Imagem: Luciana Amorim

Sacellum Sixtinum

“Eu vos disse tais coisas para terdes paz em mim. No mundo tereis tribulações, mas tende bom ânimo. Eu venci o mundo.”

Obra: A Bíblia de Jerusalém. Evangelho Segundo São João. Capítulo 16, versículo 33. Paulus, 2000, São Paulo. Imprimatur 01/11/1980.

Vaticano, dezembro de 2018, estávamos em um grupo de visitantes formados por italianos, onde no áudio seguia uma verdadeira aula de história da arte e da fé, promovida pela guia encarregada de nos assistir na ocasião, uma italiana que trabalha como professora em Roma.

A experiência da visita guiada chegava ao fim próximo à Sistina. Enquanto me aproximava do acesso à Capela, a professora pediu para que o grupo não deixasse de observar na abóboda alguns detalhes, entre os quais estava a pintura de São Bartolomeu no Juízo Final. Momentos antes da entrada ela finalizou contando um breve resumo da vida do maior artista do século XVI, Michelangelo (1475-1564), além de lembrar outros grandes pintores que deixaram suas obras em afrescos contidos nas laterais.

Fiquei por quase 1 minuto paralisado quando me dei conta que estava na capela onde o papa é eleito, além das pinturas que estão entre os maiores patrimônios artísticos de todos os tempos. Quando identifiquei o afresco do Juízo Final, então me lembrei do que a professora-guia tinha comentado sobre a vida extremamente atribulada de Michelangelo, em vários sentidos, de constantes conflitos familiares a muitos problemas financeiros, mesmo sendo o mais prestigiado entre os artistas, passando por uma carreira profissional intensa, com uma agenda muito desgastante; o gênio sofredor fora uma celebridade devotada ao trabalho de excelência. Ele não estava nem um pouco preocupado com a própria aparência pessoal e o que tinha para comer e vestir. Viveu em meio a crises de fé, tramas em que era alvo por conta da inveja e da competição ferrenha por trabalhos, padeceu em conflitos existenciais e melancolia, até chegar em polêmicas envolvendo sua possível homossexualidade, onde, apesar de estar no que hoje chamamos de ‘Renascença”, à semelhança da sexualidade de outro gênio, Leonardo da Vinci, vivia em um tempo ainda de extrema intolerância, em comparação com as melhorias do presente, para assumir publicamente essa posição.

Na pintura, o rosto de São Bartolomeu parece mesmo ser um autorretrato de Michelangelo, pelas características conhecidas de seu aspecto físico que era esteticamente nada apreciável para os padrões da época. Há uma faca em uma das mãos sinalizando o martírio, e na outra sua pele esfolada, para indicar o nível de profundo sofrimento que passou.

Seja São Bartolomeu ou Michelangelo retratado, naquele trecho da abóboda senti haver uma mensagem sobre o quanto a vida na fé pode ser atribulada, e o quanto essa verdade não contraria o sentido pedagógico da fé, pelo contrário, a aflição pode ser aproveitada em uma dinâmica de melhor conhecimento de si mesmo e da vida, antes de se voltar à promessa de triunfo, pois entendo que ambos estão amalgamados pela confiança na soberania divina.

Sofrimento, tribulação, angústia, injustiça, perseguição, o mal sobre o justo, questões que fazem parte de um roteiro de aprimoramento da fé na perspectiva raiz do movimento de Jesus, o que foi consolidado nos textos canônicos. É curioso que isso pareça ignorado dentro de muitas confissões que hoje afirmam ter base no Evangelho, quando prevalece uma fantasia que chamo de “ateísmo prático”, deveras competente para seduzir quem acredita na experiência de fé como uma espécie de seguro contra o mal, um escudo para livrar o crente do sofrimento e dos desencontros na vida, sendo capaz também de ser uma espécie de garantia de alguma prosperidade econômica.

Há dois problemas graves que observo nesse ateísmo prático travestido de fé em Cristo. O primeiro é que o Jesus dos Evangelhos é uma antítese. No final do capítulo 16 do Evangelho de João, Cristo reitera que a tribulação não poupará seus seguidores, isso em um contexto de um movimento marginalizado dentro do judaísmo. Com todo o seu poder, Jesus não vai impedir seus discípulos de sofrerem pela fé. Em suma, a fé que depositam nele não os livrará de sofrimentos, mas possibilitará que a paz seja encontrada no meio da aflição. Jesus oferece a paz na agonia porque “venceu o mundo” e sua conquista passa pelo sofrimento que cairá sobre Ele mesmo, o maior de todos mediante o sacrifício que sofrerá na crucificação. Jesus anunciou previamente aos seus discípulos um roteiro que passa inevitavelmente pela aflição em sua entrega até alcançar a vitória pelo significante que se tornará a mensagem da Cruz pela sua ressureição.

Outro problema do ateísmo prático de crentes nos dias atuais é o da fragilidade espiritual que os acomete pela ideia de que estar com Deus significa ser poupado de um grande mal, seja na forma de injustiça, adoecimento ou prejuízos materiais. Vi pastores, seminaristas e outras lideranças se perderem na “fé” (na verdade se perderam pela sensação de segurança ilusória do ateísmo prático), quando um grande mal os atingiu, direta ou indiretamente, enquanto pregavam sob a crença de estarem na presença de Deus.

Um ateu certa vez me provocou sobre onde estaria Deus para permitir que uma criança nasça cega ou com graves problemas nas faculdades mentais ou por que Deus nada faz para impedir que inocentes sofram grandes injustiças, sobretudo em conflitos armados. Eis uma forma peculiar de raciocínio que se encaixa com muitos crentes do ateísmo prático quando se veem em um dilema entre o sistema de prosperidade baseado na crença que adotaram e uma difícil realidade que precisam lidar diante de um mal que os acometeu, quando não caem no simplismo de associarem a causa do mal sofrido a alguma situação de pecado. Quando fui seminarista me deparei com pessoas aflitas que me procuravam sem entender porque alguém tão justo, bom, honesto, íntegro, verdadeiro, estava sofrendo tanto, seja por conta de uma doença, de uma injustiça ou de algum grande dano material. Pareciam atormentadas em saber se o mal aconteceu porque pecaram gravemente ou outra coisa que não ousavam comentar.

A partir desses questionamentos, fui aprendendo como o sofrimento inerente à vida acaba sendo um componente na maturidade de fé que transcende o plano em que me situo no momento. A história da Igreja é um compêndio de pessoas que cresceram na fé enquanto sofriam enormemente. Além da materialidade e das dores contidas neste plano terreno, notei um sentido superior onde esse mesmo sofrimento se torna meio, não fim em si mesmo, para uma experiência reativa por uma profunda busca de preenchimento de um vazio espiritual que somente Deus pode realizar.

Recentemente ouvi acerca de uma situação em que o interlocutor da área comercial me disse que tudo dera errado para ele neste ano. Resolvi fazer um exercício para elencarmos o que seria esse “tudo”, porque atualmente vivo muitos problemas relativamente complexos ocorrendo em paralelo, no entanto, quando apliquei o exercício em mim mesmo, percebi que o “tudo” que deu errado na verdade é quase nada, diante das inúmeras coisas que deram e continuam dando certo para mim, a começar das que não posso controlar e me mantêm consciente, ativo, determinado, assim como tenho aqueles que me amam atuando em meu favor sobre as coisas que me provocam danos, até alcançar os problemas que suportei ao longo da vida e que só foram possíveis de serem superados porque as tais infinitas coisas que não posso controlar deram e continuam a dar certo. Quando estou dormindo, inúmeras coisas que não controlo acontecem para que eu possa acordar. Quando encontro uma solução para um problema, são incontáveis as coisas que não posso intervir e que também precisam dar certo. A vida é um somatório de uma minoria ínfima de coisas que posso controlar com a infinidade de coisas que estão além do meu alcance. Não reconhecer isso é o caminho para o vazio espiritual, seja pela arrogância diante do sucesso, seja pela carência de maturidade para lidar com perdas ou algo muito desagradável.

O sofrimento em suas variadas formas também me sinaliza a limitação que tenho diante da imensidão da vida que me cerca, bem como acerca da ilusão do tempo. Na dor vejo um sinal de estímulo para uma superação, que pode ser bem aproveitado ou não. No lugar da morte como um fim, passei a concebê-la como um meio para outra realidade e assim penso estar em uma eternidade onde o que muda é a forma das coisas pelas quais faço parte.

Foi então que me voltei à pintura da abóbada de Michelangelo que me deixou paralisado na Capela Sistina e refleti do quanto de coisas deram errado na vida do gênio italiano enquanto produzia uma das maravilhas de arte universal. Pensei em outras histórias de vida de sucesso com muitas coisas que deram errado, de famosos a anônimos, passando por pessoas conhecidas e familiares. Em seguida votei à minha própria história, sobre o quanto de coisas negativas aconteceram, dos traumas que adquiri e me livrei, sobre o quanto de dores passei e nas coisas boas que consegui realizar enquanto sofria. Vi então que seria tão-somente ingrato de minha parte com Deus se ficasse olhando apenas para os males, além dos atuais que enfrento, sabendo que a aflição está no pacote que recebi gratuitamente chamado “vida”, e mesmo que não tivesse realizado nada que fosse considerado bem-sucedido para contabilizar até agora, ainda sim, independente disso, animou meu coração saber que encontraria paz no meio de qualquer agonia, porque o Cristo de João 16:33 vive em mim.

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