É tempo de sentar-se com a irmã natureza para ouvir Johann Sebastian Bach (Alemanha/Eisenach, 1685-1750) ao violoncelo de Yo-Yo Ma (France/Paris, 1955).

29/02/2024 23h26

Imagem: Students for Liberty

Thomas Sowell

“Em muitos países do Terceiro Mundo, boa parte – se não a maior parte – da atividade econômica acontece informalmente, porque leis e regulamentações burocráticas e de microgestão tornam muito dispendioso regularizar os negócios.”

Obra: Fatos e Falácias da Economia. Capítulo 7 – Fatos e Falácias do Terceiro Mundo. Record, 2017, Rio de Janeiro. Tradução de Rodrigo Sardenberg. De Thomas Sowell (EUA/Carolina do Norte, 1930).

Quando mencionei a um influencer contábil esse entendimento de Sowell (p. 257), por sinal básico em termos de conhecimento sobre economia, fiquei na dúvida se ele não compreendeu ou se não quis compreender dada a crença comum, entre contadores (seu público-alvo), de que a burocracia forçada pelo aparato estatal tão-somente beneficia a profissão contábil por gerar diversas “oportunidades” com as “obrigações acessórias” no velho dito de quem vive de oferecer facilidades para as dificuldades inventadas; neste ponto, o apelo mais kitsch que vi nesse meio tão bestializado, repleto “pensadores” caolhos que são reis diante de cegos da plateia, foi de um palestrante que falava sobre “empreendedorismo tributário” com uma empolgação impressionante.

O problema brasileiro do manicômio regulatório estatal é seríssimo porque está impregnado na psicologia coletiva. O brasileiro que reclama da burocracia pode ser o mesmo que concorda que o estado deva “tutelar” diversos aspectos de sua vida social, e não se dá conta que esse “estado-babá” tem que arrecadar muito para “garantir direitos” enquanto não percebe a gravidade que esse mesmo aparato vive de incentivos baseados em coerção, e por isso é tão ineficiente, e o tal brasileiro-massa ainda sonha com um emprego “público” onde sobram privilégios e salários elevados, irreais (arbitrariamente definidos, sem o realismo do mercado), em um bojo que retroalimenta a busca por mais arrecadação e mais controles do estado. Se é tão comum encontrar empresário que se volta à informalidade, no entanto, mais sinistro ainda é a figura do contador-massa que, ao se lamentar por clientes que vivem cada vez mais na informalidade, quando pergunto sobre possíveis causas do problema, o que normalmente escuto é que “falta mais fiscalização”, “há muita impunidade”, “o fisco tem que apertar mais”, “empresários sonegadores” seriam os culpados porque “só pensam no lucro” e, em casos mais extremos de alucinação econômica, escuto que “as leis atuais beneficiam os sonegadores e por isso devem ser mais rigorosas”. A impressão é de que as dificuldades criadas pelo aparato estatal não bastam e devem ser mais intensificadas. Assim fico a imaginar se todas as “leis da burocracia” fossem cumpridas neste país; sobraria alguma empresa além das maiores que aguentam pagar experts em hospício fiscal? Percebo então que a mentalidade do brasileiro, refiro-me ao tipo bem educado na crença do “estado tutor”, mostra-se tão intoxicada por ideias de estado Big Brother (embora se afirme o contrário), por controles burocráticos do aparato fiscal que, não raramente, demonstram não terem a menor noção de que é justamente essa burocracia insana do estado que provoca um custo elevado que estimula a informalidade e acelera o extermínio de negócios formais.

28/02/2024 22h21

Imagem: Portal da Literatura

Albert Camus

“A menos que se fuja à realidade, seria necessário que nela encontrássemos nossos valores. Longe do sagrado e de seus valores absolutos, pode-se encontrar uma regra de conduta?”

Obra: O Homem Revoltado. I. O homem revoltado. Record, 2011, São Paulo. Tradução de Valerie Rumjanek. De Albert Camus (Argélia/Dréan, 1913-1960.

Na essência do que não pode deixar de ser – por Heitor Odranoel Bonaventura

A pergunta de 1 milhão de dólares “formulada pela revolta” (p. 34), pensei ao escutar um jovem cujo pensar me remeteu à “mente líquida”, a lembrar Walter Riso [201] em referência à Zygmunt Bauman. Fora da sacralidade ou das formas descrentes dos tradicionalismos, há valores e, caso positivo, quais são as suas premissas? O ser que decide se revoltar contra algo referenciado na tradição vive um drama de respeitar o limite que descobre na própria revolta, enquanto está sob uma ordem coletiva de um sofrimento na decisão de contestar o que lhe foi estabelecido (p. 35).

Apenas pensei enquanto a ideia de liquidez se esvazia quando se almeja o que Nietzsche indicou como “transmutação de todos os valores”, aquela “vontade de poder”, mas não seria mais uma substituição de uma ordem tradicional por outra que nega o tradicional a caminho de ser essencialmente a mesma coisa? Pensei então nos engenheiros sociais que trabalham para dessacralizar o mundo contra valores estabelecidos pelas tais “elites”, como se o poder que exercem não fosse dessa estirpe; não estariam então em uma luta para determinar coletivamente os próprios valores travestidos de “evolução” para quem não consegue entender a própria submissão? Um ato de reconstrução de valores é uma dialética, no poder de estabelecer referenciais, força que encontrará uma síntese no seu próprio sistema de valores, vindo a ser um sistema ou, para tomar Hegel por empréstimo, uma tese pronta para ser contestada por uma nova antítese desbravadora de algum revoltado e assim caminha a humanidade nessa insistente revolta avessa ao sagrado e a valores tradicionais, replicando em forma diversa o que na essência não pode deixar de ser.

201. 07/01/2024 11h55

27/02/2024 21h19

Imagem: palquest.org

Edward Said

“It seems inexplicable to me now that having dominated our lives for generations, the problem of Palestine and its tragic loss, which aected virtually everyone we knew, deeply changing our world, should have been so relatively repressed, undiscussed, or even remarked on by my parents.”

Obra: Out of Place. VI. Vintage Books, 1999, New York. De Edward Wadie Said (Jerusalém, 1935-2003).

O que mais compromete uma melhor compreensão dos problemas entre palestinos e israelenses, penso, está na leitura do conflito através de um fio ideológico conforme conveniências que excluem a realidade de pessoas simples, de judeus cercados por nações vizinhas onde muitos não aceitam sua existência, e de palestinos que foram obrigados a deixarem o lar e/ou submetidos a um estado soberano sionista permeado de inevitáveis conflitos de interesses. Não se trata de ter um lado, de ser “pró isso” ou “pró aquilo”; neste aspecto penso o quanto os judeus sabem profundamente sobre o que é sofrer discriminação e violação, bem como imagino o peso do significado de tornarem a terra de seus antepassados. Ironicamente essa sabedoria judaica parece confrontada com o drama palestino.

E ao tentar não cair em um viés, penso na profundidade deste relato pessoal de Edward Said, com os detalhes que conta sobre sua família e a tragédia que acometeu quase todos que conheceu, no advento da ocupação israelense. Este livro me sinalizou, de forma especial, a triste indiferença do mundo ocidental com os palestinos. Do famoso professor Said, penso no pai e na mãe que levam os filhos e o pouco que restou, enquanto contam seus mortos, uma história de refugiados que se repete desde o final do mandato britânico. Nas imagens de Gaza que chegam do atual conflito, reflito sobre a lição do quanto é danoso a leitura enviesada da Palestina quando vidas inocentes são destruídas; pelo viés pró Israel, a ênfase maior nos problemas do radicalismo que não aceita o estado judaico, nem a identidade judaica, que descamba ao terrorismo islâmico, questões legítimas, enquanto não se demonstra interesse na situação caótica de civis palestinos que não podem se defender; mulheres, crianças, idosos, massacrados pela força militar que advoga pela defesa de Israel. Por outro lado, medito no outro viés; o da esquerda que enaltece o sofrimento Palestino mas, em função de sua patologia ideológica, acena com simpatia ao radicalismo islâmico e assim não reconhece politicamente como terroristas, braços armados como o que opera pelo HAMAS. E no meio desse caos de leituras viciadas e indiferenças com o sofrimento humano, de uma situação que atravessa décadas, encontro esta comovente obra de Said, sobre o que é sentir na pele um drama que muitos tentam explicar inadvertidamente por um viés.

26/02/2024 00h01

Imagem: SDS

Hans Woller

“Perciò, non è vero che i provvedimenti antisemiti in Italia siano da ricondurre all’influenza tedesca.”

Obra: Mussolini, Il Primo Fascista. Roma, 17 novembre 1938. Il razzista e antisemita. Carocci, 2018, Roma. De Hans Woller (Alemanha/Aldersbach, 1952).

Entende o historiador alemão, nesta obra adquirida em 2018 para marcar minha visita a Milão, que o antissemitismo na Itália fascista não se deu por influência do nazismo alemão (p. 137), contrariando o que escutei em algumas aulas durante os anos 1990.

Hans Woller conta que, no início do governo, Mussolini não deu atenção às questões judaicas, que judeus até mesmo eram membros do partido Fascista, não havia questionamento no partido sobre a religião professada por seus membros e o próprio Mussolini confiou cargos governativos a judeus. Contudo, no final dos anos 1920 a coisas começaram a mudar (p. 135), aponta.

Mussolini, no final dos anos 1920, começou a demonstrar aversão a judeus, afastou-se de lideranças judaicas como Margherita Sarfatti e chegou a proibir a própria filha de se casar com um homem de fé judaica em meio ao entendimento de que judeus estariam por trás das decisões políticas em Paris e Londres que prejudicavam seus interesses na África, mediante a Sociedade das Nações em 1935; afirma Hans Woller que “os judeus o inquietavam, temia a sua presente influência em todo o mundo” (p. 135).

Na medida em que o regime de Mussolini foi se tornando totalitário, o antissemitismo se consolidou como uma característica comum com o nazismo, mas não havendo a influência nazista no fascismo na mudança ocorrida no final dos anos 1920 na política de Mussolini em relação aos judeus, o que explicaria o antissemitismo comum aos movimentos? Penso que a autonomia judaica que parte da identidade cultural, passa pela política e alcança a economia, choca-se com todo movimento populista versado no nacionalismo extremo, doutrina comum no fascismo e no nazismo. No entanto, aponta Hans Woller, a “solução final” pensada por Mussolini em 1940, um ano antes da decisão de Hitler na Alemanha, envolvia ” arianização” de judeus casados com não judeus, afastamento dos demais e, apesar de ter aplicado uma duríssima legislação antissemita, não se voltou ao extermínio, prática genocida que marcou a política nazista (p. 141).

25/02/2024 15h44

Imagem: DW

Wannsee Conference 1942

“Approximately 11 million Jews will be involved in the final solution of the European Jewish question, distributed as follows among the individual countries:

Country Number

A. Germany proper 131,800
Austria 43,700
Eastern territories 420,000
General Government 2,284,000
Bialystok 400,000
Protectorate Bohemia and Moravia 74,200
Estonia – free of Jews –
Latvia 3,500
Lithuania 34,000
Belgium 43,000
Denmark 5,600
France / occupied territory 165,000
unoccupied territory 700,000
Greece 69,600
Netherlands 160,800
Norway 1,300
B. Bulgaria 48,000
England 330,000
Finland 2,300
Ireland 4,000
Italy including Sardinia 58,000
Albania 200
Croatia 40,000
Portugal 3,000
Rumania including Bessarabia 342,000
Sweden 8,000
Switzerland 18,000
Serbia 10,000
Slovakia 88,000
Spain 6,000
Turkey (European portion) 55,500
Hungary 742,800
USSR 5,000,000
Ukraine 2,994,684
White Russia
excluding Bialystok 446,484

Total over 11,000,000″

Obra: The Wannsee Conference. January 20, 1942. holocaust.umd.umich.edu. Por oficiais da SS, secretários do Estado germânico e representante do Partido Nazista.

É a obra mais abjeta do século XX, a experiência mais triste que me deparei em toda minha experiência de leitor.

O crime do século – Foi no dia 20 de janeiro de 1942 que se deu um dos dias mais sombrios da historia da humanidade, na formalização do protocolo para a “solução final” à questão judaica sob a ótica nazista, quando oficiais da SS, secretários do Estado germânico e Gerhard Klopfer, do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães a representar Martin Bormann, reuniram-se (p. 1) em uma mansão em Wannsee, Berlim, para uma conferência com o objetivo de definir os detalhes da “solução final” a partir de territórios europeus sob domínio alemão, intencionando também judeus de territórios não ocupados e das nações neutras (Suíça, Irlanda, Suécia, Espanha, Portugal e Turquia Europeia), processo deflagrado por ordem de Hitler no ano anterior, e que consistia em remover, da presença ariana, cerca 11 milhões de pessoas de origem judaica.

O chefe do Escritório Central de Segurança do Reich, o general da SS Reinhard Heydrich, comandou a conferência, que abordou sobre questões suscitadas da legislação de Nuremberg para definir quem seria ou não judeu diante da ordem de Hitler, por conta de situações especiais a envolver descendentes de uniões mistas, sobretudo em casos de cidadãos da Alemanha que serviram às forças armadas germânicas desde a Primeira Guerra.

O documento é ambíguo, não registra como seria executada em detalhes a “solução final” e a expressão “evacuação para o leste” seria um código de “ordem de extermínio”, o que se verificou no processo de julgamento de Adolf Eichmann na Corte de Jerusalém (p. 76):

“The order for extermination was given by Hitler himself at a time close to the date of the invasion of Russia. We do not know if the original order was ever put in writing. At the Wannsee Conference – upon which we shall dwell later – Heydrich speaks of the extermination order in disguised language (“the evacuation of the Jews to the East”) as having been confirmed by the Fuehrer as a possible solution instead of emigration (T/186, p. 5). Also Luther, a Foreign Ministry official, states in a memorandum T/196, quoting Heydrich, that the order for “evacuation to the East” was Hitler’s order” [200].

Fato é que o massivo uso de câmaras de gás para assassinato em massa de judeus se deu após essa conferência de forma intensa, assim como a destinação de judeus para trabalhos forçados na construção de infra estrutura onde havia separação por gênero (para evitar procriação) e até esterilização.

200. IN THE DISTRICT COURT OF JERUSALEM, Criminal Case No. 40/61, Before His Honour JUDGE MOSHE LANDAU (Presiding), His Honour JUDGE BENJAMIN HALEVI, His Honour JUDGE YITZCHAK RAVEH For the Prosecution: THE ATTORNEY GENERAL, The Accused: ADOLF, son of Karl Adolf, EICHMANN.

24/02/2024 14h18

Imagem: harrietbraiker.com

Harriet Braiker

“[….] Visto de forma psicológica, o mundo da agradadora compulsiva é um lugar perigoso, cheio de pessoas poderosas que são controladoras, exigentes, rejeitadoras, exploradoras e punitivas.[…]”

Obra: A Síndrome da Boazinha. Como curar sua compulsão por agradar. Parte I. Capítulo 4. Colocando os outros em primeiro lugar. BestSeller, 2022, Rio de Janeiro. Tradução de Marcelo Schild. De Harriet B. Braiker (EUA/Califórnia/Los Angeles, 1948-2004).

A edição que disponho desta obra é a 15a. Foi a psicóloga clínica que em The Type E Woman: How to Overcome the Stress of Being Everything to Everybody, indicou que o estresse Tipo A entre homens é insignificante em comparação com o que as mulheres experimentam, sendo de sua autoria o termo “estresse Tipo E”, classificação que ajudou a compreender melhor esse tipo de problema em mulheres e a inseriu como referência internacional.

No livro há alguns questionários ao leitor para melhor compreensão do problema da compulsão por agradar pela crença central de que os outros devem vir em primeiro lugar e meio ao entendimento de que não proceder assim é egoísmo (p. 70), e um receio dessa natureza alimenta a crença de que se as necessidades dos outros não forem priorizadas, haverá sempre rejeição, abandono e punição de alguma forma (p. 83).

No questionário Você põe os outros em primeiro lugar?, há um score em três faixas onde a autora discorre sobre os resultados (pp 71-73). Há também histórias que servem para ilustrar o problema; Sarah, sob a compulsão por agradar os outros, perdeu a noção das próprias necessidades (p. 76) e, em minha reflexão, teve que lidar com consequências que se deram por reações negativas dos filhos e do marido, cuja vida de mimos tanto dedicou como “supermãe” e esposa exemplar, quando adoeceu e precisou de ajuda, porém viu a ingratidão e a imaturidade nas formas de irritação e ressentimento pelos transtornos causados pela sua enfermidade, questão que se relaciona com que a autora sintetiza sobre o estresse do compulsivo por agradar que tem potencial para atrair doenças, depressão e outros problemas sérios que, na ocorrência, fazem com que as pessoas que dependem do agradador compulsivo também sofram. (p. 77).

Cuidar bem de si mesmo é uma chave para poder cuidar bem dos outros, porém, um compulsivo por agradar pode ter ficado surdo para ouvir a própria voz interior sobre suas necessidades (p. 78). Então, nesta obra a dr. Braiker orienta como encontrar o processo de cura em 21 dias.

23/02/2024 23h30

Imagem: DW

Nietzsche

“O doente é um parasita da sociedade. Quando se chega a certo estado, não é conveniente viver mais tempo.”

Obra: Crepúsculo dos Ídolos. Passatempos intelectuais. 36. Moral para médicos. Nova Fronteira, 2017, Rio de Janeiro. Tradução de Edson Bini e Márcio Pugliesi. De Friedrich Wilhelm Nietzsche (Reino da Prússia/Röcken, 1844-1900).

Entrei em uma livraria em 2018 e lá estava a edição em capa dura que decidi comprar por memórias dos meus 21 anos, quando incapaz de perceber o viés do professor, a aula corria normalmente até que um colega a menciona e afirma: “Nietzsche foi um eugenista que inspirou Hitler”. O olhar do docente, que tempo depois entendi o quão tinha de fascinado por Nietzsche e Foucault, para o provocador aluno foi de maneira que não esqueci a ponto de lembrá-lo 20 anos depois, na era dos memes, naquele em que o chefe atira o subordinado pela janela após ouvir dele um comentário indesejado.

Nove anos depois de ouvir falar pela primeira vez desta obra, estava na biblioteca do seminário mediante a obra e lembrei-me da cena. Quando cheguei no trecho, pensei: parece que está mais para de um defensor da eutanásia e feroz crítico do cristianismo; sagrada é a vida à esta fé, independente das circunstâncias, o que parece ter incomodado bastante Nietzsche na busca por sua nova humanidade desbravadora. Entretanto, nada impede de um psicopata encontrar nesta parte do texto uma inspiração para eugenia, e não pensava na interpretação do colega que provocou o professor e sim na patológica figura histórica mencionada. Mas depois percebi que não poderia ser apenas isso a considerar a filosofia do homem desbravador além da moral estabelecida, capaz de enfrentar dilemas existenciais com certa ousadia, e isso não é necessariamente um elogio de minha parte; Nietzsche é o filósofo do “além do-homem” na terra mesmo e não em um céu idealizado em crenças religiosas.

Nietzsche, a princípio, parece apenas mais um eutanasista quando advoga pela “morte livremente escolhida, no dia assinalado, com lucidez e coração alegre, em meio a meninos e testemunhas, quando ainda é possível um adeus real” (pp 96-97), e quando reitera que “por amor à vida se deveria se desejar uma morte livre e consciente, sem acaso e sem surpresa” (p. 97) pensei à época, embora também afirme ser favorável a um poder do médico para que “corte sem compaixão a vida degenerada” (p. 96), enquanto acusa de “lamentável comédia” o cristianismo na hora da morte, neste ponto seus argumentos contra a vida sob sofrimento de uma doença me faz pensar no tal psicopata ariano na política pública de impor o extermínio de doentes terminais, crime estendido a portadores de deficiência e a sãos que entendia como indesejáveis, no suposto intento de aprimorar o que definia sobre “espécie superior”, o que fomentou seu antissemitismo.

Uma curiosa experiência com esta obra, sobretudo no trecho desta leitura (p. 96), deu-se quando um tempo depois, comentei sobre os argumentos de Nietzsche e um sujeito entendeu que sou um “advogado dele e da eutanásia”, naquela triste ocorrência dissonante cognitiva quando não se sabe diferenciar o que é explanado de quem apresenta ideias alheias, para usar um eufemismo, pois talvez fosse um caso de desonestidade intelectual em propositalmente confundir o que foi explicado com quem explica; não sei, enquanto pensei o quanto encerrar o dom da vida, fora da ordem natural das coisas, é assumir uma posição que não me pertence.

22/02/2024 23h18

Imagem: Princeton Theological Seminary

Karl Barth

“Por isso sustento que a analogia entis é uma invenção do anticristo, e penso que exatamente por causa dela não é possível tornar-se católico. Quero acrescentar ainda que todas as outras razões que se podem aduzir para não se tornar católico parecem-me pueris e sem importância.”

Obra: A teologia do século XX. Edições Loyola, 2012, São Paulo. Tradução de João Paixão Neto. De Rosini Gibellini (Italia/Gambara, 1926-2022).

Bastante respeitado no catolicismo romano, o mais importante teólogo protestante do século XX sintetizou. Ouvi algumas vezes que Barth foi o “Tomás de Aquino” dos reformados não católicos, e este trecho é um dos pontos que ocuparam minha mente por anos desde a experiência no seminário. Por que não sou católico romano?

O “anticristo” citado por Barth se reporta à cristologia que predomina no meio protestante que é justamente o ponto mais crítico dessa relação tensa, o que para o catolicismo romano é uma característica da fé nos instrumentos de adoração e salvação, no protestantismo é causa de discórdia com cristãos do papado. Imagino que muitos reformados vivem o que Barth discorre e podem não fazer a menor ideia do que significa, da complexidade da analogia entis a versar sobre a relação estendida entre a humanidade e a divindade de Cristo, um problema que demarca os limites das fés católica romana e protestante; a primeira resolvida na questão para celebrar essa relação do Cristo homem e o Cristo Deus, e a segunda a recusa quando tem que lidar com o mundo concreto dos mortais. Penso que não se identificar com desdobramentos que podem ser observados no catolicismo, sobretudo nos sacramentos e na crença da presença de Cristo na sua celebração é uma forma de racionalizar uma ideia de Deus; o catolicismo se situa entre a divina pessoalidade e a adoração à encarnação de Cristo; refiro-me aqui à eucaristia, enquanto a fé sem analogia entis se versa em uma simbologia e um memorial; para isso, basta observar a santa ceia em igrejas evangélicas protestantes.

O problema das imagens é um desdobramento “pueril” de uma questão que entendo ser bem mais profunda. O papado é outra questão menor para explicar essa identidade não católica romana que tenho. Enquanto um católico romano se volta às imagens como reflexo da forma como lida com a encarnação divina e de seus antepassados heróis da fé, não os vejo como idólatras (embora no protestantismo essa acusação esconda uma rasa compreensão do problema suscitado por Barth), percebo que ser católico é uma identidade de crença, uma forma de vivenciar a fé por meio de sinais externos da graça nos atos litúrgicos da encarnação e da divindade. É por isso que Maria, a mãe de Jesus, possui um significado concreto e bem mais profundo no catolicismo, mãe de Deus, em comparação com o protestantismo.

A indicação de Barth é um caminho para entender as raízes do que se dá no imaginário popular pelo estresse militante entre os mais contundentes das duas fés. Penso que aquilo que nos separa de uma forma, não impede um reencontro de outra, pela escuta do outro, isso após cada parte entender a própria identidade e respeitar a outra. Lamento quando católicos e protestantes gastam tempo em discussões e acusações diante de suas identidades. Como fica o coração de Cristo entre filhos que se acusam mutuamente de heresia?

No mais, apesar de minha intimidade espiritual a considerar a definição deste princípio negacionista de Barth, sou assim e não consigo explicar; foi a fé que me foi dada, da mesma forma que vejo um católico romano expressar sua crença. No sentido de uma forma de experimentar a fé (sem ver a outra como “invenção do anticristo”), talvez seja por isso que, curiosamente, consigo contemplar a fé católica romana e me admirar com suas manifestações, reconhecer a importância de sua liturgia, apreciar sua história e aprender com suas tradições; percebo sua dinâmica para chegar até a Cristo e quando torno à minha identidade de fé, entendo como um outro caminho igualmente válido com significado mais profundo em minha alma; é existencial, uma realidade minha que sinto e não careço de impor a outrem. Não acredito em monopólio institucional de salvação de almas e sim no mistério da fé como graça divina; aqui o protestantismo batista ainda fica nítido. Não creio em exclusivismo. Em outras palavras, acredito na igreja Católica, no sentido dado no seu nascedouro, “inteira”, “universal”, o corpo de Cristo, e assim me permito à esperança de um momento sublime em que católicos e protestantes possam se reencontrar, não mais para condenar o outro, e sim para celebrar na apoteose do Reino pela divindade de Cristo; eis o milagre comum às duas fés.

21/02/2024 22h00

Imagem: Sitio San Francesco

Tommaso d’Aquino

“É preciso que tudo o que se move seja movido por outro. Assim, se o que move é também movido, o é necessariamente por outro, e este por outro ainda. Ora, não se pode continuar até o infinito […]”

Obra: Suma Teológica. Volume I. ARTIGO 3. Deus existe? Edições Loyola, 2001, São Paulo. Tradutores (p. 7). De San Tommaso d’Aquino (Regno di Sicilia/Roccasecca, 1225-1274).

Em 2004 li pela primeira vez as questões 2 e 3; reli, pensei no que me falaram da “idade das trevas” (uma das maiores fantasias ensinadas em salas de aula), então tornei às cinco vias e fiquei perplexo pela simplicidade e sofisticação com que o doutor angélico discorre de forma metafísica e irrefutável as provas da existência de Deus.

Não da parte docente, pois tive o privilégio de ter sido aluno de João Ferreira Santos, o professor que proporcionou o sentimento mais intenso de respeito pelas diferenças e de apego pelo saber mais inspirador que tive em toda vida de estudante formal, contudo, enquanto fascinado pelo professor baiano e pelo italiano teólogo católico romano, notei um certo desinteresse discente pela profundidade da Suma Teológica, não sei se porque estava em um seminário protestante e a psicologia coletiva tende a ter maior interesse nos reformadores, ou por pragmatismo que se pauta em coisas mais “contextualizadas” de quem busca um “título”, quem sabe por um “futuro” onde não há tempo nem espaço para o amor a filosofia que ultrapassa bolhas denominacionais e reside em almas não envolvidas em anseios por apetrechos mais imediatos e utilitários do “sucesso pessoal”.

“Tudo o que se move é movido por outro” e nesse encadeamento há um primum movens (p. 166); “os motores segundos só se movem pela moção do primeiro motor, como o bastão, que só se move movido pela mão” (p. 166). Nessa via Deus é o primeiro motor; tem que haver um inicial, a origem das coisas que se escoam no tempo e no espaço. Lembro-me de sorrir e de me emocionar quando consolidei a essência das provas nas outras quatro vias, enquanto escutei de um burocrata, mais preocupado com as coisas que falei no parágrafo anterior, “qual a graça nisso?” e me dei conta de que essa primeira via é irrefutável; se não fosse verdade, de tão pura, cristalina, apesar de estar no âmbito metafísico, se um ateu realimente acreditasse (haja fé) que um nada pode causar algo, então a ciência, como se apresenta, perderia sua razão de ser, não teria orientação pelo saber de sujeitos e objetos, seria um delírio carente de fatores causantes do movimento, das mudanças, cairia no vazio como se dá na confusão do desconhecimento das causas com a inexistência de algo, e assim mergulharia no que hoje ocorre com as sociedades líquidas e deformadas no relativismo.

Então pensei sobre o intelecto como recurso para racionalmente sentir a verdade da existência de Deus e meditei em quem, por inúmeras razões e circunstâncias, não dispõe de tal recurso na profundidade necessária, e não por isso é diminuto ou se perde no espírito, pelo contrário; o poético e belíssimo da fé consiste em acreditar mesmo sem a oportunidade de ter conhecido e compreendido a beleza da Suma de São Tomás de Aquino.

20/02/2024 23h30

Imagem: paul-tillich.com

Paul Tillich

“Parece que Lutero não conhecia Tomás de Aquino.”

Obra: História do Pensamento Cristão. Capítulo III – O Mundo Medieval. L. Doutrinas de Tomás de Aquino. ASTE, 2000, São Paulo. Tradução de Jaci Maraschin. De Paul Johannes Oskar Tillich (Alemanha/Starzeddel, 1886-1965).

Um dos mais importantes teólogos protestantes (de origem luterana) do século XX assim se refere a Lutero em relação a um dos pontos de maior relevância da teologia de Tomás de Aquino; o pensamento determinista derivado do intelectualismo. Tillich avança e afirma que Lutero “conhecia bem os teólogos nominalistas que vieram depois, dos quais se pode dizer que deformaram o escolasticismo”, contudo Tillich menciona que Lutero “atacava-os” (p. 200); aqui, pensei, talvez ele amenizou a fala, dada sua origem de fé.

Lutero foi uma linha do fenômeno pelo qual levou a fama maior em relação ao reformismo que foi rotulado de “protestantismo”. O calvinismo é outra linha desse reformismo que se aproxima (um tanto cambaleante pelo problema que teve com a natureza humana e a aversão à filosofia clássica) de Tomás de Aquino quanto à predestinação (uma ideia sofisticada, mais elaborada na escolástica que Tillich aborda no contexto da afirmação desta Leitura face à origem agostiniana, o que é curioso pois Lutero foi um monge agostiniano e não pesou tanto a causalidade, além dos problemas com o nominalismo) em função de diversos fatores, no entanto, o lado reformista assim o fez de forma precária, e filosoficamente vazia, isto posto, penso que os cinco argumentos de Tomás de Aquino em favor da existência de Deus (pp 198-199), os quais Tillich resume quanto ao ponto comum da categoria da causalidade (p. 199) face ao movimento que exige causa (1), a causa de todas as coisas que evita a regressão infinita (2), o necessário absoluto que deve haver de onde se originam as coisas contingentes (3), a relação das coisas como meios a um propósito final (4) e os graus de perfeição que são distintos e indicam que deve existir o absolutamente perfeito para distinção das escalas de perfeição (5), a lembrar o lado mais interessante do luteranismo (o poder da síntese, afinal, ele foi um teólogo luterano); penso assim que Tomas de Aquino, e o que vou afirmar adiante só é possível quando se desvencilha de paixões doutrinárias e institucionais, é para mim um exemplo de como o catolicismo romano é superior intelectualmente em comparação com o protestantismo em uma visão ampla da teologia.

19/02/2024 00h01

Imagem: HEARTLAND

Murray Rothbard

“É muito comum afirmar que os defensores do mais absoluto livre-mercado têm uma única, fundamental e débil hipótese: de que todos os seres humanos são anjos. Numa sociedade de anjos, é comumente aceito, que tal programa poderia “funcionar”, mas não em nosso mundo falível. O principal problema dessa crítica é que nenhum libertário – com exceção talvez daqueles influenciados por Liev Tolstói (1828-1910) – jamais cogitou tal hipótese. Os defensores do livre-mercado não supõem uma reforma da natureza humana, embora certamente não apresentariam objeções, caso tal reforma acontecesse. […]”

Obra: Governo e Mercado: A economia da intervenção estatal. 4. A Moralidade da Natureza Humana. Mises Brasil, 2012, São Paulo. Tradução de Márcia Xavier de Brito e Alessandra Lass. De Murray Newton Rothbard (EUA/Nova Iorque/Nova Iorque, 1926-1995).

Em seguida Rothbard cita F.A Harper (p. 229) sobre o problema da malignidade humana envolver o governo político sob a mesma alegação acerca do livre-mercado. Se os seres humanos não são anjos, como a ordem estatal se livrará deste dilema, pois é composta pelos mesmos seres humanos e não por anjinhos inofensivos.

Libertários invertem o sentido do raciocínio em favor da necessidade do Estado ao indicarem que este aparato “fornece um canal fácil e rápido para o exercício do mal, já que os governantes do estado são, por intermédio de tais elementos, legitimados e podem exercer a coação de modos não permitidos a mais ninguém” (p. 229). Liberais se diferenciam de libertários neste ponto com maior evidência, à mon avis.

Liberais reconhecem a inviabilidade da economia de planejamento central (socialista), à semelhança dos libertários; liberais defendem, no entanto, a presença regulatória do Estado para conter externalidades ou falhas de mercado, onde residem problemas de moralidade, entre outros, o que os alinha com progressistas, marxistas ou não, enquanto libertários advertem que é justamente pelo aparato estatal regulador que a disseminação dos problemas de moralidade passa a ser facilitada pela legalização da imposição do governo político e que o livre-mercado “elimina todos os canais legitimados para o exercício do poder sobre o homem” (p. 229). Uma questão que penso neste ponto é o sentido para a expressão “poder sobre o homem”, onde a crítica socialista se identifica, pois “poder” não se limita ao político, obviamente, embora seja superior a qualquer outra forma, o poder econômico de um indivíduo tende a ser exercido sobre outros de menor envergadura a considerar como funciona o mercado, uma questão que se relaciona com o problema da desigualdade econômica que deriva o conceito de justiça social. Então socialistas exploram essa questão e se voltam à necessidade de um forte aparato estatal para conter o poder econômico que é indicado como causador da opressão sobre os mais vulneráveis, mas novamente ocorre o problema desse aparato estatal se tornar um canal para ser usado de forma moralmente reprovável, não apenas por políticos que se corrompem no poder, mas inclusive por maiores detentores do poder econômico (o que normalmente acontece), onde os mesmos socialistas que defendem o aparato estatal para realizar a “justiça social” acabam como aliados de poderosos que tanto recriminam, e assim esse ciclo de vícios no poder político parece interminável.

Torno à obra de Rothbard e penso no problema da igualdade compulsória, quando o governo político estabelece políticas públicas para forçar ajustes na concentração de riqueza e nas oportunidades. Libertários apontam que a igualdade compulsória irá “reprimir o incentivo, eliminando os processos de ajuste da economia de mercado, destruindo toda a eficiência em satisfazer o desejo dos consumidores, reduzindo em grande escala a formação do capital e causando o consumo do capital” (p. 230) ou intervenção governamental tende a ser contraproducente, produz iatrogenias, efeitos colaterais que denotam danos até maiores do problema que a política pública intencionou resolver; aqui penso em coisas comuns no imaginário coletivo como controle de preços que prejudicam a cadeia de produção por desorientar o sistema de preços dos insumos a provocar desabastecimento no ponta de consumo, reajustes compulsórios de salários que provocam demissões em massa, imposição de legislação trabalhista com diversos direitos que encarecem o custo de contratação e incentivam a informalidade.

Por fim, outro ponto de destaque desta leitura, que completou 10 anos, dá-se na questão apresentada por Rothbard sobre o que chamo de “paradoxo da igualdade humana” ou:

“Mas, se a humanidade é diversa e individualizada, como alguém pode propor a igualdade como ideal?” (p. 231)

A economia e a sociedade são resultantes da condição humana como ser individual, penso, com suas peculiaridades, desejos, visões de mundo, valores, crenças, enquanto temos uma essência humana que nos autentica como “semelhantes”; o problema é que os igualitaristas se apegaram ao segundo ponto, enquanto o primeiro é o que pesa com maior incidência na ordem social (cada indivíduo em sua liberdade de ser), embora há momentos em que o segundo se torna mais evidente, por exemplo, de forma relativa quando seres humanos que compartilham valores semelhantes se associam ou de forma absoluta acerca da finitude humana, do ciclo da vida que se aplica a todos e se encerra, mas essas condições comuns não alcançam as individualidades que dizem respeito às peculiaridades que mencionei no sentido de neutralizá-las por inteiro, salvo quando um aparato compulsivo impõe determinados parâmetros e valores a todos, o que inevitavelmente entrará em conflito com a individualidade do ser humano.

Então, penso, o Estado, entre tantas coisas, é uma arena de conflitos de reguladores com a sociedade livre; no primeiro residem os que desejam coletivizar certas coisas sob apelos igualitaristas e no segundo estão os que desejam viver a própria individualidade ou uma coletividade desde que livremente aceita.

18/02/2024 12h59

Imagem: Vogue

Martin Luther King Jr.

“[…] Não conseguem resolver o problema porque procuram superar uma situação negativa, utilizando-se de meios negativos. […]”

Obra: Luther King: O Redentor Negro – Preces e Mensagens. A espada que cicatriza. Coleção Mensagens Espirituais. Martin Claret, 2001, São Paulo. De Martin Luther King Jr. (EUA/Geórgia, 1929-1968).

Era dezembro de 2003 e após a conversa finda com o cristão católico romano (CR) “praticante” da Teologia da Libertação (TL), sobre a “inteligência militante pragmática” de Malcolm X e o “pacifismo ingênuo” de Luther King Jr., assim os definiu com certo deslumbre, fui à biblioteca e passei algumas horas catalogando discursos para tentar entender melhor os argumentos. Tinha acabado de completar 29 anos e me sentia feliz em saber que o interlocutor CRTL na verdade raciocinava como um marxista, assim como Malcolm X; pensei então no que tinha abandonado em termos de crenças, pelo menos, havia 10 anos.

Nas férias do janeiro seguinte era final de mês e estava em um shopping center cumprindo deveres domésticos quando aproveitei o restante do tempo da melhor maneira possível; indo a uma livraria, e eis que fui premiado com esta obra de discursos e sermões do pastor “pacifista ingênuo”, segundo o que tinha escutado. Essa edição da Martin Claret facilitou parte do meu trabalho de catalogar conteúdo do pastor Nobel da Paz de 1964.

Alguns dias adiante, 5 de fevereiro, marquei a data desta importantíssima leitura e grifei o trecho (p. 55) de A espada que cicatriza onde o pastor aponta o problema central dos defensores de atos vingativos e violentos. Então comecei a notar que, além da filosofia de Gandhi, o raciocínio do dr. King Jr. apresenta uma interpretação fascinante do Evangelho que destoa do esforço de convencimento do interlocutor CRTL; não se vence o mal com o mal, não se supera a violência com mais violência, não se vence a fúria racista com armas que não sejam a da iluminação do espírito, para resistir pacificamente e anular estereótipos, e o amor ao próximo para neutralizar preconceitos; eis o exercício proposto pelo pastor como resposta para o ódio, em uma perspectiva cristã. A não-violência resguarda uma dignidade que valoriza uma consciência moral e uma ética voltada para fazer o bem ou aquilo que gostaríamos que fizessem conosco quando pensamos em respeito; é também um ato de amor-próprio (p. 54).

Malcolm X talvez tenha entendido o pastor como baluarte de uma coisa romântica, penso, para usar um eufemismo, pois além de ter se mostrado ácido em relação à fé cristã, entendo que a não-violência apregoada pelo dr. King para ele não era inteiramente desprezada, mas fazia parte de um esforço válido ou de um estágio o qual considerava, senão vejamos:

“I am for violence if non-violence means we continue postponing a solution to the American black man’s problem—just to avoid violence. I don’t go for non-violence if it also means a delayed solution. To me a delayed solution is a non-solution. Or I’ll say it another way. If it must take violence to get the black man his human rights in this country, I’m for violence exactly as you know the Irish, the Poles, or Jews would be if they were flagrantly discriminated against. I am just as they would be in that case, and they would be for violence—no matter what the consequences, no matter who was hurt by the violence.” [199]

Luther King Jr. chegou a mencionar a não-violência como um “milagre” (p. 59) e tinha uma visão da resistência como algo dentro de um movimento social amplo que estava a aprender com seus próprios erros, composto por personalidades diversas e interesses variados (p. 59). A agressividade do espírito vingativo, violento, seria algo a ser vencido para que houvesse avanço na pauta dos direitos civis, e não parte de um estágio posterior ou seja, o raciocínio dele invertia, em certo sentido, a ordem. Penso então que o sonho de dr. King se materializou um pouco quando em Pretos e Brancos Reunidos conta que viu as massas brancas de Birmingham não lutando contra os negros que pacificamente lidavam com a repressão policial (p. 66).

199. The Autobiograpphy of Malcolm X as Told to Alex Haley, p. 387. The Random House Publishing Group, First Ballantine Books Trade Edition, 1992, New York. De Alexander Murray Palmer Haley (EUA/Nova York, 1921-1922) e Malcolm X (EUA/Nebraska, 1925-1965).

17/02/2024 18h43

Imagem: Esquerda Marxista

Malcolm X

“The goal has always been the same, with the approaches to it as different as mine and Dr. Martin Luther King’s non-violent marching, that dramatizes the brutality and the evil of the white man against defenseless blacks. And in the racial climate of this country today, it is anybody’s guess which of the ‘extremes’ in approach to the black man’s problems might personally meet a fatal catastrophe first—’non-violent’ Dr. King, or socalled ‘violent’ me.”

Obra: The Autobiograpphy of Malcolm X as Told to Alex Haley. Chapter 19. 1965. The Random House Publishing Group, First Ballantine Books Trade Edition, 1992, New York. De Alexander Murray Palmer Haley (EUA/Nova York, 1921-1922) e Malcolm X (EUA/Nebraska, 1925-1965).

As visões de mundo foram bem distintas, penso, entre o dr. Martin Luther King Jr. e Malcolm X. Diante das questões dos direitos civis dos afrodescendentes nos EUA, o primeiro se conduziu por uma concepção pacifista, aportada em uma interpretação (que considero a melhor do século XX) do Evangelho de Jesus Cristo e com referência à filosofia da não-violência vivenciada na política por Mahatma Gandhi (1869-1948). Já o segundo acreditava que todos os meios podem ser usados para se atingir o objetivo de cessar as injustiças com os negros, a cogitar o uso da violência. O primeiro tinha uma visão fraterna da humanidade a superar as barreiras religiosas, o segundo adotou o combate dentro de um contexto de luta muçulmana em meio a segregação racial, dos afligidos pela maldade de uma sociedade sob lei racista. O pastor que foi refinado, sofisticado, elegante no uso da palavra, de pensamentos filosóficos e teológicos que foram desenvolvidos em uma disciplina combinada por fé e razão, enquanto o segundo foi impetuoso, pragmático, contundente, polemista e talentoso orador, esta última qualidade marcante também no primeiro que abraçou uma filosofia que respondia ao ódio com uma ideia sobre o amor que foi uma releitura do Novo Testamento, enquanto o segundo estava mais para a Lei do Talião; por fim, ambos tinham uma impressionante integridade na defesa de suas ideias e havia na mídia uma convicção de que gozavam de respeito por não se venderem quanto ao que pensavam (p. 438).

Essa dialética entre dr. Luther King Jr. e Malcolm X é muito interessante em minha forma de ver o mundo como um palco de conflitos. Um “conflito” consoante ao tablado do mundo intelectual, o único lugar que tem valor o enfrentamento. Lembro-me de uma das argumentações mais categóricas do pastor Luther King Jr. sobre sua visão de não violência em Um Sermão de Natal sobre a Paz, pregado em 24 de dezembro de 1967:

“Permitam-me agora dizer, em segundo lugar, que, se quisermos ter paz no mundo, homens e nações terão que adotar a atitude pacífica de que os fins e os meios devem adaptar-se. Um dos grande debates filosóficos da História tem girado em volta do problema dos meios e dos fins. E sempre houve quem dissesse que o fim justifica os meios, que os meios não são importantes. O importante é alcançar o fim.

Por conseguinte, se quisermos criar uma sociedade justa, dizem essas pessoas, o importante é alcançar o objetivo, os meios não têm importância. Quaisquer meios que nos façam atingir o alvo – meios violentos, meios desonestos, até mesmo meios injustos, desde que levem a um fim justo. Sempre houve quem argumentasse assim, ao longo da História. Mas nunca teremos paz no mundo enquanto os homens não reconhecerem que os fins não são independentes dos meios., porquanto os meios representam o ideal em ação e o fim em processo, e não se podem alcançar bons fins através de maus meios, pois os meios representam a semente e o fim representa a árvore. […] Se quisermos que haja paz na terra e boa vontade para com todos os homens, teremos de acreditar na moralidade do universo e de crer que toda a realidade se baseia em alicerces morais.” [198]

Malcolm X alegava não defender a violência e, além da retórica, no seu pragmatismo a filosofia do dr. King tinha um certo valor, como parte de um movimento maior, mas era limitada no mundo dos conflitos da política, onde dava vazão ao seu utilitarismo, e podia, em certo, porto, ser mais útil aos brancos. Nada de dar a outra face, ensinada pelo pastor; Malcolm X ilustrou que se um homem pisasse no seu pé, pisaria nele, para depois fazer uma referência direta ao ministro batista defensor dos direitos humanos e pacifista: “é melhor que os brancos fiquem felizes por Martin Luther King reunir o povo porque outras forças estão esperando para assumir o controle caso ele falhe” (p. 448) ou, para ser mais direto: “se for preciso violência para obter ao homem negro os seus direitos humanos neste país, sou a favor” (p. 387). No entanto, aparentemente ele tinha uma admiração relutante pelo pastor (p. 420).

Quando vi um cristão “praticante” preferir Malcolm X a Luther King Jr. nesta dialética, pois alegava que o pastor não passou de um “capitão do mato estilo estadunidense” enquanto o ativista sunita ortodoxo teria sido um genuíno revolucionário contra as elites, mas evitou falar sobre a doutrina da violência que o marcou, pude então delinear o quanto o sentido da fé em Cristo, interpretada pelo doutor King, se tornou ainda mais importante como registro do quão os valores do Evangelho são essenciais para demarcar a doutrina do amor que supera o ódio e jamais se instrumentaliza pela bruta força em um mundo onde muitos acreditam no poder da violência.

198. Ver em 27/01/2022 22h59

16/02/2024 22h15

Imagem: Cultura Animi

Bertrand de Jouvenel

“The basic condition of all political science is to see Power, as it were, stereooscopically, from both angles.”

Obra: ON POWER: The Natural History of Its Growth. Book VI. Limited Power ou Unlimited Power? XV Limited Power. Liberty Fund, 2020, Indianapolis. Traduzida para o inglês por J. F. Huntington. De Bertrand de Jouvenel des Ursins (France/Paris, 1903-1987).

Em 1996 o “imperialismo” era o tema de uma aula cujo professor me fez entender que somente havia um no pós Segunda Guerra: o americano, e quando o perguntei sobre a “guerra fria”, se o sistema soviético, que tinha falido havia cinco anos, não teria sido também um exemplo de “imperialismo”, ganhei um ríspido “não!”. Naquele tempo não fazia ideia de quem foi Bertrand de Jouvenel e apenas conheceria traços da linha de pensamento do autor através de leituras dos austríacos, isso adiante 11 anos

Quando li esta obra em tempos pandêmicos, ao me deparar com o trecho desta Leitura (p. 314), lembrei-me do olhar do professor “cientista político” que mais parecia um “que pergunta mais idiota!”. Era, naturalmente incapaz de perceber o viés ideológico do professor, no entanto, de forma rudimentar, mesmo na minha carência literária, meu eu de hoje percebe que meu eu de 1996 tentou raciocinar como sugere o autor: ver o Poder sobre ângulos diversos como um estereoscópio ou na ciência política não seria apropriado também se abrir para a dúvida para tentar entender como pensam os outros, no caso, os americanos ou quaisquer agentes de poder que ensejam em questões de limitações em vez de adotar como verdade apenas a visão de um lado?

Ignorar um lado que o denuncia enquanto exerce forma de poder cada vez mais abrangente, centralizadora, como no caso de arranjos socialistas, não seria algo igualmente danoso à produção de ciência política?, indagação que me faz pensar no autor ao indicar que a doutrina (do poder limitado) teve um “estranho destino” e eis que sugere que o paradoxo de como a ideia da limitação de poder expandiu o poder político na modernidade, o deve ser entendido sobre o que se tinha na idade média (p. 314) em torno do absolutismo monárquico, de ordens que emanam de um organismo supremo que hoje podem ser observadas nos estados europeus e, não por coincidência, a limitação do poder nesses estados, associada à democracia, na verdade indica monocracia (p. 317). Imagino então o quão curioso é como o termo “socialismo”, com ares de igualitário, compõe esse paradoxo na medida em que os regimes mais próximos desse ideal concentram mais poder do aparato estatal, quando penso no que o autor indica sobre este termo (além de “democracia”), sujeito a tantas diferentes expectativas que o significado perde a precisão (p. 314).

15/02/2024 22h33

Imagem: FAB

Varig 254

“O instrumento comportava três dígitos. No plano de voo, constavam quatro. Garcez ignorou o primeiro dígito (talvez por ser um zero à esquerda) e julgou que 0270 era 270º. Não se lembrou que, no plano de voo, o último algarismo à direita correspondia a décimo de grau; 0270 na verdade significava 27,0º.

Esse erro de interpretação iria alterar tragicamente o destino do voo 254 e de seus ocupantes.”

Obra: Caixa-preta: o relato de três desastres aéreos brasileiros. Capítulo 4. Objetiva, 2011, Rio de Janeiro. De Ivan Sant’Anna (Brasil/Rio de Janeiro, 1940).

Desatenção e viés de confirmação: dois inimigos silenciosos que destroem carreiras

Lá pelos idos de 2012 a realizar o que há de mais interessante em um shopping center: aproveitar o tempo em uma boa livraria. E eis que em direção à seção de economia e política havia esta obra no meio do caminho. Sentei e comecei pelo capítulo 4, do caso que mais me chamou a atenção: o voo Varig 254.

Um trágico erro de interpretação do comandante na inserção do parâmetro do rumo magnético, sem considerar a vírgula no HSI fez o avião ir para o oeste até ficar sem combustível e ter que fazer um pouso de emergência em uma região de floresta, em vez de se deslocar ao norte cuja rota era breve (cerca de uma hora) de Marabá com pouso em Belém (PA). O acidente naquele domingo, 3 de setembro de 1989, dividiu as atenções nos noticiários com o pós jogo da seleção brasileira no Maracanã (do famoso foguete que revelou os dotes dramatúrgicos do goleiro da seleção do Chile), assim como o interesse do comandante em saber o resultado da partida por conta de um pedido de um passageiro, o que teria sido objeto de “desconfiança e constrangimento” em relação ao acidente, pontua o copiloto em outra obra: Voo sem Volta – A epopeia do voo VRG254. Estaria o comandante um tanto distraído com o jogo?

Como normalmente ocorre em acidentes aéreos, o pouso de emergência sobre as árvores, no caso do VRG254, deu-se por uma sucessão de falhas de procedimentos a partir da fatídica parametrização do comandante na escala para o último trecho, o que desencadeou um processo onde piloto e copiloto ficaram literalmente perdidos na cabine, desorientados no espaço aéreo.

A maior lição desta leitura reside no potencial dano da falta de atenção relacionada a um problema de viés de confirmação que acometeu o piloto e o copiloto. O viés de confirmação se dá quando um profissional toma uma decisão sem perceber um equívoco importante e segue a tomar decisões que geram mais erros originados do erro inicial cometido, enquanto em sua mente raciocina que está agindo dentro das conformidades e quando descobre a falha, uma série de problemas tornaram a situação crítica a ponto de não haver mais uma reversão ou correção do quadro. Normalmente o problema do viés de confirmação se dá por uma distração e/ou erro de interpretação. Não é comum encontrarmos quem acredita realizar tarefas relativamente complexas enquanto estão ao telefone e/ou em conversa paralela, normalmente tratando de questões diversas ao que carece de sua atenção no momento, e normalmente se agrava quando há desprezo por leitura de materiais técnicos, o que também revela uma arrogância velada, senão vejamos:

Pensei aqui no caso de um amigo de infância programador que gostava de trocar mensagens no celular enquanto trabalhava em linhas de programação até descobrir como uma distração pode gerar milhares de erros de cálculo em uma folha de pagamentos e o congestionamento dos atendentes do suporte, ou de histórias com cirurgiões que esquecem instrumentos no corpo do paciente enquanto colocam os assuntos alheios ao trabalho em dia com seus pares. Pensei também no curioso caso que acompanhei de um contador que entregou um Sped Contábil apenas com receitas, sem despesas (a parte mais insólita foi a explicação no J800 junto com intimações do fisco) enquanto seu viés de confirmação dizia que tinha conferido tudo porque sua mente o iludiu com uma crença falsa de que tinha realizado as etapas de conferência e isso se deu porque no dia em que encerrava balanços estava a atender diversas ligações telefônicas.

O dano que uma falta de atenção pode provocar, em relação a detalhes técnicos elementares, potencializa-se enormemente quando vidas estão em jogo e se carece de disciplina na execução de rotinas de verificação com rigor o que, no caso do parâmetro errado inserido pelo piloto da Varig, seriam procedimentos que apontariam o erro inicial para evitar a tragédia, partindo dos itens mais simples até os mais complexos.

O problema do viés de confirmação se agrava sobretudo por quem exerce posição de comando e não se permite a um relacionamento profissional que considere questionamentos e possibilidade de erros, inclusive os que sejam considerados primários, além de uma eventual desatenção de quem lhe é subordinado, outro fator que se relaciona com o desfecho dramático do voo com 12 passageiros mortos dos 48 embarcados.

14/02/2024 11h34

Imagem: A12

Santo Afonso Maria de Ligório

“Nada importa ser alguém moço ou velho, são ou enfermo: a todos caberá a mesma sorte, o que a Igreja recorda pondo as cinzas bentas indistintamente sobre a cabeça de todos […]”

Obra: Meditações para todos os dias e festas do ano. Tomo I. Quarta-Feira de Cinzas. Herder & Cia, 1921, Friburgo. Tradução de P. João de Jong. De Afonso Maria Antônio João Francisco Cosme Damião Miguel Ângelo Gaspar de Ligório (Italia/Napoli, 1696-1787).

“Tu és pó e ao pó tornarás”(Gn 3.19), assim um padre católico encerrou a breve e edificante conversa em 2007 sobre o significado das cinzas na quarta-feira a marcar o início da Quaresma no calendário da Igreja Romana – Um dia de reflexão sobre a finitude da condição humana – comentei como um seminarista protestante que tentava não ser alheio ao significado do dia na fé católica, o que foi respondido com um sorriso e um aceno de concordância com a cabeça.

Em paralelo aos ciclos das festas tradicionais do paganismo romano, que fora cristianizado na medida em que a Igreja se aliou ao Império, com destaque para a Saturnália (em honra ao deus Saturno), desenvolveu-se o jejum como disciplina, o que passou a ser promovido pela Igreja entre os séculos V e X de forma mais ampla. O período de penitência quadragesimal passou de 36 para 40 dias começando da quarta-feira que passou a ser chamada de dia da aspersão (de cinzas) para toda a Igreja [197]. A semana que antecedia a marcação do dia das cinzas era notabilizada pelo encerramento do consumo de carne (carnevale, abster-se de consumir, tirar a carne) para a prática do jejum até a páscoa, celebração mais importante da fé cristã.

O período da Quaresma, com toda a simbologia inicial das cinzas após o carnevale, não foi incorporado no calendário da Reforma Protestante, enquanto sempre me despertou atenção, a partir da mentalidade no antigo paganismo romano, de um período festivo e de celebrações com muita comida e bebida a uma proposta de encerramento desses prazeres associados a um divindade do panteão romano. Então, percebi que o que é chamado de “carnaval” é uma mudança de significado, quando comparado às suas origens com relação à Quaresma. Não se trata de um período para extravasar os sentidos, realizar hedonismos, cair na folia, tampouco de gulodices e bebedeiras; esse significado inverso e degenerado pode ter se desenvolvido ao longo dos séculos como uma “despedida” face a aproximação da Quaresma.

Deparo-me então com meditações de Santo Afonso Maria de Ligório cerca de dez séculos adiante do período do início da disciplina geral da Igreja Romana, onde ficou-me claro que o doutor da Igreja chama a atenção para o significado do período mediante a Paixão de Cristo como meditação. Em vez dessa meditação, “lhe renovam os ultrajes, descriptos no Evangelho” (p. 280); o carnevale dedicado aos prazeres é uma rejeição ao próprio Cristo; da forma como é conduzido, sem olhar para a Páscoa, dá-se como “dias tristes”, “de Judas”, “de torpe prazer”, e não poderia ser outra coisa senão profundamente ofensivo a Deus. Santo Afonso Maria de Ligório chega a compará-lo com a zombaria que Cristo sofreu de soldados do Império Romano (p. 280), dia em que Jesus “será crucificado centenas e milhares de vezes” (p. 281).

As meditações de Santo Afonso Maria de Ligório me fazem pensar no sentido hedonista com que muitos declarados católicos, e até protestantes, se permitem ao carnaval em um ritualismo religioso sob uma visão mecanicista da fé.

197. Ver 22/02/2023 21h28

13/02/2024 11h14

Imagem: BBC

Winston Churchill

“Hitler’s peace offers are not worthy of comment.”

Obra: Winston Churchill: A Biography. Chapter XXXII. The Tide Turns. THE LITERARY GUILD OF AMERICA, INC., 1941, New York. De René Kraus (1902-1947).

Uma das questões que mais me interessam sobre os fenômenos políticos da Segunda Guerra consiste no porquê de políticos britânicos experientes terem agido de forma aparentemente tão ingênua por considerarem um acordo com Hitler, mesmo após a deflagração sobre a Bélgica, Luxemburgo, Holanda e França, enquanto a gravidade do quadro na Europa e a necessidade de derrotar o nazismo parecia claríssima para Winston Leonard Spencer Churchill (UK/Blenheim Palace,, 1874-1965), “herói” de guerra para muitos, “racista e antissemita” enfatizado por outros, enquanto penso, figura um tanto folclórica.

Talvez ingênua mesmo seja essa minha pergunta, feita inúmeras vezes em pensamento durante aulas. Quando a externava a professores, recebia um “muito difícil saber, fácil de especular”. Quem sabe porque estou diante de dados históricos catalogados oito décadas depois, onde perceber a gravidade de Hitler e do nazismo é bem menos complicado em comparação a quem viveu aqueles dias e tinha horror a ver de novo o que tinha ocorrido no que hoje se conhece por “Primeira Guerra”. Foi em 19 de julho 1940 que o então novo primeiro-ministro Churchill reiterou sua aversão a negociar com Hitler (repetiu o que vinha defendendo desde a tomada nazista na Alemanha). De um lado os adeptos do “appeasement“, dentro do próprio Tories encabeçado pelos desafetos Chamberlain e Halifax (que foram convidados a compor o gabinete de guerra), além da perspectiva do rei que aceitou sua indicação pela capacidade de coalizão no parlamento. Os EUA estavam na fase da “neutralidade” e a França desmoralizada junto com as tropas britânicas na Europa, tudo a ecoar um viés perceptível de que é melhor ainda tentar um acordo com Hitler, o que soava também na mídia de grande alcance (The Times é um exemplo dessa crença conciliadora, p. 102), e do outro Churchill cada vez mais isolado no seu diagnóstico.

O que as elites britânicas dadas ao “appeasement” intencionavam? Acreditavam que Hitler não tomaria a Ilha e concordaria com sua “independência” enquanto conservaria privilégios dos apaziguadores desde que o arsenal bélico ficasse à disposição do Terceiro Reich? Porém, Churchill com sua teimosia insólita mudou o cenário do consenso pelo “appeasement” para o confronto aberto com os nazistas; René Kraus afirma que “há poucas dúvidas de que a sua nomeação, se tivesse ocorrido alguns anos antes, teria evitado a guerra inviabilizando a tempo o agressor. Não existe dúvida de que sua nomeação, da forma como se deu, mudou o curso da guerra” (p. 312).

12/02/2024 10h49

Imagem: Perfil oficial no Twitter

Nassim Nicholas Taleb

“Essa ausência de cultura literária é, na verdade, um indicador de cegueira futura, pois, geralmente, vem acompanhada de uma depreciação da história […]”

Obra: Antifrágil. Livro VI. Capítulo 20. Tempo e fragilidade. Aprendendo a subtrair. Edição best. business, 2017, Rio de Janeiro. Tradução de Eduardo Rieche. De Nassim Nicholas Taleb (Líbano/Greater Amyoun, 1960).

Perguntaram-se sobre meu pouco interesse por reuniões e eventos de TI, em especial os que lidam com “perspectivas para isso ou aquilo” ou “o que esperar disso ou daquilo”. Para não correr o risco de ofender o interlocutor empolgado com tudo que pretenda abordar sobre o futuro e o papel da TI, limitei-me a um “prefiro os livros”, enquanto pensei neste trecho (p. 399) de Taleb, que se refere a pensadores do ramo de tecnologia.

O que percebi em eventos de TI dessa natureza foi a tendência de influenciadores para uma certa presunção futurológica como se na bolha de desenvolvedores de hardware e software estivessem os “donos do futuro” de uma humanidade convertida em autômato, enquanto parecem desinteressados sobre o passado e não penso aqui no historicismo que apresentam sobre a evolução da TI, pois isso o fazem razoavelmente; refiro-me ao desinteresse por temas do passado que, embora não sejam de TI, influenciaram-na e dizem respeito a áreas da filosofia, das ciências exatas, bem como das humanas, tais como a política, a economia, a sociologia , a contabilidade e, claro, a história de uma forma mais abrangente, sobretudo a antiguidade. Eles parecem desconectados desse passado, repleto de lições preciosas sobre o tecnológico, enquanto se julgam capazes de “prever” o futuro, sendo exatamente este o problema crônico de tais pensadores com suas bugigangas de efeitos especiais que dizem coisa nenhuma com nada dentro a um público infantilizado com o deslumbre da inteligência artificial, enquanto depreciam o saber da história e se fecham na neomania.

Taleb os classifica como “nerds”, com “profunda falta de elegância”, mais interessados em objetos do que em pessoas, acometidos de ausência de cultura literária (p. 399) e aqui, penso, como suas citações costumam se limitar a autores rasos, a maioria muito recentes e com ideias mal copiadas de outros mais antigos (que não fazem a menor ideia sobre quem foram). Fracos em bagagem literária, usam a fantasia da narrativa tecnológica para esconder suas debilidades reflexivas. Pude atestar isso em diversos eventos presenciais sobre o Sped, no meio contábil (extremamente bestializado) e, em uma fase mais online, em palestras sobre Blockchain, tema fascinante que, não raramente, fica comprometido com a ânsia futurológica de articulistas enquanto desinteressados por significados que só podem ser melhor compreendidos com uma reflexão sobre conhecimentos humanos e de exatas da antiguidade, passando pelo medioevo, até os estágios da revolução industrial.

Para um entendimento acerca do futuro, aponta Taleb, “não é necessário o jargão tecnautista” e sim do professor chamado “passado” que “ensina muito melhor as propriedades do futuro do que o presente” (p. 400).

11/02/2024 11h10

Imagem: Ministère des Armées

Situação na Ucrânia em 09/02/2024

“Commençons par exclure un : celui d’une défaite militaire ukrainienne provoquant le changement de régime à Kiev. La détermination des Ukrainiens, la profondeur de l’ornière dans laquelle se trouvent l’armée et la BITD russes, la vigueur de bon nombre de soutiens occidentaux, à commencer par ceux des pays adjacents, se conjuguent pour rendre très peu plausible une atteinte par les Russes de leur EFR initial à court et à moyen terme (horizon 2023 à 2024).”

Obra: Guerre en Ukraine: analyse militaire et perspectives. 2. Une kyrielle de scénarios plausibles. Recherches & Documents. No. 04/2023. Fondation pour la Recherch Estratégique. De Philippe Gros e Vincent Tourret.

No final do ano passado passei a mergulhar mais no tema após ouvir de um consultor um cenário apocalíptico para a Europa neste ano, em relação ao possível desfecho do conflito favorável à Rússia, com uma escalada militar a envolver a OTAN, isso após analisarmos um cenário para abertura de um negócio do outro lado do Atlântico, o que arrefeceu os ânimos do cliente que pretende deixar o Brasil e entendeu: afaste-se da Europa.

Fiquei pensativo quanto ao nível elevado de certeza do consultor, quando fui pesquisar no meio militar e percebi uma predominância de estimativas inversamente proporcionais aos cenários.

Entre publicações acerca da guerra na Ucrânia, chamou-me a atenção esta de dois pesquisadores franceses da Fundação de Pesquisa Estratégica, de abril do ano passado; para este ano descartam uma derrota ucraniana com a queda do regime de Kiev, dadas a resistência militar de Kiev e a manutenção do apoio financeiro de potenciais ocidentais; em um cenário muito otimista cogitam uma vitória de Kiev e uma renúncia de Moscou (p. 79); outro cenário considera uma derrota russa com consequências catastróficas em termos sistêmicos (p. 80); o uso de armas nucleares não está descartado a considerar inclusive a premissa de que o regime de Moscou só apertaria o botão se for agredido, no entanto, em uma situação de derrota iminente, a perda do controle da cadeia de comando pode ocorrer em uma situação de tensão elevada (p. 80), incluindo risco de conflitos entre militares russos e até guerra civil, mas sobre a tese da defesa russa condicionante a uma ofensiva externa, neste aspecto penso em Hitler que ordenou a invasão da Polônia após um suposto ataque polonês na fronteira; por fim, destaco que os pesquisadores consideram uma “guerra fria” com a resiliência russa com apoio dos regimes da China e do Irã (pp. 80-81).

Dez meses depois, ao monitorar o site do Ministério das Forças Armadas da França (imagem), o desfecho parece distante com os russos defendendo posições de acesso privilegiado ao Mar de Azov e ao Mar Negro. Uma das chaves se situa, penso, na eleição presidencial nos EUA este ano face à possível vitória de Trump, o que seria um ponto crítico a favor de Putin, não necessariamente significando uma escalada da OTAN, mas uma mudança na geopolítica que abalaria a já cambaleante política europeia atual, contudo, uma coisa me parece óbvia: o regime chinês é o único que toma considerável vantagem diante da longevidade do conflito, face ao enfraquecimento dos apoiadores ocidentais a Kiev e da busca humilhante de Putin por ajuda no fornecimento de insumos.

10/02/2024 21h37

Imagem: Effatà Editrice

Edmondo Lupieri

“Nessuno di loro deve aver mai desiderato di fundare una nuova religione o mai nemmeno pensato di avere aderito a una religione che non fosse quella dei suoi padri.”

Obra: Storia del Cristianesimo. L’antichità. Editori Laterza, 2006, Bologna. A cura di Giovanni Filoramo e Daniele Menozzi. Fra Gerusalemme e Roma di Edmondo Lupieri.

O professor italiano de teologia da Loyola University Chicago fala sobre algo que pode ser um tanto perturbador, para mais sensíveis na devoção por uma visão restrita à fé, acerca das origens da igreja e da própria religião cristã em uma primeira leitura. No trecho (p. 12), o autor se refere a Jesus de Nazaré, os 12 apóstolos, Estevão, os assim chamados “Sete”, os primeiros irmãos, todos, como judeus que não queriam fundar uma religião, tampouco aderir a outra que não fosse a de seus pais; nenhum deles se referiam como “cristãos”, pois o termo ainda não tinha sido inventado e assim se consideravam judeus.

O que hoje se identifica como “fé cristã” surgiu como uma linha do judaísmo e os primeiros seguidores se viam como praticantes do judaísmo por uma interpretação nova da Lei, dada por Jesus, que não teria fundado uma religião, tampouco deixou o conceito de igreja; em A Igreja Católica, o doutor católico Hans Küng toca no assunto a indicar a concordância de críticos bíblicos de que “Jesus não proclamou uma igreja, nem a si mesmo, mas sim o reino de Deus” [196].

Seguidores de Jesus acreditavam que viviam um judaísmo pleno, mas as coisas começaram a mudar, em termos de identidade religiosa, aqui torno ao autor italiano, quando um grupo mais radical do movimento decidiu, sob influência das reflexões do apóstolo Paulo, que os não judeus de nascença que abraçavam a fé estariam dispensados de certas observâncias judaicas, o que não significava uma saída do judaísmo e sim uma interpretação espiritual das práticas, em especial a da circuncisão (p. 13). As definições cristológicas e teológicas ainda não eram claras o suficiente para provocar uma ruptura total com o judaísmo (p. 101) na primeira metade do primeiro século e foi com a entrada dos pagãos no movimento de Jesus que as questões foram se definindo; o autor menciona o batismo do centurião Cornélio, realizado somente após algumas aparições angélicas a São Pedro (At. 3-10-16) que estava em dúvida se deveria fazê-lo ou não, a denotar que Jesus não tinha deixado uma instrução conclusiva sobre os gentios, argumenta o autor (p. 102).

O que percebi na leitura deste capítulo é a abordagem que vi no seminário; ao apóstolo Paulo coube conduzir o processo que culminou na ortodoxia em torno das normas aos gentios, ou seja, na linha teológica predominante de não impor a não judeus de nascença práticas típicas do judaísmo, em meio a uma tensão com os seguidores judeus, e como a grande igreja se desenvolvia, com forte adesão de não judeus, o afastamento de práticas judaicas seria inevitável bem como a consolidação de uma identidade própria de ritos e práticas que caracterizariam uma nova religião diversa da que tinha nascido.

196. A Igreja Católica. 1. os primórdios da Igreja. Fundada por Jesus? Edição da Objetiva, 2002, Rio de Janeiro. Tradução de Adalgisa Campos da Silva. De Hans Küng (Suíça/Sursee, 1928-2021).

09/02/2024 22h25

Imagem: Pantocrator (História com gosto)

יֵשׁוּעַ

19. Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam.

20. mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam, nem roubam.

21 porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração.

Obra: Evangelho Segundo São Mateus. Ditos de Jesus Cristo. Os tesouros no céu. Capítulo 6, versos 19, 20 e 21.  A Bíblia Sagrada. Traduzida por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada, 2a. edição. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993, Barueri.

Agradável recordação ao ver a dedicatória de José Almeida Guimarães (1932-2017) no exemplar da Bíblia Sagrada desta Leitura, presente para marcar o batismo de minha esposa que o pastor realizou em junho de 2001, na Capunga. Foi o mais importante pastor em minha formação cristã.

Mateus 6.19-21 é a parte do sermão onde Jesus Cristo é expulso de muitas igrejas da atualidade, repletas de “ateus praticantes” que não querem saber do Reino de Deus e sim da própria ostentação material a fazer do sentido da vida apenas em função do que se acumula de bens materiais e demais coisas que dão prazer pelo que se ufana aos olhos dos outros e não de Deus, segundo o eremita pastor Abdoral.

Há uma riqueza maior, um tesouro superior, do Reino anunciado por Cristo, que não se adquire com bens e dinheiro. Uma riqueza que não se contabiliza por posses, prestigio social, prêmios, honrarias, títulos aos olhos humanos; no Reino divino, pregado no Sermão da Montanha por Cristo, não se compra amor, respeito, honra, fidelidade, compreensão, misericórdia, não se aproxima de Deus mediante o que temos ou o que podemos adquirir, tampouco pelo que aparentamos de justiça e idoneidade aos olhos humanos. Não se trata apenas de uma santidade visível atestada por instituições humanas; nesse Reino, apenas pensar em fazer um mal já é um ato de ofensa a Deus (5.28); destarte o maior tesouro que podemos ter na lógica desse Reino consiste em valores que guardamos no coração, vistos tão-somente por Deus nas coisas que passam por nossos pensamentos, independente se as tornarmos visíveis ou não.

O que celebramos e que são sinais externos da Graça recebe uma validação de Deus na intimidade do nosso ser; o Pai vê em secreto e recompensa (6.4). É na nossa mais profunda intimidade desnudada onde residem os bens imateriais que resistem ao tempo e não podem ser violados ou destruídos senão por nós mesmos, mediante o que pensamos e fazemos diante de Deus e dos nossos semelhantes.

08/02/2024 22h19

Imagem: Jornal da USP

Paulo Freire

“Os oprimidos, contudo, acomodados e adaptados, ‘imersos’ na própria engrenagem da estrutura dominadora, temem a liberdade, enquanto não se sentem capazes de correr o risco de assumi-la. E a temem, também, na medida em que, lutar por ela, significa uma ameaça, não só aos que a usam para oprimir, como seus ‘proprietários’ exclusivos, mas aos companheiros oprimidos, que se assustam com maiores repressões.”

Obra: Pedagogia do Oprimido. Capítulo 1. Justificativa da “pedagogia do oprimido”. Paz e Terra, 1987, Rio de Janeiro. De Paulo Reglus Neves Freire (Brasil/Pernambuco/Recife, 1921-1997).

Era 1994 e com 19 anos escuto atentamente a explanação desta obra quando me chamou a atenção este trecho, mas já não tinha tanta certeza que os doutos professores de sociologia e ciências políticas, muitos filiados ou simpatizante com partidos de esquerda, deslumbrados com Paulo Freire, coadunavam com os valores que me fascinavam em favor da liberdade. Naquela ocasião percebia também o estranho amor de Freire pelos oprimidos e por Cristo que coaduna com a violência revolucionária.

Pouco depois, na mesa da biblioteca, a Pedagogia do Oprimido dividia o espaço com A Ilha, de Fernando Morais, a Perestroika, de Gorbachev, alguns artigos e encartes sobre a derrocada da URSS (assunto que, após três anos, ainda me interessava bastante) e o surgimento de uma Federação Russa controlada por magnatas que, de repente, apareceram do “nada”. Pensava nos oprimidos e nos malvadões denunciados na aula, os tais “neoliberais”. De onde saíram todos aqueles super ricos neoliberais? , pensava na minha inocência… Uma sombra no meu pensamento indicava que aqueles que seriam, pelas minhas crenças à época, os baluartes da defesa dos mais vulneráveis, talvez pudessem estar entre opressores por décadas no sistema soviético. Pensei onde estava a liberdade em tudo isso enquanto fazia anotações sobre A Ilha e as restrições do aparelhamento estatal à imprensa, pontuadas pelo autor. Tornei a pensar na aula de sociologia sobre quem o quê afligia oprimidos pelo mundo, cuja pedagogia o intelectual pernambucano pensou.

Foi quando tornei meus olhos ao livro de Paulo Freire, maior ícone da esquerda que considerava na ocasião; trata sobre a situação dos oprimidos diante de uma sociedade marcada por grandes desigualdades e manipulação das elites por meio do sistema de educação; enviesa-se em Marx. Pensava sobre sua proposta pedagógica “do” oprimido e não “para”, o que me parecia muito interessante, por propor um desenvolvimento a partir da realidade e da reflexão de quem é subjugado, apesar de minha crise de fé socialista aflorar, mas pensava se essa proposta era real em países onde o patrulhamento ideológico é ostensivo, onde pensar correto depende do alinhamento ideológico, enquanto continuava a indagar se os opressores seriam mesmo apenas os “neoliberais” dos países “imperialistas” apontados pelo professor. Se pessoas são oprimidas em Cuba, se aquele regime político impõe repressão ideológica a um povo e conta com uma elite que goza de privilégios e mordomias, e se a URSS foi também um regime opressor, como tomava ciência em leituras, onde estariam os “neoliberais” nesses países? Um mal-estar me envolvia pois estava a questionar minhas crenças políticas. Como a educação seria “prática da liberdade” se o homem comum é controlado, submetido a uma elite de socialistas, em regimes que se ufanam contra o que falara o professor sobre o “grande mal”, o tal do “neoliberalismo”? Não fazia sentido o viés de que os oprimidos tão apreciados por Paulo Freire vão encontrar a tão sonhada liberdade através das crenças em torno daqueles que, ao chegarem ao poder, foram tão opressores como aqueles que diziam combater.

07/02/2024 22h44

Imagem: Alesp

Tancredo Neves

“Coisa engraçada! O Getúlio tinha medo da inflação. Tinha uma consciência nítida do descalabro inflacionário. Já o Juscelino era um inflacionista convicto. Participava de uma emissão com volúpia (risos). Precisava de uma emissão para concluir uma barragem, para construir uma central elétrica ou uma grande estrada? Aquilo para ele era um banquete. Não obstante, ele deixou uma inflação de 25%, que não é nada comparada com essa de 200%. Mas, com aquela inflação de 20%, ele realmente fez os cinquenta anos em cinco.” [87]

Obra: Juscelino Kubitschek /Ronaldo Costa Couto. Capítulo 12. A Era JK. Edições Câmara, 2011, Brasília. De Ronaldo Costa Couto.

Nota do autor: 87. Valentina da Rocha Lima e Plínio de Abreu Ramos, Tancredo fala de Getúlio, p. 47.

Era menino, início de 1985; 10 anos. Recordo da sessão transmitida pela TV em que Tancredo de Almeida Neves (Brasil/Minas Gerais/São João del Rei, 1910-1985) foi eleito ainda em janeiro daquele ano. Na medida em que a votação no Colégio Eleitoral avançava no início da noite, e Tancredo abria vantagem sobre Maluf, cada voto de um parlamentar dito ao microfone em favor dele parecia um gol da seleção na copa de 1982. Pouco mais de quatro meses depois a tristeza tomava conta com a morte do primeiro civil eleito desde o golpe de 1964. Mais de um ano depois, lembro-me que viajei até um povoado na Paraíba e ao notar todos de luto na localidade, descobri que era por Tancredo.

A frase do trecho desta Leitura, nessa biografia de JK, retrata um Brasil de hiperinflação em 1984. Lembro-me que tentava entender porque o saco de leite Cilpe na padaria mudava de preço quase todos os dias, assim como, de vez em quando cortavam os zeros e mudavam o nome da moeda; acredito que foi de tanto pensar nessa tal de “inflação” que decidi não fazer faculdade de contábeis e sim de economia.

Sobre o que Tancredo fala acerca do inflacionismo de JK (pp. 154-155), o que mais me impressionou nessa obra é que, apesar dos danos de sua gestão, ele ainda é lembrado como político modelo de desenvolvimento econômico, de forma análoga a que os militares inflacionistas dos anos 1970 são por saudosistas com fetiche por homem de farda e síndrome de Estocolmo, sujeitos que não fazem a menor ideia de que a hiperinflação do contexto da fala de Tancredo foi a maior herança deixada daquele regime, seguida pelos programas sociais que foram aproveitados pela mesma esquerda comunista que eles diziam combater.

06/02/2024 23h04

Imagem: flickr oficial

Olavo de Carvalho

“Revolução social não é troca de classe dominante: é troca dos meios de tornar-se (ou permanecer) classe dominante”.

Obra: A Nova Era e a Revolução Cultural. Apêndices. Revolução Social [78]. Vide Editorial, 4a. edição, 2014, formato físico. De Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (Brasil/São Paulo/Campinas, 1947-2022).

Nota do editor: 178. Publicado no Diário do Comércio em 10 de agosto de 2011.

Olavo de Carvalho próximo a Karl Marx é sempre uma boa combinação.

Para o filósofo brasileiro, marxistas estão equivocados quanto ao conceito de “revolução social” como substituição de uma classe dominante por outra, pois ao fim do processo os mesmos grupos ou pessoas podem permanecer no poder (p. 210).

As elites se conservam por outras vias, pensa o filósofo; cita exemplos na Idade Média, na Europa e, claro, no Brasil (p. 211), este último em um processo de “revolução social” em andamento (a considerar que o texto é de 2011), então aponta: “Para adquirir ou conservar poder e prestígio no Brasil de hoje, até mesmo para conservar alguma margem de liberdade e segurança, você tem que pertencer ao Partido governante, a um de seus associados ou aos grupos de que orbitam em torno dele” (pp. 211-212).

Torno a pensar em 1995 quando, a caminho das 21 primaveras, não fazia a menor ideia de que as elites que apontava como “conservadoras”, “patriarcais”, “financeiras”, ao longo da história, não apenas brasileira, sempre encontraram formas de se manterem em evidência independente do lado ideológico do inquilino do Palácio. O “povão” que vota no populista acaba como o melhor recurso para legitimar uma política de privilégios e certa vez parei para pensar em como indivíduos do mercado financeiro e grandes empresários decidem apoiar políticos com pautas de aversão ao mercado sob o melhor disfarce possível; o de que estão sob alguma consciência pela “justiça social” quando na verdade as politicas intervencionistas desses governantes favorecem enormemente os que atuam como maiores players.

05/02/2024 00h01

Imagem: DW

Karl Marx

“Vimos que um valor-de-uso ou um artigo qualquer só tem valor na medida em que nele está [objectivizado,] materializado trabalho humano [abstracto]. Ora, como medir a grandeza do seu valor? Pela quantidade da substância “criadora de valor” nele contida, isto é, pela quantidade de trabalho. Por sua vez, a quantidade de trabalho tem por medida a sua duração, e o tempo de trabalho mede-se em unidades de tempo, tais como a hora, o dia, etc.”

Obra: O Capital. Capítulo I. Volume 1 – Parte I. Mercadoria. Secção 1. Os Dois Factores da Mercadoria: Valor-de-Uso e Valor-de-Troca ou Valor Propriamente Dito (Substância do valor, Grandeza do Valor). Publicação online de marxist.org. De Karl Marx (Reino da Prússia/Renânia-Palatinado/Tréveris, 1818-1883).

Informa marxist.org que a edição do Livro I disponibilizada é de Centelha – Promoção do Livro, SARL, Coimbra, 1974. Tradução de J. Teixeira Martins e Vital Moreira, da edição francesa de 1872-5 (Roy) a partir da primeira edição alemã.

Quando não ao lado de Mises, Marx também combina com Böhm-Bawerk em minhas dialéticas.

Vi não marxistas explanarem pontos desta obra tão importante com riqueza de detalhes superior a de marxistas declarados.

Independente da visão de mundo que se tenha, reitero, estudar O Capital é fundamental para compreender como funciona o raciocínio socialista e o que está a ocorrer no mundo em relação a como a política intervém na economia.

Longe de ser um elogio, a afirmação do parágrafo anterior diz respeito à necessidade de saber como pensa o outro para que, tentando se colocar em seu lugar, compreender melhor sua forma de ver os problemas sociais do mundo, com o agravante de que muitos socialistas pensam de forma próxima ao que Marx discorre no trecho, porém mediante distorções entre os próprios disseminadores de ideais socialistas. Isto posto, não é preciso fazer muito esforço para perceber que o critério de quantidade de trabalho de Marx não se confirma no mundo real.

Um pouco depois da experiência com a piada de 1995 que me despertou para a falácia do valor trabalho, visitei uma usina de açúcar e etanol, e pude verificar que os maiores salários se concentravam entre pessoas com funções na diretoria, no laboratório, no financeiro e na engenharia, e não entre os que realizavam serviços menos sofisticados, repetitivos, nas operações de equipamentos, com carga horária muitas vezes maior. A escassez pesa sobre o tomador de recursos ou serviços, sobrepõe-se ao conceito de “quantidade de trabalho” para medir o valor do trabalho, quando se verifica que um químico ou engenheiro não se encontra com a mesma facilidade de oferta que um trabalhador que opera determinados equipamentos, sendo estes também mais escassos que os trabalhadores que realizam tarefas de limpeza que, dada a maior oferta, percebem remunerações menores.

Marx tinha plena consciência desses fatores, mas decidiu tentar um sistema sem pesar a escassez, junto com o fator da vontade do tomador de recursos ou do consumidor. Em outras industrias, verifiquei que contadores, por exemplo, são melhor remunerados que contadores que não possuem a especialidade da contabilidade de custos para o setor, justamente porque são raros e os tomadores expressam a vontade de ter um profissional contábil bem versado neste tipo de negócio. Um médico sem especialidades cardiológicas pode trabalhar por horas em um plantão geral, mas não terá o mesmo valor de um médico expert em práticas mais atualizadas de procedimentos cirúrgicos de cardiologia. Em outra fábrica, um administrador foi contratado a “peso de ouro” para reorganizar processos internos; trabalho com carga horária menor que o anterior para receber quase o dobro e este “preço”, a direção da empresa decidiu pagar na expectativa que o novo contratado modernizasse a instituição, o que acabou sendo confirmado.

Por que será que um atleta de futebol que atua na Premier League tem salários tão superiores que a média dos atletas que jogam na série A do Brasil? Muitos fatores, a começar pelo peso econômico de uma liga com clubes onde gestores estão dispostos a ter os melhores, sendo assim os mais raros e, consequentemente, os mais caros pelo encontro da oferta com a demanda.

Tive uma experiência sobre a influência da teoria de Marx entre indivíduos que a defendem sem consciência. Um problema em uma base de dados ocorreu em uma empresa e o gestor apurou que seria necessário uma equipe de três colaboradores a trabalharem em carga de 38 horas durante cinco dias para sanar a situação, no entanto, alguém o informou que um programador especialista em contabilidade resolveria a questão em menos de duas horas por meio de um aplicativo de reparação de arquivos cujos registros seriam reimportados para a base. O programador amigo de infância cobrou um valor superior a soma das 38 horas de cada um dos três empregados que seriam requisitados. O administrador então alegou que o valor cobrado não era justo, por conta do tempo de trabalho muito menor que o estimado se adotasse a primeira opção e propôs um calculo baseado em uma hora de trabalho que encontrou em um site com médias salariais de programadores, seguindo, em certo sentido, a teoria de Marx (o curioso é que ele se considera “anticomunista”). E o programador então declinou a contra proposta e desejou boa sorte ao gestor na busca por um programador com a especialidade demandada e disposto a receber o que estava a oferecer. Após algumas tentativas, o gestor descobriu que não funcionou como esperado sua tentativa de solução com base na teoria do valor do trabalho que adotou (de Marx, sem saber).

A teoria de Marx, hoje penso, é um capítulo do sonho de consumo socialista de revogar as leis de mercado e nas experiências em que tentaram, quebraram estados, sendo o caso mais notório o da União Soviética.

04/02/2024 12h40

Imagem: Mises Institute

Eugen von Böhm-Bawerk

“[…] o dispêndio de trabalho exerce ampla influência sobre o valor de troca de muitos bens. Mas não como causa definitiva, comum a todos os fenômenos de valor, e sim como causa eventual, particular.”

Obra: A Teoria da Exploração do Socialismo Comunismo. 14. Cinco Exceções Factuais Negligenciadas por Marx. Mises Brasil, 2010, São Paulo. De Eugen Böhm Ritter von Bawerk (Tchéquia/Brun, 1851-1914).

Informa o editor (p. 7) que este livro é o Capítulo XII de Geschichte und Kritik der Kapitalzins-Theorien (História e crítica das teorias de juro), primeiro dos três volumes de Kapital undKapitatzins (Capital e juro).

Fiz um esforço com a memória e percebi que até meados de 1995 acreditava no que li na abertura do capítulo 4 de O Capital, na edição resumida por Julian Borchardt [195], de que “o valor das mercadorias não é senão o trabalho humano nelas contido” (p. 29), até que por uma piada contada por um colega comecei a pensar que tinha alguma coisa errada na explicação de Marx.

Naquele ano os computadores pessoais (PC) começaram a ficar mais populares com os efeitos do fim da reserva de mercado, e o negócio de fornecer sistema folha de pagamento para escritórios de contabilidade deu um salto considerável. Em um encontro de estudantes de economia comentava os benefícios da “informatização” (termo à época) no aumento da produtividade, quando um colega pediu a palavra para me lembrar sobre o que um professor tinha acabado de explanar sobre a teoria de Marx acerca do valor, e assim se escritórios quisessem gerar mais serviços, teriam que empregar mais pessoas em vez de investir em tecnologia com computadores, softwares e impressoras para processar cálculos e emitir documentos em maior escala, pois “o valor das coisas se dá pelo trabalho humano nelas contido”; quem entendeu a ironia começou a rir.

Saí daquele encontro pensando o quanto do que falei tinha se chocado com minhas crenças marxistas até então. Vivia os últimos suspiros de Marx como fonte de “verdades” econômicas. Pensei um tempo depois que os computadores, aplicativos e impressoras popularizados significavam apenas um estágio tecnológico em relação à variável do trabalho humano, entre diversas que formam a cadeia de custos, pois Marx quando escreveu O Capital, estava no contexto da Revolução Industrial e poderia ter percebido que a fundamentação de valor a gravitar em torno do trabalho não fazia sentido ao observar o funcionamento das economias. No entanto, o equívoco maior só puder entender quando percebi melhor o processo de geração de valor através da dinâmica dos mercados, das trocas entre agentes, e isso se deu no final daquele ano quando minha consciência sobre a geração de valor estava consolidada.

Conheci o que passou a ser chamada de Escola Austríaca (EA), no século XX, somente após doze anos e o nome de Eugen von Böhm-Bawerk me foi apresentado em bibliografias por leituras sobre Mises, Hayek e Rothbard. Então pude aprender sobre a envergadura intelectual de Böhm-Bawerk, que está na base da EA. Nesta mesma época comecei a estudar mais as raízes da teoria de Marx quanto ao ignorar o problema da escassez e da subjetividade humana nas escolhas de consumo, fatores que se relacionam com sua aversão às leis de mercado; hoje entendo que Marx não estava interessado em desenvolver pensamento pelas variáveis nos mercados e deu grande ênfase ao fator do trabalho humano por motivações políticas; centralizar a variável do trabalho humano retroalimenta a teoria da luta de classes, penso.

Böhm-Bawerk indica o quanto Ricardo influenciou Marx, e enquanto o primeiro sabia que o valor do trabalho é somente uma lei particular e que o valor dos bens escassos se explica por outros fatores; já o segundo deu preferência a uma teoria particular com ares de geral, o que acabou sendo aprofundado por seus seguidores que a colocaram “no topo de suas afirmações práticas mais importantes” (p. 114), mas se deu um conflito entre o que Marx tinha apresentado como capital constante e capital variável (valor dos recursos humanos), este último supostamente ligado à mais-valia, quando se observou que as taxas de lucro flutuavam e não batiam com a teoria, contentou-se então com os clássicos (p. 117) em Adam Smith (“natural price”, Ricardo (“price of production”) e os fisiocratas (“prix nécessaire”) sem categoricamente reconhecer a falha de sua teoria.

195.  Capital. Vol I, capítulo 15. Edição Resumida por Julian Borchardt. Guanabara, 1982, Rio de Janeiro. Tradução de Ronai do Alves Schmidit. De Karl Marx (Reino da Prússia/Renânia-Palatinado/Tréveris, 1818-1883).

03/02/2024 19h01

Imagem: Igreja Adventista do Sétimo Dia

Ellen White

“É real que existem cristãos verdadeiros dentro da fé católica romana. Milhares dessa igreja servem a Deus de acordo com a melhor luz que receberam.”

Obra: O Grande Conflito. Uma saga milenar e seu final surpreendente. 35. A ameaça. Casa Publicadora Brasileira, 2022, Tatuí. Tradução de Cecília Eller Nascimento. De Ellen Gould White (EUA/Maine/Gorham, 1827-1915).

Notei nos tempos do seminário (2003-2007) uma certa tendência para desmoralizar Ellen White entre os mais indignados com seus escritos. Hoje penso o quanto havia de viés naquelas ocasiões. Isto posto, um tempo depois percebi que as obras da co-fundadora da Igreja Adventista do Sétima Dia são interessantes por diversos aspectos, sobre os quais os criativos sempre me despertam, embora alguns diriam “heréticos”, outros “plágio”.

Da mesma forma que leio obras espíritas enquanto não sou espírita, o mesmo ocorre quando me deparo com obras adventistas. Uma das vantagens de não ter partidarismo religioso é apreciar conhecimentos sem o ruído das paixões internas doutrinárias, o que é salutar quando a intenção for aprender o que pensa o outro e o que posso tomar como lição de vida na experiência como leitor.

Se o meu eu de 2004, que se encontrou com esta obra na biblioteca do seminário naquele ano, lesse o que acabei de escrever nos dois parágrafos anteriores, ficaria bastante desapontado. Diria meu eu de 2004: “seita!”, porém penso que, mais uma vez, a experiência de leitura pela revisitação de uma obra se provou como um “grande conflito” (peço escusas pelo trocadilho) entre o meu eu apologeta na primeira experiência e este meu eu contemporâneo.

Quanto ao trecho (p. 235), Ellen White assim completa o parágrafo:

“[…] O Senhor olha com misericordiosa ternura para as pessoas que foram educadas em uma fé tão enganosa e insatisfatória. Ele levará raios de luz a penetrar nas trevas, e muitos ainda se unirão ao Seu povo.”

Fica claro para mim que Ellen White, consoante esta crítica, separa as pessoas que, de boa fé professam uma religião, no caso a católica romana, dos problemas que considera na instituição pela qual estão filiadas e por ela se dedicam no serviço a Deus, além de que não apela a um exclusivismo institucional, embora o “exclusivismo” seja um ponto delicado quando se aprecia os livros da autora de forma mais abrangente. Se católicos romanos podem se sentir ofendidos com as críticas que ela apresenta ao sistema papal, considero fundamental ler a obra, deixar a autora falar e visitar várias fontes históricas independentes para melhor avaliar suas críticas, pois muitas servem como pontos de reflexão, não apenas do ponto de vista doutrinário de cada um, não apenas para o catolicismo romano atual, mas também para as igrejas reformadas, das históricas às novas confissões.

Sobre o sábado, é comum na linha protestante, e de afins, o entendimento que o domingo foi oficializado no calendário eclesiástico como “dia santo” [194] cívico e religioso da semana por uma determinação do imperador Constantino (306-327), o que indicaria um reflexo da influência política sobre a igreja romana, no entanto, é preciso considerar que o primeiro dia da semana, além de ser o da Ressureição, o que por si só consiste em um enorme peso teológico, era observado em atividade na igreja primitiva (Atos dos Apóstolos 20, 7 e I Cor 16,2) e que no Novo Testamento se registram tensões entre cristãos judaizantes (a fé cristã é filha do judaísmo) e gentios (as carta de São Paulo aos filipenses são bem sugestivas), processo que pode ter influenciado na liberação quanto à observação de práticas judaicas entre pagãos (e sendo o sábado uma delas…), a prática do domingo pode ser compreendida mediante uma fé em transformação que se afastou das raízes judaicas e se tornou cosmopolita, multicultural, e não por razões políticas.

Prefiro falar então sobre um ponto que considerei oportuno neste capítulo (35) quando a autora trata do problema do que penso sobre o uso da estética em cultos para impressionar (manipular) as pessoas, o que se relaciona com o “emocionalismo” na transformação do culto em um espetáculo de entretenimento enquanto, torno ao que reflete a autora quando ela afirma sobre a religião de Cristo não necessitar de atrativos desta natureza (no contexto ela se refere à ostentação e aos rituais solenes do culto católico o que, ela entende, fascinam as pessoas), pois “a luz que brilha da cruz é tão pura e amável que nenhuma decoração externa pode ser acrescentada a seu verdadeiro valor”, argumenta (p. 236).

A questão a se meditar neste ponto, penso, não é face a milenar liturgia católica romana, a qual considero belíssima, e sim ao culto protestante que deveria ser realizado para Deus e se torna uma obra para satisfazer emocionalmente o ser humano. A liturgia é diferente e não anula que a primeira hipótese possa ocasionar no efeito mencionado na segunda; emociona não porque foi feita para o homem, e sim pela experiência humana que se enleva espiritualmente na aproximação do culto a Deus.

194. 24/12/2023 12h56

02/02/2024 22h12

Imagem: augustinus.it

Santo Agostinho de Hipona

“Mas de novo refletia: ‘Quem me criou? Não foi o bom Deus, que não é só bom, mas é a própria bondade? De onde, então, me vem essa vontade de querer o mal e não querer o bem?'”

Obra: Confissões. Livro Sétimo. Capítulo III. Deus e o mal. Martin Claret, 2002, São Paulo. Tradução de Alex Marins. De Aurelius Augustinus Hipponensis (Aurélio Agostinho de Hipona), Santo Agostinho de Hipona (Norte da África/Tagaste, 354-430).

Torno ao Livro Sexto das Confissões de Santo Agostinho. De última vez [193] o tinha consultado em uma edição italiana de augustinus.it e, desta vez, torno à edição em português por recordação, pois foi usada em um diálogo muito interessante que tive com um irmão ateu há 22 anos; irmão não no sentido familiar, e sim no que discorrerei adiante. Uma pergunta foi, essencialmente, a mesma feita no trecho (p. 144) desta Leitura, mas não do ponto de vista pessoal; Deus existe mesmo?, e sendo o Bem Supremo, por que então permite que o ser humano, muitas vezes, pratique o mal?

Na retrospectiva que Agostinho faz de si mesmo, conta no Livro Quinto (Capítulo XIV) o rompimento com os maniqueus, que fez parte do processo de sua conversão à fé católica, fato que provocou o então professor (que se tornou catecúmeno da igreja do bispo Ambrósio em Milão) a revisitar o problema da existência do mal e é neste contexto, penso, que se desenvolvem inicialmente as confissões sobre o tema até o Livro Sétimo. Sai o mal antagonizado no maniqueísmo, visto anteriormente com certa naturalidade pelo Agostinho antes da conversão, e entra uma reflexão sobre o mal relacionado com o peso das decisões humanas e suas consequências diante de Deus. Descartada a doutrina dos tempos de maniqueu, Agostinho sintetiza um longo e complexo caminho de reflexões teológicas para chegar a conclusão de que o mal é uma perversão mediante uma vontade que provoca um afastamento da substância suprema, isto é, uma ação humana que ocasiona no distanciamento de Deus (Capítulo XVI, p. 158). Na medida em que pratica o mal, o ser humano se afasta de Deus.

Torno ao meu colega ateu e me chamou a atenção o fato do reconhecimento do “bem” e do “mal” no problema apresentado por ele, pois tinha conversado com outros ateus mais relativistas. Era janeiro de 2002 e a questão aflorou após refletirmos sobre as ações militares dos EUA no Afeganistão após os ataques do 11 de setembro do ano anterior. Se Deus existe, por que permite o mal, e no caso, estampado na forma de um atentado terrorista que mata quase 3 mil inocentes?, questão em relação ao ataque às torres gêmeas do World Trade Center; e desta indagação pensamos em outros ataques terroristas, em fundamentalismos cristãos e islâmicos, refletimos sobre a influência nefasta dos EUA no Oriente Médio, e neste ponto aprofundamos o fato de o ser humano agir com imensa perversidade no mundo da política, até pensarmos em guerras produzidas por esse mesmo ambiente de poder. Se tivéssemos conversa análoga hoje, certamente teríamos pensado sobre o problema do mal em relação aos ataques de 7 de outubro do ano passado, do grupo terrorista do Hamas, que matou mais de mil judeus, assim como também refletiríamos sobre as dezenas de milhares de palestinos mortos pelos mísseis de Israel. O mal que flagela ou extermina inocentes, crianças, idosos, indefesos, novamente a questão que dói na alma.

A resposta de Agostinho provoca outros “por quês” enquanto sugere a maldade como um movimento, penso, uma indicação que pode sugerir um fator atrelado ao livre-arbítrio, outro ponto delicadíssimo de nosso cordial diálogo. Será que existe “livre-arbítrio” mesmo ou temos uma ideia vaga de liberdade quando se acredita em um deus?, suscitou o colega, aproximando-se do relativismo pós-moderno,. O termo “quando se acredita” fora usado no contexto de se ter fé para seguir preceitos, e não simplesmente o reconhecer a existência, pois é possível tal condição sem obediência ou observação de regras; alguém pode acreditar que Deus existe enquanto também pode rejeitá-lo. O problema do livre-arbítrio aflorou pois eu tinha sugerido que Deus criou o homem com potencialidades para decidir se vai amá-lo ou não, obedecê-lo ou não, ouvi-lo ou não; não existe amor por imposição e ao criar o ser humano, Deus teria inserido essa configuração em nosso “software”, para decidirmos muitas coisas enquanto opera em nós uma natureza com leis que não podemos anular, mas que podemos entendê-las melhor para aprendermos a lidar com ela de forma mais agradável a começar pela nossa ψυχή até o que chamamos de “mundo natural”. Assim, o colega ateu o é pela condição natural do ser humano, bem como sou crente em Deus nessa condição e, neste aspecto, a fé que tenho opera em um mundo que não posso controlar, sendo dádiva, mas sendo graciosa do mundo natural, porque alguns não a possuem? Deve haver alguns componentes em que a ação humana de certa forma influi, e aqui penso em uma situação de voltar-se para Deus por meio de um impulso onde reside o arrependimento, entre outras coisas. Tudo isso não anula o conhecimento que tenho de que meu colega ateu é meu irmão no sentido natural, irmão da terra; vivemos em uma mesma casa no universo, sob leis naturais pelas quais não podemos revogar e que nos foram apresentadas de forma objetiva, sob esforços que fazemos para descrevê-las, sendo o mais preciso chamado de “ciência”.

O mal está em uma questão relacionada à liberdade, profunda e que, talvez, atravesse uma dimensão que não consigo enxergar. Só sei que seria de minha parte uma imensurável ingratidão passar à descrença em Deus, mas isso é uma questão existencial de minha parte, ou seja, não me legitima a julgar meu colega por ser ateu ou por não compartilhar minha fé; como disse, somos irmãos da terra, estamos no mesmo barco do mundo natural. Deus é o Bem Supremo e se um ateu ou qualquer outra pessoa se ocupar em praticar a bondade com seus semelhantes, sem dúvida estará mais próxima dele.

193. 25/04/2023 20h06

01/02/2024 23h14

Imagem: IHU

Zygmunt Bauman

“Os homens e mulheres pós-modernos realmente precisam do alquimista que possa, ou sustente que possa, transformar a incerteza de base em preciosa auto-segurança […]”

Obra: O Mal-Estar da Pós-Modernidade. XIII. Religião pós-moderna? Jorge Zahar Ed., 1998, Rio de Janeiro. Tradução de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. De Zygmunt Bauman (Polônia/Poznań, 1925-2017).

Eis a era dos experts em “identificar problemas”, dos “restauradores da personalidade”, dos “guias de casamento”, dos escritores de “auto-afirmação”, aponta Bauman (p. 221). Um tempo em que ficou mais perceptível, neste ponto é uma reflexão pessoal, o indivíduo-massa que se deslumbra com o tecnológico e assim “resolve” o que pelo intelecto decidiu abandonar; penso que vivo em um tempo da imensidão do tipo não pensante por comodidade e que foi configurado para procurar um “guru” que faça o empreendedorismo mental em seu lugar, um mestre que lhe revele o caminho, esclareça os mistérios mais profundos do que não se compreende dentro de si mesmo, enquanto prefere apertar uns botões ou tomar um ansiolítico, quando não dispõe de quem o conduza.

Não raramente haverá desaponto nesse mundo inflado por quem espera por respostas enquanto alguém decide deixar perguntas e dúvidas. Quando se tenta parir alguma verdade, pode-se compreender uma sombra de como essa empreitada é dolorosa, e o verbo utilizado aqui não é apenas força de expressão. Contudo, além da pós-modernidade estão os que preferem um “parto natural”, naquele sentido dado por Sócrates no desejo do saber pela dor que liberta enquanto desnuda limitações, um labor que proporciona uma conexão mais profunda consigo mesmo e com a realidade exterior.

Torno a Bauman que fala sobre “assombrados pela incerteza de estilo pós-moderno”; tais “não carecem de pregadores para lhes dizer da fraqueza do homem e da insuficiência dos recursos humanos. Eles precisam da reafirmação de que podem fazê-lo – e de um resumo a respeito de como fazê-lo” (p. 222); neste ponto penso, aqui é mais uma reflexão pessoal, sobre como a “religião do pós-moderno” invadiu a fé cristã, removeu Cristo do culto e inseriu o ser humano com seus vícios de mesquinhez consumista, que de tão insaciável na busca por realizações de posses e auto afirmação, acaba por produzir obras genuínas de ateísmo prático.

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