos e não judeus, revelou-se um terror de ataques, tropas, tanques, mortes e destruições de lares a produzir refugiados em massa.

A união sonhada por Einstein pode ter sido conveniente como um apelo romântico para os tipos que não fazem a menor ideia das reais intenções dos mandatários de movimentos políticos e talvez esse tenha sido o segundo evento em que o grande professor, infelizmente, foi politicamente usado, diria até manipulado; o caso do lobby da bomba atômica foi o mais notório. Eis o que acontece quando celebridades se envolvem com política, na crença de que a expertise que possuem em determinada área é suficiente para lhes dar condição de atuarem em um mundo de raposas doutas em explorar desejos para canalizar crenças coletivas ao próprio poder, com propósitos não raramente ocultos e/ou perversos.

15/11/2023 13h44

Imagem: Columbia University

Simon Schama

“[…] much of the stupendous poetic narrative of the scripture is no more than what another archaeologist has characterised as an echo of the historical truth. […]”

Obra: The Story of the Jews: Finding the Words — 1000 BC-1492 AD. I. IN EGIPTY. HarperCollins, 2013, New York. First U.S. Edition. De Simon Michael Schama (UK/England/London, 1945).

Em português: A história dos judeus. À procura das palavras — 1000 a.C.-1492 d.C., publicada pela Companhia das Letras. Obra de uma amplitude impressionante, das tradições bíblicas ao que se tem documentado até chegar no judeu comum que passou e deixou traços que ajudam a diminuir o imenso desconhecimento da história.

Quanto ao trecho em destaque, em outras palavras, o colega judeu-ateu nos anos 1990 me dissera a mesma coisa. Lembro-me de ter considerado interessante; eram tempos em que lia o Pentateuco e as narrativas das conquistas de Israel em Canaã com os olhos de um típico batista, próximo a de um fundamentalista, mas me permitia à hipótese de que muitas passagens poderiam não ser históricas e figuras como Abraão e Moisés talvez fossem arquétipos ou personagens míticos em uma epopeia, o que penso quando o autor afirma que “a Bíblia Hebraica é a marca da mente judaica, a imagem de suas origens e de seus ancestrais imaginados” (p. 7). Nem vou entrar em detalhes sobre o que o colega judeu-ateu falou sobre Moisés…. O “tesouro original” de uma “imaginação espiritual” (p. 7), assim definido pelo professor britânico, parece-me mais sofisticado, enquanto outras fontes como papiros fulvos da ilha Elefantina, retratam uma forma mais mais “grosseira, humana e mundana” (p. 7).

Então, quando passei pelo seminário, amadureci alguns conceitos e hoje não tenho problema em ler narrativas da criação e do dilúvio como versões hebraicas de antigos mitos, bem como as do repovoamento e da tomada de Canaã sem as exigências que faço quando leio uma obra de história (científica); não incomoda minha fé ter consciência que a Bíblia contém, em sua maior parte, o folclore, as lendas e as tradições orais de um povo mediante uma determinada eleição divina. Não ler uma narrativa bíblica como peça de história não tira seu profundo valor, sobretudo o espiritual, pois delas são extraídos princípios em lições fundamentais, mas sempre há quem prefira “prová-las” cientificamente, então é comum cair-se no dilema de um jovem crente fundamentalista (do tipo que define o termo “gênero literário” como anátema) que se enrolou todo quando um espirituoso irmão lhe perguntou quem foram os pais dos netos de Adão e Eva, e assim a manhã na EBD se perdeu com polêmicas sobre incesto…

Crenças religiosas, quando usadas como maior referência em questões sociais e políticas, dificultam bastante o processo de busca por melhores soluções, dado o arrogo ao absoluto, a um “deus” que determinou a uma parte que fizesse isso ou aquilo, o que acaba por servir de camuflagem para o desprezo e o combate a forma de conhecimento baseada no que é possível saber e refletir por fatos e evidências, enquanto “justifica” todo tipo de atrocidade. Eis um dos maiores problemas quando se reduz a questão palestina a debates religiosos.

14/11/2023 21h51

Imagem: EPPC

David G. Dalin

“É preciso que os judeus se oponham a esse equivalência moral monstruosa e a esse uso indevido do Holocausto.”

Obra: O mito do papa de Hitler. Capítulo 1. O papa de Hitler: a origem e a importância do mito. Tradução de Diego Fagundes. Quadrante, 2019, São Paulo. De David G. Dalin (EUA/Califórnia/São Francisco, 1949).

O autor americano apresenta um contraponto interessante nesta obra, acerca de uma visão comum que notei ao longo de minhas experiências de leitura sobre a associação ao antissemitismo e um peso de culpa pelo Holocausto por parte do papa Pio XII.

Lembrei-me da Leitura de A Igreja Católica de Hans Küng, em 26/11/2022 23h12:

Küng salienta que Pio XII lamentou “brevemente e em termos gerais e abstratos o destino do ‘desventurado povo’”, mas “nunca usou a palavra ‘judeu’ em público” (p. 222); “opôs-se a uma condenação pública do nacional-socialismo e do anti-semitismo” (p. 220), além de ter finalizado o “Reichskonkordat com o regime nazista” (p. 221) que foi o primeiro tratado internacional com Hitler.

Torno a David G. Dalin e enquanto menciona diversos autores que acusam Pio XII, no que aponta sobre o mito do papa de Hitler, argumenta que por trás da exploração da tragédia do Holocausto há propósitos políticos, que seriam espúrios, para desmoralizar a Igreja Católica e assim facilitar a implementação de uma agenda de mudanças na instituição com viés progressista. Neste aspecto, chamou-me a atenção a contundência de uma defesa de Pio XII que me parece curiosa vinda de um rabino que não deixa de reconhecer o histórico de papas medievais hostis a judeus, enquanto, no capítulo 2, aponta o histórico de papas “filossemitas”, que protegeram judeus, a começar por Gregório Magno (590-604). Caso curioso é o lembrado pelo autor sobre o papa Clemente I (1342-1352) que foi a única voz que defendeu judeus da acusação de serem culpados pela peste que devastou a Europa.

Ler David G. Dalin se revelou um exemplo sobre o quão importante é apreciar autores com visões distintas e bons argumentos, a começar pela definição de “bons”, o que se traduz como o grande desafio da atividade literária quanto ao filtro em juízos para o desenvolvimento de uma crítica mais depurada sobre temas relativamente complexos, como o que se apresenta em torno do papado de Pio XII, com acusações e defesas relacionadas ao antissemitismo e ao Holocausto. Leitura sem reflexão é um corpo sem espírito e abrir os olhos para autores antagônicos certamente é bem melhor do que se prender a grupos onde o pensamento é uniforme, autores são selecionados para satisfazer determinada patrulha ideológica (malatia ambidestra) e o questionamento das próprias crenças se torna um tabu.

13/11/2023 00h47

Imagem: Picturing Golda Meir

Golda Meir

“I don’t know, gentlemen, whether you, who have the good fortune to belong to the two greatest democratic nations, the British and the American, can, with the best will and intentions, realize what it means to be a member of the people whose very right to exist is constantly being questioned: our right to be Jews such as we are, no better, but no worse than others in this world, with our own language, our culture and the right of self-determination and with a readiness to dwell in friendship and cooperation with those near us and those far away….We want only that which is given naturally to all peoples of the world, to be masters of our own fate—only of our fate, not of the destiny of others…to live as of right and not on sufferance”

Obra: Golda Meir: A Political Biography. 7 Towards Independence (1945–1948) Yediot Aḥaronot, 2008, Sifre ḥemed. Publicado por De Gruyter Oldenbourg. De Meron Medzini (1932).

Golda Meir (Ucrânia/Kiev, 1898-1978) – Ao ler esta biografia política fiquei com a impressão que a primeira-ministra israelense (1969-1974) superou a britânica Margareth Thatcher (1925-2013) no conceito de “dama de ferro”, principalmente em relação ao que enfrentou quando esteve à frente do governo, à sua devoção pelo Estado de Israel e como tratou os responsáveis por ataques a entidades judaicas e a judeus pelo mundo: implacável.

Seu governo foi marcado por operações, não necessariamente oficiais, com agentes do Mossad para eliminar terroristas e evitar ao máximo perdas de civis, tendo a maior relevância a operação que eliminou os militantes e articulistas do ato terrorista que matou seis treinadores e cinco atletas israelenses na vila olímpica dos jogos de Munique (1972). Faria sentido perguntar então sobre se o Mossad poderia modificar o quadro das atuais ações em Gaza, a partir do ato terrorista do HAMAS no último 7 de outubro, no entanto apenas se o Estado de Israel não tivesse o histórico, desde a sua fundação, de atingir civis palestinos.

Antes deste trecho selecionado, Golda Meir explica os objetivos do sionismo e da Histadrut, afirma que sua geração foi quem decidiu pôr fim às vidas ou mortes judaicas sem sentido, que os fundamentos elementares residem na rejeição do antigo modo de vida judaico. “Os pioneiros vieram para a Palestina porque eles acreditavam que a única solução para a falta de sentido da vida judaica e a morte judaica residiu na criação de uma vida judaica independente na pátria judaica. Os pioneiros também vieram para criar uma nova sociedade construída sobre as bases da igualdade, da justiça e da cooperação”, argumenta (p. 109).

O argumento da Golda Meir é essencialmente legítimo, belo e moral, quando lembra o que significa ser membro de um povo cujo próprio direito de existir é constantemente questionado: não se trata de ser um povo melhor ou pior do que os outros, mas os judeus sofrem pelo mundo porque não abrem mão do direito legítimo de preservar seus valores, sua língua, sua cultura e sua autodeterminação, com disposição para viver em amizade e cooperação com aqueles que estão próximos e afastados; ser mestre do próprio destino e não do destino dos outros.

O problema então está em como o Estado de Israel foi criado e o alto preço que outros povos pagaram por ele, o que compromete seriamente a parte final do argumento.

12/11/2023 14h01

Imagem: Vaticano

Urbano II

“[…] after listening to the burning eloquence of Urban II. at the council of Clermont, the assembled multitude with one voice welcomed the sacred war as the will of God.[…]” (G. W. Cox)

Obra: The Crusades. Epochs of History. CHAPTER I. CAUSES LEADING TO THE CRUSADES. Scribner, Armstrong and Co., 1874, New York. Editado por Edward G. Morris. De George William Cox (Índia/Benares, 1827-1902).

A Palestina como palco da “guerra santa”, do literal combate pela fé, pela ideia de se matar em nome de Deus, aqui em um contexto cristão, na convocação do papa Urbano II (1088-1099). Afirma o autor que as cruzadas “foram uma série de guerras travadas por homens que usavam o emblema da Cruz como uma promessa que os obrigava a resgatar a Terra Santa e o Sepulcro de Cristo das garras do incrédulo” (p. 1 B).

Do apelo de Pedro, o eremita (France/Amiens, 1050-1115), à solene sanção de Urbano II, o movimento que seria chamado de “cruzadas”, posteriormente, foi possível, segundo o autor, por uma combinação da autoridade papal com uma “convicção popular irresistível” (p. 3). Penso, havia o apelo em favor do sagrado, mas seria suficiente para mover multidões de combatentes? No contexto religioso, além da intenção de se prover proteção aos locais sagrados, juntava-se ao propósito de conceder apoio a cristãos perseguidos em uma região ocupada por turcos e árabes muçulmanos. Em suma, a guerra santa cristã envolvia promessas espirituais pela guerra em favor da preservação dos locais sagrados, com a garantia do perdão divino pela crença enorme que se tinha no papa, mas não se deve ignorar neste processo o afã por “conquistas materiais” em uma viagem longuíssima que passaria por cidades e vilarejos.

Os judeus viviam espalhados desde a diáspora forçada pelos massacres dos romanos do primeiro ao segundo século; na Palestina estavam em uma minoria e sofriam perseguições em cidades cristãs na Europa (p. 15); financistas, emprestavam dinheiro aos cruzados e assim prosperavam financeiramente (p. 37), no contexto em que se deu a convocação de Urbano II.

Durante a viagem da primeira cruzada a partir de 1096, massacres e pilhagens:

“Pecando livremente, aparentemente pela graça poderiam abundar, saquearam e atormentaram as terras pelas quais marcharam, 3.000 militantes chefiados por alguns condes e cavalheiros, não foram muito dignos para atuar como seus atendentes e compartilhar seus despojos” (p. 40).

A ironia do autor também me chamou a atenção. Contudo, os maiores requintes de crueldade foram reservados aos judeus:

“Mas se não tiveram escrúpulos em roubar os cristãos, o deleite estava em provar a realidade de sua missão como soldados da cruz, saqueando, torturando e matando judeus” (p. 40).

Então, quando penso em antissemitismo, ao considerar esses registros históricos, entendo que se trata de uma das maiores chagas da humanidade.

A parte da leitura que mais me impactou neste livro se deu na descrição sobre o que aconteceu em julho de 1099 depois que o muro de Jerusalém foi vencido pelos cruzados e as tropas muçulmanas foram derrotadas na primeira cruzada:

“[…] a carnificina na mesquita de Omar varreu os corpos de milhares num dilúvio de sangue humano. Os judeus foram todos queimados vivos em suas sinagogas. Os cavalos dos cruzados, que cavalgaram até o pórtico do templo, foram (assim segue a história) até os joelhos no repugnante riacho; e as formas dos cavaleiros cristãos cortando e talhando o corpos dos vivos e dos mortos forneciam um ambiente prazeroso ao comentário sobre o sermão de Urbano em Clermont” (p. 74).

Atos cometidos por cristãos que acreditavam cumprir a vontade de Deus, amparados por uma homologação papal para a guerra. E depois da carnificina, foram à Igreja do Santo Sepulcro para a “adoração” (pp. 74-75) e “ação de graças” pp (74-75).

O que tudo isso tem a ver com o Evangelho de Cristo?

11/11/2023 16h18

Imagem: O Observador

Lawrence da Arábia

“In introducing us the governor said, ‘I want you to meet Colonel Lawrence, the Uncrowned King of Arabia.'” (Lowell Thomas)

Obra: With Lawrence in Arabia. Sixteenth Editons. HUTCHINSON & CO. (Publishers), LTD, London. De Lowell Jackson Thomas (EUA/Ohio/Woodington, 1892-1981).

Thomas Edward Lawrence (UK/Wales/Tremadog, 1888-1935) – que figura! – pensei em meus 17 anos, no primeiro contato com a história impressionante deste coronel britânico que se infiltrou entre lideranças árabes e participou da revolta (1916-1917) que derrubou o Império Turco Otomano, aliado dos alemães na Primeira Guerra, e possibilitou o controle do Reino Unido na Palestina, cujo “mandato”, em certo sentido, traiu os árabes e abriu caminho para o sionismo consolidar o Estado de Israel.

Penso como seria a viabilização política e militar do Estado de Israel sem o controle britânico como preâmbulo que favoreceu o sionismo na Palestina, quão poderia ter sido bem mais complexo lidar apenas com lideranças árabes predominantemente muçulmanas, mas não é o “se” que faz a história e o coronel Lawrence foi o “Rei Sem Coroa da Arábia” (p. 17), um desses protagonistas improváveis que surgem para desmoralizar especialistas que gostam de explicar tudo.

De arqueólogo que participou de expedições pelo Fundo de Exploração da Palestina (p. 34) a articulista político e líder de uma revolta, enfileirado entre árabes, Lawrence se colocou à frente do exército beduíno do Xerife de Meca (p. 18), deu um senso de unidade às milícias enquanto acreditava que o Emir Feisal I do Iraque (1885-1933), seria o líder que entraria para a história para figurar ao lado de Maomé (571-632) e Saladino (1138-1193), pois tinha “uma combinação de qualidades que o tornavam admiravelmente adequado para a liderança do novo Estado árabe” que poderia ressurgir das cinzas do antigo Império Otomano (p. 271); poderia… Os turcos caíram, os ingleses tomaram o controle, os árabes ficaram na expectativa, mas foram os sionistas que fundaram o tão sonhado Estado.

A tomada da Palestina para as mãos britânicas em 1917 é um elemento-chave, assim como o movimento sionista, que tinha começado no século anterior, e o contexto socioeconômico de uma maioria árabe estabelecida na região, a formarem um bojo de questões para se compreender os fatores que provocam um conflito que se arrasta por décadas desde a preferência que se deu à soberania judaica.

10/11/2023 22h09

Imagem: marxistas.org

Max Horkheimer

Imagem: DW

Theodor Adorno

“[…] The Jews are today the group which, in practice and in theory, draws to itself the destructive urge which the wrong social order spontaneously produces.[…]”

Obra: Dialectic of Enlightenment: Philosophical Fragments. Cultural Memory in the present. Editado por Gunzelin Schmid Noerr. Standfor University Press, 2002, California. Traduzido para o inglês por Edmund Jephcott. De Max Horkheimer (Alemanha/Stuttgar, 1892-1973) e Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno (Alemanha/Frankfurt am Main 1903-1969).

O antissemitismo aos olhos de dois ícones da Escola de Frankfurt, tão “admirada” por auto declarados conservadores.

Horkheimer e Adorno produziram bastante em parceria. Segundo posfácio do Editor, Elements of Anti-Semitism. Limits of Enlightenment vem de fragmentos datilografados, principalmente com correções manuscritas e acréscimos de Horkheimer, juntamente com passagens de texto escritas à mão, seguido de três páginas escritas por Adorno (provavelmente sob ditado), mais algumas notas manuscritas por Adorno que produziu mais um texto datilografado de seis páginas com o título “Rascunho”. Também contém relatórios de discussões entre os dois autores sobre antissemitismo. A Tese VII deste capítulo não foi acrescentada até a versão de 1947, também pode ser encontrada em diversas versões como um manuscrito com correções manuscritas e acréscimos de Horkheimer. Anexado está um texto datilografado de três páginas de Adorno, “Remarks on Thesis VII”, datado com “Set. 4/46” escrito à mão por ele. Os documentos póstumos de Adorno não contêm mais materiais para este capítulo (p.223).

Capítulo interessantíssimo pela diversidade de reflexões. Quanto ao trecho destacado, argumentam os autores que os judeus são hoje (1946-1947), “de fato, o povo eleito”, no sentido de um grupo estigmatizado “pelo mal absoluto como o mal absoluto”, que prática e teoricamente, atrai sobre si um desejo de destruição que uma “falsa ordem social gerou dentro de si mesma”, sendo objetos de uma dominação pura e simples sob uma intolerância superior a que se verifica sobre trabalhadores e negros, dada a concepção de extermínio quando se apregoa que “é preciso purificar a terra da presença deles” (p. 137).

O modo de vida e a aparência dos judeus comprometem o universal existente dada a adaptação deficiente; sua adesão inflexível a sua própria ordem de vida os colocou em um relacionamento inseguro com o que prevalece (p. 138). Entendo que os autores indicam o racismo no antissemitismo em um contexto de instrumentalização política quando afirmam que “a verdadeira vantagem desfrutada pelo camarada racista é que a sua raiva será sancionada pelo coletivo” o que remete a uma ordem de poder que legitima as violações, penso quando argumentam que “o antissemitismo revelou-se imune à acusação de rentabilidade inadequada” (a considerar as expropriações contra judeus), o que para as pessoas comuns (seguidoras dessa ordem ) “é um luxo”. A falta de razão, o que é algo óbvio quando há uma intenção diversa à natureza do que é rejeitado, indicam o que os autores apontam que “não existe antissemitismo autêntico e certamente não existe antissemita. Os adultos mais velhos a quem o apelo ao sangue judeu foi tornaram-se uma segunda natureza são tão ignorantes da razão quanto os jovens quem tem que se livrar dele” (p. 140).

Outro ponto de destaque nesta Leitura, está na análise que fazem sobre o antissemitismo nacionalista que procura desconsiderar a religião, ao se declarar preocupado com a pureza da raça e da nação, isso ocorre, dizem os autores, porque “seus expoentes notaram que as pessoas há muito deixaram de se preocupar com a salvação eterna” (p. 144).

09/11/2023 23h19

Imagem: C-SPAN

Benny Morris

“Relatively few women and children were killed. In mid-May, HIS summarized the results of the Jewish reprisals of December 1947-March 1948: “The main effect of these operations was on the Arab civilian population … [leading to] economic paralysis, unemployment, lack of fuel and supplies because of the severance of transport. They suffered from the destruction of their houses and psychologically their nerves were badly hit, and they even suffered evacuations and wanderings….”

Obra: 1948: A History of the First Arab-Israeli War. THE FIRST PERIOD OF THE CIVIL WAR. Yale University, 2008, London. De Benny Morris (Israel/HaHoresh, 1948).

Historiador israelense nos anos 1980 ganhou notoriedade quando apontou atrocidades cometidas pelo Estado de Israel contra palestinos.

Resumo do Haganah Intelligence Service dos resultados acerca das ofensivas judaicas de dezembro de 1947 a março de 1948: a população civil árabe (obviamente) foi a mais atingida, com “paralisia econômica, desemprego, carência de combustível e suprimentos por conta da interrupção do transporte”. Sofreram a destruição de suas casas e tiveram graves danos psicológicos com as evacuações e peregrinações. Foi enfraquecida a retaguarda árabe e as operações dos milicianos com “conflitos entre a população árabe ferida e os árabes combatentes que os habitantes civis viam como a origem do desastre” (o que abre o entendimento que parte dos palestinos talvez aceitasse um Estado sob controle sionista). Os ataques judaicos (é bom sempre enfatizar, os sionistas) forçaram os árabes a unir grandes forças na proteção enquanto trouxeram dúvidas sobre sua própria capacidade de enfrentamento. Essa guerra de nervos teve grande valor em minar, em grande medida, a confiança árabe, mas não afetou decisivamente o poder de permanência deles nem o sua moral (p. 136).

A destruição de casas, a paralisia econômica, a carência de combustível e suprimentos, assim como a morte de civis palestinos marcou o contexto histórico da criação do Estado de Israel. Em 1948 o mundo ocidental dito “civilizado” (havia três anos saído da carnificina da Segunda Guerra) assistiu a tudo isso, como se os sionistas tivessem o “direito” de massacrar palestinos (notadamente a parte mais frágil da história, onde normalmente são impostos os maiores danos). Outro ponto que me chama a atenção é que a confusão entre civis e milicianos à época acabou sendo apropriada para quem intentou uma limpeza étnica, da mesma forma que hoje civis são atingidos sob a alegação do combate a terroristas. Hoje esse mesmo mundo ocidental, que se ufana de seus valores “humanos” e “democráticos”, assiste ao Estado de Israel massacrar civis, idosos, mulheres e crianças, e nada faz além de discursos vazios na ONU e em encontros inúteis.

Políticos europeus e americanos revelam a face mais sombria do mundo da política na hipocrisia e na covardia de se submeterem a um tirano armado até os dentes (o Estado de Israel na figura do primeiro-ministro) que decide em terra alheia estrangeiros que podem ou não passar a fronteira enquanto assassina inocentes alegando combater terroristas. Quem terá peito para contê-lo?

Apontar os crimes de guerra do Estado de Israel não é antissemitismo. Judeus pelo mundo, religiosos ou não, que desejam viver em paz com árabes, sejam muçulmanos, cristãos, crédulos ou não, assim como querem seguir seus vidas com os ocidentais, não merecem ser responsabilizados pelo que faz o atual governo de Israel contra civis em Gaza.

08/11/2023 22h07

Imagem: bryanmarkrigg.com

Bryan Mark Rigg

“Until Hitler’s Jewish Soldiers it was not widely know that probably a few thousand full and ten of thousand of half-and quater- jews, as classified by the nazis, served in the german forces during World War II.”

Obra: Lives of Hitler’s Jewish Soldiers. UNTOLD TALES OF MEN OF JEWISH. Hardback, 2009, Kindle eBook 2020. De Bryan Mark Rigg (EUA/Texas, 1971).

Muito jovem, caminhante no mundo comum dos estereótipos, fui trabalhar para um grupo de judeus e escutei como aviso: “gente mesquinha que só pensa em dinheiro”. Realidade: Pessoas de admirável índole, cultas, algumas mais inclinadas a práticas religiosas, outras nem tanto, que remuneravam bem e com pontualidade. A tal da “gente mesquinha que só pensa em dinheiro”, aprendi, está no lugar comum da existência, espalhada na proporção de indivíduos ingênuos, bestializados, que fazem a maioria que prefere seguir opiniões rasas a ter que explorar melhor a própria massa cefálica. Conheci muitos “que só pensam em dinheiro” em ambientes onde se espera que esteja presente o espírito do “lava-pés”.

Na faculdade, um colega ativista ateu e judeu de pai e mãe (brincava com um “só Freud explica”), e depois entendi a ironia fina ao saber que o pai da psicanálise estava na mesma categoria de descrente e descendente… Pois bem, esse provocante ateu-descendente-de-judeu conversava sobre tradições bíblicas as quais demonstrava profundo conhecimento enquanto as definia como “coletânea de lendas dos antepassados”. Quando lhe perguntei sobre Jesus, respondeu: “um bom rabi a ponto de ter suas lições convertidas em religião por seguidores oportunistas judeus”, e sobre a fé cristã: “é um judaísmo flex para a massa” (prefiro aqui um eufemismo com “massa”, pois o termo por ele usado foi um pouco pesado para ser mencionado neste espaço). Um tempo depois argumentou que muitos judeus que participaram do bolchevismo, oprimidos pelo regime do czar e seduzidos pela lábia de Lênin (um quarto judeu casado com uma judia), acabaram por enfileirar um movimento que foi engolido pelo stalinismo que promoveu antissemitismo e Hitler, que tinha o talento para explorar meias verdades em nível estratosférico, fez uso dessa história, assim como apontou o descendente mais famoso, o “Carlo” do pastor Abdoral, para inflamar o anticomunismo com o antissemitismo entre germânicos em diversas frentes que, dominados pela cultura da idiotice que potencializa os alucinados por estereótipos, caíram nas narrativas que terminam no apontamento do bode expiatório para todas as mazelas nacionais.

Naquele tempo (anos 1990), as histórias sobre (descendentes de) judeus já me atraíam por demais e não fazia a menor ideia do que é contado neste livro sobre alguns milhares que seriam de pai e mãe, outros em dezenas de milhares de meios e quartos, “judeus” inteiros ou não, conforme entendimento dos nazistas, que serviram nas forças armadas alemãs durante a Segunda Guerra Mundial. O tema é por demais delicado, pois me remete ao holocausto, então é preciso ter muito cuidado ao refletir sobre esses soldados “judeus” do exército de Hitler porque há judeus e “judeus”; judeus que honram suas tradições, religiosas ou não, e indivíduos que descendem e as aspas indicam que é só isso mesmo, nada tendo a acrescentar de saudável para quem tem interesse em saber mais sobre uma riquíssima e milenar cultura.

A generalização traz sempre algo que degenera, e termino com o problema do antissemitismo entre os que confundem todo judeu com os políticos judeus que têm a batuta do Estado de Israel e com ela cometem crimes de guerra em Gaza, assim como os islamofóbicos que confundem todo muçulmano com extremistas e terroristas.

07/11/2023 21h50

Imagem: The National

Mahmoud Darwish

“Where should we go after the last border? Where should birds fly after the last sky?
Where should plants sleep after the last breath of air?
We write our names with crimson mist!
We end the hymn with our flesh.
Here we will die. Here, in the final passage.
Here or there, our blood will plant olive trees.”

Obra: Earth Presses against Us. Unfortunately, It Was Paradise. Selected Poems. Traduzido para o inglês por Munir Akash e Carolyn Forche (com Sinan Antoon e Amira El-Zein). University of California Press, 2003, London. De Mahmud Darwish (Al-Birweh, 1941-2008).

Depois do último céu

A cena de uma menina em prantos, sem pai nem mãe, vítimas dos mísseis de Israel, penso repetidamente enquanto passam meus afazeres…

“A terra nos pressiona”, diz o poeta que um dia foi um menino de seis anos na aldeia de Birwe, até então era o seu lar na Alta Galileia lá pelos idos de 13 de março de 1942 quando o exército israelense a destruiu, da mesma forma como fizera com outras 416 aldeias palestinas (p. xvi).

O que eu diria para aquela menina que perdera sua família se estivesse naquele hospital em Gaza, onde a constante sensação de medo de um míssil de repente cair dá o tom, em um quadro de horror de médicos e enfermeiros em corredores com pacientes amontoados? Fico mudo, um nó na garganta me consome. e por um instante torno ao livro que me remete aos anos 1940, do menino Darwish que ainda tinha uma família que fugiu para o Líbano; todos correndo da morte travestida de militares que assassinavam gente da roça para um ano depois voltarem como “ilegais” ao lar que lhes fora tomado.

O drama palestino da Galileia me fez pensar em Jesus, da região e do que deixou sobre a Lei para ser vivida no coração e quem quiser encontrá-lo, procure os oprimidos, os inocentes…

Nada me deixa mais pensativo que as crianças da Palestina, assim como as da Ucrânia e do todos os quatro cantos deste plano terreno castigado de ódio traduzido em guerras. Penso em todas as crianças que olham para um mundo de bombas e dor jorrando, no significado de uma personalidade em formação diante de uma realidade tão cruel. Torno então a pensar naquele menino palestino transformado em refugiado para satisfazer esse mesmo mundo medonho que tinha uma enorme dívida com os judeus, cuja covardia jogou a conta sobre os mais vulneráveis…

Penso, penso, mas… O que dizer às crianças?

Ou como dissera o menino que cresceu e se tornou poeta:

Para onde os pássaros deveriam voar depois do último céu?

Onde as plantas devem dormir após o último suspiro?

06/11/2023 00h01

Imagem: Library of Congress

W. Roger Louis

Imagem: JLF London

Avi Shlaim

“[…] Regarding nuclear cooperation, France agreed, on 21 February 1961, to supply Israel with 385 tons of uranium over a period of ten years on the condition that the processed uranium be delivered back to France. This is how the Dimona nuclear plant became active in July 1966. The United States, wary of the military dimension of such a programme, monitored this French-Israeli cooperation [4].”

Nota do editor: 4. Memorandum from the French Ministry of Foreign Affairs, 20 May 1967, in Documents diplomatiques franc¸ais [hereinafter referred to as DDF], 1967, vol. 1 (Paris: Ministere des Affaires E trangeres, ` 2008), 525–6.

Obra: The 1967 Arab-Israeli war: origins and consequences. 10. France and the June 1967 War, de Jean-Pierre Filiu. Cambridge University Pres, 2012, Cambridge. Editado por Wm. Roger Louis (EUA/Michigan/Detroit, 1936) e Avi Shlaim (Iraque/Bagdá, 1945).

Sobre a Guerra dos Seis Dias, obra editada pelos professores Wm. Roger Louis e Avi Shlaim que possuem diversos livros sobre os conflitos na Palestina.

Foi uma guerra cuja eclosão pode ser atribuída, em parte, a enorme tensão entre a Síria e Israel que resultou na expansão do Estado judeu (p. 10); “a destruição do exército egípcio levou à ocupação de território habitado por mais de um milhão de árabes e, no norte, a conquista de uma região que amargurou os sírios” (p. 9).

No trecho desta Leitura, no capítulo assinado pelo historiador Jean-Pierre Filiu (France/Paris, 1961), destaque para o envolvimento da França no programa nuclear israelense: Charles de Gaulle foi um grande admirador dos pioneiros do sionismo e um dos primeiros líderes que deram suporte ao Estado judeu; recepcionou o primeiro-ministro David Ben-Gurion em reuniões oficiais visitas a Paris em junho de 1960, quando o definiu como “um dos maiores estadistas deste século”, celebrou Israel como “nosso amigo, nosso aliado”, firmou contratos para entrega de aeronaves sofisticadas; vinte SuperMysteres e dois Mirage IIICs de 1961 a 1967, mais adiante (1965) vendeu helicópteros Super Frelon e, em 1966, a nova geração de Mirage. Em fevereiro de 1961 forneceu a Israel 385 toneladas de urânio durante um período de dez anos no condição de que o material processado fosse devolvido, onde tornou ativa a central nuclear de Dimona (Julho de 1966). A larga cooperação francesa despertou a atenção dos EUA “receosos da dimensão militar de tal programa” (p 248), embora os franceses tenham informado que se tratava de um programa de cooperação puramente “científica e industrial” e que “todas as medidas foram tomadas para evitar uma extensão desta cooperação para as dimensões militares do átomo”, informa o autor (p. 250).

Noam Chomsky foi o primeiro autor que me despertou para o problema do armamento nuclear do Estado de Israel na região, o que torna mais complicado o processo de busca da paz quando os países árabes se sentem ameaçados pelo vizinho israelense armado com ogivas, assim como o reator em Dimona pode ser alvo de ataques, como aponta Avi Shlaim (p. 32).

A questão nuclear de Israel foi suscitada neste domingo. Segundo o Times of Israel, o ministro Amichai Eliyahu disse que uma das opções de Israel na guerra contra o HAMAS poderia ser a de lançar uma bomba nuclear na Faixa de Gaza, o que foi rapidamente rejeitado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que o suspendeu das reuniões de gabinete [181].

Desde o final dos anos 1990 tenho grande interesse na compreensão dos conflitos na Palestina em torno do Estado de Israel e nos efeitos geopolíticos. Encontram-se publicadas em inglês, e muitas não as encontrei em português, as melhores produções de livros sobre o tema na busca de conteúdos multidisciplinares de estudiosos com longeva dedicação aos problemas por demais complexos (muitos trabalhados nesta obra), a envolver o contexto do surgimento do movimento sionista no século XIX, questões de geopolítica, com seus naturais desdobramentos por conhecimentos de contextos históricos desde a antiguidade, além de pautas de política e economia, que possuem relações com as duas guerras mundiais, a queda otomana, a ocupação britânica, o antissemitismo, o holocausto e a guerra fria, esta última protagonizada por EUA e a extinta URSS, confrontos que marcaram o século XX, além do terrorismo islâmico, que tem conexões com as influências europeia, americana e soviética no Oriente Médio, o que abre um leque enorme de necessidades de conhecimentos sobre aspectos acerca das tradições sacras e até das teologias envolvidas.

Entendo que uma chave para que se superem alguns dilemas em torno da preservação da nossa espécie pode estar nas questões sobre a Palestina, devida a característica da região ter a atração como centro de interesses para agentes geopolíticos.

181. Far-right minister says nuking Gaza an option, PM suspends him from cabinet meetings. Today, 12:24 pm.

05/11/2023 10h35

Imagem: DW

Karl Marx

“Qual é o culto secular do judeu? O negócio. Qual é o seu deus secular? O dinheiro.”

Obra: Sobre a Questão Judaica. II Bruno Bauer, “Die Fähigkeit der heutigen Juden und Christen, frei zu werden” [A capacidade dos atuais judeus e cristãos de se tornarem livres] [27] (Einundzwanzig Bogen, p. 56-71). Boitempo, 2010, São Paulo. Tradução de Karl Marx Nélio Schneider. De Karl Marx (Reino da Prússia/Renânia-Palatinado/Tréveris, 1818-1883).

Nota do editor: 27. Nesta parte, a indicação de número de páginas entre parênteses feita por Marx no texto refere-se ao artigo de Bauer citado no título (Einundzwanzig Bogen aus der Schweiz, ed. por Georg Herwegh. Zürich e Winterthur, n. 5, p. 56-71, 1843), também disponibilizado pela Boitempo em seu site, na página deste livro, em http://www.boitempo.com/colecao_marx.php.

Ateus praticantes – por pastor Abdoral

Carlo,

Do alto da montanha meu amigo de infância, quando na adolescência intelectual te consagrou como herói, convocou-me a esta nobre missão.

Fico a pensar em vossa senhoria e o jovem Bruno Bauer (1809-1882) à disposição nas redes sociais deste tempo presente de produções midiáticas de entretenimento em larga escala para idiotes, o quanto este “profundo debate” sobre judeus bateria recordes de visualizações.

Perdoem-me, entusiastas.

Carlo, teu “judeu secular real” me fez pensar em inúmeras possiblidades o que, infelizmente, ficou obscurecido pela psiconeurose em torno do privado e assim acabaste por resumir o termo a um tipo em meio a uma imensidão, mas no meio dessa escuridão medonha veio-me uma fagulha que clareou alguns caminhos mediante o que tomei por empréstimo da subjetividade pós-modernista do século seguinte ao teu alvorecer, onde residem muitos dos teus militantes, para dar um sentido de expurgo ao estereótipo.

Há judeus e “judeus”, Carlo, e nem não vou aqui cair na indelicadeza de adentrar em detalhes de tua ascendência, tampouco esmiuçar os “judeus” do movimento bolchevique que perseguiram judeus na Rússia. Fizeste bem em fazer uma discreta separação em relação ao “judeu sabático” trabalhado no artigo de Bauer porque conheço alguns piedosos que contrariam teu manjado clichê, enquanto bem sucedidos nos negócios, pois uma coisa não anula a outra e aqui penso como a dialética hegeliana pode te fazer bem para a compressão deste ponto, por sinal, aquele bigodudo genocida do século seguinte (evito mencionar o nome dele como o faço em relação ao inimigo de nossas almas), deve ter apreciado esta tua conclusão: “Agora sim! A emancipação em relação ao negócio e ao dinheiro, portanto, em relação ao judaísmo prático, real, seria a autoemancipação da nossa época” (p. 56).

Tomarei outro empréstimo, aliás, o termo me fez pensar como os judeus se tornaram exímios banqueiros, investidores e credores, dada as perseguições que os proibiam de exercer diversas profissões mais glamourizadas nas sociedades de até então, e entre as que sobraram para eles estava a que era demonizada pela “santa Igreja” por causa do “pecado da usura”. No entanto, o empréstimo a qual me refiro é o da tua curiosa expressão “judaísmo prático” e penso como essa primeira grande confissão monoteísta se tornou tão diversa e ignorar isso seria como pensar que a fé cristã se resume a que é celebrada em “igrejas” lideradas por picaretas da “teologia coach” (a aberração que evoluiu da teologia da prosperidade). Mas, como citastes “judaísmo”, penso agora naquele que nasceu do judaísmo na Judéia do século I, cuja seita se popularizou de maneira que se tornou um “judaísmo para o povão” e é mais conhecido como “cristianismo primitivo”. Hoje esse “judaísmo da massa” se ramificou como as raízes de algumas plantas e ervas daninhas que crescem em torno de minha caverna. Entenda-se “plantas e ervas daninhas” porque é preciso categorizar, da mesma forma que se pensa na expressão “separar o joio do trigo”. Das “plantas e ervas daninhas” deste judaísmo global super flexível surgiram credos para todos os tipos e gostos, desde o romano ao “protestante” no Ocidente, passando pelos ritos ortodoxos até mais antigos que o professado na dita “cátedra de Pedro”.

Penso agora no “judaísmo prático” neste mundo tão diverso de teologias e o vejo na síntese de confissões que se tornaram centros de entretenimento para “ateus praticantes”, cujo “evangelho” não passa de uma compilação de desejos mal resolvidos de uma sociedade de indivíduos onde não há espaço para se pensar na vida prometida após a experiência terrena, onde doentes por consumismo e carências com auto afirmação, com templos convertidos em palcos para shows de rebolado, dos que se congregam em “igrejas” que existem para arrecadar e enriquecer padres seculares e pastores, alguns inclusive simpatizantes às suas ideias, da figura do “pequeno burguês” ao clássico saudosista da Internacional, todos devidamente camuflados naquele dito que consagrou a esquerda caviar de que socialismo nos olhos dos outros é… Pois bem, esse “judaísmo prático” cujo deus é o dinheiro tem uma base de teologia para ateus praticantes por demais incisiva, penetrante, sedutora, de maneira que seus seguidores podem ser vistos em genuínas igrejas cristãs; oram, rezam, fazem aquela cena dominical de piedosos para enganar a sociedade, no entanto, será mais fácil entendê-los da porta do templo para a rua quanto ao verdadeiro deus que se revela no amor ao dinheiro, na ostentação, na cobiça, nas diversas manifestações de hedonismo, nos preconceitos, na idolatria sexista ao próprio corpo, assim como esse materialismo não poderia resultar em outra coisa pior senão no cultivo da ignorância por desprezo ao conhecimento que enleva o espírito, sobretudo das Escrituras…

Assim Carlo se revela esse “judaísmo prático”: bem mais diverso que a nossa vã filosofia.

04/11/2023 18h31

Imagem: Reza Tabandeh

Philip Hitti

“Where was the original home of this people? Different hypotheses have been worked out by various scholars.”

Obra: History of the Arabs. From the earliest times to the present. CHAPTER I THE ARABS AS SEMITES ARABIA THE CRADLE OF THE SEMITIC. Macmillan & CO LTD, 1904, London. 8a. edição. De Philip Khuri Hitti (Líbano/Shemlan, 1886-1978).

Obra imprescindível sobre as origens dos árabes, assim como o desenvolvimento da fé islâmica. O professor Philip Hitti foi o primeiro nativo falante árabe a receber um doutorado nos EUA. Em Princeton implantou o primeiro programa de Estudos do Oriente Médio nos EUA, tornando-se o principal centro de estudos islâmicos no Ocidente.

Quanto à questão desta Leitura, aponta-se a hipótese da África Oriental, voltada à relação étnica entre Semitas e Hamitas, enquanto outra hipótese, por influência de tradições do Antigo Testamento, aponta a origem na Mesopotâmia, o que o autor indica, “na sua cumulatividade de efeitos, parecem mais plausíveis”. A teoria mesopotâmica tem um problema com o fato de assumir a passagem de pessoas de uma área agrícola, por estágio de desenvolvimento nas margens de um rio até um estágio nômade, sendo reverso da lei sociológica nos tempos históricos, enquanto a teoria africana levanta mais questões do que respostas (p.10).

Por ciência sou fascinado dada sua natureza em construir saber mediante contínuo exercício da dúvida a se pautar em investigação e evidências, aberta a hipóteses que desafiam novas etapas desse processo ou até mesmo o que se tem por conhecimento legado; via de regra é naturalmente relativa, sendo de apuração parcial, não existe conclusão que seja “intocável”, não há zona de conforto, vive em tensão aberta a revisões, reformulações, avança mas pode retroceder, está sempre em movimento. Tudo isso pode desapontar muitos que esperam respostas enquanto a ciência tende a apresentar mais perguntas.

Por outro lado, tornando à questão do autor, penso agora no modo religioso de abordá-la e a resposta comum e imediata: Ismael; simplista, enganosa, para “explicar” porque judeus e árabes não se dão bem entre si (mito) e a causa principal dos conflitos na Palestina (outro mito!). A resposta na ponta da língua não poderia ser nada além de rasa a considerar uma teoria (mesopotâmica) que se abre ainda mais pelo que na obra se considera (pp 10-13), pois me chamou a atenção a diversidade de povos e uma forma como o termo é aplicado; um poderoso sistema de propaganda dentro do Islã, com referências um tanto provocantes (p. 443). Lembro-me de certa vez quando considerei como lendárias as narrativas dos patriarcas do Gênesis, isso se deu no meio cristão, e pude sentir o que pode acontecer em quem se pauta unicamente por fé religiosa, devido à sua força tão sedutora por oferecer respostas tão rápidas e “inspiradas” para questões por demais complexas, o que pode satisfazer um tipo de mentalidade que se contenta com convicções, prefere não enfrentar certas dúvidas, inclina-se a algum tipo de sistematização que o acomoda em uma confortável zona de “verdades absolutas”, mas é preciso compreender que a nossa espécie é dotada de recursos intelectuais que inflamam a inquietação por um saber bem mais analítico, racional, pautado em evidências, mesmo que provoque parcialidade em resultados e apresente mais questões do que certezas.

A ciência está para uma inquietação que assim se permite a auto crítica constante, caso contrário entrará em profunda crise existencial; é um saber dialético pro excelência que pode voltar a sínteses anteriores e se desmentir sem fazer muita cerimônia (excetuando os boçais fariseus adoradores de titulações), contrariando a natureza do paradigma religioso, cujo campo de suas fontes, o divino que inspira, é intocável, inquestionável, inacessível em termos de sondagem. Um problema grave de um saber assim, à mon avis, pode ocorrer quando se volta ao absoluto arrogo que serve de base para “justificativas” de ideias e atos que impõem cerceamento da “inquietação” a qual me referi, não raramente com potencial de impulsionar algum viés rude que descamba em censura ou até mesmo violento a converter o ser humano é uma coisa de extremismo e violência.

03/11/2023 00h00

Imagem: NEXT-GEN 5.0

Eitan Azani

“In the study of the phenomenom of radical islam, three schools of thought, differing in their way of treatment of the phenomenom, can be distinguished:”

Obra: Hezbollah: The Story of the Party of God: From Revolution to Institutionalization. 2. Development of Social Moviments in Muslim Society: The Phenomenom and its Chracteristics. Research Approaches in the Analisys of the Prenomenom of Radical Islam. Palgrave Macmillan, 2009, eBook Kindle. De Eitan Azani (1956).

Obra muito interessante sobre o “partido de Deus”, Hezbollar, organização política e terrorista no Líbano que atualmente possui um poder de engajamento e uma força financeira superiores às do HAMAS. Azani é doutor da Tel-Aviv University e coronel (reserva) das Forças de Defesa de Israel (IDF) com experiência operacional e pesquisa acadêmica em combate ao terrorismo.

Disponível na Amazon, em formato eBook.

No contexto do trecho, Azani cita a revolução iraniana de 1979 como a primeira significativa expressão de movimentos sociais islâmicos com impactos em sistemas regionais e internacionais. Esses movimentos representam desafios (entendi como seríssimos problemas) inclusive na ordem social de países sob regime islâmico.

Menciona três escolas de pensamento que estudam esse fenômeno: 1. Como fato social excepcional, único em sociedades islâmica, que o islã não é apenas uma religião, mas uma “estrutura para a vida” que representa um sistema inalterável de princípios e regras; 2. Como fenômeno mundial das últimas décadas do século XX como uma resposta às dificuldades dos indivíduos, sendo uma ameaça à democracia em um amplo contexto de direitos dos indivíduos, secularismo, e progressos científico e tecnológico; 3. Como produto de um processo social na luta pelo poder de classe nas sociedades muçulmanas, buscando incrementar poder político na intenção de seus interesses ideológicos, sendo similar a fenômenos do fascismo e do nazismo ameaçando seriamente a democracia e o futuro do islã.

As três linhas de pensamento ou disciplinas indicam o quanto o tema é complexo, reconhece o autor. Chamou-me mais a atenção a terceira linha, por sinalizar uma adaptação do marxismo ao islã ou uma versão do socialismo a partir de Marx sob uma capa religiosa, teocrática, onde o totalitarismo se volta a uma legitimação divina, à mon avis, o maior de todos os perigos.

02/11/2023 16h00

Imagem: David Rubens – bíblico teológico

Roland de Vaux

“[…] Israel não combate por sua fé, ele combate por sua existência.[…]”

Obra: Instituições de Israel no Antigo Testamento. Quarta Parte. Instituições Militares. Capítulo V. A Guerra Santa. Teológica/Paulos, 2003, São Paulo. Tradução de Daniel de Oliveira. De Roland Guérin de Vaux (France, 1903-1971).

Obra do padre e arqueólogo francês digna de estar em toda biblioteca residencial.

Sempre bom mencionar, o contexto desta frase se encontra no título da obra.

Toda guerra na antiguidade é “santa”, travada por ordem dos deuses, aponta o autor e, no caso de Israel, penso, difere-se pelo monoteísmo ou por uma crença em uma única divindade. Outra diferença é que se trata de uma “ação sagrada, com uma ideologia e ritos próprios”, com oferenda de sacrifícios, tendo combatentes em estado de “pureza espiritual”, “continência” (1 Sm 21.6; 2 Sm 11.11) enquanto em outros povos antigos a religião era mais um acessório.

Outro contraste é que “guerra santa” para Israel, no Antigo Testamento, tinha vinculação pela sua existência, entende o autor, e não por intenção de difundir a sua fé, aqui penso sem aspiração missionária de conversão de povos, excetuando o período dos macabeus, quando se assumiu uma conotação de “guerra de religião”, aproximando-se da concepção na fé islâmica quando esse termo é aplicado, defende Roland de Vaux (p. 297).

Israel luta mas é Iahvé que combate por ele (p. 299), cuja presença se faz pela arca da aliança (p. 298); a guerra tem seu último ato no anátema, o herem aplicado sobre o inimigo derrotado. Pela raiz do termo se entende como separação onde pode ser entendido de aplicação ao uso sagrado, para a divindade; entrega-se a Deus os frutos da vitória, eis o anátema que “teoricamente, ele é total; e, Jericó, todos os seres vivos homens e animais, devem ser massacrados, a cidade e os bens mobiliários são queimados, os objetos de metal são consagrados a Iahvé (Js 6.18-14)”. Não observar essa consagração atrai maldição, como se verifica na narrativa sobre Acã (p. 299).

Não vejo as narrativas da conquista de Canaã em Josué como históricas (não se sustentam pelo consegui apreender da arqueologia até o momento), no entanto, faço um exercício mental para pensar como um crédulo na historicidade dos textos, e percebo que fica impossível, com mínima razoabilidade (a não ser que se trate de um fanático religioso em um grau mais profundo de extremismo), não ver que Israel, neste contexto do Antigo Testamento, quando chegou a “terra prometida” de Canaã, realizou incursões militares, dizimou vilas e exterminou povoados inteiros, tudo atrelado ao conceito de anátema; de soldados do exército inimigo rendidos ao que se chama hoje de “civil”, incluindo mulheres e crianças (Js 6.2; 8.24-26), algo difícil de ser tratado com pessoas religiosas o bastante para fazer uso de ou apelo a malabarismos teológicos em subterfúgios e/ou eufemismos quando se pensa que “Deus mandou matar” e essa constatação do extermínio em nome do divino não seria pelo entendimento à época que se tinha de sua vontade, por uma concepção de conquista sob viés religioso e não significa que se trata da vontade de Deus para decidir o destino de povos? Quem a saberá? Eis uma questão que a teologia, como um saber humano, pode meditar como reflexão em torno de hipóteses, mas não tem como respondê-la plenamente. Deus não é objeto da teologia, isso não é possível.

Contudo, penso, é gravíssimo, na mentalidade que se dispõe no tempo presente, o aceite de uma fé como válida, tolerada quando se verifica louvor a narrativas na defesa da ideia de legitimidade em se tirar a vida de uma pessoa em função de uma determinada crença religiosa.

01/11/2023 22h12

Imagem: herancajudaica.com

Talmude Babilônico

“[…] Therefore the man was created singly, to teach that he who destroys one soul of a human being, the Scripture considers him as if he should destroy a whole world, and him who saves one soul of Israel, the Scripture considers him as if he should save a whole world.[…]”

Obra: The Babylonian Talmud. TRACT SANHEDRIN (SUPREME COUNCIL). CHAPTER III. Volumes 1-10, 1918. Traduzido para o inglês por Michael Levi Rodkinson (Bielorrússia/Dubroŭna, 1845-1904).

A sacralidade da vida nas tradições orais judaicas – por pastor Abdoral

Uma sabedoria lembrada na morte de judeus brutalmente assassinados pelo HAMAS, enquanto ignorada no Estado de Israel quando bombardeia civis em Gaza.

Nesta tradução para o inglês, feita por Rodkinson, chamou-me a atenção o “of Israel” em “who saves one soul”, que restringe o sentido em relação à expressão popularizada; “Quem salva uma vida salva o mundo inteiro“.

Estudar o Talmude Babilônico é, à mon avis, voltar-se às tradições orais em torno da תּוֹרָה (LEI) para mergulhar profundo em raízes do judaísmo, desde os tempos dos fariseus e, entre inúmeras razões, aprender mais sobre ensinamentos preciosos que foram compilados e fizeram parte da formação intelectual do mais importante judeu (pelo menos aos olhos da fé cristã) de todos os tempos: Jesus de Nazaré.

Na tradução baseada na Soncino Talmud Edition (Talmud – Mas. Sanhedrin 37a, p. 155):

“[…] FOR THIS REASON WAS MAN CREATED ALONE, TO TEACH THEE THAT WHOSOEVER DESTROYS A SINGLE SOUL OF ISRAEL, SCRIPTURE IMPUTES [GUILT] TO HIM AS THOUGH HE HAD DESTROYED A COMPLETE WORLD; AND WHOSOEVER PRESERVES A SINGLE SOUL OF ISRAEL, SCRIPTURE ASCRIBES [MERIT] TO HIM AS THOUGH HE HAD PRESERVED A COMPLETE WORLD. […]”

Tirar a vida de uma pessoa é “destruir um mundo”. No argumento, pela tradução Soncino, matar consiste em um ato de gravidade que não pode ser compensada em relação ao que ocorre com um dano material não letal (civil), onde se é possível fazer uma restituição monetária (expiação).

Cita-se o caso do sangue clamado ao fraticida Caim. Aqui faço uma citação da Bíblia Almeida (ACF, 2000):

8. E falou Caim com seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra seu irmão Abel, e o matou.

9. E disse o SENHOR a Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: Não sei, sou eu guardador do meu irmão?

10. E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra.

(Gênesis 4)

A discussão no Talmude não cita a passagem bíblica diretamente; faz referência a ela.

No argumento, entre outras questões que são abordadas na Sanhedrin 37a), não se trata apenas do sangue do irmão assassinado que “clama”, mas de todos os seus (potenciais) dependentes. O juízo individual se impõe pela consequência do impacto coletivo pois, quando se destrói uma única alma (vida), é interrompido seu “mundo inteiro” ou seja, sua trajetória, sua potencial descendência, suas possíveis realizações e assim, quem preserva uma vida, preserva um direito natural sagrado, conserva essa possibilidade ou salva esse “mundo completo” que se pode ter com descendentes a partir de uma existência humana.

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